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A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. António Gedeão e Eugénio de Andrade: viagens pela urbe babilónica Autor(es): Mancelos, João de Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23907 Accessed : 10-Jan-2021 13:30:19 digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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António Gedeão e Eugénio de Andrade: viagens pela urbe babilónica

Autor(es): Mancelos, João de

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

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MÁTHESIS 5 1996 463-473

ANTÓNIO GEDEÃO E EUGÉNIO DE ANDRADE: Viagens pela urbe babilónica

JOÃO DE MANCELOS

«Conheci as cidades de muitos povos E aprendi os seus costumes»

Homero

«Dessas cidades, só ficará o vento que por elas passou»

Bertolt Brecht

Agora que o segundo milénio fenece, assistimos a dois fenómenos sociológicos tão paradoxais quanto interligados. A um lado, as crescentes solicitações de um planeta urbano e dinâmico, susceptível de exaurir as energias do indivíduo e de sectar a sua harmonia. Noutra riba, assiste-se ao ensimesmamento, à alienação, à hipertrofia da pessoa. O choque científico e cultural que Alvin Toff1er designou de «Terceira Vaga», a extinção célere de valores, as desconfortáveis lacunas afectivas, expõem o ser humano à erosão do tempo-destruidor. Quando incapaz de se adaptar, o bípede remete-se à loucura - o «Sapiens Demens» da pós-modernidade. Alternativamente, refugia-se no antigo, o santuário onde a tradição, a ideia de autenticidade e sabedoria se mesclam. De facto, o conhecido e o imutável procriam segurança. Significativamente, Milan Kundhera intitulou uma das suas lombadas de O Livro do Riso e do Esquecimento, alusão, por sinédoque, à insanidade e ao pássado: os redutos da idade hodierna.

A ideia de metrópole foi o cabo extremo e último do romantismo a penetrar na estética modernista. Reciclou-se com Hart Crane ou Rimbaud, volvendo-se na «mise-en-scene» do homem novo, espaço apropriado para sugerir a devastação e a angústia, fervilhante de descompassada ruína ou criatividade enérgica.

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Nas páginas da poética portuguesa, arriba sem grande pontualidade -exprime-se em berço no realismo I naturalismo de Cesário Verde; atinge a adolescência com a eclosão do Modernismo, nas facetas de Álvaro de Campos e Sá-Carneiro.

A partir dos anos 60, a urbe re-emerge, com laivos existencialistas. É o espaço dessacralizado, zona de desencontros marcados, o cenário para as lucubrações de Gastão Cruz, Eugénio de Andrade ou Sophia Andresen. Esta autora, em diversos dos seus textos intrometidos, reza o negativismo dos grandes centros populacionais.

Um poema exemplar:

«Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas, Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta, Saber que existe o mar e existem praias nuas, Montanhas sem nome e planícies mais vastas Que o mais vasto desejo, E eu estou em ti fechada e apenas vejo Os muros e as paredes e não vejo Nem o crescer do mar nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida E que arrastas pela sombra das paredes A minha alma que fora prometida Às ondas brancas e às florestas verdes»

(Sophia Andresen, «Cidade», Livro Sexto)

Porém, mais do que qualquer um dos escritores convocados, o fascínio da repulsa atinge o climax na década de setenta, com Jorge de Sena. Apátrida de duas pátrias, a sua vivência nos Estados Unidos, numa América que é uma vastidão pontilhada de cidades, trouxe-lhe a inevitável náusea sartriana.

Em «Paraísos Artificiais», poeta assim:

«Na minha terra, não há terra, há ruas; mesmo as colinas são de prédios altos com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores. As flores, de tão escassas, dos jardins mudam ao mês e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores

O cântico das aves - não há cânticos, mas s6 canários de 3° andar e papagaios de S". E a música do vento é frio nos pardieiros.

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ANTÓNIO GEDEÃO E EUGÉNIO DE ANDRADE

Na minha terra, porém, não há pardieiros que são todos na Pérsia ou na China, ou em países inefáveis.

A minha terrà não é inefável. A vida na minha terra é que é inefável. Inefável é o que não pode ser dito.»

(Jorge de Sena, «Os Paraísos Artificiais», Poesia 1).

465

As grandes urbes americanas são os cenários ideais para o ultra­romantismo da banda-desenhada. Lembremos, a exemplo, os quadradinhos de Batman, o Homem-Morcego, na sempiterna e nocturna Gotham City; o Super-Homem, na perversa Metrópolis; ou o Homem-Aranha que combate o crime, lançando teias entre o cimento e o asfalto.

