a narrativa como vetor ético-ideológico: revisando o legado de frank capra

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  • 7/25/2019 A narrativa como vetor tico-ideolgico: revisando o legado de Frank Capra

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    Revista do Programa de Ps-graduao em ComunicaoUniversidade Federal de Juiz de Fora / UFJFISSN 1981- 4070

    Lumina

    A narrativa como vetor tico-ideolgico:revisando o legado de Frank Capra

    Maurcio de Medeiros Caleiro1

    Resumo:Anlise crtica das estratgias narrativas empregadas pelofilme A Felicidade No se Compra (Its a Wonderful Life, FrankCapra, EUA, 1946), comparando-as com aquelas adotadas por duasde suas refilmagens na ltima dcada: Um Homem de Famlia (TheFamily Man, Brett Ratner, EUA, 2000) e Click (Frank Coraci, EUA,2006). Enfatiza-se tanto o exame de aspectos formais estruturais dasnarrativas quanto o papel que estes desempenham na construo deum ethos ideolgico que, a um tempo, questiona a imagem de Capracomo um cone do populismo moralista no cinema e, a partir de seulegado, interroga o status axiolgico da tradio cinematogrficanorte-americana.Palavras-Chave: cinema; teoria da narrativa; anlise comparativa

    Abstract: A critical analysis of the narrative strategies employed bythe classic movieIts a Wonderful Life(Frank Capra, USA, 1946), incomparison with those adopted by two recent remaking of Caprasmovie: The Family Man, Brett Ratner, USA, 2000) and Click (FrankCoraci, USA, 2006). The emphasis relay on the structural formalaspects of the narratives as well as in the role they play in theconstruction of an ideological ethos which puts into question bothCapras image as one of the iconic figures of the moralist populism inthe film history and the role of his legacy to the present axiologicalstatus of the American film tradition.Keywords:American Film; Narrative Theory; Comparative Analysis

    O recurso trama paralela pertence infncia do cinema. O exemplodidtico clssico vem dos faroestes do cinema mudo: a mocinha amarrada aotrilho do trem, enquanto o heri cavalga, clere, para salv-la. A durao dosplanos torna-se cada vez mais curtas e o corte entre um plano e outro se d emintervalos cada vez menores, at que o caval(h)eiro dessamarra a dama, quandoa locomotiva, fumegando, j lhe roa o vestido.

    Para muito alm desse exerccio bsico do que um dos primeiros tericosda montagem cinematogrfica classifica como o mtodo da simultaneidade(Pudovkin, 1926: 63-65) e que tem lugar nas telas, com outros personagens esituaes, ao menos desde 1903, com The Great Train Robbery (Edwin S.Porter, EUA) , o paralelismo narrativo no cinema clssico iria avanarsubstancialmente nas dcadas seguintes, sobretudo com a diversificao criativa

    no mbito da montagem das sequncias no roteiro.1Doutorando (UFF).

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    Embora os cinemas modernistas de meados do sculo XX

    destacadamente o estruturalismo sovitico concentrassem ento o ncleoduro das experincias com montagem (e, consequentemente, com roteiro),Hollywood, ao mesmo tempo em que absorvia algumas dessas inovaes e aspunha a servio de seu cinema naturalista, de montagem invisvel e voltado aoentretenimento, forjava evolues.

    O cinema clssico, todavia, produziu tambm filmes mais complexos,mais sofisticados no plano dos dispositivos narrativos (...) Pensemos,por exemplo, nos filmes de flashback (...) ou ento os filmes compontos de vista mltiplos (...) ou ainda com um narrador ambguo(a)ou inslito(a) (...) Nesses casos, a estrutura em cenas e sequncias, orespeito pelas regras de montagem (...), a escrupulosa clareza das

    informaes espao-temporais compensam a complexidade danarrao (Goliot-Lt e Vanoye 1994: 28).

    Recorrendo, com parcimnia, a alguns dos recursos citados, precisamente estirpe dos filmes clssicos que combinam ousadia formal incluindo, como veremos, um uso deveras inovador da montagem paralela doroteiro e obedincia s regras do studio system queA Felicidade No seCompra pertence.

    Parte 1:A Felicidade No se Compra

    A dcada que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial assistiu a umgrande afluxo de pblico ao cinema nos Estados Unidos. Os nmeros do estdioque co-produziu A Felicidade No se Compra so demonstrativos de talsucesso: O primeiro ano aps o fim da Guerra foi maravilhoso para a RKO (e,como um todo, para o cinema enquanto negcio), que relatou seu maiorfaturamento na histria (mais de U$12 milhes) (Jewell, 1982: 142).

