a neurose profissional · colabora Ão internacional a neurose profissional * • nlcole aubert...

22
COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene Stocco Betlol, revista por Edlth Sellgmann Silva, Professoras do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração da EAESP/FGV. . * RESUMO: O texto procura mostrar as diferenças existen- tes entre os conceitos de stress e neurose em situação de trabalho, que, segundo a autora, não é apenas terminológi- ca, mas principalmente de referencial teórico que embasa os dois conceitos. Três casos clínicos são relatados, ilustrando os conceitos de "neurose profissional traumática", "psico- neurose profissional", e "neurose de excelência", justifican- do o uso da expressão neurose e não apenas stress, conside- rável menos duradoura e paseioel de retorno a um estado de equilíbrio. 84 Revista de Administração de Empresas * PALAVRAS-CHAVE: stress, burn-out, neurose profis- sional traumática, psiconeurose profissional, neurose de excelência. * ABSTRACT: The text aims to show the differences bet- ween the concepts of stress and neurosis in working condi- tions, according to the author is not only based on the terms but mainly on the theoretical basis of the concepts. Three clinic cases are explained illustrating the concepts of "irau- matic professional neurosis", "professional psichoneurosis" and "neurosis of excellence", justifying the use of the word neurosis instead of stress because the later is considered less enduring and allowing the return to equilibrium. * KEY WORDS: stress, burn-oui, traumatic professio- nal neurosis, professional psychoneurosis, neurosis of excellence. • Texto publicado originalmente sob o titulo "La névrose professio- nelle", no livro L'individu dans I'crganísatíon: les dímensíons oubliées, coordenado por [ean-François Chanlat. Québec e Oiaum, Canadá, Les presses de l'Université Laval/Editions ESKA, 1990. São Paulo, 33(1):84-105 Jan./Fev.1993

Upload: others

Post on 13-Aug-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

COLABORA ÃO INTERNACIONAL

A NEUROSE PROFISSIONAL *• Nlcole Aubert

Professora da École Supérieure de Commerce, Paris,França.

Tradução de Maria Irene Stocco Betlol, revista porEdlth Sellgmann Silva, Professoras do Departamentode Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administraçãoda EAESP/FGV. .

* RESUMO: O texto procura mostrar as diferenças existen-tes entre os conceitos de stress e neurose em situação detrabalho, que, segundo a autora, não é apenas terminológi-ca, mas principalmente de referencial teórico que embasa osdois conceitos. Três casos clínicos são relatados, ilustrandoos conceitos de "neurose profissional traumática", "psico-neurose profissional", e "neurose de excelência", justifican-do o uso da expressão neurose e não apenas stress, conside-rável menos duradoura e paseioel de retorno a um estado deequilíbrio.

84 Revista de Administração de Empresas

* PALAVRAS-CHAVE: stress, burn-out, neurose profis-sional traumática, psiconeurose profissional, neurose deexcelência.

* ABSTRACT: The text aims to show the differences bet-ween the concepts of stress and neurosis in working condi-tions, according to the author is not only based on the termsbut mainly on the theoretical basis of the concepts. Threeclinic cases are explained illustrating the concepts of "irau-matic professional neurosis", "professional psichoneurosis"and "neurosis of excellence", justifying the use of the wordneurosis instead of stress because the later is considered lessenduring and allowing the return to equilibrium.

* KEY WORDS: stress, burn-oui, traumatic professio-nal neurosis, professional psychoneurosis, neurosis ofexcellence.

• Texto publicado originalmente sob o titulo "La névrose professio-nelle", no livro L'individu dans I'crganísatíon: les dímensíonsoubliées, coordenado por [ean-François Chanlat. Québec e Oiaum,Canadá, Les presses de l'Université Laval/Editions ESKA, 1990.

São Paulo, 33(1):84-105 Jan./Fev.1993

Page 2: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

Em uma obra recente consagrada ao"siress profissional'<', propusemos o con-ceito de neurose profissional para expli-car certos casos de patologias graves einstaladas, diretamente ligadas às condi-ções profissionais dos indivíduos e cujoconceito de stress nos parecia insuficientepara explicá-los.

É este conceito de neurose profissionalque iremos tentar definir e ilustrar nestetexto, mostrando os vínculos que elemantém com os conceitos de stress e deburn out (esgotamento profissional ouainda "queimadura interna"), mais fre-qüentemente utilizado pelos pesquisado-res anglo-saxões.

Antes de definir o que entendemos porneurose profissional, faremos duas obser-vações.

A primeira refere-se à terminologia di-ferenciada que marca os enfoques anglo-saxão e francês da psicopatologia do tra-balho. Com efeito, enquanto no primeiro(enfoque) o termo stress era freqüente-mente usado e desempenhava, como se-qüência dos estudos precursores de HansSelye-, um papel de "conceito organiza-dor" nos trabalhos anglo-saxões e cana-denses consagrados à psicopatologia dotrabalho, este mesmo termo foi, em razãode suas origens na idéia de reação fisioló-gica e quase mecânica do organismo auma agressão, afastado pelos pesquisa-dores franceses. Estes últimos, extraindoda psicanálise e da menção ao incons-ciente suas referências fundamentais, or-ganizaram seus trabalhos em torno dosconceitos de desadaptação psíquica dohomem no trabalho", de higiene mentalno trabalho' ou de psicopatologia do so-frimento no trabalhos.

O conceito de neurose profissional, sebem que tenha sido ele mesmo pouco de-senvolvido, situa-se, não obstante, bemmais próximo da linha dos trabalhosfranceses. Em 1956, os doutores Le Guil-lant e Bégoín", retomando trabalhos ante-riores dos doutores Julliard (1910),Fonte-gue e Solari (1918),tinham descrito sob onome de "neurose das telefonistas" a"síndrome geral da fadiga nervosa" quefreqüentemente acometia os empregadosdesta categoria profissional e cujo quadroclínico - nervosismo intenso, insônia to-tal, diminuição acentuada das possibili-dades intelectuais, repercussão mais ou

menos grave e durável sobre o estado ge-ral e o conjunto da personalidade - ultra-passava aquele das manifestações deuma fadiga "normal", mais ou menos in-tensa mas sempre reversível, para se as-semelhar àquela das neuroses.

Esses sintomas foram relacionadoscom as condições de trabalho extrema-

Designamos por stressprofissional o processo de

perturbação engendrado noindivíduo pela mobilizaçãoexcessiva de sua energia de

adaptação para o enfreniámeniodas solicitações de seu meio

ambiente profissional.------mente penosas às quais estava submetidaa categoria profissional das telefonistas:ritmo excessivamente rápido, forte exi-gência de "rendimento", mecanizaçãodos atos e monotonia, supervisão cerradaetc., elementos estes excedendo as possi-bilidades de adaptação e se traduzindo,junto às telefonistas, pela impressão sub-jetiva de estarem acuadas, pressionadas,submersas ... antes de desembocar, emcerto número de casos, em uma desorga-nização mais ou menos intensa de suapersonalidade.

O que é preciso sublinhar aqui é que omesmo estudo efetuado do outro ladodo Atlântico, o foi em termos de stress enão foi utilizado o termo "neurose dastelefonistas" mas o de "stress das telefo-nistas", sendo, entretanto, abordada amesma patologia.

Isto nos leva a uma segunda observa-ção e nos conduz a fazer uma distinçãoentre stress profissional e neurose profis-sional. Designamos por stress profissio-nal o processo de perturbação engendra-do no indivíduo pela mobilização exces-siva de sua energia de adaptação para oenfrentamento das solicitações de seumeio ambiente profissional, solicitaçõesestas que ultrapassam as capacidadesatuais, físicas ou psíquicas, deste indiví-duo. Reservamos o termo neurose profis-sional a um estado de desorganização

1. AUBERT, M. & PAGES, M. Lestress professionnel. Paris, Mé-ridiens - Klincksieck, 1989.

2. SELYE, H. The stress of /ife.New York, McGraw-Hill, 1956.

3. SIVADON, P. & AMIEL, R.Psychopathologie du travail. Pa-ris, Éditions sociales françaises,1969.

4. VEI L, C. "Ou en est lapsychopathologie du travail?".In: DEJOURS, C; VEIL, C. &WISNER, A. (orgs.) Psychopa-thologie du travail. Paris, Entre-prise Moderne d'Edition, 1985,pp.18-23.

5. DEJOURS, C. "La chargepsychique de travail". In: Socié-té française de psychologie.Section de psychologie du tra-vail. Equilibre ou fatigue par letravam Paris, Entreprise Mo-derne d'Edition, 1980.

6. LE GUILLANT, L., ROELENS,J. BÉGOIN, BÉQUART, HANSENet LEBRETON, 1956. "La névro-se des téléphonistes". La pressemédicale, 64(13): 274-277.

85

Page 3: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

i1m COLABORAÇÃO INTERNACIONAL

7. SIVADON, P. & AMIEL. Op.cit.

8. Astenia: termo médico usadopara designar estado psíco-or-gânico de debilidade.

9. BUGARD, P. & CROCa, L."Existe-t-il des névroses du tra-vail?" In: Société française depsychologie. seção de psycho-logie du travail. Equilibre ou fa-tigue par te travam Paris, Entre-prise moderne d'Edition, 1980.

10. Esfera ti mo-afetiva: de âm-bito das variações do humor edos sentimentos.

86

persistente da personalidade, com conse-qüente instalação de uma patologia, vin-culada a uma situação profissional ou or-ganizacional determinada. Neste sentido,a neurose profissional é uma das conse-qüências possíveis do stress profissional.

Dito de outro modo, uma situação destress profissional pode, muito bem, apósuma perturbação momentânea devido auma ultrapassagem das capacidades deadaptação, "entrar em ordem", seja emrazão da diminuição das fontes de stress,seja em razão da adaptação bem sucedi-da às novas exigências do trabalho. Elapode, também, se as fontes de stress per-sistem de maneira intensa e repetida, e seas capacidades de adaptação do indiví-duo são definitivamente "ultrapassadas",desembocar em uma situação de "neuro-se profissional".

Antes de definir mais precisamente oconceito, salientemos que uma controvér-sia se estabeleceu na corrente francesa, apropósito do conceito de "neurose do tra-balho", alguns considerando que não setrata de uma afecção de um tipo clínicoparticular, mas de uma psiconeurose(quer dizer, de uma afecção psíquica, re-metendo a conflitos infantis) posto às cla-ras no indivíduo, pelo trabalho. Assim,para Sivadon e Amiel", "a neurose do tra-balho não é uma afecção de um tipo clínicoparticular, mas uma categoria de perturba-ções neuróticas (...) aparentemente ligadas àscondições do trabalho e ao meio ambiente in-dustrial, geralmente detectadas pela ocasiãodo trabalho". Ela se caracteriza no sujeitoneurótico pela presença, além dos ele-mentos específicos de sua neurose (ob-sessões, fobias, fenômenos de conversãohistérica etc.), de outros elementos, taiscomo perturbações nas relações com osoutros, dificuldades com autoridade (de-vida à imaturidade afetiva do indivíduoe à não resolução de seus conflitos afeti-vos de base) e sobretudo uma astenia 8 tí-pica que predomina pela manhã e quediz respeito à luta que o sujeito neuróticodeve travar, ao mesmo tempo, no frontinterno, contra a angústia a fim de con-servar sua identidade, e no front externo,contra as agressões violentas do mundodo trabalho.

É esta a razão pela qual certos autores- tais como Bugard e Crocq 9 - conside-ram que não existem neuroses verdadei-

ras do trabalho, pois as neuroses assimqualificadas por Sivadon não são, de fato,senão psiconeuroses, que são desenca-deadas por ocasião do trabalho. Eles pro-põem então, substituir o conceito de neu-rose do trabalho pelo de astenia reacio-nal ao trabalho que "oferece correlações es-treitas com os stress do inventário existen-cial" e que se caracteriza por:

1. uma síndrome de repetição marcadapor "uma impregnação diurna pelafunção ou pela situação traumatizan-te" e por sonhos "repetindo a situaçãotraumatizante, sonhos profissionais ourelativos ao elemento estressante daexistência, ao longo do sono, que é, emgeral, pesado e não repousante";

2. um comprometimento da esfera timo-afetiva 10, marcado por "problemas emo-cionais, reações de sobressalto, ansiedadepsíquica e angústia somática";

3. desordem na esfera somática "com fa-diga muscular real ou paradoxal" (istoé, contraturas musculares que ocorremem sujeitos que efetuam tarefas decontrole imóvel, com tela de vídeo, porexemplo).