O homem moderno está cansado da cidade. Os tumultos de Los Angeles foram, entre outros, um exemplo da difícil convivência inter­comunitária e o falhanço da multicultura estadunidense. Por outro lado, e por todo o planeta, as grandes urbes estão a revelar-se locais de degra­dação.

Na cinematografia, Wim Wenders apresenta-nos as películas Um Anjo na Cidade e Alice nas Cidades, reflexos daquilo que Henry James apelidou de «a civilização dos hotéis». Com efeito, o homem moderno é um nómada e um estranho no seu território, singrando a incomunicabilidade.

Numa análise vinda a lume em 1992, os sociólogos Charles Reeves e Sylvie Deneuve descrevem nestas linhas o actual estado das mega­metrópoles:

«No subúrbio rico onde estamos alojados, tudo funciona na perfeição: as estradas estão em óptimo estado, o lixo é recolhido todos os dias, o correio é distribuído, as crianças vão à escola, a polícia parece civilizada ... Há quem cuide das árvores e apare a relva. Numa área de dez metros quadrados, trabalhadores hispânicos, equipados com máquinas altamente eficientes ("Made in Japan"), cortam a relva quase milimetricamente e aspiram as folhas mortas. Mas não viemos aqui (Chicago) para fazer de conta que estamos ricos. ( ... ) Depara-se-nos outra América logo desde a estação de origem. Tudo está velho, partido, ferrugento. Nada é reconstruído de raíz, tudo é grosseiramente consertado, quer sejam os edifícios, as instalações ou os comboios. Os horários não são funcionais e, por mais de uma vez, ficámos bloqueados entre duas estações ... Os transportes públicos são um bom exemplo do triste estado em que se encontram as infra-estruturas urbanas. ( ... ) As ruas e os passeios estão cheios de buracos, os edifícios, em mau estado de conservação ou mesmo em ruínas, e as ruas têm um aspecto bastante pobre».

(Charles Reeves e Sylvie Deneuve, Viajantes à Beira de uma América em Crise).

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Os gregos, inventores por excelência da «pólis», acreditavam na cidade como um lugar material onde o e.spírito poderia florescer. Seria o metafórico casamento entre Fausto e Helena, respectivamente a matéria e o espírito. No entanto, este fracassou, e o divórcio está à vista. Talvez até já o pressentíssemos. Recordamo-nos do mito da Torre de Babel. O livro do Génesis relata-nos, nesta metáfora avanletrista, o destino dos habitantes dos grandes centros populacionais:

«Os homens, que falavam então uma só língua, ao emigrarem no Oriente, vieram até à planície de Senaar, onde pretenderam construir uma cidade com a sua torre, servindo-se de tijolos cozidos e de betume, que faziam respectivamente as vezes de pedras e argamassas. Queriam perpe­tuar o próprio nome e evitar a dispersão. Mas Javé desceu até lá e, para lhes furtar a empresa, confundiu-lhes as línguas e dispersou-os pela face da Terra.»

(Génesis, 11, 1-9).

O «animal scriptionis» revela a falha que aparta material e ideal, e toma natural afeição e partido pelas coisas do espírito, ainda que com cotumos no mundano. Temos presente um texto particularmente significativo do contista Italo Calvino. Marcovaldo, um trabalhador desenraízado da ruralidade, habita agora na cidade. Saudoso, procura na metrópole sinais que lhe permitam reconhecer no horizonte urbano um resquício de aldeia. Nota um cogumelo, mas o cogumelo é venenoso; repara num coelho, e porém, o coelho é cobaia de uma experiênciamédica; vislumbra uma árvore, e eis que esta é apenas um "placard" publicitário ...

Na dissecação dos efeitos da urbe sobre o homem hodiemo, dois poemas me parecem relevantes, nas letras naCionais: o texto «As Palavras Interditas», de Eugénio de Andrade, inserido no «opus» homónimo de 1951; o poema «Cidade», de António Gedeão, parte da colectânea Teatro do Mundo, datada de 1958.