    Tratou-se, hoje se sabe, do ltimo suspiro do cinema clssico comme ilfaut, como se se tratasse de um sopro de vida que antecede morte representada, neste caso, pelo advento massivo da TV (nos EUA, j em meadosdos anos 50) seguido da irrupo de uma nova onda modernistacinematogrfica trazida pela contracultura dos anos 60.

    A Felicidade No se Compra

    representativo desse classicismo tardio,observvel tanto em padres estilsticos que evidenciam, a um termpo, um certodesgaste do modelo narrativo heterodoxo o chamado Modo Institucional deRepresentao (M.I.R.), tal como definido por David Bordwell (1985) e,latente, a nsia por super-lo.

    Primeiro filme produzido pela Liberty Filmes que Frank Capra recm-criara com o diretor William Wyler e o produtor George Stevens , o filmecustou U$2,3 milhes de dlares, parcialmente financiados pela RKO Pictures,sendo o mais caro da carreira do diretor taloamericano. Como comentou commordacidade um crtico cultural, em seu prprio estdio, Capra comeou logo

    fazendo seu filme mais Capra (Friedrich, 1989: 346), ou seja, uma histriafantasiosa, plena de sentimentalismo e de humor ingnuo, que alegadamente

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    recorreria aos clichs consolidados em relao ao estilo do diretor e que, como

    veremos, viriam a dificultar, por dcadas, a devida apreciao crtica de suaproduo cinematogrfica.

    Assim, o filme levaria dcadas para ser reconhecido como um dosgrandes clssicos do cinema norte-americano. A despeito do roteiro inovador,da excelncia dos quesitos tcnicos e de um elenco afiado em que o brilho deJames Stewart, Diana Reed e do vilo Lionel Barrymore suportado por umcast coeso de coadjuvantes (com destaque para a sex symbol Gloria Grahame),h algo de intrinsicamente datado e uma espcie de rano passadista que talvez

    j se fizessem sentir quando do lanamento do filme em 1946, como parecemindicar a fria recepo crtica e de pblico. Convm lembrar que o cinemahollywoodiano encontrava-se no auge do filme noir, com sua estilizao

    marcante importada do modernismo europeu e seu psicologismo sofisticado -embora tais qualidades s viessem a ser reconhecidas como tais e em conjuntocom a redescoberta do cinema norte-americano de pelos franceses (que deleforam privados durante a 2 Guerra), os quais identificariam traosconstituintes de uma espcie de gnero, que Borde e Chaumeton (1954)

    batizariam como filme noir.

    Assim, o resgate crtico de A Felicidade No se Compra levaria dcadaspara ocorrer, e s seria levado a cabo devido a um conjunto de circunstnciasmuito particulares, como veremos ao final desta seo. revelia dasidiossincrasias crticas de cada perodo histrico, uma anlise detida do roteiro,

    como a que faremos a seguir, evidencia a excelncia da matria-prima narrativasobre a qual o filme clssico de Capra clssico foi erigido.

    Abertura e premissas iniciais

    A histria que inspirou o filme, The greatest gift, era um conto de[Philip] Van Doren Stern originalmente enviado a seus amigos comocarto de natal. Sua recepo foi to favorvel que Stern o publicou,ocasio em que a RKO comprou os direitos com a ideia de desenvolv-lo como veculo para Cary Grant [seu ento principal astro]. Capra,membro da recm-criada Liberty Filmes, leu, comprou-lhe os direitos

    da RKO, trabalhou com Frances Goodrich e Albert Hackett no roteiro(em que J Swerlin escreveu cenas adicionais) e ento produziu edirigiu o filme (Jewell, 1982: 142).

    Aps crditos estilizados como cartes de natal, o filme abre j em claveinovadora: planos externos de bares e residncias exibidos em sequncia, a cadaum deles correspondendo uma voz que reza por um tal de George Bailey, oqual, segundo as oraes, um bom sujeito e Nunca pensa em si mesmo, eisporque est encrencado. A sequncia se encerra com um plano aberto, em

    plounge, de uma ampla residncia de onde emanam as vozes de uma esposaamorosa e de uma criana preocupada com seu pai. Assim, alm de introduzir oprotagonismo da famlia na escala axiolgica do filme, a sequncia cumpre a

    tripla funo de apresentar Bedford Falls a cidade onde se desenrolar atrama , fornecer caracterizaes iniciais de George e revelar o quanto o ele

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    querido predispondo o espectador empatia com o protagonista atravs do

    processo de identificao resultante , alm de anunciar que ele vir a seencontrar em grandes dificuldades sendo que quais exatamente s ser dado asaber ao final do grandeflashback que constitui os iniciais da narrativa.