Este conceito de astenia reacional dotrabalho implica, para seus autores, a as-sociação - como no caso da neurose trau-mática - de um traumatismo e de umconflito. Mas ele se diferencia à medidaque o traumatismo a que faz alusão é"menor, repetitivo, ininterrupto" e sobre-tudo ele é físico e corresponde a um oumais fatores de perturbação do posto detrabalho e do ambiente, tais como nívelde barulho, ritmos do trabalho, posturasou movimento de características difíceisou dolorosas para o trabalhador, superes-timulação psicossensorial (trabalho comtela de vídeo, por exemplo etc.).

A astenia reacional do trabalho consti-tuiria, pois, uma entidade clínica em rela-ção direta essencialmente com as condi-ções de trabalho e os fatores patogênicosdo trabalho e do resto da existência(transporte, habitação, estilo de vida etc.).Se retomarmos o exemplo da "neurosedas telefonistas" acima citado, é evidenteque o que Le Guillant e Bégoin tinhamanalisado sobre o assunto entraria perfei-tamente no contexto desta descrição.

Entretanto, se entre todos estes termos

Page 4: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

nós finalmente escolhermos manter o deneurose profissional, é porque ele nosparece abarcar uma acepção muito maisampla do que aquela proposta pelos pes-quisadores que nós mencionamos. Comefeito, por um lado, a neurose profissio-nal pode, muito bem, não remeter a umapsiconeurose anterior e encontrar suaorigem na própria situação profissional,por outro lado, ela não coloca em jogo,segundo nosso ponto de vista, as condi-ções (físicas principalmente) unicamenteligadas ao posto de trabalho do indiví-duo, mas pode, muito bem, decorrer deuma problemática organizacional parti-cular, que solicita psiquicamente o indi-víduo, de forma tal que ele não consegueresponder.

Resumindo, designamos por neuroseprofissional uma afecção psicogênicapersistente na qual os sintomas são a ex-pressão simbólica de um conflito psí-quico no qual o desenvolvimento estáligado a uma situação organizacional ouprofissional determinada. Este conflitopode encontrar sua origem na própria si-tuação profissional, sem remeter particu-larmente a um conflito infantil, e propo-mos, neste caso, o conceito de neuroseprofissional atual. Ele pode, igualmente,encontrar suas raízes na história infantildo indivíduo, e não ser, senão, uma rea-tualização, pela situação profissional deum conflito psíquico infantil. Dito de ou-tra forma, se nos encontramos em pre-sença de um conflito psíquico, ligado auma situação profissional ou organiza-cional precisa, esta última pode ser a fon-te direta do conflito, do que os sintomasneuróticos são a expressão, ou ser, ape-nas, uma ocasião de reatualização, de re-vivescência de um conflito anterior. Pro-pomos, no segundo caso, o conceito depsiconeurose profissional para exprimira idéia de que o indivíduo revive, atravésde uma situação organizacional ou pro-fissional determinada, um conflito infan-til, e que a situação em questão é a causadesta revivescência.

Relembremos, para justificar essas de-nominações, que o conceito de psiconeu-rose foi cunhado por Freud em 189411pa-ra caracterizar as afecções psíquicas ondeos sintomas são a expressão simbólica deconflitos infantis, em oposição às neuro-ses atuais - o termo não aparece senão

em 1898 - cuja origem não necessita serbuscada nos conflitos infantis, mas nopresente.

Ilustraremos este conceito de neuroseprofissional com três casos clínicos. Oprimeiro é uma neurose profissionalatual e constitui aquilo que chamamosum caso de neurose profissional traumá--------

A neurose de excelência,mostra como certas situaçõesorganizacionais provocam emalguns tipos de personalidade,

que buscam um ideal profissionalelevado e investem na instituição,

o estabelecimento de processosneuróticos.------tica. O segundo é um caso de psiconeu-

rose profissional e mostra como a "rela-ção psíquica" mantida por certos indiví-duos com a organização na qual eles es-tão inseridos, apresenta, às vezes, umasemelhança com certas relações confli-tuais infantis. Enfim, o terceiro exemplo,que constitui um caso daquilo que cha-mamos de neurose de excelência, mostracomo certas situações organizacionaisprovocam em alguns tipos de personali-dade, que buscam um ideal profissionalelevado e investem na instituição, o esta-belecimento de processos neuróticos. Es-te terceiro caso poderia ser igualmenteanalisado com a perspectiva do conceitoanglo-saxão de burn out (ou "queimadurainterna"), criado para designar o proces-so de estar sendo brutalmente tragado eo do esgotamento psicológico que atingemais particularmente as personalidadesque, tendo nutrido um ideal elevado etendo investido muito, estão mesmo "su-peridentificadas" com seu trabalho, como objetivo de alcançar este ideal. Se assimsublinhamos esta aproximação com umconceito ainda pouco divulgado na Fran-ça, é para destacar - como o fizemos apropósito do stress - a que ponto, atravésde conceitos diferentes, as situações ana-lisadas são as mesmas e os processos des-critos, idênticos.

11. FREUD, S. "Les psychoné-vroses de défense" (1894).In:FREUD, S. Névrose, psycho-se et perversíon. Paris, PUF,1978.

87

Page 5: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

jJ!J1J COLABORAÇÃO INTERNACIONAL

uma experiência ocorrida que o surpreendeu,e que ultrapassou suas defesas e que foi vivi-da, segundo a expressão de Freud, como umaausência de socorro". 13

O segundo elemento do quadro clíni-co da neurose traumática é a síndromede repetição, que compõe a semiologiapatognomônica 14e se traduz, principal-mente, por pesadelos que fazem revivera cena traumatizante que deu origem àneurose. Esta síndrome se manifesta,igualmente, por ruminações mentais ob-sessivas sobre o traumatismo e suas con-seqüências. Segundo Freud, esta síndro-me de repetição traduziria a "fixação aotraumatismo" e o esforço reiterado tar-diamente para "ligá-Io"15e "ab-reagir"16a ele. "Trata-se de uma tentativa do orga-nismo para dominar a representação imagi-nária de um acontecimento que - escravi-zando pela violência e efeito surpresa - nãopode ser dominada quando de sua apariçãona realidade=v,

O terceiro elemento clínico, específicoda neurose traumática, é a reorganizaçãoda personalidade após o traumatismo,caracterizada essencialmente pela "fixa-ção ao traumatismo". É esta fixação queFreud considerava como o mecanismoessencial e permanente da reorganizaçãoneurótica da personalidade: tudo se pas-sa, com efeito, como se, através de seussintomas e por todo seu comportamento,o doente parecesse polarizar em direçãoao traumatismo e diminuir suas percep-ções, seu campo de consciência, suas ati-vidades, suas reações e seus projetos.Produz-se aquilo que Fenichel chamavaum "bloqueio das funções do ego" - fun-ções de proteção, de presença e libidinais- bloqueio que Crocq assim descreve:

"No que concerne às funções de proteção, oorganismo não é mais capaz de filtrar nem deinterpretar os estímulos significativos neces-sários às suas atividades de poder e de rela-ção. Por exemplo, ele 'recusa' perceber as es-timulações ou, ao contrário, se sobressalta àtoda estimulação - mesmo não nociva - ouainda, fica insensível às estimulações fortesmas fica hipersensível aos estímulos leves (...)As funções de presença, que asseguram oequilíbrio entre o Ego e o mundo exterior, sãoinibidas. O fechamento sobre si mesmo, oabandono das funções mentais superiores, aperda de iniciativa, a sonolência ou - no limi-te - o estupor, traduzem esta ruptura com o

12. Pulsional: referente à pul-são, conceito freudiano relacio-nado aos impulsos configura-dos em pressões originadas porestados de tensão interna. Oconceito de pulsão passa porsucessivos desenvolvimentosna obra de Freud.

13. CROCQ, L. "Evénement etpersonnalité dans les névrosestraumatiques de guerre". In:GUYOTAT, J. & FEDIDA, P.(orgs.). Evénement et psycno-pathologie, Vil/eurbanne, Simep,1985, pp. 111-20.

14. Patognom6nico: sinal ousintoma característico e essen-cial para o diagnóstico de deter-minada doença.

15. N.T.: "Ligá-lo" refere-se aoato de relacionar o afeto ao fatotraumático. Se não houver adescarga emocional, que podeir das lágrimas à vingança, oafeto continua ligado à recorda-ção, dando curso às representa-ções patogênicas.

16. N.T.: "Ab-reagir", descargaemocional pela qual um indiví-duo se liberta do afeto ligado àrecordação de um acontecimen-to traumático, permitindo-lheassim, não se tornar ou nãocontinuar patogênico. Apud LAPLANCHE,J. & PONTALlS, J. B.Vocabulário de Psicanálise. SãoPaulo, Martins Fontes Editora,1985.

17. CROCQ,L. Op. cit., p. 117.

88

A NEUROSE PROFISSIONAL TRAUMÁTICA

Neurose traumática e acontecimentotraumático

Falar de neurose traumática profissio-nal implica podermos fazer referência aum ou mais acontecimentos ou cenas psi-cotraumatizantes, que desencadeiamuma sintomatologia clínica do mesmo ti-po que aquela habitualmente descrita,para este tipo de neurose.

Recordemos que o conceito geral de"neurose traumática" havia sido criadoem 1882 por Oppenheimer, para designaras perturbações neuróticas consecutivasao pavor sentido durante acidentes na es-trada de ferro. O conceito foi posterior-mente retomado a propósito das "neuro-ses de guerra", nas quais o traumatismopsicológico está ligado ao pavor sentidodurante o combate e, de uma maneiramais geral, às agressões de todos os tipossuscitadas pela atmosfera e as circunstân-cias da guerra.

Este conceito é interessante naquiloque, entre os diferentes tipos de neurosedistinguidos por Freud "neurose atual,mantida por um conflito pulsional v

atual"; psiconeurose, remetendo a umconflito infantil e neurose traumática), aneurose traumática é a única que depen-de de um determinismo exterior: trata-se da irrupção de um acontecimentovindo de fora perturbando uma perso-nalidade sã.

Retomando o quadro clínico da neuro-se traumática (e das neuroses de guerra,em particular), L. Crocq sublinha bem co-mo a sintomatologia dessas neuroses tra-duz esta patogenia do acontecimento. Osprincipais elementos deste quadro sãoem número de três: primeiro o tempo delatência (ou de ruminação, de incubação,de mediação), que separa a experiênciatraumatizante dos primeiros sintomas, ecuja duração é variável (de algumas ho-ras a alguns meses nas "neuroses de de-portação", por exemplo). Esse período demeditação solitária é o período determi-nante para a instalação da neurose, e amaioria dos autores insistem, aliás, sobrea necessidade de não deixar o sujeito so-zinho com suas ruminações mas, ao con-trário, fazê-lo falar a fim de que ele possadominar, "pela objetivação da linguagem eem face à presença reasseguradora do outro,

Page 6: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

mundo exterior (...) Enfim, a inibição da se-xualidade e, de uma maneira geral, das dispo-nibilidades de relação afetiva com o outro é arazão do esgotamento da reserva de energia li-bidinal, inteiramente canalizada para a ur-gência do domínio do traumatismo". 18

Toda uma controvérsia desenvolveu-se a propósito do desencadeamento daneurose traumática em relação ao fato dese saber se ela tem relação unicamentecom um determinismo exterior (aconteci-mento psicotraumático vindo de fora) ouse, ao contrário, o acontecimento emquestão não faz senão revelar uma neu-rose "latente" anterior. Após Freud, quehavia, desde 1895, denunciado o papelfalacioso dos "traumatismos de lembran-ças encobridoras", toda uma corrente depesquisa (Fenichel, Abraham, Hoffer,Masud Kahn) postulou a preexistência de"traumatismos silenciosos", tendo ocorri-do na infância e se revelando, somente,após o acontecimento, quando da ocor-rência de um segundo acontecimento.