Submetendo-nos à ordem cronológica de publicação, comecemos pela produção de Andrade. Neste autor, as grandes cidades exibem tantas facetas quantas arestas imperceptíveis. Nalgumas das suas páginas encontramos a dedicação quasi-incondicional à capital do norte, onde vive, e que já lhe mereceu a antologia Porto, Os Sulcos do Olhar. Também presente está Lisboa, no poema de igual título. Noutros escritos, o sujeito poético deambula por urbes estranhas -desde Veneza, até, mais recentemente, Manhattan, o coração de Nova Iorque. Porém, no texto germinador deste breve ensaio, a cidade emerge como um espaço não amado, anónimo e incaracterístico, simbólico e representativo - intemporal, portanto. «Ecce poema»:

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ANTÓNIO GEDEÃO E EUGÉNIO DE ANDRADE

AS PALAVRAS INTERDITAS

«Os navios existem, e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios. Sem nenhum destino flutuam nas cidades, partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas voltadas para o mar. Anoitece, não há dúvida, anoitece. É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza. Ondas de sombra quebram nas esquinas. Amo-te ... E entram pela janela as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de ci4ades bombardeadas.»

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(Eugénio de Andrade, «As Palavras Interditas»,As Palavras Interditas, 1951)

o título do poema é significativo e não isento de alguma ledice fónica: «Palavras Interditas», «Palavras Inter-Ditas» (proferidas entre duas pessoas). Porquê «interditas»? Diversas reflexões hipotéticas se colocarão ao leitor: a) por serem censuradas, proibidas por alguma instituição?; b) porque o eu / emissor não as consegue exprimir, transmitir?; c) O tu / receptor / pessoa amada não recebe a mensagem, ou não a aceita, ou não responde?; d) amen­sagem é factualmente emitida, porém, o receptor interpreta-a de forma distorcida?

A impossibilidade de comunicação é, em qualquer caso, o tema do texto. O cenário citadino, infere-se, será o de uma Babilónia de tão diferentes discursos e díspares sensibilidades que a troca entre os habi­tantes não sucede. Tal assunto será retomado, dois livros depois, na

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obra Coração do Dia, na primeira estrofe do poema «Um Rio Te Es­pera».

Uma leitura próxima de «As Palavras Interditas» exclui umas e concretiza outras das pistas enunciadas. Elabora-se, no texto, um esquema comunicativo. Existe um emissor (<<as palavras que te envio»), uma mensagem, que poderá ser a da terceira estrofe (<<Amo-te»), um receptor ou ente amado (<<meu amor»).

A interdição das palavras é resultante, como nota o emissor, da negação da comunicabilidade: «se alguma Ipalavral regressasse, nem já reconhecia / o teu nome nas suas curvas claras». A trincheira é, portanto, da responsabilidade do «tu», do outro. Porquê? Três hipóteses: a) o re­ceptor recusa a prova de afecto. Neste caso, o conflito entre o poeta e a pessoa amada poderá ser indício, microcosmos, da situação de guerra que é evocada no poema; b) o receptor não chega a receber a men­sagem, talvez por estar ausente na guerra, ou dela ter sido vítima; c) a guerra transtornou tanto o receptor que, sendo já uma pessoa diferente é indiferente, passo o trocadilho, à mensagem do eu poético.

O discurso do conflito é reflectido em vários momentos do poema. Enfatiza-se a anti-naturalidade da guerra: a «cinza» dos bombardeamentos humanos opõe-se à «areia branca» natural. Também na segunda quadra se diz: «uma criança passa de costas voltadas para o mar» - uma imagem a mostrar que a guerra é um facto político-social, postura de contradição com a fusão homem / natureza. Aliás, os elementos naturais pré-socráticos estão representados no texto: água (<<rios», «mar», «água»), ar (<<vento», «ar»), terra ( «areia», «colinas», «pedra escura», «margens»). Só o fogo é humano, resultado da máquina bélica (<<luzes das colinas» - labaredas das cidades flageladas). Mais explícitas são as referências aos soldados deslocados para a batalha (<<é preciso partir») ou à angústia dos que permanecem ou caem mortos em terra estranha (<<é preciso ficar»), dos que regressam feridos (<<hospitais»), dos bombardeamentos (<<cobrem-se de cinza»).

Ainda neste âmbito, é relevante reparar no cenário do poema. Tons escuros cobrem o texto: «cinza», «pedra escura», «noite». O dia cai, ao longo dos versos: «anoitece», «ondas de sombra», «primeiras luzes das colinas», «mãos nocturnas», «a noite escura». Tudo a culminar na ágorafobia final, versos belíssimos.