    Mantendo o alto nvel de criatividade narrativa, a segunda sequncia jinstaura, a um tempo, um ponto de vista no usual e uma modalidade nonsensede humor dois elementos que viro a ser fundamentais para a verossimilhanalgica e para o tom das sequncias em que a trama paralela encenada: com umcu noturno em plano geral, dois astros celestes que se iluminam quandofalam dialogam em mais uma criao de um dos melhores departamentosde efeitos especiais em Hollywood (Steiger, 1985: 328). Trata-se de um dilogoentre Joseph e ningum menos do que Deus, que convoca Clarence, um anjo da

    guarda tipo Pickwick (Friedrich, 1989: 346), que aos 200 anos ainda noconseguiu seu par de asas, para atender s preces por George Bailey (JamesStewart), cujo passado passa a ser reencenado para que o anjo se familiarizecom o homem que deve proteger. Tal sequncia, atpica e maliciosamentecmica, alm de estabelecer uma premissa trama - a existncia de um plonarrativo que diverge daquele que, terreno, dominar a maior parte do filme -,deixa abertos os caminhos para a incurso da implausibilidade e do humornonsense, que viro a ser utilizados de forma precisa ao final do longoflashbackque ento se inicia.

    Por sua vez, o conjunto de episdios concernendo infncia de George,

    alm de pr o espectador em contato com o leque bsico de personagens edilemas dramticos que viro a ter papel de destaque na trama, instaura umaliberdade narrativa que faz com que o filme transite com facilidade de umgnero cinematogrfico a outro numa formatao narrativa que visa a

    versatilidade ainda hoje corrente, encontradia, por exemplo, no manual deroteiro de David Howard e Edward Mabley (2008). Assim, por exemplo, aomostrar George salvando seu irmo do afogamento em um lago gelado emuma sequncia plena de aventura e tenso , o filme introduz a um tempotraos do carter do protagonista no caso, a bravura e a justificativa parasua surdez do ouvido esquerdo, que ser explorada pelo roteiro visando aproduzir significaes diversas, nem todas cmicas. Algumas dessas sequncias

    constituem fontes ainda no exploradas para o estudo do som no cinema,particularmente no que diz respeito s suas relaes com o espao flmico, talcomo proposto nas categorizaes de Michel Chion (1994 e 2003).

    Estratgias que ao mesmo tempo caracterizam personagens e fazemavanar a narrativa eventualmente criando os primeiros dilemas dramticos sero recorrentes nesta fase do filme, em que so introduzidas as garotinhasMary (a certinha) e Violet (a atirada) - que disputam o amor de George - e omagnata Mr. Potter (magistralmente encarnado por Lionel Barrymore), alm deoutros personagens secundrios.

    A narrativa capaz de passar, em segundos, de uma gag tpica do cinema

    mudo um velho quase atropelado ao parar no meio da rua para olhar Violet,agora adulta e encarnada por Gloria Grahame, passar uma cena de grande

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    densidade dramtica o garoto George, aps ser espancado (por se recusar a

    fazer uma entrega) pelo velho farmacutico bbado, desolado aps receber anotcia da morte do filho, revela ao patro que este, em seu desespero, seenganara e pusera veneno numa receita que manipulara, provocando a comoodos dois personagens.

    Tal oscilao evidencia um trao do cinema de Capra que, como veremoscom mais vagar ao final desta seo, recebeu pouca ateno crtica por um longoperodo de tempo, e que se deve, em grande parte, ao modo como o roteiroconcebe os personagens (caracterstica que, no caso de George, valorizada pela

    versatilidade performtica de James Stewart):

    Nos filmes de Capra, como nos ensaios de Emerson ou nos romancesde Henry James, h uma valorizao do personagem no como umafixidez, mas como uma srie de possibilidades imaginativas ouimpulsos em estimulantes e frequentemente assustadores fluxos(Carney, 1986: 55).

    A transio para a vida adulta do protagonista feita, uma vez mais,atravs de um recurso narrativo inovador, avanado para a poca: a imagem deJames Stewart congelada por vrios segundos, enquanto o dilogo em offentre Deus e o anjo Clarence, pleno de humor, tece comentrios sobre a suaaparncia fsica enfatizando a transio operada pelo filme sem abrir mo dacriatividade. A sequncia traz ainda, uma vez mais, um exemploparticularmente rico de potencialidades para o estudo do som no cinema, dada a

    forma peculiar como estrutura espacialmente a relao entre imagem e som, emque a fonte deste no pertence ao espao diegtico coberto pela cmera, masquele aludido na segunda sequncia do filme, quando os dois referidosinterlocutores dialogam pela primeira vez. Convm sublinhar, ainda, o impactoque o recurso imagem congelada para fins dramticos provocaria, nosestudos de cinema e fora dele, quando utilizada por Franois Truffaut ao final deOs Incompreendidos (Les 400 coups, Frana, 1962) e depois, com menosrepercusso, em inmeros filmes, destacadamente Bonny and Clyde (ArthurPenn, EUA, 1968). A negligncia dos estudiosos de cinema para com seu uso,altamente elaborado, no filme de Capra parece ser sintomtica do quanto a aurade filme de arte ainda funciona como um questionvel critrio de seleo de

    objeto de estudo.