Outros autores, ao contrário - comoCrocq - mostraram bem o caráter deter-minante, na neurose traumática, do trau-matismo psicológico com suas caracterís-ticas de violência, de urgência e de exce-ção. De fato, parece hoje ser admitido(Laplanche e Pontalis) que existem, de fa-to, duas formas de neurose traumática:uma na qual o traumatismo agiria comoelemento desencadeador, revelador deuma estrutura neurótica preexistente, eoutra, em que o traumatismo tem partedeterminante no conteúdo mesmo dosintoma. É preciso, então, parece, "conser-var um lugar à parte, do ponto de vista noso-gráfico e etiológico, às neuroses, onde umtraumatismo, em junção de sua própria natu-reza e de sua intensidade, seria o fator, de lon-ge, predominante no desencadeamento e ondeos mecanismos em jogo e a sintomatologia se-riam relativamente específicos, em relaçãoàqueles das psiconeuroses". 19

O caráter determinante que pode, porsi só, ter um acontecimento ou uma ex-periência traumatizantes, excepcionaispor sua violência ou intensidade, parece-nos plenamente justificável para ser su-blinhado, sobretudo, porque ele relativi-sa os acontecimentos e as peripécias dodesenvolvimento afetivo da infância.Não se trata, é claro, de negar a impor-tância dessas primeiras experiências,

mas de não atribuir, somente a elas, umcaráter determinante. Dito de outra for-ma, nem tudo é "desempenhado" na in-fância e todos os acontecimentos e expe-riências posteriores da existência podem,também, assumir um caráter "reorgani-zante" e estar na origem de processosneuróticos.-------

o perigo para o trabalhadoré aquele da subutilização de suasaptidões psíquicas jantasmáticas

ou psicomotoras, pois estasubutilização ocasiona, então,

uma retenção de energiapuleional, aquela que

constitui, precisamente, a cargapsíquica do trabalho.------

Este é bem o caso, por exemplo, daqui-lo que nós chamamos de "neurose profis-sional traumática". Notemos, inicialmen-te, que se transpusermos o conceito de"acontecimento traumático" ao universoprofissional, um dos primeiros exemplosque nos ocorre - e que, infelizmente, sebanaliza em certas profissões - é aqueledas agressões armadas das quais são víti-mas, por exemplo, certos agentes bancá-rios e que, para alguns deles, desembo-cam em uma "neurose traumática": umestudo foi consagrado a este assunto porChristine Voge em 1985.

Mas certas profissões, mesmo nãocomportando riscos de agressões físicascaracterizadas são, por outro lado, muitocarregadas de agressões psíquicas. Estaagressão psíquica pode, então, tomar umcaráter de acontecimento ou de experiên-cia traumatizante e desembocar em umprocesso de neurose traumática. Este é ocaso que ocorre, às vezes, em enferma-rias, onde o pessoal deve enfrentar a"agressão psíquica" da morte 20.

Este é um processo de "neurose trau-mática profissional" que queremos agoradescrever através da história de Simone,enfermeira em um grande hospital nosarredores de Paris.

18. Idem, ibidem, idem, p. 113.

19. LAPLANCHE, J. & t'ONTA-LlS, J. B. Vocalulaire de laPsychanalyse. Paris, PUF, 1967,1973, p. 288. (Em português,ver nota 15).

20. LOGEAY,P. & GADBOIS, C."L'agression psychique de lamort dans le travail infirmier".In: DEJOURS, G; VIEL, G; &WISNER, A. (orgs.) Op. cit. pp.81-6.

89

Page 7: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

i1m COLABORAÇAo INTERNACIONAL

21. DEJOURS, C. Op. cit.

A história de SimoneSimone, filha de pai operário e de mãe

auxiliar de enfermagem, decide, aos 18anos, tomar-se enfermeira. Titular de umúnico certificado de estudos obtido aos14 anos e tendo passado quatro anos fa-zendo "bicos", ela retoma os estudos du-rante um ano e é admitida na escola deenfermagem aos 19 anos. Após a diplo-mação, ela trabalha durante quatro anosem um hospital do interior e retoma aParis, onde assume um cargo de enfer-meira em um grande hospital. Ela é rapi-damente indicada para o serviço de ur-gências, inicialmente como enfermeira eposteriormente como supervisora.

Dos quinze anos ali trabalhados, Simo-ne guarda excelente lembrança. Tipo detrabalho, relações profissionais, interessepelo serviço, camaradagem, tudo lheagradava nas urgências durante os quin-ze anos ali passados, e suas ex-colegasenfermeiras se recordavam com emoçãodesta época, de seu papel como coorde-nadora de equipe, do ambiente que elasabia criar e da simpatia que reinava noserviço: Simone tinha mesmo organizadocom suas "meninas" enfermeiras um pe-queno coral e todo serviço começava,dessa forma, pela manhã através de can-tos. Trabalhar com urgências parece serfonte de muito stress, em função daagressividade dos doentes que deve serenfrentada, às vezes de golpes que se re-cebe, da necessidade de agir permanente-mente com presteza, das mortes que têmque ser anunciadas às famílias, da irregu-laridade e caráter imprevisível dos acon-tecimentos do dia, mas que para Simonese constituiam em situações atrativas epelas quais ela pagava o preço:

"Quinze anos no serviço de urgências medeixaram em plena forma." Eu gosto muito'de ação, eu gosto das coisas que se sucedemcom velocidade, portanto, as urgências meconvinham bem. Tudo acontece nas urgên-cias; há situações extremamente dramáticas,penosas, que nos deixam muito triste, masque não nos endurece nunca, mas por outrolado, há também coisas cômicas. Nada duramuito tempo no serviço de urgências. Quan-do se é enfermeira ou supervisora em uma sa-la, que você tem pessoas lá que vão morrermas que pode levar meses para isso acontecer,a gente se apega a eles, cria-se vínculos e issose torna muito difícil. Nas urgências, você vi-

90

ve situações brutais, intensas, mas elas nãoduram muito". E depois, existe sempre algo aser feito a cada momento, algo rápido e inten-so a ser feito, e isso ajuda, também, a eliminaro stress e a tristeza ou a brutalidade daquiloque se vê ou o horror das coisas que se podever. O fato de se ter gestos precisos, rápidos aserem feitos é muito estimulante e isso ajudamuito."

Se nós citamos longamente este teste-munho é para sublinhar o papel determi-nante para o indivíduo, de poder se si-tuar em posição ativa em face às inúme-ras fontes de stress da vida profissional.Em um serviço e em um tipo de trabalhoque são fonte permanente de "estímulosestressantes", com todas as característicasde intempestividade, de incontrolabilida-de, de imprevisibilidade que caracteri-zam estes estímulos, mas também com aintensidade, a gravidade e a dificuldadeque poderiam tomá-los insuportáveis, ostress é vivido por Simone - e parece quepor um número razoável de suas colegas- em sua versão "positiva", estimulante,"funcional". E isto porque, como o dizmuito bem Simone, o stress, ou melhor, atensão devida às fontes de stress, é conti-nuamente absorvida na ação.

Stress e carga psíquicaSe quisermos retomar o interessante

conceito de "carga psíquica" propostopor C. Dejours podemos dizer que a car-ga psíquica do trabalho de Simone noserviço de urgências se "libera" conti-nuamente nos gestos a serem executadose na possibilidade dada ao indivíduo de"enfrentamento", graças ao poder queele tem de agir sobre o acontecimento,fazendo o gesto que salva, pronunciandoa palavra que convém, evitando o perigoque ameaça, em suma, não ficando im-potente face às fontes de agressão contí-nuas geradas pelo trabalho. A "carga'psíquica" é, na acepção que lhe dá De-jours "a insatisfação resultante de um con-teúdo ergonômico inadaptado à estrutura dapersonalidade" 21. Para compreendê-la, épreciso situar-se em uma perspectiva de"economia psíquica", aquilo que faz De-jours quando sublinha a importância dasnoções de acúmulo e de descarga das ex-citações exteriores (de origem psicossen-sorial) ou interiores (excitações instinti-vas ou pulsionais) às quais os trabalha-

Page 8: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

dores, como todo ser humano, estão con-tinuamente submetidos. Ele mostra bemque o perigo para o trabalhador é aqueleda subutilização de suas aptidões psíqui-cas fantasmáticas ou psicomotoras, poisesta subutilização ocasiona, então, umaretenção de energia pulsional, aquelaque constitui, precisamente, a carga psí-quica do trabalho.

Dito de outro modo, a tensão psíquicasurge se o sujeito não pode descarregar aexcitação acumulada por uma das viashabituais de descarga de energia, tais co-mo são descritas na clínica: a primeira é avia psíquica, que consiste, por exemplo,quando um sujeito é tomado por um im-pulso agressivo, em criar fantasmasagressivos, quer dizer, representaçõesmentais que são, por vezes, suficientespara descarregar o essencial da tensão in-terior, "pois a produção de fantasmas é,por si só, consumidora de energia pulsio-nal". A segunda é a via motora, na qual osujeito, não conseguindo relaxar pela viaprecedente, utiliza sua musculatura: as-sim, a fuga ou uma crise de raiva motriz,ou a ação agressiva ela mesma, ou a vio-lência que oferece toda uma gama de"descargas psicomotoras" possíveis. En-fim, se a via mental ou a via motora nãoconvêm ou não são suficientes, a energiapulsional se descarrega, então, pela viado sistema nervoso autônomo e atravésda desregulação das funções somáticas: éa via visceral aquela que atua nos proces-sos de somatização.

Como bem relembra C. Dejours ", dis-tingue-se em clínica, "segundo a flexibilida-de dos mecanismos de defesa e o grau de evo-lução da personalidade", aqueles que se ser-vem das vias psicomotoras e viscerais(neuroses de caráter e de comportamen-to) daqueles que se servem, principal-mente, da via mental: psicoses e neurosesclássicas que podem se instalar quando aprodução de fantasmas" agressivos nãoé mais suficiente.

É esta energia acumulada no cursodotrabalho - quando a tarefa a ser executa-da não se apresenta mais como uma dre-nagem suficiente - que se constitui, se-gundo Dejours, na carga psíquica dotrabalho e que mostra a relação com afadiga:

"Se um trabalho permite a diminuição dacarga psíquica, ele é equilibrante, se ele se

opõe à esta diminuição, ele é fatigante. Notrabalho por peças, não há, absolutamente, lu-gar para a atividade fantasmática; em todo ca-so, as aptidões fantasmáticas não são utiliza-das com o objetivo de contribuírem para tal, ea via de descarga psíquica é fechada. A ener-gia psíquica se acumula, se transformando emfonte de tensão e de desprazer, a carga psíqui-------

Dejours, ele mesmo, faz aligação entre carga psíquica e

organização do trabalho,mostrando que em regra geral a

carga psíquica do trabalhoaumenta quando a liberdade de

organização do trabalho diminui.------ca cresce até aparecerem a fadiga e depois aastenia, e na seqüência a patologia: é o traba-lho fatigante". 24

Por outro lado, sempre em termos deeconomia psíquica, Dejours mostra que oprazer de trabalhar resulta da descargade energia psíquica que facilita a tarefa, oque corresponde a uma diminuição dacarga psíquica do trabalho - o trabalha-dor pode, então, se sentir melhor do queantes de ter começado - e ele cita o casodo artista, do pesquisador ou do cirur-gião quando eles estão satisfeitos comseus trabalhos. O trabalho fatigante seopõe, então, ao trabalho equilibrante,proveitoso à homeostasia.

Vemos aqui todo o interesse desta no-ção para o estudo dos fenômenos destress nas organizações. Dejours, ele mes-mo, faz a ligação entre carga psíquica eorganização do trabalho, mostrando queem regra geral a carga psíquica do traba-lho aumenta quando a liberdade de orga-nização do trabalho diminui.

"A carga psíquica do trabalho é esforço(astreinte), isto é, o eco ao nível do trabalha-dor da exigência (contrainte) constituída pelaorganização do irabalho.v' Quando não hámais a possibilidade de acomodação daorganização do trabalho pelo trabalha-dor, a relação conflitual do aparelho psí-quico com a tarefa se instala. Abre-se, en-tão, para o sujeito, o domínio do sofri-mento (...) a energia pulsional, que não

22. Idem, ibidem, pp.48-B.

23. O termo lantasma, confor-me é adotado pela psicanálisefrancesa, "designa determinadaformação imaginária e não omundo das fantasias, a ativida-de imaginativa em gerai". Osprocessos defensivos psicológi-cos costumam mascarar, emmenor ou maior grau, que ofantasma corresponde a um ro-teiro imaginário para a busca darealização de um desejo. (La-planche e Pontalis-Vocabuláriode Psicanálise-Livraria MartinsFontes, pp. 169/170, São Paulo,1991).

24. DEJOURS, C. Op. cit.

25. Na nomenclatura internacio-nal e segundo as normas Afnor,as exigências da tarefa são cha-madas contraintes e a carga detrabalho é denominada astrein-te. Ver DEJOURS, C. A loucurado trabalho. 2ª ed., São Paulo,Cortez, 1987, p. 61.

