a multidÃo

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    8A MULTIDO(6 pontos sobre o amor e o corpo)

    O que um corpo? um perfeito tropo do esprito.Toda a genuna comunicao portanto figurada eno so portanto as efuses amorosas genunascomunicaes?

    Fragmentos.Novalis

    1. Quando Sigmund Freud escreveu o notrio ensaio intitulado

    Massenpsychologie und Ich-Analise, em 1921, muitas reflexes j haviam sido

    realizadas em torno do tema. O acontecimento da formao de grandes

    contingentes, a transformao das cidades em principais centros sociais, a lgica

    econmica industrial, as guerras de Estado, entre outros fatores, colocaram no

    epicentro da Idade Moderna os problemas da chamada massa, multidoou mesmo

    povo , em ltima estncia.

    O trabalho de Freud significativo, inicialmente, por dois motivos: o

    primeiro reside em sua tentativa de desenvolver uma teoria do pensamento sobre a

    massa a partir da juno de seus aspectos psicolgicos e culturais; e o segundo oseu esforo em tentar dar conta de uma discusso h algum tempo j iniciada sobre

    o tema.

    Logo no incio do texto so pontuadas como problemas de traduo as

    possveis relaes que o ttulo sugere. Se a traduo direta do termo francs

    "foule, utilizado por Le Bon talvez o primeiro a pensar, segundo Freud, de

    maneira mais incisiva e direta sobre o problema dos grandes coletivos sociais -

    multido, o termo colocado como referncia para homogeneizar o conceito por

    todo o trabalho grupo, ou seja, o equivalente palavra alem Masse que,

    literalmente, seria traduzida por massa. A opo por se trabalhar no texto o

    conceito de grupo, e optar por retirar diferenas internas entre as definies,

    explicita uma questo de significativa relevncia. Dentro desta seleo pontua-se

    uma distino que revela um necessrio cuidado em se pensar as semelhanas

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    gerais - e diferenas - entre multido, massa e grupo. Dos trs conceitos, o de

    grupo ser o mais, digamos assim, primitivo. Ser aquele que estar ligado ao que

    Freud vai tentar definir como os princpios das organizaes sociais, os primeiros

    esboos, a forma atvica pela qual iro se definir os contornos dos grupos atuais.

    As particularidades do grupo j definem a forma pela qual Freud vai mergulhar na

    discusso. Em uma passagem, ele demonstra a diferena presente entre os

    conceitos de multido e grupo, ao abordar a obra de McDougall, The Mind Group:

    No caso mais simples, diz ele, o grupo no possui organizao alguma, ou umaque mal merece esse nome. descreve um grupo dessa espcie como sendo umamultido. Admite, porm, que uma multido de seres humanos dificilmente podereunir-se sem possuir, pelo menos, os rudimentos de uma organizao, e que,precisamente nesses grupos simples, certos fatos fundamentais da psicologia

    coletivas podem ser observados com facilidade (MCDOUGALL, 1920, p. 22). Antesque membros de uma multido ocasional de pessoas possam constituir algosemelhante a um grupo no sentido psicolgico, uma condio tem de ser satisfeita:esses indivduos devem ter algo em comum uns com os outros, um interessescomum num objeto, uma inclinao emocional semelhante numa situao ou noutrae (conseqentemente, gostaria eu de interpolar) certo grau de influnciarecproca (ibid.,23). Quanto mais alto o grau dessa homogeneidade mental , maisprontamente os indivduos consti tuem um grupo psicolgico e mais notveis so asmanifestaes da mente grupal. (FREUD, 1974. p.109)

    O desejo de homogeneidade, o qual o prprio Freud parece questionar, um

    ponto de ciso na distino grupo/multido. A coeso organizacional de um grupo

    parte de princpios comuns que devem ser de alguma maneira divididos e

    compartilhados. A definio de grupo a partir de suas caractersticas psicolgicas

    acontece atravs de certos elementos comuns que iro ser o liame de coeso e

    interao do mesmo. A multido, nessa definio aqui utilizada, no

    necessariamente um grupo psicolgico que tem suas caractersticas previamente

    definidas por um coletivo de bens simblicos e emocionais. Ela uma

    manifestao, um evento que ganha forma atravs de um acontecimento.Ambos o grupo e a multido sero constitudos pela necessidade anterior

    de uma construo de um campo de elementos comuns. A diferena bsica se

    encontra explicitada nos vetores que iro nortear a formao do grupo como algo

    slido, sedentrio, funcionando como fundamento de determinada lgica de

    valorao, enquanto a multido, mesmo tendo a necessidade de elaborar sua coeso

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    simblica interna, raramente se v completamente definida por esses elementos

    anteriores. A multido da ordem do acontecimento, enquanto o grupo o do

    fundamento. So dois vetores: o primeiro, horizontal, socializante e anti-

    hierrquico, o segundo vertical, determinador, hierrquico e estabilizador. Os dois

    agem no sentido da construo do comum, encontrando-se como foras

    constituintes da lgica de significao, agindo na produo de coletividades

    sociais.