Porém, repare-se na ambivalência poética eugeniana. A liberdade de opção do ser humano - a recordar a Manuel Alegre «Com estas mãos se faz a paz e se faz a guerra» - a árdua escolha ou não escolha dos existen­cialistas. A guerra morta (<<Thanatos») ou a paixão (<<Eros») estão presentes em «As Palavras Interditas». Com efeito, a «pedra escura» tanto pode ser uma lápide tumular, como o genesíaco menir, símbolo fálico mega­lítico de .fertilidade. Ainda nesta linha, o «halo das searas» tanto repre-

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sentará o clarão das explosões do bombardeamento, como se poderá relaccionar com crenças pagãs que ligam o trigo à fecundidade. O trigo ou o cabelo loiro eram tidos como resultantes da intervenção do deus Sol (Apolo, Adónis, Orfeu, Tammuz), da delisa lua (Ceres) ou da deusa terra (Cardea, Mai, Maya, Mari ou Maria). Por fim, acresce dizer que a própria noite tem, na tradição poética, ínfimo campo de relacio­namento: morte, amor: «a noite cresce, apaixonadamente». E é nas suas margens que nos encontramos. Numa riba, o emissor, o eu; noutra, o receptor, o outro, o inferno sartriano. Num lado, o bem; noutro, o mal. Entre ambos, o abismo da escolha, a separação, as pontes quei­madas, a indecisão do poeta estadunidense Auden, ao terminar o seu poema: «ou nos amamos ou morremos» - ou será «amamo-nos e morremos» ?

Também encarará assim a cidade, o poeta Gedeão? Numa entrevista a Mega Ferreira (JL, ano II, n° 28, p. 6), Rómulo de Carvalho confessa «O homem é mau, por natureza». Uma atitude anti-rousseauniana, rente às crenças do escritor nobilado William Golding.

E no entanto, a humanidade espreita à esquina dos seus versos. A propósito dos escritos de Gedeão, o compositor José Niza dilucida: «Havia um homem, havia uma história, havia um palco» (JL, ano II, n° 28, p. 7). O ser é, para este poeta, um «animal aflito». Mas, que torniquete o oprime? Quem lhe insufla o sopro do dia seguinte?

Ao escritor custou meio século a vencer a timidez e a oferecer à luz os seus poemas. Caso raro, para quem, aos dez anos, já poetava. Porém, comum a todo aquele que se furta ao «gliteratti». Lembremos Torga ou Régio, a exemplo. Uma estreia tardia mas seguramente ganhante em maturidade e consistência. Os dados de um escritor jogam-se no terreiro da época histórico-literária e na vivência ontogénica. Gedeão atravessou o existencialismo «da capo al fine». Desvendar o seu conceito do que é o bípede inteligente é desentranhá-lo do húmus dos seus poemas e en­xertá-lo na época em que foram produzidos. Esperar-se-ia, assim, que Gedeão nos recortasse do papel personagens atormentadas pelo existencialismo, crentes em que «o ser é uma liberdade sem sentido», e dizendo «o homem é o lobo do homem», - ou, na versão do poeta alemão Reiner Kunze - «um é o cotovelo do outro». Uma urbe anima­lesca, enfim. E porém, no poema para que vos convoco, intitulado «Esta é a cidade», a perspectiva é, até certo grau, positiva.

Leiamo-lo:

«Esta é a Cidade, e é bela. Pela ocular da janela foco o sémen da rua.

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Um fonnigueiro se agita, se esgueira, freme, crepita, ziguezagueia e flutua.

Freme como a sede bebe numa avidez de garganta, como um cavalo se espanta ou como um ventre concebe.

Treme e freme, freme e treme, friorento voo de libélula sobre o charco imundo e estreme. Barco de incógnito leme cada homem, cada célula. É como um tecido orgânico que não seca nem coagula, que a si mesmo se estimula e vai, num medido pânico. Aperfeiçoo a focagem. Olho imagem por imagem numa comoção crescente. Enchem-se-me os olhos de água. Tanto sonho! Tanta mágoa! Tanta coisa! Tanta gente! São automóveis, lambretas, motos, vespas, bicicletas, carros, carrinhos, carretas, e gente, sempre mais gente, gente, gente, gente, gente, num tumulto permanente que não cansa nem descansa, um rio que no mar se lança em caudolosa corrente. Tanto sonho! Tanta esperança! Tanta mágoa! Tanta gente!