    Desenvolvimento da trama

    Decorridos 20 dos 130 minutos de durao do filme, esto estabelecidasas premissas e os cenrios bsicos da trama, que passam a ser desenvolvidos.Embora a conformao do roteiro a partir desse momento, e at o fim do longo

    flashback, no apresente nenhuma grande inovao, ele rico tanto emsequncias de grande impacto e plasticidade espetaculares, na acepo emque Laura Mulvey emprega o termo (1975) , como, destacadamente, o grande

    baile no incio do filme, quanto em pequenas tramas paralelas envolvendo oelenco de coadjuvantes. Da derivam duas modalidades temticas principais: asquestes que opem acumulao capitalista e justia social no embate entre o

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    magnata Mr. Potter e George na administrao da empresa financeira familiar

    deste; e as disputas e jogos de coqueteria no interior do tringulo amorosoformado por George e Mary (Donna Reed) com ou Violet (no caso dele) ou Sam(Frank Albertson, no caso dela).

    Algumas dessas sequncias ressentem-se de uma certa lentido rtmica,que se evidencia menos pelos 63 anos que separam o filme de umacontemporaneidade em que a velocidade narrativa (e o nmero de cortesinternos propiciados pela montagem ps-MTV) aumentou exponencialmente doque por uma assimetria interna inerente ao prprio filme: a maneira pela qualseu roteiro estrutura horizontalmente a narrativa nos primeiros vinte minutos,com sua sucesso vertiginosa de acontecimentos, no encontra equivalncia noaprofundamento vertical dos temas suscitados. Mesmo o recurso

    literalmente voz de Deus como narrao deixa, ao longo do filme, de serutilizada de forma inventiva e passa a receber o tratamento convencional de vozover meramente descritiva que levou-a a ser pejorativamente designada com aexpresso entre aspas.

    Embora a consumao da relao entre George e Mary mantenha ointeresse tanto nos idlios quanto, mais ainda, nos desencontros e quiprocsamorosos que precedem o casamento, os momentos de clmax durante o

    flashbackdo-se, notadamente, atravs de trs situaes de grande intensidadedramtica:

    1) A quase falncia da instituio financeira dos Bailey devido tentativa

    de retirada massiva de fundos por parte dos clientes durante a Depresso,evitada graas generosidade de Mary, que abre mo de sua lua-de-mel comGeorge, aplicando o dinheiro na salvao da empresa;

    2) O descuido de tio Bill (Thomas Mitchell), que permite que Mr. Potterse aposse sorrateiramente de um envelope contendo uma fortuna cujo sumiocaracterizaria fraude bancria, levando ele ou George priso;

    3) O acmulo de tenses que afeta George, que desconta suaagressividade descontrolada contra a prpria famlia, terminando por sofrer ocolapso nervoso que o induz ao suicdio.

    Esses trs acontecimentos dramticos colocam em perspectiva o porqude o crtico de cinema William Pechter ter classificado A Felicidade No seCompra como um dos filmes mais sombrios j feitos (apud Malland, 1998:96). O modo como so encenados o grau de perversidade das aes de Mr.Potter, a desgraa, o desespero e o sentido de humilhao e culpa que se abatemsobre tio Bill, assim como o descontrole emocional de George, desconstri edesmente a imagem de Capra como um mero realizador de comdiassentimentais e nacionalistas, revelando a complexidade e o nvel de tensodramtica no interior de sua obra algo que levaria dcadas para ser(parcialmente) reconhecido por crticos e acadmicos. a essa reorganizaodos parmetros analticos que concernem obra do diretor taloamericano que

    um dos maiores especialistas em Frank Capra se refere ao sublinhar quetrabalhos recentes em Estudos Culturais tm nos encorajado a focar no

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    apenas nos finais felizes dos filmes mas tambm nos conflitos narrativos que

    levaram a eles (Malland, 1998: 96).Embora s seja permitido ao espectador se dar conta disso

    retrospectivamente, com a encarnao do anjo Clarence e com seus mtodosimprovveis de salvar George do suicdio que o longoflashback chega ao fim,quando a durao do filme j atinge 99 minutos. As sequncia que reconstituemo que seria de Bradford Falls e da vida de George sem suas boas aes sodramtica e cinematograficamente superlativas, com uma mise en scnegil eum tom expressionista que reala o absurdo e a irrealidade sem precisar

    justific-los. A cidade torna-se uma ferica urbisonde campeia o jogo, o vcio e aprostituio ( qual Violet aderira); o condomnio que George financiara emmdicas condies para os concidados da classe baixa continua a ser apenas

