a natureza da filosofia e o seu ensino

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Ensino de Filosofia

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  • A natureza da filosofia e o ensinoDesidrio Murcho

    educao v. 27 - n 02 - 200213

    A NATUREZA DA FILOSOFIA E O SEU ENSINOTHE NATURE OF PHILOSOPHY AND ITS TEACHING METHOD

    Desidrio Murcho

    Resumo

    O ensino da Filosofia muitas vezes de m qualidade, devido a umaincompreenso da natureza da prpria Filosofia e do conhecimento em geral. Nesteartigo, procuro mostrar que a Filosofia difere apenas em grau, e no em espcie, deoutros tipos de conhecimento, e retiro da conseqncias para o seu ensino. EnsinarFilosofia ensinar a pensar criticamente sobre os problemas, as teorias e os argumen-tos da filosofia. Para isso, o estudante tem de ter instrumentos crticos e informaoadequada. S assim poder participar de igual para igual no debate de idias filosfi-cas. Apesar de essas idias serem praticamente senso comum nas melhores universi-dades onde se ensina Filosofia, elas constituem algo que ainda est longe de ser umarealidade no ensino portugus da Filosofia.

    Palavras-chave: filosofar, discusso, aprendizagem.

    Abstract

    The good teaching Philosophy is often precluded by a failure to understandthe nature of Philosophy and knowledge itself. This paper tries to show that Philosophydiffers only in degree and not in kind from other subjects, and from this draws someconsequences regarding the teaching of Philosophy. Teaching Philosophy is teachingto think critically about philosophys problems, theories and arguments. In order to dothat, students must have critical tools and appropriate information. Only then can thestudent partake on an equal basis on the discussion of philosophical ideas. Althoughthese ideas are pretty much common sense in the best universities that teach Philosophy,they are far from being a reality in the Portuguese teaching of Philosophy.

    Key words: philosophise, debate, learning.

    * Bolsita da Fundao para a Cincia e a Tecnologia em Kings college London, Dep. of Philosophy, strand,London WC1 2LS, United Kindom. E-mail: [email protected].

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    Uma das dificuldades que estudantes e professores de Filosofia enfrentam a seguinte: ao contrrio do que acontece noutras disciplinas, a Filosofia no tem umcorpo imenso de conhecimentos que tenhamos de adquirir. Isso desorienta o estudan-te e o professor, porque no encontram na Filosofia o tipo de contedos que se encon-tram na histria, na fsica ou na matemtica. Na Histria, h acontecimentos que tmde ser compreendidos; na Fsica, leis e frmulas; na Matemtica, teoremas e axiomase regras. E na Filosofia? H as opinies opostas dos filsofos, que nunca parecemchegar a um consenso mnimo. Essa viso das coisas est sutilmente errada, mas ,em parte, correta e o problema que ela desorienta estudantes e professores. aesse tipo de problemas que a natureza da Filosofia levanta para o ensino e o estudoque dedico estas pginas. Espero que sejam teis.

    O primeiro aspecto a ter em linha de conta o seguinte: ao contrrio do queas pessoas pensam, o que h realmente de interessante na Fsica para um fsico, ouna Msica para um musiclogo, ou na Histria para um historiador, no o amontoadode contedos que se aprendem ao longo de vrios anos de ensino nos bancos doensino mdio e da faculdade, mas o que vem depois disso: as fronteiras do conheci-mento, o que ainda no se sabe sobre a civilizao minica ou a revoluo francesa, oque ainda no se sabe sobre a origem do universo ou a natureza dos quarks, o queainda no se sabe sobre a natureza do ritmo ou da harmonia. Todavia, porque asfronteiras do conhecimento s so exploradas por relativamente poucas pessoas, ge-ralmente depois de ou durante um doutoramento nessas reas, as pessoas ficam coma idia errada de que a Fsica so apenas aquelas frmulas e leis que se aprenderamnos bancos do ensino mdio e da faculdade. As pessoas desconhecem que o conhe-cimento, em todas as reas, assim como as artes e outras manifestaes culturais,est em formao; no est acabado. E desconhecem que, nas fronteiras do conheci-mento h desacordo, discusso de idias, disputas, vrias teorias em confronto, tenta-tivas falhas de compreender certos fenmenos, etc. Como na Filosofia. A diferenafundamental que, na Filosofia, ficamos nas fronteiras do conhecimento ao fim demuito pouco tempo, porque, em Filosofia, no se sabe praticamente nada.