Uma circe peregrina, pedúnculo de vorticela, perpassa sob a janela, incandesce-me a retina. Anda como sobre escolhos, irradiando fragância. Envolvo-a toda nos olhos; possuo-a mesmo à distância.

A multidão chama por mim. Chama e reclama Que eu nela sou princípio e flm. Lá vou, lá vou.

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ANTÓNIO GEDEÃO E EUGÉNIO DE ANDRADE

Galgo os lanços da escada de roldão e fluo, coloidalmente disperso, corpúsculo e onda, sem anverso nem reverso, fagocitado pela multidão.

(António Gedeão, «Esta é a Cidade», Poesias Completas)

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Gedeão compartilha connosco um enérgico cenário urbano. O óculo da janela por onde assistimos à passagem inexorável das multidões e do trânsito é a lente do microscópio. A rua, feita lamela, está fervilhante de uma actividade denunciada pelas frequentes repetições (<<gente, sempre mais gente, / gente, gente, gente») e o uso de curtas e possantes frases exclamativas (<<Tanto sonho! Tanta mágoa! / Tanta coisa! Tanta gente!»).

O poeta percebe a metrópole como um tecido vivo, no qual cada cidadão é uma Ínfima célula. Uma perspectiva orgânica e organicista do social.

Porém, ao focar a lente e a atenção, o bardo vislumbra um detalhe apelativo: a circe, transmutada em vorticela, protozoário. Faz as vezes da mulher, que se destaca da multitude ou se impõe à natureza: um pouco como o deus verde, no poema de Eugénio de Andrade, ou a Leonor do soneto camoniano. De imediato, o sujeito poético abandona o posto de observação, no microscópio, e não resiste a entrar em cena, - ele agora célula também, para ir ao encontro mortal e genesíaco do ser amado.

O uso de tropos importados da ciência pode conduzir-nos ao efeito de estranhamento - ele, afinal, uma das pedras de toque da «ars poetica». Afirmava o criador modernista estadunidense Hart Crane que «a poesia é uma arte arquitectural, baseada não na evolução ou na ideia de progresso, mas na articulação da consciência humana contemporânea, "sub specie aeternitatis", que inclui todos os reajustamentos da ciência». Ou seja, é legítimo o uso de termos técnicos, desde que estes sejam aclimatizados à tessitura temática e funcional do texto.

Outra das características que fazem a imagem de marca da produção poética gediana, muito notada por Jorge de Sena, é a musicalidade. O entrelaçar da literatura na música é uma promiscuidade antiquíssima. Os gregos tinham as odes, ou canções breves. Os goliardos deixaram-nos grande produção de temas espirituais ou licenciosos. Os trovadores traziam as baladas - de amor ou pungentes de sarcasmo - nas cordas do citolão, cavaquinho, flautas, tamborins, etc. Já James Joyce, uma figura incontornável da literatura irlandesa de expressão anglo-saxónica, defendia: «ninguém senão o poeta é capaz de absorver em si a vida que o cerca e de a cata­pultar, renovada, por entre música planetária».

À míngua de violinos a enternecerem e eternizarem o instante eufórico do reencontro entre as células, Rómulo de Carvalho traz-nos a harmonia

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musical das próprias sílabas e palavras - uma característica que é a sua imagem de marca. A prová-lo, as diversas canções a que os seus textos deram aso, nas vozes de Manuel Freire e José Niza. Este último afirma:

«Sempre me aconteceu, ao ler poesia, ouvir uma música que não sabia donde vinha. ( ... ) Mesmo que essa música seja só o íntimo silêncio que «ouço», ao ler um poema. Mesmo que, como no <~azz», a poesia dita, recitada, faça apenas nascer o jogo dos contrastes, das acentuações, dos climas, cortina difusa onde as palavras se apoiam e circulam na música. Mas principalmente, quando taco-a-taco, poesia e música se fundem em canção, não se sabendo onde acaba uma e começa a outra. ( ... ) De tudo isso fiz com poetas como Camões, Brecht, Bocage, Almeida Garrett, Manuel Alegre, Rosalía de Castro, Paul Éluard, Aleixo, Lorca, Castelao, Miguel Torga, Jacques Prevert, Vinicius de Moraes, com outros, em canções, em muitos casos ainda inéditas. Mas foi com António Gedeão (e também com Manuel Alegre) que as coisas foram sempre fáceis. A explicação é simples: é que a sua poesia já contém em si as principais estruturas da construção musical, basta encontrar a chave, o fio condutor, e tudo é quase um automatismo. Um automatismo tão imediato, tão directo, que me aconteceu musicar um poema de António Gedeão durante os poucos minutos da sua leitura».