    um cemitrio e o casaro velho que recuperara e transforamara naaconchegante morada em que criara seus filhos com Mary segue abandonado eem runas; o velho farmacutico, aps passar vinte anos na cadeia por, noepisdio da troca de medicamento por veneno, assassinar um paciente, torna-seum farrapo humano imerso no alcoolismo. A perambulao de George e deClarence (Henry Travers, que, com seu humor fsico de vaudeville, um grandeacerto do casting) tem um clmax altura de sua alta voltagem dramtica: oauge do desespero enfatizado pelo raro para os padres hollywoodianos dosanos 40 - hiperclose de George, de frente para a cmera, com o pnicoestampado em sua face.

    Livre da retroviso proporcionada pelo anjo e de qualquer desejo suicida,George est pronto para voltar, radiante, vida familiar e comunal, certo de seupapel positivo e transformador em um e outro ncleo de convivncia. , uma

    vez mais, o elogio do heri individual, atravs do qual:

    Capra se filia diretamente linha de Emerson e William James emsua convico de que o indivduo o nico gerador legtimo de valoresno universo e que ele completamente adequado tal tarefa autoral.Embora outras anlises digamos, marxistas ou hegelianas tenderiam a negar a autoria individual em prol de sistemas e definiros valores humanos em termos de estruturas institucionais, Capra claramente norte-americano em sua insistncia prtica de que o

    indivduo que modela o sistema, e no o contrrio (CARNEY, 1986,52).

    Com tamanha tour de forcedramtica, esto criadas as condies para ohappy end, ainda mais porque, com a solidariedade dos habitantes de BradfordFalls restituindo, via doaes pessoais, o montante que tio Bill perdera,George est pronto para passar mais um natal em famlia, com a certeza de queesta o bem maior de sua existncia. Um final conservador e sentimental,

    verdade, mas plenamente sustentado, do ponto de vista da construo narrativa,pela sucesso de emoes extremas que o antecedeu.

    Repercusso crtica

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    Tristemente, a atmosfera do ps-Guerra no foi receptiva misturanica de amor, humor epathosoferecida por Capra, e o filme deuprejuzo de 525 mil dlares. Embora o estdio tivesse um contratocom a Liberty para uma srie de filmes, essa foi a nica produoconsumada entre as duas organizaes (Jewell, 1982: 215).

    A Felicidade No se Compra impressionou o imodesto Capra no scomo, em suas prprias palavras, o melhor filme que j fiz mas como o melhorfilme jamais feito por quem quer que seja (apudFriedrich, 1989: 346). Noobstante, o filme no foi, como j dito, um grande sucesso nem de pbliconem de estima. E pareceu, por muito tempo, condenado programao natalinadas grades televisivas. Na histria do cinema escrita por Eric Rhode, porexemplo uma das mais prestigiadas das que vieram tona nos anos 1970 , h

    apenas uma meno a A Felicidade No se Compra, e apenas para criticarCapra (e Vittorio De Sica, cujo Miracolo a Milano seria lanado cinco anosdepois), porque, alegadamente, seus contos de fada apresentam o mundoadulto como se visto por uma criana (...) e parece improvvel que elespudessem acreditar que qualquer criana veria o mundo adulto de forma to

    branda (Rhode, 1976: 415). Contrapondo tal comentrio ao dramatismo dassequncias do filme comentadas pargrafos acima e que incluem runapsicolgica e financeira e at tentativa de suicdio constata-se que ohistoriador mais um que se deixou contaminar pela crtica generalista aosentimentalismo capriano e no prestou a devida ateno ao filme em questo.

    Ademais, embora Capra tenha sido um diretor que claramente rene umfeixe bsico de caractersticas distintivas ao longo das dcadas em que atua,caractersticas estas que autorizariam uma anlise de sua obra pelos filtrosanalticos estabelecidos pela Teoria do Autor, forjada nas pginas dos Cahiersdu Cinmadurante os anos 50 como foi feito com Alfred Hitchcock, JohnFord e Howard Hawks, entre outros , ele foi negligenciado tanto pelosautoristas franceses quanto por seu principal representante nos EUA, AndrewSarris, devido sua ideologia alegadamente conformista e sentimental.

    O reavivamento do interesse crtico-acadmico pelo seu trabalho s seriaposto em curso a partir do final dos anos 80, quando a Columbia Picturesdisponibilizou cpias restauradas de quase todos os filmes que ele dirigiu l de

    1928 a 1934 [22, entre longas e mdias metragens] (...) Uma nova viso dotrabalho de Capra emergiu dessa efuso cinematogrfica (Sklar e Zagarrio,1998: 3). Tal reviso permitiu a pesquisadores como Charles J. Maland e JosephMcBride (que escreveuFrank Capra: The Catastrophe of Success) desmistificaro preconceito ideolgico contra Capra e analisar sua obra s de longas so 36entre 1926 e 1961 sob novas luzes, revelando suas complexidades dramticas.