    Mas se no se sabe praticamente nada na Filosofia, como podemos andar aestudar Filosofia durante anos na escola e na faculdade? Podemos fazer isso porque otipo de estudo que se faz em Filosofia se o fizermos bem como o estudo que fazum historiador quando explora as fronteiras do conhecimento: descobre problemas,procura resolv-los, discute a sua soluo com os seus colegas, e os seus colegasdiscordam dele, e avanam outras solues, apoiadas noutros argumentos, chamandoa ateno para diferentes provas histricas ou para diferentes maneiras de interpretaressas provas. E o mesmo faz o fsico: apresenta novas teorias, procura refutar as dosseus colegas, chama a ateno para novas experincias, ou reinterpreta velhas expe-rincias. Uma vez mais: a diferena que um fsico ou um musiclogo ou um historia-dor apiam-se numa imensido de conhecimentos e o desgraado do filsofo est emcima de uma tbua frgil, no meio de um oceano de dvidas e perplexidades.

    Mas at essa imagem enganadora. Apesar de o filsofo no poder apoiar-se numa imensido de conhecimentos filosficos, pode e deve apoiar-se precisamentenos mesmos conhecimentos em que se apia o musiclogo, o historiador ou o fsico tudo depende da rea da Filosofia que estamos a estudar. No podemos estudar filoso-fia da arte, sem nada saber de arte; no podemos estudar filosofia da linguagem, semnada saber de lingstica; no podemos estudar metafsica, sem nada saber de lgica;no podemos estudar filosofia da cincia sem nada saber de cincia. Mas, tal como ofsico que se apia em tudo o que se sabe sobre os fenmenos fsicos coa a cabeasem saber resolver os problemas intrincados das fronteiras da Fsica, tambm o filso-

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    fo est perplexo, porque tudo o que se sabe em todas as disciplinas do conhecimentono lhe permite resolver os problemas intrincados que lhe interessam.

    No admira que a natureza da Filosofia provoque tanta perplexidade e deso-rientao nos estudantes e professores. A tentao acabar com a Filosofia precisamente o que os novos programas do Ministrio da Educao de Portugal fazem:transformam a Filosofia numa espcie de conversa de caf, vaga e sem qualquer con-tato com a tradio filosfica. Seria como sentarmo-nos todos mesa do caf a discu-tir a origem do universo, sem nada saber de Fsica: um absurdo irresponsvel. A tenta-o do Ministrio transformar a Filosofia numa espcie de Sociologia e Psicologiabaratas. Outra tentao transformar a Filosofia em histria da filosofia: em vez dediscutirmos os grandes problemas filosficos, fazemos a histria dessa discusso emantemo-nos delicadamente afastados da discusso. claro que isso altamentefrustrante para o estudante mais inteligente e talentoso que, precisamente, est muitointeressado em pensar e discutir idias sobre vrios problemas filosficos que o preo-cupam. Essas duas atitudes mostram bem a desorientao: reduzir a Filosofia a ou-tras disciplinas sintoma de que andamos desesperados procura de contedos,queremos que a Filosofia tenha contedos, como a Fsica ou a Musicologia. Ou acaba-mos por fazer da histria da filosofia o prprio contedo da Filosofia. Em ambos oscasos, h desorientao e uma incompreenso de base da natureza da Filosofia.

    A pergunta que se impe esta: o que vamos ento estudar e ensinar aosnossos estudantes? Se a Filosofia no tem contedos, que vamos ns fazer? muitosimples: vamos estudar e ensinar a discutir os problemas da Filosofia, comeandopelos mais acessveis e avanando para os mais difceis. Para uma pessoa poderdiscutir com ps e cabea um problema qualquer da Filosofia, tem de ter os conheci-mentos relevantes (de cincia, arte, etc.), como j fiz notar. E tem de conhecer minima-mente a discusso atual desse problema. Do mesmo modo que um fsico ou um histo-riador no pode ignorar as respostas dos seus colegas aos problemas que o preocu-pam, tambm o filsofo no pode ignorar as respostas dos outros filsofos aos proble-mas que o preocupam. E a verdade que se aprende muito estudando essas discus-ses, apesar de no se aprender contedos perfeitos e acabados como os da Fsica ouda Histria do ensino mdio mas como j ficou claro, esses contedos perfeitos eacabados da Histria e da Fsica do ensino mdio no so, nem de perto nem de longe,o que interessa aos grandes historiadores e aos grandes fsicos. Finalmente, para umapessoa poder discutir um problema em Filosofia, tem de saber discutir problemas: temde saber lgica formal e informal, do mesmo modo que um historiador tem de sabercompreender um documento ou um fsico tem de saber fazer uma experincia ou com-preender uma frmula.