(JL, ano II, n° 28, p. 7)

E na verdade, um leitor atento, repara também no potencial fónico de «Esta é a Cidade». A escolha de termos com sonoridade apelativa (<<ziguezaguear»), os jogos de palavras (<<treme e freme, freme e treme», «sem anverso nem reverso»), e naturalmente a própria rima.

Rá alguns meses atrás, estive, juntamente com mais oitenta poetas de três dezenas de países, no 11° Internacional de Poetas, promovido pela Universidade de Coimbra. Vi, por assim dizer, como paravam as modas em termos de produção literária. Fiquei deliciadamente surpreendido com as tendências da poesia de expressão anglo-saxónica. Com efeito, poetas americanos e canadianos, ingleses e irlandeses apostavam fundamentalmente na sonoridade da poesia. A mensagem era propositadamente relegada para um plano inferior, em proveito de uma incrível acuidade fónica. Dir-se-ia que as palavras eram vistas quase como conjuntos de símbolos fonéticos e a sua musicalidade explorada de uma forma muito criativa. Desde termos que decompostos formavam outros, ao uso de rima; dacacafonia à aliteração; dissonâncias propositadas e assonâncias; hiatos e contracções, e- um sem­-número de efeitos que nos deixaram, a nós, os lusófonos, boquiabertos. Alguns dos nossos colegas estrangeiros usaram máquinas de ritmo, efeitos de eco, chegando três deles a ler poemas diferentes em simultâneo, mas num compasso idêntico. Conversei longamente com o poeta AI Berto sobre isto. Ele foi perentório: «Tenho dúvidas. Será isto poesia?». Mais tarde, discutindo o caso com o autor canadiano Roy Miki, diante do livro de poemas Random

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Access File, que me ofertou, aventurei esta hipótese: «Talvez que a poesia europeia não saxónica seja fundamentalmente escrita; enquanto a de expressão inglesa tem por fim ser dita». Miki concordou e propôs: «a literatura brasileira, talvez até pela sua entoação, poderá vir a ser uma ponte entre ambas, combinando a riqueza polissémica com as potencialidades do som».

Curiosamente, e nesse mesmo dia, a Professora Adriane Bebiano propôs-nos a audição de poesia dita Tao Lee, em chinês. «Obviamente, não comprendereis a mensagem» - adendou. «Mas eu acredito que a poe­sia é fundamentalmente som». E foi assim que Tao Lee leu e recebeu uma espontânea ovação por um texto incompreensível, mas singular­mente melodioso e variado.

Haverá uma telapatia inerente à declamação? No mês passado, o número 41 da revista AGNI, publicada pela

universidade de Boston, Estados Unidos, trouxe uma entrevista que fiz ao escritor Michael Franco. Em dado momento, indaguei: «É a poesia som?» Respondeu-me: «Não acredito em nenhum poeta que não seja músico».

Há, na literatura, em termos de qualidade reconhecida, dois grupos fundamentais de autores. Primeiramente, aquele que Julius Peterson designou de «grupo directivo» - o conjunto de escritores que a comunidade literária assume como sendo fiáveis, canónicos. Por outro lado, e num estrato inferior, emerge o «grupo oprimido» - que, ocasionalmente, a história das letras recupera. Se Rómulo de Carvalho passou do desconforto e da incipiência do segundo para a galeria exclusiva do primeiro, terá sido por três ordens de motivos. Um: a criatividade no uso de termos perten­centes ao vasto campo da tecnologia; dois: a abordagem ideologicamente diferente de uma série de temáticas (vimos como Gedeão se demarcou das vozes dos autores contemporâneos ao desvendar na cidade valores eufó­ricos); três - e por último: a exploração das capacidades sonoras da sua criação.

«Esta é a Cidade», contrariamente a «As Palavras Interditas», não é um poema que salta uma fasquia muito alta. Mas graças ao soberbo uso da vertente sonora, funciona na sua plenitude.

Orfeu toca-nos. E o ícaro Gedeão sai da suacidade labiríntica, voando ao som das sílabas, sem queda, até à invenção- e fantasia do leitor desprevenido.