91

Page 9: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

jJ~tJCOLABORAÇAO INTERNACIONAL

a morte ... o que não era o caso nas ur-gências, onde, como ela bem o lembra,"isto não durava. Você tem, às vezes, umchoque brutal, mas isso não dura muito".De mais a mais, no combate da vida con-tra a morte, que constitui o objetivo pro-fundo da instituição hospitalar, o servi-ço de reanimação aparece como comple-tamente dominado pela morte, ao con-trário das urgências onde, freqüente-mente, a vida ganha da morte (tantomais que a morte, quando ela ocorre,não sobrevém, via de regra, "de imedia-to", mas no serviço onde o doente foiencaminhado após admissão).

À morte acresce-se o sofrimento dosdoentes, tanto mais acentuado por ser areanimação o serviço, por excelência, on-de se exerce a "fúria terapêutica". E, nes-te contexto onde a morte está semprepresente - a morte efetiva mas também adolorosa presença do que "vem antes" -nenhuma escapatória é possível:

"Nos serviços normais, os pacientes agoni-zantes estãoem seus quartos, e existe uma ex-tensão de serviço que faz com que possamos(sair um pouco de perto), possamos nos movi-mentar, enquanto que em reanimação émuito fechado, você está lá, constante-mente com a situação sob seus olhos.Não tem escapatória possível enquantovocê está presente. Você não pode esperarpor socorro ... nem por locais, nem nada...nem dos outros porque os outros vivem, fre-qüentemente, a mesma angústia que você vi-ve. E a morte está sempre presente."

Em seu estudo sobre a agressão psí-quica da morte no trabalho de enferma-gem, P. Logeay e G. Cadbois-? mostra-ram claramente como a presença da mor-te (no caso do serviço de reanimação, tra-ta-se mesmo de uma onipresença!) e aimpotência de não poder dominá-la re-metem o sujeito para o fantasma de suaprópria morte. Esta luta incessante e in-certa contra a morte (trata-se aqui, fre-qüentemente, de uma luta perdida de an-temão) gera, freqüentemente, fortes senti-mentos de culpa. Price e Bergen 28 mostra-ram que a enfermeira é constantementeobrigada a lutar contra a idéia de que elanão é capaz de fazer mais do que faz paraimpedir que o doente morra.

"Esta ansiedade da insuficiência dos cui-dadospode ser mais intensa e se traduzir, nasunidades de reanimação,pelo sentimento que

26. DEJOURS, C. A loucura dotrabalho. Op. cit.

27. LOGEAY, P. & GADBOIS, C.Op. cit.

28. PRICE, F. R. & BERGEN, B."The relationship to death as asource of stress for nurses on acoronary care unit". Omega,8(3):229-37, 1977.

92

encontra mais drenagem no exercício dotrabalho, acumula-se no aparelho psíqui-co ocasionando um sentimento de des-prazer e de tensão." 26

Se retornarmos, agora, à situação dasenfermeiras do serviço de urgências, ve-remos que, não obstante fortes "excita-ções" (fontes de stress) tanto externas (ur-gência, agressividade dos doentes) quan-to internas (agressão psíquica da morte,por exemplo), a energia pulsional das en-fermeiras se descarrega sem cessar e quea amplitude de ação que lhes dá o con-teúdo e a organização de seu trabalho é ofator que permite esta descarga regular, oque torna seu trabalho equilibrante enão fatigante ("15 anos no serviço de urgên-ciasme deixaramperfeitamente emforma").

A seqüência da história de Simone vainos mostrar como a não descarga daenergia pulsional e, portanto, o acúmuloda carga psíquica, somados à impossibili-dade ou à insuficiência das descargas pe-las vias motora ou visceral, vão conduzi-la a enveredar na via mental, por um pro-cesso criador de neurose.

Da agressividade exterior à agressão in-terior

Após "15 anos no serviço de urgên-cias", propõe-se à Simone que ela assu-ma o cargo de supervisora em um servi-ço que acabara de ser criado no hospital:o serviço de reanimação, que ela fica en-carregada de organizar inteiramente, as-sessorando, de perto, o médico respon-sável pelo serviço e dirigindo a equipedas enfermeiras. E, neste cargo, numprazo de quatro anos, Simone, a quemos 15 anos do serviço de urgências não'tinham conseguido abater o entusiasmo,entra num processo patológico que seacentua gradativamente e do qual ela sóiria sair definitivamente alguns mesesdepois de a termos encontrado, isto,quatro anos depois de ter deixado o ser-viço de reanimação.

A primeira coisa que Simone mencio-na a propósito do serviço de reanimaçãoé que era um serviço "fechadosobresi mes-mo, vivido em isolamento quase total", emoposição às urgências, "abertopermanente-mente ao exterior".

O segundo elemento que estrutura co-tidianamente seu trabalho é um estarcontinuamente a "portas fechadas" com

Page 10: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

No caso de Simone - quefala aliás do serviço como um

lugar de "agressividade interior",contrariamente às urgências queera um lugar de 1/agressividade

verbal" - a angústia e aculpabilidade são agravadas por

uma dupla solidão.------o homem, graças ao aperfeiçoamento da tecno-logia, tem meios ilimitados de eliminar a mor-te. A ocorrência de um acidente agudo seria,então, imputado à enfermeira. A passagem dosentimento de não ter podido impedir a mortepara o sentimento de ser responsável peloacontecimento, está a um passo. Após ofaleci-mento, às vezes muito tempo após, a lembran-ça, eventualmente errada, de certos gestos decuidados, pode reativar estes sentimentos deculpabilidade. Paradoxalmente, em vista destetemor de insuficiência de cuidados, as enfer-meiras vivenciam o sentimento de 'terem exa-gerado'; elas têm a impressão de que o doentese torna uma máquina e que a aparelhagemtecnológica atenta contra a humanidade dodoente moribundo. 29

Esta "carga psíquica" de confrontocom a morte não consegue assim ser eli-minada jamais, pois a agressão psíquicarecomeça sem cessar. Não podendo sedescarregar - como era o caso nas urgên-cias, onde o princípio mesmo do serviçoimpedia permanecer a "portas fechadas"com a morte e onde cada gesto efetuadose constituía, mais freqüentemente, emuma vitória sobre a mesma - a "cargapsíquica" se volta, pois, contra o indiví-duo produzindo angústia e culpa.

No caso de Simone - que fala aliás doserviço como um lugar de "agressividadeinterior", contrariamente às urgênciasque era um lugar de "agressividade ver-bal" - a angústia e a culpabílidade sãoagravadas por uma dupla solidão. Soli-dão hierárquica, inicialmente: ela é a úni-ca enfermeira naquela posição hierárqui-ca, servindo de amortecedor entre as en-fermeiras e os médicos, e não pode sepermitir descarregar a agressão interiorem "agressividade externa", como faz amaioria das pessoas do serviço. Ela nãopode, igualmente, "mostrar seus senti-

mentos", pois, ela diz: "espera-se de mim oconstante enfrentamento da situação, que eunão chore, que eu seja uma rocha!"

Mas essa solidão hierárquica se dupli-ca, para Simone, em uma solidão pes-soal, pois ela é celibatária e sem filhos, oque não havia, até então, incidido sobresua vida profissional à qual ela se entre-gava inteira, no belo entusiasmo de sua"vocação", mas que contribui, provavel-mente, no contexto traumatizante aoqual ela está cotidianamente submetida,para acelerar a instalação de um proces-so neurótico.

Agressão psíquica e neurose traumáticaCom efeito, diante dos traumatismos

repetidos que constituem essas cenasmórbidas suportadas na impotência dasolidão, é bem um processo neuróticoque se instala pouco a pouco em Simone,com todos os sintomas clínicos da neuro-se traumática. Ela começa por "ruminar"solitariamente, repassando todas as noi-tes cada acontecimento do dia, cortandotodo contacto com seus amigos e se fe-chando em um monólogo desesperado,com seu gravador como confidente, paratentar, sem sucesso, "ab-reagir" ao trau-matismo da jornada de trabalho:

"Eu não suportava mais esse ambiente dareanimação Eu não dormia ... Eu não dor-mia mais bastava me deitar, pôr a cabeçano travesseiro para que tudo voltasse num re-pente, que a jornada desfilasse na minha cabe-ça me dizendo 'talvez, face a tal circunstân-cia, eu devesse fazer isto, fazer aquilo, eu nãodevia ter dito isto ou eu não devia ter feitoaquilo'. E depois eu não via ... eu não via maisninguém, eu me fechava completamente, euvivia pior que uma freira enclausurada, euera um pouco como um autômato! Eu não ti-nha mais desejo de nada ... eu tinha gasto umatal energia ... eu nunca tinha sentido isso nasurgências, de ter gasto toda minha energia ...todo o tempo que eu trabalhei nas urgências,ainda me restava energia à noite, mas lá,quando eu saía da reanimação, eu estava com-pletamente ... esgotada, sem vontade de falarcom quem quer que fosse, eu estava movida ...por essa solidão que eu vivia no trabalho, só,face a uma equipe paramédica, face a umaequipe médica, face à grande equipe adminis-trativa, face a todo o mundo! Quando você es-tá completamente só, em um serviço onde to-do mundo te considera responsável por tudo,

29. LOGEAY. P. & GADBOIS, C.Op. cit., p. 82.

93

Page 11: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

i1!JlJ COLABORAÇÃO INTERNACIONAL

30. CROCa, L. Op. cít,

você não tem senão as paredes ou a tua inti-midade à noite para falar aos teus muros e di-zer que isso não está bem, eu não agüentomais, é demais! ... Então, à noite, eu não tinhamais vontade de ver ninguém, de falar comninguém, eu perdi muitos amigos nesta oca-sião! E acaba-se por se fechar efetivamente emuma quantidade de problemas e quando nãose pode contá-los a ninguém, que tudo ocorrena tua cabeça, acaba-se por ver as coisas arre-vesadas ... então, às vezes, eu pegava meu gra-vador e eu falava isso tudo ao gravador."

A contradição expressa por Simone en-tre a solidão profissional que ela deplorae o fato de ela se dedicar, à noite, a pro-longar esta solidão, cortando todo conta-to com seus amigos, não é senão aparen-te, e o processo de fechamento no qualela se instala é bem a conseqüência diretado traumatismo que ela sofreu. A inibi-ção da sexualidade ("enclausurada comouma freira") e as disposições para a rela-ção afetiva com o outro, o fechamento so-bre si mesma e o corte com o mundo ex-terior, são a expressão desse "bloqueiodas funções do ego" do qual falava Feni-chel e resultam, de fato, no esgotamentoda reserva de energia libidinal, inteira-mente canalizada para a premência docontrole do traumatismo, que caracterizaa "personalidade traumato-neurótica".Quando Simone fala, ela mesma, de suaenergia que era "impelida pela solidão"do dia de trabalho, é precisamente estemecanismo que ela descreve: solidão pro-fissional e violência dos traumatismos so-fridos cada dia se conjugam para impe-dir, durante o dia, de "ab-reagir" ao trau-ma e de dominar, pela objetivação da lin-guagem e diante da presença reassegura-dora do outro, as agressões múltiplas erepetidas. Estas últimas lhe "consomem",então, efetivamente todas as reservas deenergia para finalizar ao longo do dia, nofaz-de-conta do domínio necessário paracontinuar seu trabalho; depois, terminampor transbordar suas defesas e por inva-dir sua vida, deixando-a, então, "comoum autômato", incapaz de sair deste es-gotante monólogo consigo mesma, onde,a ruminação repetida do traumatismo in-cita à angústia e à culpabilidade.

O processo de autofechamento no qualSimone se instalou tende a crescer: o iso-lacionismo do serviço, cortado do mundoexterior, corresponde agora ao isolacio-

94

nismo pessoal de Simone, que se torna"totalmente insone" e cortada, ela tam-bém, de toda relação com o outro, a nãoser com seu serviço e com a morte: "Eu medei conta disso, mas após ter reproduzido,voltando para casa, exatamente o modo de au-tofechamento do serviço, pior ainda, porque láeu estava verdadeiramente só; acontecia-me,freqüentemente, de tirar o fone do gancho ànoite, porque a idéia de que pudessem me cha-mar parecia insuportável de ... de ter aindaamigos que me chamassem".