    A questo aqui a forma como essa cartografia de desejos vai ser definida

    atravs do embate das foras em jogo. O primeiro fato que deve ser ressaltado

    que o comum no homogneo. A constituio de um recorte comunal se d muito

    mais pela produo de diferenas que no deseja a reduo do comum ao mesmo.

    A pulso fascista presente no processo de reduo ao mesmo produz a massa comorepetio do comum. O comum, presente tanto no grupo quanto na multido,

    mostra-se linguagem, acontecimento coletivo de criao.

    A homogeneidade pretendida por Freud e apontada por McDougall no tem a

    mesma caracterstica que o comum, se entendido como acontecimento constituinte

    em permanente movimentao e atividade. A atividade mental de determinado

    grupo no pode ser definida exclusivamente pelo que ele tem de repetio e coeso

    internas. Essa leitura ainda carrega sentidos totalizadores e de pretenses

    iluministas. Mas existe um elemento neste ponto que nos parece pertinente expor.

    Freud tenta demonstrar a discusso do comum a partir de um ponto de conexo, um

    eixo que no sugere, necessariamente, a pretenso da unidade: a libido. Ao tentar

    escapar da idia de que a sugesto seria o elemento de construo do

    acontecimento comum, ele vai definir o seu conceito de libido como elemento

    detonador dos processos de criao do acontecimento coletivo. Vejamos suas

    definies:

    Libido expresso extrada da teoria das emoes. Damos esse nome energia,considerada como uma magnitude quantitativa (embora na realidade no sejapresentemente mensurvel), daqueles instintos que tm a ver com tudo que pode serabrangido sob a palavra amor. O ncleo do que queremos significar por amorconsiste naturalmente (e isso que comumente chamado de amor e que os poetascantam) no amor sexual, com a unio sexual como objetivo. (...) Somos da opinio,pois, que a linguagem efetuou uma unificao inteiramente justificvel ao criar a

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    palavra amor com seus numerosos usos, e que no podemos fazer nada melhorseno tom-la tambm como base de nossas discusses e exposies cientficas.(FREUD, 1973. pp. 115-116)

    A libido, portanto, embora parea um elemento unificador, transformada, no

    presente caso, em uma introduo da idia de multiplicidade. Por mais que a idia

    inicial de unidade possa perpassar a libido, as potncias de vida presentes no

    conceito definem um campo de necessidades e possibilidades num porvir. Ao sair

    da discusso restritiva, colocada pela tentativa unificadora, Freud realiza um salto

    na direo de uma tentativa de compreenso do elemento corporal em meio ao

    acontecimento da multido, ou a constituio do grupo. Pensar a libido como fator

    constituinte dos grandes eventos coletivos sociais levar em conta a potncia do

    corpo e a, prioritariamente, da vida - sobre qualquer linha reativa presente nessadiscusso.

    No contemporneo, o estatuto dos eventos de massa mobiliza uma quantidade

    de energia libidinal muitas vezes direcionada para determinada lgica acumulativa

    e auto-referencial, alimentando a propagao de formas de controle, que hoje se

    estendem do mais recndito espao do planeta at o evento da vida transformada

    em objeto de mercado. No se trata aqui de fazer uma defesa neo-adorniana de um

    purismo cultural primordial qualquer. As reflexes apocalpticas sobre a indstria

    cultural no devem ser levadas s ltimas conseqncias. Afinal, os mass media -

    mais do que nunca - so parte significativa dos elementos constituintes do

    contemporneo. Estabelecer nveis crticos de leitura sobre essa produo de

    sentido , mais do que uma funo, uma real necessidade. No entanto, mesmo

    assim, no se pode fechar os olhos e ouvidos para a maneira como essa produo

    parte constituinte do real. Muitas vezes, grandes equvocos intelectuais so

    cometidos por pensadores que desejam ignorar certas configuraes do real em que

    esto inseridos.