    Quando o ensino da Filosofia de qualidade, como raramente em Portugal,o estudante sai da disciplina sabendo pensar com mais clareza, sabendo traar distin-es, sabendo detectar e evitar erros de raciocnio, sabendo avaliar opinies opostase a tomar decises informadas e refletidas. Como evidente, isso de importnciafundamental para a vida pblica e cultural de qualquer sociedade.

    O estudo da Filosofia comea pela compreenso gradual de um determinadoproblema ou conjunto de problemas filosficos. O que realmente o problema do livrearbtrio, por exemplo? Como podemos formul-lo com preciso? O que est em causa?Por que razo importante? No ser antes uma confuso, um falso problema?

    Uma forma de tentar compreender um problema saber o que alguns dosgrandes filsofos, clssicos e contemporneos, pensaram sobre esse problema. Mui-tas vezes, verifica-se que diferentes filsofos compreenderam o problema de formas

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    sutilmente diferentes. A compreenso que um dado filsofo tem de um dado problemaser a melhor? Ou no? Por qu? Contrastando as formas como diferentes filsofosformularam um problema com a nossa prpria compreenso do problema, enriquece-mos a nossa compreenso, traamos distines e corrigimos confuses.

    Como evidente, os problemas existem para ser resolvidos, e os filsofosoferecem as suas solues, as suas teorias, para resolver esses problemas, tal comoos fsicos e os bilogos. Mas sero essas teorias boas? Temos de pensar, analisarcom cuidado as diferentes teorias, verificar todos os passos em que a teoria se apia,e ver se o problema fica realmente resolvido, ou apenas disfarado, reaparecendo nou-tro lado. O estudante de Filosofia compara essas teorias, forma a sua prpria opiniosobre elas, e, se for criativo, cria a sua prpria teoria ao longo de alguns anos de estudoe reflexo.

    As teorias apiam-se em argumentos e esse outro aspecto em que a Filo-sofia difere muito das outras disciplinas. As teorias filosficas apiam-se quase exclu-sivamente em argumentos filosficos. Os raciocnios dos fsicos tm dois tipos deajudas: a experincia emprica e a matemtica. A experincia emprica permite-lhestestar as suas teorias, verificar se a realidade como a teoria diz que . A matemticapermite dar um grande rigor a essas teorias, e permite retirar conseqncias experi-mentais precisas da teoria. A Filosofia, ao contrrio das outras disciplinas, nem dispede testes empricos, laboratrios e observaes, estatsticas e outros dados; nem seapia em raciocnios meramente matemticos e formais. Tudo o que a Filosofia tem o apoio dos resultados das outras cincias e a sua capacidade para refletir, de formarigorosa e detalhada, sobre os problemas e teorias que nos interessam. O pensamentofilosfico sutil, por vezes muito abstrato, e apia-se na argumentao no matemti-ca. Precisamos conhecer a lgica formal e informal, para evitar confuses e falcias,mas no temos em Filosofia mtodos formais de prova, ao contrrio do que acontecena Matemtica ou na Fsica. Temos apenas a nossa capacidade para argumentar, deforma to rigorosa quanto possvel.

    Uma correta compreenso da natureza da Filosofia obriga a que o seu ensinoprocure o seguinte: o estudante ter de compreender claramente os problemas, asteorias e os argumentos da filosofia e ter de formar a sua opinio abalizada sobre eles;o estudante dever ser estimulado a desenvolver o seu pensamento autnomo sobre osproblemas, as teorias e os argumentos da Filosofia. Ter de ser capaz de traar distin-es relevantes, de saber defender as suas idias, de conhecer os argumentos que selevantam contra as suas idias e de saber responder-lhes de forma adequada e respon-svel. Ter de conhecer as alternativas s idias que defende, e ter de saber explicarpor que razo as idias que defende so melhores do que as alternativas. Ter de saberargumentar sem cair em falcias, ter de ser capaz de reagir a contra-argumentos e acontra-exemplos, ter de dominar os pormenores tcnicos e as sutilezas das teorias eargumentos mais complexos.