Estamos, mais uma vez, diante do qua-dro clínico da neurose traumática, onde oorganismo, no que concerne às funçõesde proteção/não é mais capaz de filtrar,nem de integrar os estímulos significati-vos necessários ao exercício de suas ativi-dades de poder e de relação". Por exem-plo, ele "recusa" perceber os estímulosou, ao contrário, "se sobressalta à qual-quer estimulação, mesmo não nociva" 30.

Ruminação solitária, síndrome de re-petição, bloqueio das funções do ego: oquadro clínico da neurose traumática es-tá completo. Vê-se bem, no caso de Simo-ne - que nenhuma perturbação caracte-rial nem qualquer dificuldade de adapta-ção à realidade ou ao outro, nem qual-quer sintoma neurótico jamais haviamacometido - como um tal processo podeser gerado por um contexto profissional.O caráter particular do serviço (isolamen-to) se associou àquele do contexto e dotrabalho (geradores de agressão e detraumatismo psíquico) e, enfim, àqueledo cargo ocupado (solidão hierárquica),para transformar, em quatro anos, umaenfermeira confirmada, transbordante deentusiasmo e que tinha resistido durante15 anos ao stress contínuo de um serviçode urgências hospitalares, em uma pes-soa desamparada, solitária e insone, do-minada, continuamente, por pensamen-tos os mais mórbidos. É, aliás, possívelque, submetida sem trégua à repetiçãodos mesmos traurnatismos, Simone pu-desse um dia atingir, de uma maneira oude outra, uma "situação sem retorno".

E é, paradoxalmente, aquilo que pode-ria ter se constituído em um outro trau-matismo, a saber um acidente, que elaparece dever sua saúde. Um dia, quando'ela sai do hospital esgotada, pega seucarro, em estado quase sonambúlico -"eu não estava lá no meu carro, ao volante" -

Page 12: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

e sofre um grave acidente do qual sai mi-raculosamente ilesa, se bem que seu car-ro tenha sido completamente destruído.Alguns dias depois, sente "muito, muitomedo", percebendo que poderia ter morri-do. Ela marca consulta com um médicoque ouvindo-a falar de seus sintomas("completamente insone, eu não comia quasemais") e de seus dias de trabalho, pegaum elástico em sua gaveta e o estica. "En-tão ele me diz: 'a senhora está desse jeito'. Eledistende o mais possível o elástico e me diz: Asenhora está neste ponto. Então, existem duassoluções: estique um pouco mais e ele vai seromper; ou afrouxe, afrouxe o elástico e tudovoltará ao normal. E eu saí assim, sem medi-camento nem nada".

Simone encontra, então, energia, apóster refletido muito, para decidir "afrou-xar o elástico". Ela solicita um cargo desupervisora chefe em um outro serviço egraças aos leais serviços prestados ante-riormente, é admitida, não obstante aoposição inicial do chefe do serviço emrazão de seu desmoronamento, tanto físi-co quanto psiquico ...

Pouco a pouco ela consegue, em seunovo posto, afastar de si as visões trau-matizantes e cotidianas que a obsecavame retomar um ritmo de vida e de sonoquase normais. Ela começa a se sentir"bem", somente após três anos de seuafastamento do serviço de reanimação ...tempo de "recuperação" necessário paraa "dissolução" da neurose após o afasta-mento do traumatismo ...

A PSICONEUROSE PROFISSIONAL

o caso que iremos desenvolver agora,que se situa em uma agência de publici-dade, é a história pessoal anterior do su-jeito, mais que outras fontes de agressãosuscitadas pela situação ou pelo contextoorganizacional, o que o toma mais vulne-rável. O sujeito funciona, então, comouma caixa de ressonância dos múltiplosproblemas ou dos múltiplos conflitos daorganização e isto porque ele é, por suahistória, particularmente receptivo.

Stress coletivo em uma agência de pu-blicidade

A agência B é uma grande agência depublicidade parisiense, que acaba de ope-rar um crescimento rápido graças a um

sucesso comercial notável. Se o sucesso éinegável no plano financeiro, ele o é, in-discutivelmente muito menor, no planohumano. A agência parece, com efeito,ter atingido um nível de "stress coletivo"muito elevado, onde todo mundo sequeixa e que se traduz, tanto ao nível or-ganizacional- por reações muito agressi-------o sujeito funciona,

então, como uma caixa deressonância dos múltiplos

problemas ou dos múltiplosconflitos da organização e istoporque ele é, por sua história,particularmente receptivo.------

vas entre as pessoas, por um absenteísmocada vez mais acentuado e por uma rota-tividade de mão-de-obra muito elevada(passando de um terço do pessoal parametade, em um ano) - quanto ao nível in-dividual, através de sintomas fisiológicosreveladores do stress sentido por muitosdos empregados da agência e diagnosti-cado pelo médico do trabalho - fadigaexcessiva, distúrbios digestivos, angús-tias, insônias etc.

Claro, o stress, o fato de ser "acelera-do", faz parte, de certo modo, do "arse-nal" da profissão de publicitário. O mé-dico do trabalho da agência, assim seexpressa:

"Incontestavelmente existe, entre essaspessoas, uma propensão a se comportar dessemodo, senão, não seria possível, eles não esta-riam no nível em que estão. O stress, o traba-lho excessivo para eles, o não dormir, o engo-lir qualquer coisa como alimento, o esmagar opróximo - eles não o dirão dessa forma assimtão cínica, mas está subentendido, está subja-cente - é normal. É normal e aparentementemuito estimulante".

A lógica da profissão de publicitário seassemelha, de fato, a uma selva onde, pa-ra sobreviver, é preciso "engolir o outro"."As pessoas são obrigadas a se devoraremumas às outras, explica o médico do traba-lho, não se pode deixar de o fazer senão nãose faz publicidade. Ao nível do publicitário,ou engole-se o outro ou se morre. É um am-

95

Page 13: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

JJ~IJCOLABORAÇÃO INTERNACIONAL

em suspenso", explica a responsável peloserviço social. Ora, precisamente, a insta-bilidade das relações afetivas é um ele-mento importante dessa instabilidade dasituação profissional, pois um número ra-zoável de dispensas acontece com o úni-co argumento que se "deixou de agra-dar": "tem-se um pouco a impressão de estarandando sobre uma corda bamba, explica ochefe do pessoal, quer dizer que se pode, umdia ou outro, ser desbancado, por melhor quese seja ... estamos todos em uma situação pre-cária, não se sabe nunca se se vai agradar oudeixar de agradar de um dia para outro. "

Quaisquer que sejam as razões, as dis-pensas ocorrem muito rapidamente, "emduas horas geralmente", com um acordofinanceiro, "com a ajuda de indeniza-ções" que permitem evitar os processos edeixam os dirigentes de mãos livres paramudar o pessoal a seu bom grado. "Napublicidade, explica o responsável do ser-viço social, uma dispensa é sempre justificá-vel, mudança de orçamento, mudança de cria-ção, mudança de publicidade, idéias novas ... "

31. N.T.: Kleenex é uma marcade lenço de papel que, em fun-ção de seu amplo consumo,passou a substituir o própriouso da palavra lenço; Kleenexou lenço descartável são prati-camente palavras sinônimas emParis.

96

biente espantoso, sem piedade, sem lei, semamizade".

Os fatores de stressQuando começamos nossa intervenção

na agência B,vários elementos - além da-queles inerentes à profissão de publicitá-rio que acabamos de citar - pareciam di-retamente ligados à origem do estado destress coletivo na qual estava mergulhadaa agência.

O primeiro consistia em uma discor-dância entre as demandas exteriores e ascapacidades atuais da agência. Esta últi-ma, tendo firmado importantes contratosimplicando um aporte financeiro consi-derável e necessitando de um aumentode trabalho, repercutia sobre seus empre-gados sob a forma de forte tensão, agra-vada pelo fato da pequenez do local quemantinha suas dimensões anteriores eque não tinha podido absorver correta-mente os recentes aumentos de pessoal.Amontoados em uma sala que eles deno-minaram "favela" e separados por semi-divisórias, os publicitários se encontramassim "uns sobre os outros, com um barulhodo inferno, de telefones, de discussões ... é umfator de irritação constante".

O segundo elemento consistia em per-turbações das relações interpessoais devi-das, aí também, à mudança do tamanhoda agência que passa, subrepticiamente,de um estilo "de companheirismo" mis-turando alegremente vida privada e vidaprofissional, a um estilo muito mais hie-rarquizado, exigido por seu crescimento.A hierarquia, inexistente oficiosamente,opera de fato um retomo através da for-ça, face às exigências crescentes do con-texto. Lógica hierárquica e lógica afetivase chocam sem cessar, criando contínuosminidramas e gerando em cada um umadiluição dos parâmetros habituais. "Esta-mos sem cessar em equilíbrio instável entre ochefe e o empregado, explica uma responsá-vel pelo pessoal, existe uma camaradagemsem nome entre o patrão e o empregado, é 'eute chamo pelo prenome, eu durmo com você'mas no dia em que se está saturado da pessoa,é 'eu sou o chefe e eu te ponho na rua'",

A ameaça de dispensa é, com efeito, oterceiro elemento que estrutura comple-tamente o contexto de trabalho da agên-cia. "Um grave problema de stress nesta em-presa é a dispensa que está sempre um pouco

A gestão kleenex»A dispensa é, de fato, nesta agência,

instaurada como um verdadeiro sistemade gestão do pessoal. É o reflexo da insta-bilidade da profissão e da agência, aindaem período de adaptação face às exigên-cias novas mal dominadas. Ela (a dispen-sa) testemunha também a vontade da di-reção de manter uma agência "nova",pois a média de idade - por volta de trin-ta anos - é a mesma desde a fundação daagência, vinte anos atrás.

O "consumo humano" implicado poresse sistema que transforma os indiví-duos, tais como os "Kleenex" usados, emelementos descartáveis a partir do mo-mento em que utilizou-se deles, envelhe-ceram ou deixaram de agradar, é a pró-pria imagem da sociedade de consumoda qual a publicidade constitui um deseus sustentáculos. O indivíduo não tem,neste sistema, nenhum valor "humano",ele é medido, julgado, avaliado e tratadona justa medida de seu rendimento ime-diato ou de sua sedução.

A instabilidade humana do sistema éacentuada pelas saídas voluntárias que,de um ano para cá, se aceleraram face aoclima desagradável que reina na agênciae a rotatividade anual do pessoal, que já

Page 14: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

era enorme - um terço -, atinge a metadedo pessoal. Essa rotatividade atinge, en-tretanto, mais os publicitários "puros" -comerciais ou criadores - que os "admi-nistrativos", menos submissos a essa ló-gica de sedução e .de consumo imediato eque assegura uma certa permanência naestrutura.

Necessidade de adaptação permanen-te, confusão entre o pessoal e o profissio-nal, diluição dos parâmetros, ameaças dedispensa e instabilidade erigida em siste-ma, todos esses elementos estão na ori-gem direta do stress coletivo da agência emarcam fortemente as relações interpes-soais: a tensão sobe, o nervosismo cresce,as agressões pessoais se intensificam...

Neste contexto, um serviço se encontraparticularmente implicado e recebe, semcessar, e como se fosse um alvo, todo ostress da agência: é o serviço responsávelpelo pessoal e pelas relações sociais, com-posto de um chefe de pessoal, de umaresponsável pelo serviço social, assim co-mo de várias auxiliares, que se ocupamdo pagamento, da contabilidade, da se-cretaria etc.

"Nós estamos constantemente na luta,explica o chefe do pessoal, porque quandoeles decidem pôr alguém prá fora, é sempreem 48 horas, isso não pode esperar, então derepente zás, é preciso fazer os cálculos de-pressa, aquele fulano trabalha há quantotempo, quanto isto dá... quantos dias de fé-rias, e como indenização ... em seguida anun-cia que tem outro e tudo recomeça... não sepára nunca."

O setor de pessoal é, pois, o ponto depassagem obrigatório desta gestão klee-nex, que atua com a ajuda de afastamen-tos, de demissões e de recrutamentos, éentão, o ponto de encontro de todos osstress individuais e dos dramas humanosda agência.

o "superinvestimento" profissionalEsta situação suscita, em todas as pes-

soas do serviço, uma tensão e um mal-es-tar evidentes. Uma delas, entretanto, aresponsável pelo serviço social, parecemuito mais "estressada" que as outras,vivendo muito intensamente os proble-mas da agência e mesmo "invadida", po-deríamos dizer, por eles.