    Estas seriam enfatizadas nas adaptaes produzidas depois do revivalcrtico dos anos 90. Como em duas delas, produzidas j no sculo XXI, e queexaminaremos a seguir.

    Parte 2: Click e Um Homem de Famlia

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    Ao contrrio do filme dirigido por Capra, nem Um Homem de Famlia

    nem Clickpertencem ao mbito de um cinema com marcas autorais ainda queproduzido no sistema de estdios. Como veculos para seus famososprotagonistas, constituem exemplo tpico da primazia do star-systemhollywoodiano, do qual o prprio astro deA Felicidade No se Compra, JamesStewart (1908-1997) foi um expoente, sobretudo entre as dcadas de 40 e 60, oauge de uma das carreiras mais longevas de um ator de primeiro time emHollywood.

    Tanto Cage quanto Sandler protagonizaram, em suas respectivascarreiras cinematogrficas, outros anti-heris caprianos: o primeiro, alm deuma srie de papis que parecem emular os personagens de James Stewartquando dirigido por Capra, protagonizou Mr. Deeds (Steven Brill, 2002),

    baseado numa readaptao do roteiro original de Robert Riskin que o diretoritaloamericano filmara em 1936 (Mr. Deds goes to Town); Cage fez razovelsucesso, fazendo par com Bridget Fonda, na comdia romnticaAtrados pelo

    Desejo (It Could Happen to You, Andrew Bergman, 1994), que, embora baseadaem uma histria real, tem a atmosfera de um filme de Capra e um finalpraticamente idntico ao de A Felicidade No se Compra. Essa aproximaorecorrente dos dois astros com o universo do diretor taloamericano pode serparcialmente explicado pelo modo como se d a insero deles no star systemhollywoodiano: embora sem atributos fsicos que os permitam classific-loscomo gals, ambos tm umapsyche du roleque os encaixa perfeio no papeldo cidado norte-americano mdio (Sandler, que baseou todo o seu incio decarreira em tais papis, muito mais do que Cage), somada, no caso doprotagonista de Um Homem de Famlia, a um talento cujo trao distintivo

    justamente a versatilidade, a capacidade de superar a mera verossimilhana nosmais diversos papis.

    Na academia, ateno praticamente nenhuma foi dispensada a taisttulos, numa recusa sistemtica a enfrentar criticamente a produocinematogrfica mais comercial, recusa esta que emula e refora o elitismo anti-cultura pop que teve novamente lugar na universidade (no caso, anglo-americana) a partir do neoconservadorismo dos anos 90, para desgosto decrticos culturais como Camille Paglia (1996). Em decorrncia, atualmente at

    mesmo os departamentos de Estudos de Cinema dos Estados Unidos no tm,via de regra, por hbito prestar ateno aos produtos tidos comoexcessivamente comerciais da indstria cinematogrfica, com a eventualexceo de alguns blockbusters. Esse preconceito mal disfarado e que soacomo uma emulao tardia e fora de lugar do pensamento clssico da Escola daFrankfurt, um tanto deslocada em um ambiente acadmico marcado pelo anti-marxismo acaba por negligenciar aspectos relevantes e lanar na obscuridadeum nmero enorme de filmes, temas e abordagens.

    Lanado em 2006, Click , primeira vista, mais fiel ao filme original deCapra do que Um Homem de Famlia: seu protagonista, Michael Newman(Adam Sandler) , como George, um trabalhador inserido, numa posio mdiade comando, num determinado sistema de produo no caso, um grandeescritrio de projetos arquitetnicos e no um magnata de Wall Street como o

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    personagem de Nicolas Cage emUm Homem de Famlia, Jack Campbell, que

    se aproxima mais do que seria um Mr. Potter jovem e em boa forma fsica.O dilema que se lhe apresenta diz respeito a como conciliar as demandas

    da vida familiar seja a afetividade da esposa Donna (Kate Beckinsale) ou aparticipao nos jogos ldicos do casal de filhos pequenos com aquelasrequeridas para ascenso profissional. Nesse sentido, importante sublinharque a atitude desviante do protagonista vivido por Adam Sandler que se valede uma espcie de controle remoto mgico, que manipula o tempo e o espao,para satisfazer suas demandas arrivistas no se baseia na oposio recorrenteno cinema e na literatura entre valores familiares e tentaes da vida mundana como o vcio em jogos, o lcool, as drogas ou os relacionamentos extra-conjugais -, mas entre famlia e trabalho, estratgia atravs da qual o roteiro deClick poupa seu protagonista de ser moralmente condenado pelo espectador eenfatiza uma inesperada crtica s bases do capitalismo, para alm da nfase emseus aspectos predatrios que j aparecia no filme de Capra atravs de Mr.Potter e retomada em relao a Jack.