    Um ensino de qualidade da Filosofia no possvel sem um espao para queo estudante discuta idias. No Kings College London cada estudante tem um tutorcujo papel obrig-lo a tomar posio e a saber defender as suas idias. Todas assemanas, o estudante tem uma aula privada de uma hora (ou num grupo pequeno deno mais de 4 ou 5 estudantes, no caso dos estudantes de licenciatura). Todas assemanas o estudante tem de escrever um pequeno ensaio (que varia de tamanho,consoante um estudante de licenciatura apenas uma pgina ou de mestrado em geral, 4 pginas) respondendo a uma pergunta colocada pelo tutor. O tutor indicadois ou trs textos clssicos ou contemporneos que o estudante deve ler para poderresponder a tal pergunta. Mas o importante que o estudante tome uma posio

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    informada, compreendendo o problema em causa e as respostas que os textos dadosapresentam. O ensaio do estudante depois discutido com um tutor, durante umahora. E o nico objetivo da discusso fazer o estudante dizer o que pensa e defenderas suas idias e no limitar-se a regurgitar as idias dos outros. O estudante apren-de, assim, pela prtica, a fazer Filosofia: aprende a discutir idias filosficas, a rever assuas posies, a ter em considerao contra-argumentos e contra-exemplos, aprendea ver alternativas, sente a dificuldade de defender as suas idias. Num ensino de qua-lidade da Filosofia, no se pode desprezar o momento da discusso filosfica: semesse momento, no h bom ensino da Filosofia.

    Claro que h outros momentos do ensino da Filosofia: a exposio, por partedo professor, dos problemas, das teorias e dos argumentos da Filosofia; a redao depequenos ensaios expositivos e no de discusso isto , ensaios em que o estu-dante formula um problema, uma teoria ou um argumento, sem necessariamente osdiscutir. Mas, em geral, pedem-se sempre ensaios mistos. O prprio estudante acabapor perceber que, se formular mal as teorias que procura refutar, o seu trabalho sermal classificado, precisamente porque est a refutar o que ningum defende; se formu-lar mal um problema, a sua soluo ser uma tolice, porque poder estar baseadanuma confuso. Esse mtodo de misturar as coisas conforme natureza humana e natureza da prpria Filosofia: muito difcil estudar um determinado problema, teoriaou argumento e no comear imediatamente a ter idias sobre tudo aquilo. Nesse tipode ensino, estimula-se isso, mas mostra-se que nem todas as idias que temos soboas. Na verdade, o estudante rapidamente percebe que a esmagadora maioria dasidias que temos no vale nada mas temos de comear por algum lado e o melhor comear pelos nossos erros, pois, quanto mais cedo nos livrarmos deles, melhor.

    No mau ensino da Filosofia, o estudante nunca se sente envolvido nas coisasque atira para os testes e para os trabalhos finais; capaz de escrever pginas muitoacadmicas sobre Davidson ou Heidegger, mas se, mesa do caf, lhe perguntarmoso que realmente pensa sobre tudo aquilo ou no pensa nada, ou pensa tolices,porque nunca pensou realmente naquilo tudo: limitou-se a fazer um relatrio, como eusou capaz de ler um livro de Medicina do sculo XVIII e fazer um relatrio sobre o queo autor diz, sem nunca me passar pela cabea se concordo ou no com tudo aquilo o meu trabalho um mero formalismo que no quer dizer coisa alguma. Isso tudo oque o ensino da Filosofia no deve ser. Na verdade, o ensino nunca deve ser assim,seja qual for a disciplina. Mas, nas outras disciplinas, nota-se menos, porque h umbatalho de contedos tcnicos atrs dos quais o formalismo oco e a pura incompreensocega se escondem tranqilamente.

    As idias e os problemas, seja em Filosofia, seja em Fsica ou em Musicologia,so coisas vivas, no so curiosidades mortas, no museu bolorento dos neurniosadormecidos, frases que se alinham umas atrs das outras para dar a nota, que depoisd o canudo, que depois d o emprego, que depois d a casa e o carro e um lugarzinhoconfortvel no cemitrio da freguesia. Um ser humano , sem dvida, mais do que isso.O ensino de qualidade tambm: o que nos faz humanos seres inteligentes curio-sos, perplexos com o universo e com ns prprios, ardentes de conhecimento, queprocuram resolver problemas, criar teorias, avali-las discuti-las, acrescentar um pou-co mais de compreenso a tudo, para podermos morrer ligeiramente menos estpidosdo que nascemos, e para que os que vm depois de ns possam comear dois de-graus acima de ns, na caminhada que nos faz humanos.