Encarregada da gestão das licençaspor motivo de doença, da medicina do

trabalho, do regime de aposentadorias eda previdência social e da ação "social"da agência (hospitalização, maternidadeetc.), a esta responsável - que chamare-mos Denise - não falta trabalho. Ora, nãosomente ela o executa com muito ardor,competência e devotamento, mas ultra-passa amplamente suas atribuições: sua------

Em suma, os problemas daagência são seus problemas, osofrimento dos empregados é o

seu sofrimento ... ela os oioencia eos conta com um ardor, uma

paixão, uma indignaçãocrescentes cada vez que a

encontramos.

casa se transformou quase que num ane-xo do seu escritório, ela aí recebe à noitechamados telefônicos de uma pessoa daagência, desamparada em função de umproblema pessoal ou de uma dispensapróxima, de uma outra que ameaça co-meter suicídio ... ela se coloca, pessoal-mente, como garantia de reembolso deum empréstimo dado a alguém que aca-ba de ser dispensado e que não se encon-tra em condições de o fazer de imediato,ela visita alguém hospitalizado, vai até oInstituto de Previdência Social resolverum caso complicado, ampara moralmen-te uma família de uma jovem assistenteque fugiu etc. Em suma, os problemas daagência são seus problemas, o sofrimentodos empregados é o seu sofrimento ... elaos vivencia e os conta com um ardor,uma paixão, uma indignação crescentescada vez que a encontramos.

Simultaneamente, ela vive muito mal oclima cada vez mais "deteriorado" dasrelações humanas da agência, o egoísmoe a dureza dos dirigentes, mas também aatitude de "não tenho nada com isso"dos jovens publicitários, "mal educados","crianças mimadas" que postergam con-tinuamente seus compromissos com amedicina do trabalho, obrigando-a, en-tão, a uma longa e difícil gestão desteproblema.

Em uma palavra, sua compaixão e seu

97

Page 15: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

JJm COLABORAÇÃO INTERNACIONAL

está vendo, esta é minha filhinha (toda orgu-lhosa) ... minha verdadeira filhinha ... ', Eu ti-nha 16 anos."

A descrição que Denise faz de sua in-fância, notadamente no momento daguerra, com múltiplas mudanças, é dignadas aventuras da Gata Borralheira:

"Quando a guerra foi declarada em 39, nósvivíamos em um grande apartamento ... à noi-te eu tinha medo ... eu tinha pesadelos horrí-veis; meus pais tinham posto meus dois ir-mãos no quarto ao lado do deles, aquecido(tom indignado) e eu estava na outra ponta,em um quartinho, não aquecido, junto da en-trada, onde eu temia que assaltantes arrom-bassem e entrassem, pois era perto da porta deentrada ... Eu estava separada dos outros porum grande salão, uma sala de jantar, um es-critório; eu podia berrar durante a noite, ma-mãe não me escutava. "

Todos os incidentes que Denise contaa propósito de sua infância são do mes-mo tom e relatam a rejeição da qual ela éobjeto da parte de sua mãe e a evidentepreferência por seus irmãos. Ela se lem-bra das férias escolares, onde sua mãe a"seqüestrava", obrigando-a a passar aferro: "eu estudava tanto quanto meus ir-mãos ... e eu escutava minha mãe dizer para aempregada: 'Hoje é dia de passar roupa, estátudo aqui, mas bem entendido, não toque emnada do que é de Denise, ela as passará elamesma'",

Para se vingar, provavelmente, da ati-tude materna, Denise acumula, como eladiz, "besteira após besteira" durante seuperíodo escolar, cultivando assim o con-flito: "Eu fazia minha mãe espumar de todasas cores, eu respondia a todos os professores".Tece-se, assim, entre Denise e sua mãe,uma relação infernal que vai se amplian-do com a adolescência: a hostilidade está,então, declarada e a mãe de Denise nãoperde, ao que parece, nenhuma ocasiãode responsabilizá-la por tudo o que lheacontece. Aqui surge uma lembrançaparticularmente dolorosa que ela contachorando copiosamente:

"Quando eu era mocinha, eu tive umapendicite muito grave, com septicemia. Euestava morrendo, eu tinha 5 de pressão quan-do me operaram ... eu estava 'deitada ... eu so-fria. Minha mãe veio me ver dois ou três diasapós a operação, quando ela sabia que não ti-nha conseguido perder sua filha. Ela transpôso umbral da porta e por não enxergar bem, ela

devotamento pelos dramas humanos daagência só são comparáveis à indignaçãoe furor face ao comportamento da maio-ria do pessoal e à obstinação de seu en-frentamento dos dirigentes para tentarobter deles um gesto de consideração pa-ra tal ou qual problema. Assim fazendo,ela os incomoda, os irrita e, se bem queapreciando a amplitude de seu trabalho edevotamento, eles retorquem mandando-a "passear" e não lhe demonstram, se-não, desprezo e ingratidão, recusando-lhe, principalmente, aumento de saláriosob pretexto de que ela não é "rentável"(em termos publicitários ...).

A história de DenisePara compreender a razão desse enga-

jamento passional que a põe em um esta-do de stress pessoal muito intenso (ela vi-ve sob o efeito de tranqüilizantes) queculmina com o aumento do stress naagência, é preciso mergulhar nos mean-dros da sua história pessoal. Foi o que fi-zemos ao longo de muitas entrevistas eque nos permitiu descobrir que sua rela-ção com a agência se desenvolvia exata-mente nos mesmos moldes que toda suarelação anterior com sua mãe. Para com-preendê-la, tomemos a história de Denisedesde seu início.

A rejeição maternaDenise nasce em uma família de mili-

tares, a segunda de quatro filhos. Todasua infância, adolescência e início de vidaadulta, até seu casamento - tal como nosconta - parecem marcadas por aquilo queela denomina "dramas espantosos", do-minados pela figura de sua mãe que, por.uma razão que ela ignora, sempre foi (eainda é) "terrivelmente malvada" comela: "minha mãe, verdadeiramente, jamais meaceitou, desde meu nascimento. Será, talvez,porque ela tenha tido essa criança muito cedo,sem desejá-la?" Qualquer que seja a razãodessa animosidade, tudo o que conta De-nise é impregnado de sofrimento vividodiante da preferência manifesta de suamãe por seus irmãos e por sua irmã, co-mo testemunha um caso que ela contachorando: "No momento do nascimento deminha irmã, tinham me mandado para a casade minha avó, e quando eu voltei, mamãe es-tava em sua cama, amamentando minha irmãe ninando-a, e diante de mim ela disse 'você

98

Page 16: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

caiu; machucou um joelho e rasgou a meia.Ela chegou agressiva à minha cabeceira e medisse: 'você viu, filhinha, o que me aconteceupor tua causa? 'li

Em contraste com a dureza materna,Denise descreve a ternura que lhe dedi-cava seu pai: "Meu pai era maravilhoso,muito inteligente ... eu tinha uma admiraçãosem limites por ele. Ele me dizia: 'minha filhi-nha' e me punha em seu colo; eu recebia cari-nhos de meu pai, jamais de minha mãe. 11

As crises histéricasDe qualquer modo, e sem tentar con-

cluir sobre as razões desta atitude mater-na, a relação conflituosa de Denise comsua mãe desemboca, a partir dos 18 anos,em uma série de crises de tipo histérica:"Eu tinha crises nervosas terríveis entre 18 e26 anos, porque cada vez que meus pais ... euqueria manifestar alguma coisa, fazer algumacoisa... me recusavam ",

Através das inúmeras crises pelasquais Denise tenta expressar os conflitosmais violentos que ela vive, um sintomadomina os outros durante todo esse pe-ríodo: ela perde, gradativamente, a visãode seu olho direito, já em mau estado, so-frendo daquilo que será diagnosticadomais tarde como uma "paralisia locomo-tora com bloqueio do nervo ótico". Estaparalisia, que não é total e que se desblo-queia de tempos em tempos, evoca, semdúvida, os fenômenos de cegueira histé-rica, muito freqüentes neste tipo de afec-ção. Como lembra bem L. Israel:

"Uma cegueira que ocorre, às vezes brus-camente, o mais freqüentemente em pessoasjovens, não pode deixar o médico indiferente.Pode mesmo não se tratar de uma perda sig-nificativa da visão. Ora, é bem possível quedurante um exame especializado, o médiconão pense em estudar o conjunto da persona-lidade de sua doente. Ele pode, então, desco-nhecer a relação do sintoma com uma perso-nalidade histérica e partir para tratamentosou, principalmente, para explorações comple-xas. Os casos de cegueira histérica tratadoscomo sendo nevrite ótica retrobulbar (...) nãofaltam. Tais explorações neurocirúrgicas ououtras, não são sem conseqüência, pois (...) ohistérico é levado a uma verdadeira escaladasemiológica para que compreendam que seusintoma tem um sentido". 32

A descrição que faz Israel correspondemais ou menos àquilo que acontece com

Denise que, além das crises de visão queos especialistas não conseguem explicar,multiplica todas as espécies de crises -crises de angústia, crises de falta de ar,crises de raiva, às quais se sucedem pe-ríodos de abatimento, anorexia - susci-tando uma pesquisa minuciosa dos médi-cos e os diagnósticos mais contraditórios.------

Todos esses sintomas histéricosdevem ser entendidos, de fato,

como o único modo decomunicação, de relacionamento,do qual ela dispõe, em face a uma

mãe pela qual ela desejaardentemente ser amada e que não

cessa de rejeitá-la, sem que elapossa entender as razões.

-----~Para terminar, ela faz uma violenta crisede apendicite complicada por uma septi-cemia, que quase a matou. "A partir daí,ela diz, tudo melhorou. Os olhos tinham de-sencadeado a primeira crise nervosa, depois asepticemia, o ambiente familiar no qual eu vi-via, um ambiente pavoroso ... me puseram so-bre a mesa de operação, eu pesava 40kg ... 11

Quando Denise diz que lias olhos ha-viam desencadeado a primeira crise nervosa 11

é em outro sentido, claro, que se faz ne-cessário entender: os problemas de visãose inscrevem, eles mesmos, em um qua-dro de neurose histérica dos quais todosos sintomas descritos - crises de nervos,anorexia ("eu estava esquelética "), crises desufocamento, angústias - são bem carac-terísticos. Todos esses sintomas histéricosdevem ser entendidos, de fato, como oúnico modo de comunicação, de relacio-namento, do qual ela dispõe, em face auma mãe pela qual ela deseja ardente-mente ser amada e que não cessa de rejei-tá-la, sem que ela possa entender as ra-zões. Eles são uma mensagem desespera-da, endereçada àquela que sempre res-pondeu com rejeições e desprezos a umainsistente demanda de amor.

Aliás, quando Denise começa a podertomar uma certa distância com relação à

32. ISRAEL. L. L 'nvstértcue, lesexe e le médecin. Paris, Mas-son, 1980, p, 27.

99

Page 17: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

i1~tJCOLABORAÇAo INTERNACIONAL

de uma estrutura louca que aspira e rejei-ta as pessoas ao ritmo de seu capricho. Oreconhecimento não é mais possível, a ló-gica do sistema mudou, as relações hu-manas se tomaram cínicas, materialistas,indiferentes ao devotamento pessoal.

Na oferta extremada dela mesma, queela não cessa de prodigalizar a partir domomento que escolheu sua carreira deassistente social, Denise procura, acimade tudo, o reconhecimento e a gratidão ...o amor, que ela, enquanto criança, jamaisobteve de sua mãe. Na descrição que elafaz de sua vida na agência e de sua vidapessoal, sua relação com sua mãe e suarelação com a agência se entrelaçam, cal-cadas uma sobre a outra. A segunda, defato, substituiu a primeira, ela é vivida damesma maneira neurótica, intensa, dolo-rosa, indignada.

O "aumento do stress" na agência, comcrises de histeria individuais ou coletivasàs quais se assiste, é descrita por Denisedo mesmo modo que o aumento da crisehistérica que precedeu seu casamento. Avida nesta agência ingrata se transfor-mou para ela na vida junto àquela mãemá que nunca a soube amar.

Ardentemente ligada à agência na qualela tenta, com desespero, ajudar os quedela têm necessidade e que ela tenta pre-servar da loucura má da organização, elaé, também, profundamente atingida portudo aquilo que acontece e é incapaz deromper os vínculos que a ligam à agên-cia. Denise se identifica, na verdade, àspessoas da agência que ela desejava pro-teger dessa mãe má.

De uma certa maneira, e ao mesmotempo sofrendo profundamente, ela senutre dessa neurose organizacional, con-tinuando, desesperadamente, a esperarda agência um impossível retorno deamor, reativando, assim, a relação neuró-tica anterior, não resolvida.