    Assim, enquanto a oposio famlia versus trabalho ocupa um lugarcentral nopathosnarrativo de Click, o Jack de Um Homem de Famlia um sertambm repartido, mas de forma mais complexa. Ele introduzido, j nasequncia inicial emflashback, como algum na dvida entre ir para o estgioem um banco ingls ou ficar nos EUA, nos braos da namorada Kate (TaLeoni), como esta gostaria. Essa hesitao conflituosa entre escolhas

    profissionais e amorosas, famlia e trabalho, hedonismo ou sensatez vaicaracterizar, de forma recorrente, a trama. De qualquer modo, ao ter optadopelo banco ingls em detrimento da namorada, ele, a despeito de bem-sucedido, agora presa do fascnio pelo estilo de vida consumista e glamoroso pormafetiva e espiritualmente vazio deplayer do mercado financeiro. Por artes deuma intromisso do fantstico, ver-se-, uma bela manh, deslocado do topoum edifcio na Quinta Avenida para um lar suburbano em Nova Jersey, lutando

    junto com a ex-namorada para manter sua prole.

    Em ambas as adaptaes, o vetor indutor das mudanas pertence, talcomo o anjo Clarence de A Felicidade No se Compra, ao universo dosobrenatural. Porm, ao contrrio do protetor de George, no agem a posterioripara evitar um ato desastroso do protagonista que poria fim a uma existnciaagitada porm feliz. Cash (Don Cheadle), o anjo torto de Um Homem de

    Famlia, perfaz um caminho inverso ao de Clarence: ele tira Jack de seuegosmo milionrio e o atira compulsoriamente na dura porm afetivamenteaconchegante vida familiar suburbana, na qual subsiste vendendo pneus na lojado sogro. J Morty, o personagem entre o divino e o demonaco encarnado porum histrinico Christopher Walken, ao presentear Michael com o tal controleremoto capaz de afetar sua prpria vida e acelerar o tempo, dota-o, na prtica,de um poder que ser utilizado para minimizar as relaes interpessoais em prolda dedicao mxima ao trabalho.

    Estruturalmente, portanto, os dois filmes so dessemelhantes entre si eem relao aA Felicidade No se Compra, pois, ao contrrio do que acontece

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    neste, seus respectivos protagonistas so deslocados, inicialmente devido ao

    de foras externas sobrenaturais mas depois por livre arbtrio, de umdeterminado modo de vida a outro. Este, s aparentemente satisfatrio paraMichael, mergulhado em trabalho enquanto negligencia a famlia, sendoabandonado pela esposa e perdendo contato com os filhos; e s aparentementeinsatisfatrio para Jack, que percorrer um longo caminho at descobrir que oglamour e o consumismo desenfreado so prazeres menores, comparados aosda teia de paixo carnal e amor familiar aos quais se v enredado no seu larsuburbano.

    Outro diferena essencial no roteiro das duas adaptaes a supresso dainfncia da narrativa de Um Homem de Famlia. Embora este promova

    flashbacks dos momentos iniciais do romance entre Jake e Kate o que

    corrobora a proeminncia da questo sexual sobre a familiar no filme , noreconstitui a infncia de seu protagonista, que tanta importncia tem nodelineamento psicolgico do George vivido por James Stewart no originalcapriano. Estratgia narrativa que estruturalmente reproduzida em Click naforma de reiterados flashbacks, durante os quais o espectador toma contatocom a infncia de garoto tmido e preterido que foi Michael caracterizao quemuito colabora para o processo de identificao com um protagonista cujogrande defeito trabalhar demais.

    A Felicidade No se Compra , como Click, um filme claramenteancorado em um personagem principal, a partir do qual a histria contada

    com exceo das duas sequncias introdutrias do filme, mas incluindo a longareconstituio da Bedford Falls alternativa (vista que atravs do ponto de vistade George). Um Homem de Famlia bem mais inventivo nesse quesito.

    Primeiro, h a interveno ativa da garotinha Annie Campbell (MakenzieVega), que logo compreende que Jack no seu pai tomando-o por um clonealiengena, num bom insightdo roteiro para trazer humor narrativa. Assim,alm da funo imediata de oferecer uma viso mediada e, como dito, compitadas de humor de Jack, a cativante personagem da menina exerce o queJacques Aumont classifica como funo a termo (1995, 142), quando, prximoao final do filme, anuncia que o protagonista no mais uma cpiaextraterrestre mas seu pai que voltou indicando assim, ao prprio personagemde Cage e ao espectador, que o longo perodo de amostra convivendo com Katee a famlia na casa suburbana est prestes a chegar ao fim e tornar-se definitivo.