Esta relação com a agência, que ela de-plora e que a faz sofrer é de uma certamaneira um ajuste de contas. Da mesmaforma que sua vida profissional, comoela mesma diz, havia sido uma maneirade sair de seus problemas - "os casos queeu encontrei me levaram, me ajudaram a sairde meus problemas, eu tive uma carência, épreciso que os outros não a tenham" -, suavida organizacional a faz mergulhar, no-vamente, em um confronto com a mãe

sua família, conquistando uma certa in-dependência graças ao seu trabalho, de-pois conhecendo seu marido, as coisascomeçam a se organizar. Ela descreveseu casamento como um "casamentopor ámor", não obstante um "noivadodramático", por causa, claro, de suamãe. A situação, não obstante, se estabi-liza com seu afastamento da família."Felizmente eu tenho um marido extraordi-nário; como eu já disse, minha vida começoucom meu casamento. "

Algum tempo depois, ela inicia seusestudos de assistente social que sua mãejamais a havia autorizado a fazer; depois,após ter criado seus filhos, exerce suaprofissão, inicialmente como autônoma,para muitas agências de publicidade. Aagência B, que ela acompanhava "de fo-ra" durante alguns anos, a contrata comofuncionária permanente.

Relações com a agência, relações com amãe

Quando encontramos Denise, ela esta-va na agência B, como funcionária, há 12anos. Ela viu, então, crescer a agência,apegou-se a ela por influência, principal-mente, de um de seus diretores queapreciava a qualidade de seu trabalho ede seu devotamento. As coisas começa-ram, de fato, a se degradarem para elaapós alguns anos, após a "explosão" daagência e a mudança interna das relaçõeshumanas.

A dureza, o cinismo, o desrespeito hu-mano por parte dos dirigentes, totalmen-te orientados pelo sucesso profissional efinanceiro que "lhes sobe à cabeça", a in-gratidão, inclusive, que eles lhe demons-tram a tocam particularmente porquereativa para ela o ciclo infernal, solicita-ção de amor - rejeição de amor, que elaconheceu muito bem.

A esta agência ela se devotou de corpoe alma, procurando nela, possivelmente(e nela encontrando, provavelmente poruns tempos) o reconhecimento e o amordo qual ela foi longamente privada. Emum dado momento, a "mecânica" organi-zacional se descontrolou, o dirigente me-diador do início, reassegurador e conci-liativo, afasta-se da gestão das pessoas,muito ocupado pela extensão internacio-nal de seu negócio e por seu próprio su-cesso: Denise se encontra, então, em face

100

Page 18: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

má, com a qual ela tenta, por bem ou pormal, ajustar contas. Desse combate, aliás,como daquele de outrora, ela tem poucaschances de se sair vitoriosa ...

Se retomarmos a história pessoal deDenise, percebemos que se opera nelauma clivagem 33: c'livagem entre uma re-lação com um pai bom (salvo em um mo-mento, mas ela pensa que ele tenha sidopressionado por sua mãe) e uma relaçãocom uma mãe má.

Após seu casamento e após a morte deseu pai, algum tempo mais tarde, esta cli-vagem se atualiza em sua vida adulta,em uma relação equilibrada com seu ma-rido (relação que se instaura nos mesmosmoldes - admirativo e confiante - que arelação com o pai que ela substitui) euma relação mais distante e sempre má,com sua mãe.

Quando começa sua vida profissional,ela conhecerá, durante alguns anos, umcerto equilíbrio, em razão, principalmen-te, da presença da figura paternal do pri-meiro dirigente "a figura humana" daagência. Quando este se apaga e nãomais desempenha seu papel protetor, as-sim como havia feito seu pai no momen-to das crises histéricas de sua juventude("ele gritava ... ele estava pressionado por mi-nha mãe"), Denise perde seu apoio, o maisseguro, e a instância mediadora da qualela tinha necessidade em relação a estamãe má que assume de agora em diantepara ela as feições da agência. Privadadela (da figura humana) e, em face da di-nâmica organizacional que descrevemos,ela tem apenas seu marido como elemen-to de equilíbrio de sua vida pessoal paraimpedi-la de mergulhar de novo na neu-rose. Em razão do estado extremamenteagitado e perturbado no qual ela se en-contra, podemos supor que, se por umarazão ou por outra, esta relação se dete-riorar ou desaparecer, ela mergulhará in-teiramente na neurose.

O engajamento profissional do indiví-duo parece, assim, pôr em jogo um con-junto complexo de elementos que envol-ve a história pessoal do indivíduo, a his-tória da organização na qual ele vive, aspressões reais que pesam sobre ele, mastambém as pressões imaginárias, os dra-mas ocultos, os conflitos inconscientes enão resolvidos.

A gestão da vida profissional constitui,

de fato, uma sutil navegação entre todosesses bancos de areia e seu equilíbrio estáà mercê do deslocamento de tal ou qualelemento desse conjunto instável. Umapessoa estará simplesmente "estressada"lá onde outra começará uma depressãonervosa ou tombará na neurose.

o indivíduo se encontra,de certa formal preso em uma

espiral infernal, obrigado a corrercada vez mais depressa em umcontexto onde tudo muda tão

rapidamente que não resta nadamais de estável a que se agarrar

para retomar ofôlego.------Os processos organizacionais são, as-

sim, neste sentido, elementos da aventu-ra individual que estruturam os destinospessoais, tendo a mesma importância queos processos familiares têm, na vida in-fantil. Estes processos, aliás, com fre-qüência, tomam emprestado da vida in-fantil as significações que cada indivíduolhes atribuem e as repercussões que terãosobre ele.

A "NEUROSE DE EXCELÊNCIA"

A doença da i~ealizaçãoDenominamos sob este termo aquilo

que poderíamos igualmente chamar de adoença da idealização. Este estado seaproxima igualmente - dizíamos maisacima - daquilo que certos autores anglo-saxões denominam de "queimadura in-terna" (burn out). Esta doença constituiaquilo que Freudenberguer " chama "ocusto elevado do sucesso", que decorreda luta constante que mantemos para sa-tisfazer os ideais de excelência que carac-terizam nossa sociedade e que certas em-presas encarnam com uma particularacuidade. A necessidade de trabalharenergicamente, de envidar cada vez maisesforços, de desempenho cada vez me-lhor e de tender sempre para um maior

33. N.T.: Clivagem do objeto,mecanismo descrito por Mela-nie Klein e por ela consideradocomo a defesa mais primitivacontra a angústia: o objeto, vi-sado pelas pulsões eróticas edestrutivas, cinde-se num "bom"e num "mau" objeto, que terãodestinos relativamente indepen-dentes no jogo das introjeções edas projeções ( ... ). Apud LA-PLANCHE, J. B. & PONTALlS, J.B. Vocabulário de Psicanálise.Op. cit.

34. FREUDENBERGER, H. J.L 'épuisement professionnel: labrülure interne. Chicoutimi,saêtan Morin, 1987.

101

Page 19: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

i1m COLABORAÇAo INTERNACIONAL

meio ambiente da vida ou do trabalhonão propiciam mais o reasseguramentoindispensável ao Ego Ideal, este submer-ge no Ego, e isto com tanto mais violên-cia quanto maior tiver sido a distânciaentre as duas instâncias e tanto mais pro-fundamente quanto o Ego-Realidade ti-ver sido recalcado.

Na verdade, pode-se comparar esteprocesso àquele da perda do objeto, oupara ser mais preciso, da perda do Egodo qual fala Freud em Luto e Melancolia: oobjeto perdido é aqui o Ego-Ideal e, as-sim como na melancolia, o sujeito deve,após a fase brutal da prostração, enfren-tar uma fase melancólica que correspon-de à identificação com o objeto perdidoque constituía o Ego-Ideal. O Ego do in-divíduo, amputado de uma parte de simesmo - seu Ego Ideal - não conseguemais, durante algum tempo, funcionar,assim como na melancolia, a perda doobjeto amado consome o Ego.

Privado da "locomotiva" em que seconstituía o Ego-Ideal (não importa asacrobacias que este lhe fazia realizar), oEgo não consegue mais avançar, até omomento em que ele possa reconquistaro lugar que o Ego-Ideal lhe havia, poucoa pouco, confiscado.

Assim, é esta clivagem que consome,pouco a pouco, toda a energia do Egoque se esgota em guindar-se às alturasexigidas pelo Ego-Ideal. Mas quando esteúltimo, sob o impacto da realidade que,por qualquer razão, não o conforta mais,submerge e recai sobre o Ego, é então, aredução deste último e sua incapacidadetemporária de funcionar sem o motor doEgo- Ideal, que conferem ao processoneurótico seu caráter devastador.

Examinemos agora, à luz de um casoconcreto, as apostas e os efeitos dessa"doença da idealização".

sucesso, estão na origem desse fenôme-no. O indivíduo se encontra, de certa for-ma, preso em uma espiral infernal, obri-gado a correr cada vez mais depressa emum contexto onde tudo muda tão rapida-mente que não resta nada mais de estávela que se agarrar para retomar o fôlego.

Esse fenômeno é particularmente acen-tuado nas empresas que praticam aquiloque denominamos "administração porexcelência" e que incitam seus emprega-dos a buscar desempenhos cada vez maiselevados, tanto na realização de seus ob-jetivos quanto na maneira de realizá-los(IBM, Hewlett Packard, American Ex-press, Procter e Gamble etc.). Em um talcontexto, o indivíduo é conduzido a de-senvolver e buscar uma imagem de simesmo em conformidade com os pa-drões exteriores de excelência e de suces-so, às vezes, em detrimento de sua perso-nalidade real. O processo neurótico seinstala quando a vida ou o trabalho nãotrazem mais aos indivíduos a recompen-sa que eles esperam, seja porque eles nãopermitem mais realizar os ideais que setem, seja porque os esforços demonstra-dos pelo indivíduo não são mais reconhe-cidos. A energia que mantinha, até então,esta corrida ao sucesso, não sendo maisrecompensada, degrada-se e a pessoa seprostra.

O processo toma a forma de uma cli-vagem do Ego: tudo se passa, com efeito,como se, na corrida ao sucesso, uma dasinstâncias do aparelho psíquico - o Idealdo Ego - houvesse assumido o controledo conjunto do psiquismo e tivesse sidolevado ao superdesenvolvimento de umEgo-Ideal, isto é, de um Ego elevado àsua máxima potência, de um Ego identi-ficado aos ideais elevados de sucesso eonipotência, em detrimento do resto doEgo, não idealizado, não confundidocom sua imagem, mas confrontado coma realidade. Este Ego se esforça para, dealgum modo, seguir o Ego Ideal lá nasalturas, onde este último tenta arrastá-lo,gerando, tanto quanto possível, suaspróprias exigências, fazendo calar aspulsões, recalcando a angústia suscitadapelos desafios incessantes aos quais oEgo Ideal procura permanentemente res-ponder para assegurar e confortar suaexistência. Quando os. objetivos visadosse revelam irrealizáveis ou quando o

102

A história de NoêmiaApós seus estudos superiores, Noêmia

entra, através de anúncios, na filial fran-cesa de uma multinacional, adepta dosprincípios de excelência. Ela exerce du-rante nove anos, plenamente satisfeita, afunção de administradora contábil e fi-nanceira. Durante todo esse período, elatrabalha sob a direção de um chefe -aquele que a recrutou - que ela estima eque a estima: "me estimavam muito, reco-

Page 20: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

nheciam meu valor e isto era fundamental pa-ra mim ... é preciso admitir que eu trabalhavaexcessivamente; eu chegava a trabalhar setedias em sete e mesmo aos domingos, de come-çar às 7 horas da manhã para parar a uma damadrugada, era, portanto, um investimentoprofissional muito forte ... meu objetivo pes-soal era fazer sucesso ... fazer sucesso nestacarreira".

Quando perguntada de onde vinha es-ta vontade de fazer sucesso, ela a situafrancamente na sua origem familiar e emuma vontade de afirmação e mesmo de"vingança" feminista contra a opressãoprofissional da qual tinha sido vítima,por muito tempo, a parte feminina de suafamília.