    Segundo, o filme traz ainda o mrito de, tendo sido produzido no ps-feminismo, no apenas debater questes de gnero atravs do relacionamentode Jack e Kate (algo absolutamente ausente no filme que o inspirou, em que aesposa do protagonista uma caricatura da dona-de-casa oprimida dos anos40), mas promover, ao final, uma inverso de perspectivas, em que dado aopersonagem de Tea Leoni a mesma capacidade decisria a qual por duas vezesJack utilizou (de formas contraditrias entre si) para determinar se queria ouno continuar aquela relao amorosa. Tambm nesse sentido, Um Homem de

    Famlia um filme mais atualizado, tanto tecnicamente, por seu roteiropontuado por pequenas e recorrentes culminncias, quando tematicamente, ao

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    incorporar a mulher como agente da ao e, em menor grau axiolgico no

    contexto da narrativa, por dar voz a um personagem infantil.J Click, ao contrrio, segue o modelo capriano ipsis litteris, ao envolver

    paulatinamente seu protagonista num processo auto-destrutivo do qual serresgatado ao final atravs do truque fcil e potencialmente frustrante para oespectador de tudo se tratar de um sonho estratagema criticado por ummestre do cinema como Alfred Hitchcock por violar o acordo tcito deconfiabilidade e ilusionismo entre espectador e realizador (Hitchcock e Truffaut,1986). De qualquer modo, Michael , ao final, como os demais protagonistas dosfilmes aqui analisados, trazido de volta aos braos da famlia a panaceia paratodos os males, segundo os trs filmes que assim se inserem no apenas natradio melodramtica do cinema hollywoodiano, mas no topos moral que esta

    encerra.

    Concluses

    No obstante o conservadorismo moral que perpassa os trs filmes, cadaum deles perfaz, sua maneira, uma relativa mas um tanto surpreendentecrtica ao capitalismo, ao menos em sua vertente dita selvagem: em A Felicidade

    No se Comprao alvo a ganncia dos poderosos encarnada pelo Mr. Potterde Leonel Barrymore e a decorrente vitimizao dos pobres. Em Um Homemde Famlia, alm destas, claramente enunciadas pela narrativa, critica-se,

    atravs do primeiro Jack, o hedonismo consumista e a mentalidade yuppie toem voga nos anos de hegemonia neoliberal. Tal como Gordon Gekko, opersonagem interpretado por Michael Douglas em um dos filmes-snteses doperodo, Wall Street(Oliver Stone, EUA, 1987) pelo qual, como o ator revelouem entrevista, apesar de se tratar de um vilo, era entusiasticamentecumprimentado por pessoas do mercado financeiro anos a fio (Douglas, 2009) Jack Campbell no se contenta em auferir lucros exorbitantes: sua plenasatisfao depende, por um lado, da destruio de companhias e, por outro, dahumilhao dos a ele subordinados. O preo que ele paga o da solido. Acrtica mais insidiosa, no entanto vem, quem diria, do filme protagonizado por

    Adam Sandler: ali o consumismo criticado no apenas como um vcio

    exibicionista e/ou uma vlvula de escape de magnatas inescrupulosos, mascomo uma teia na qual, um tanto inconscientemente, o homem comum se deixaenredar nesse quesito, Click um filme menos maniquesta do que seuspredecessores.

    O que permanece intacto nas readaptaes, em relao ao filme original, seu ethos. Com efeito, tanto Click quanto Um Homem de Famliacompartilham com o filme de Capra a mensagem de que as razes, os amigos, ahonra, o senso de justia e, sobretudo, a famlia so a razo de ser da vida e afonte da felicidade. George, aps a experincia com o universo paralelo deBradford Falls que poderia ser o seu, volta para a casa e para o natal com aesposa e os filhos gratificado e em estado de xtase; ao personagem de AdamSandlers dada a oportunidade de retrabalhar as relaes amorosas e familiarescom a anteviso onisciente de seus passveis erros futuros; e o Jack Campell de

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    Nicolas Cage, embora no regrida no tempo, retoma com Kate um amor que

    presumivelmente no os levar aos jantares finos em Manhattan, mas a um larcom dois filhos e um co em Nova Jersey. Se, como sugere, no semmordacidade, a scholar Linda Williams (1999), melodrama no uma categoriaretrica ou um sub-gnero cinematogrfico, mas, essencialmente, o mododominante na produo cinematogrfica norte-americana,A Felicidade No seCompra, Um Homem de Famlia e Click levam to afirmao ao paroxismo,sem descuidar, no entanto, de levar diverso ao espectador.

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