"Eu penso que eu tenho, em alguma partede mim mesma, desejo de vingar todas essasmulheres que estão atrás, que foram colocadasdepois dos homens, e que não tinham nuncanada a dizer e que não tinham nada a fazersenão crianças e trabalhos sujos, sem seremapreciadas. Eu vi demais mulheres à minhavolta esmagadas pelo sistema. Era uma ma-neira de vingar minha mãe, minha avó, e paramim era a melhor estrutura, pois é uma em-presa que reconhece muito as mulheres. Eu fi-quei nesta empresa porque nela havia este re-conhecimento. "

As premissas da idealização estão pos-tas. Noêmia tem um ideal, vingar as mu-lheres oprimidas e para isto é preciso fa-zer sucesso. Ela encontrou uma empresaque lhe oferece a ocasião e que, durantemuitos anos, permite-lhe satisfazer esteideal, outorgando-lhe regularmente, si-nais de reconhecimento indispensáveis,que suas coirmãs não puderam conhecer.Ela, por seu lado, dedica-lhes um traba-lho assíduo que ela mesma define - já naocasião - como sendo quase excessivopor seu perfeccionismo: "Eu exigia demaisde mim mesma, porque ninguém me obrigavaa ser perfeccionista, a ter tanta exigência co-migo mesma e com os outros".

Após alguns anos, produz-se uma im-portante mudança na estratégia da filialonde trabalha Noêmia: a empresa cresceconsideravelmente e passa, em poucotempo, de 400 a 2000 pessoas. Esta mu-dança acarreta reformas importantes, asestruturas enrijecem e perdem seu cará-ter "artesanal", o que provoca, entre ou-tras coisas, uma mudança no status deNoêmia que perde, neste momento, mui-

to de sua autonomia: "Me tomaram o po-der, eu já não tinha mais meu orçamento, eunão tinha mais autonomia, eu não podia maisdar aumentos de 50 francos que fosse, en-quanto que, durante anos eu havia gerenciadoas pessoas no estilo de cenoura na ponta davara e com aumentos, e isso eu não podiamais fazer, eu não podia mais agir, eu estavacompletamente encurralada".------

Quando os objetivos visados serevelam irrealizáveis ou quando o

meio ambiente da vida ou dotrabalho não propiciam mais o

reasseguramento indispensável aoEgo Ideal, este submerge no Ego.

------Este primeiro golpe nas prerrogativas

de Noêmia é reforçado por um conflitomuito sério com um de seus colegas que- em função da reorganização da empre-sa - encontra-se, hierarquicamente, emposição superior à Noêmia:

"Nós tínhamos duas maneiras de ver ascoisas; com freqüência ele havia me reprovadopor ser perjeccioniéta, por ser dura, de ir mui-to fundo nas coisas, mas enquanto estávamosem posição de igualdade, isto funcionou mui-to bem. Depois disso, ele pretendeu me dobrare eu não suportei ... Mas o que mais me fezmal foi o reconhecimento dado a este tipo, quenada havia feito de notório. Quando haviagrandes problemas a resolver ou muita neces-sidade dele, ele não estava lá. Quando foi pre-ciso enfrentar uma situação catastrófica, elenão estava lá, ele chega justo no momento emque tudo estava tranqüilo; e uma organizaçãocomo essa reconhecê-lo, isto me perturbou!"

Noêmia se encontra, então, em uma si-tuação onde, por um lado, ela é privadadas possibilidades de ação que possuíaanteriormente, por outro, encontra-se nadependência de um homem que ela des-preza e que a quer subjugar, enquantoque toda sua ação profissional até entãoconsistia em vingar - através de seu su-cesso - as mulheres de sua família, curva-das sob a opressão dos homens.

A crítica que ela faz à organização, de

103

Page 21: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

jJ~lJCOLABORAÇÃO INTERNACIONAL

se rompido ... é como se eu tivesse agarradoalguém que está em pé diante de mim e o ti-vesse quebrado".

A clivagem do Ego é total: a queda doEgo-Ideal é vivida quase que fisicamente,como a morte de um ser muito querido,mas um ser que era uma parte de nósmesmos e que perdemos ou que se que-bra. O Ego-Ideal de Noêmia, que ela de-nomina sua "imagem de marca" e queera, de fato, aquilo que poderíamos deno-minar um "Ego organizacional", arrasta,na sua queda, o Ego de Noêmia ("é comose eu tivesse alguém e o tivesse quebrado") eela acaba em uma clínica psiquiátrica. Elasai quatro meses mais tarde com um mí-nimo de lucidez para perceber que elanão tem forças para enfrentar de novo asituação e pede demissão, com o senti-mento que é a única coisa a fazer se elaquer "salvar sua pele": "Era isso ou eu sen-tia que iria morrer, ou eu iria pouco a poucome suicidar e então, por instinto de conser-vação, eu disse 'eu não volto mais'. Eu nãoqueria mais trabalhar para eles e eu sentiaque era eu ou eles, se eu retornasse, eu morre-ria de fato".

As apostas de vida e de morte aí estão,muito fortes, e quando Noêmia diz quese ela retornasse "morreria de fato" ouque isto corresponderia a cometer suicí-dio em pequenas doses, é que ela sabeque em um tal contexto, onde a solicita-ção do Ego-Ideal é forte e sua contribui-ção indispensável, ela não tem mais ne-nhuma chance de enfrentar a situação.Deixar a estrutura é, então, efetivamentea única chance que lhe resta de vir a sal-var a pele do "Ego" que lhe resta e de vira restaurá-lo sem a sombra sufocante deum Ego-Ideal rompido para sempre.

Dissemos, anteriormente, que o Ego-Ideal de Noêmia havia, de fato, se trans-formado em um Ego organizacional: é es-ta identificação e este processo de capta-ção que gostaríamos de analisar agora.Noêmia descreve longamente o podermuito forte exercido pela organizaçãocom a exigência de excelência que ela es-pera de seus empregados: "Quando vocêentra lá dentro, você se dedica a isso, você sedevota a essa organização, de toda maneiranão se pode funcionar, enquanto administra-dor, a não ser dessa maneira, e todos aquelesque não aderem a isto são rapidamente afasta-dos. Eles estão a caminho da garagem e todos

"reconhecer um tipo como esse!" está à altu-ra do investimento que ela havia feito namesma, bem como de sua ligação com aorganização que lhe havia permitido rea-lizar aquilo que era seu ideal: fazer suces-so profissional e vingar-se enquanto mu-lher. "Através dele, eu tinha uma relaçãopassional com toda a organização e a críticaque eu lhe fazia era, na verdade, endereçadaàquela organização que te promete coisas ... enão te dá nada ... "

Noêmia experimenta, então, um senti-mento de frustração em relação a essa or-ganização, tão amada que, de repente, dápreferência a alguém que ela julga me-díocre e sobretudo não lhe dá mais - co-mo antes - o que ela esperava. O proces-so de desilusão, ou antes, de "desideali-zação", está iniciado. A queimadura in-terna começa.

Ela se manifesta por uma das formasmais clássicas desse fenômeno e.que en-contramos na maioria dos casos de perdado objeto: a depressão, devido à decep-ção, à queda do Ideal investido na orga-nização, que recai sobre o Ego e o desva-loriza: "Eu que adorava esta estrutura, esteclã, eu vivia muito mais a empresa, e eu che-guei a um ponto de, pela manhã ou mesmo ànoitinha, deixar as coisas se arrastarem aomáximo, de maneira a ter que acordar tarde eir mesmo aos trancos. Chegou mesmo a umponto disto se transformar em algo físico; asimples idéia de ir ao trabalho e... sobrevi-nham as crises de lágrimas, eu me punha achorar".

Os problemas foram crescendo e Noê-mia acabou por "se romper" completa-mente. A descrição que ela faz de sua"queda" é verdadeiramente surpreen-dente pela vivência física que ela descre-ve e que evoca, à perfeição, tanto a cliva-gem entre o Ego e o Ego-Ideal quanto aextensão da queda do Ego-Ideal.

"0 dia em que isto realmente balançou foimuito dramático, pois me conheceram sem-pre muito cheia de vida, muito firme, muitoem pé, e nesse dia eu afundei fisicamente. Eume lembro muito bem, eu estava no meu es-critório e eu afundei, voltei para casa, lar-guei minha bolsa, me sentei e começaram ascrises de lágrimas; foi pior do que se eu esti-vesse diante de alguém morto, alguém muitoquerido e morto na minha frente ... eu era in-capaz de parar de chorar. E depois, tinha si-do toda a minha imagem de marca que havia

104

Page 22: A NEUROSE PROFISSIONAL · COLABORA ÃO INTERNACIONAL A NEUROSE PROFISSIONAL * • Nlcole Aubert Professora da École Supérieure de Commerce, Paris, França. Tradução de Maria Irene

A NEUROSE PROFISSIONAL

aqueles que deixam de estar inteiramente den-tro, caem". Mais adiante, ela acrescenta:

"É verdadeiramente uma organização quete tritura, que te devora ... Isto se traduz poruma espécie de ética, de cultura de empresaque faz com que vocês sejam os melhores,com o slogan 'vocês são os mais bonitos, osmaiores, os mais fortes'. Você tem que ser ex-celente em tudo, está escrito no contrato, é aexcelência pela excelência ... Cada dois mesesé preciso tomar um banho de excelência; háum planejamento de treinamento, seminá-rios, te enviam em um lugar muito bonito edurante uma semana te relembram os objeti-vos e porque você aí está e o que você deve fa-zer e que cada pequena ação é necessária paraa organização".

Noêmia lembra assim a noção de per-feição destilada pela organização: "É pre-ciso ser o mais forte, o mais perfeito; todas asnotas falam de perfeição e a Direção Geral e aDireção de Recursos Humanos emitem regu-larmente - a cada dois dias em média - umanota sobre a noção de perfeição, de exigênciaem relação a nós mesmos e em relação aocliente".

Pode-se, com efeito, avaliar bem a for-ça de tais sistemas e a maneira pela qualeles captam o Ideal do Ego de cada umpara produzir um "ego conforme", querdizer, homens e mulheres conformes aoideal de excelência e de perfeição. Maspercebe-se, igualmente bem, que essessistemas só funcionam, de fato, com acumplicidade do Ideal do Ego de cadauma das pessoas. As pessoas que inves-tem nessas organizações tiram proveitodesse ideal proposto porque elas vêemnessa exigência extrema uma maneirade realizar seu Ego-Ideal, de se comple-tar, se realizar, de progredir e por issoelas aderem fortemente a estas organiza-ções. A produção do "Ego Organizacio-nal Ideal", não é, então, um fato isoladoda organização que procuraria produzir"homens conformes", ela é, de fato, umaco-produção indivíduo-organização, elanão se efetua senão com o consentimen-to e freqüentemente consentimento en-tusiasta daqueles que concorrem à suaprodução.

Se Noêmia sublinha, com razão, a pro-fundidade e intensidade do poder exerci-do pela organização sobre os indivíduos,ela esquece, todavia, de mencionar quedurante nove anos ela funcionou perfei-

tamente bem neste regime... tanto que asrecompensas e os sinais de reconheci-mento lhe forneciam a prova que seuEgo-Ideal estava em correspondênciacom o "Ideal Organizacional" desejadopela empresa, propiciando-lhe amplasvantagens.

Esses sinais de reconhecimento,repentinamente, não têm maisvalor e o conjunto do sistema

desmorona ou ... se esvazia ... talqual um balão de ar esvaziado deum só golpe, do sopro ilusório da

idealização narcisista.

------O problema aparece apenas a partir domomento onde, por uma razão qualquer,o indivíduo não consegue mais seguir oritmo imposto pela empresa, seja porqueele não tem mais os meios de enfrenta-mento, seja porque o Ideal, até então per-seguido, aparece, repentinamente, desco-nectado de si mesmo, afastado das exi-gências do Ego-Realidade, cuja voz nãose consegue mais abafar. Neste momento,a organização não gera mais os sinais dereconhecimento e as recompensas quepermitiam ao Ego-Ideal viver, ou melhor,esses sinais de reconhecimento, repenti-namente, não têm mais valor e o conjun-to do sistema desmorona ou ... se esva-zia... tal qual um balão de ar esvaziadode um só golpe, do sopro ilusório daidealização narcisista.

Com este último exemplo, apresenta-mos um caso daquilo que denominamospsíconeurose profissional, isto é, a pato-logia aqui não é produzida somente apartir das condições de trabalho, comono primeiro caso. Ao contrário, neste úl-timo, os dados do jogo organizacional searticulam com diferentes elementos dahistória individual que tornam o indiví-duo mais receptivo a esses tipos de soli-citações. O processo neurótico se inscre-ve assim, no coração da relação que uneo indivíduo e a organização à qual elepertence. O

Artigo recebido pela Redação da RAE em junho/92, aprovado para publicação em agosto/92. 105