    2. Voltemos teoria libidinal. Se a libido uma espcie de bem comum, de

    elemento que garante, em algum nvel, a unidade de um coletivo, ela tambm um

    veio de propagao de controle e disciplina. Nesse sentido, poder ser um meio de

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    expanso do mesmo enquanto unidade de controle do comum. A relao que se

    estabelece a partir do que Freud descreve como funo narcisista do grupo o

    espelhamento, a mmese, a repetio do outro como mesmo, a necessidade do lder

    - substitui, no caso do evento de massa, a energia libidinal potencializadora da

    diferena comum. A massa, por sua vez, pode ser definida como o evento de

    centralizao da energia libidinal, a acumulao em nome de um centro referencial

    de controle. A massa o amor transformado em dio, a expresso daquilo que

    no pode ser diferente. Peter Sloterdijk descreveu a partir de Canetti - esse

    fenmeno de maneira precisa e pontual:

    O principio do ajuntamento humano mostra que j na cena primria da formaocoletiva do eu existe um excesso de matria humana, e que a idia nobre dedesenvolver a massa como sujeito a priori sabotada por esse excesso. A expressomassa nas exposies de Canetti passa a ser um termo que articula o bloqueio dasubjetivao no momento de sua prpria realizao razo pela qual a massa,compreendida como massa-ajuntamento, no pode ser encontrada em outro lugarseno no estado da pseudo-emancipao e da semi-subjetividade como algo vago,frgil, desdiferenciado, conduzido por correntes de imitao e excitaesepidmicas, algo funico-femino (de acordo com uma caracterizao de Tarde), pr-explosivo, que em sua real averiguao registra grandes semelhanas com osretratos que dele fizeram os velhos mestres da psicologia de massas GabrielTarde, Gustave Le Bon, Sigmund Freud. (SLOTERDIJK, 2002. pp.16-17).

    A leitura que Sloterdijk desenvolve sobre a questo bastante interessante,porm faz-se necessrio levantar alguns pontos significativos. O primeiro deles

    relativo ao processo de desdiferenciao pelo qual ele faz passar o conceito de

    massa. No existe para ele nenhuma forma de diferena entre multido, grupo,

    povo ou massa. Trata-se de estudar os ajuntamentos, os coletivos em uma mesma

    ao. E esses mesmos coletivos so historicizados, dispostos como eventos

    causais, articulados, fazendo parte de uma espcie de linha evolutiva. Alm de uma

    completa ausncia de distino entre os conceitos, Sloterdijk tenta descrever um

    processo determinante do ponto de vista histrico, pelo qual qualquer

    singularidade que possveis grupos ou coletivos pudessem ter completamente

    descartada. Segundo ele, no existe a menor possibilidade de um movimento

    consciente e mltiplo no acontecimento de grandes coletivos: eles esto totalmente

    fadados a se quedarem num lugar secundrio diante dos eventos histricos. no

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    mnimo curioso a idia de que, para certos projetos emancipatrios modernos, a

    massa nunca exerceu o papel de protagonista. Talvez, o que marca mais

    intensamente a entrada na modernidade seja justamente uma ascenso dos grandes

    coletivos cena histrica, seja nos campos polticos, econmicos, sociais ou

    culturais.

    Pode-se dizer mais, que a modernidade deve ser descrita, de maneira direta,

    como a poca da entrada em cena desse protagonismoda massa. Nesse sentido, os

    mais diversos projetos pontuados por Sloterdijk a ver: a massa como

    ajuntamento, como sujeito histrico, como fenmeno scio-urbano, como parte de

    um programa, com objetivos polticos pr-determinados, ou como meio e forma de

    comunicao, etc. - demonstram o lugar significativo que ela veio a ocupar em

    meio prpria formao do tempo histrico moderno.Para Sloterdijk, existe uma desqualificao das aes coletivas. Sua leitura

    realizada a partir da atual configurao cultural, a qual ele vai chamar de ps-

    moderna. Em sua linha evolutiva, as experincias coletivas faliram e o que ficou

    em seu lugar foi uma imensa massa no reunida e no reunvel, perdendo sua

    corporeidade para ganhar disperso e diluio atravs dos meios de comunicao e

    suas variveis:

    Massas que no se renem mas efetivamente tendem com o tempo a perder aconscincia de sua potncia poltica. Elas no sentem mais como antes sua fora decombate, o xtase de sua confluncia e de seu pleno poder de exigir e tomar deassalto, como nos tempos ureos dos ajuntamentos e aglomeraes. A massa ps-moderna massa sem potencial, uma soma de microanarquias e solides que mallembra o tempo em que incitada e conscientizada pelos seus porta-vozes esecretrios-gerais deveria e queria fazer histria como coletivo prenhe deexpresso. (...) O que Canetti sabe sobre pretume de gente, esse perigosofundamento de juzos sobre ajuntamento e descarga, sobre demagogias e ser-arrebatado, sobre crescimento e parania tudo isso hoje deveria ser reformuladonum exame sobre a participao de inmeros indivduos isolados em programas de

    meios de comunicao de massa.. (SLOTERDIJK, 2002. p.22).

    Neste ponto, a posio de Sloterdijk se aproxima da de Baudrillard em seu

    conhecido texto A Sombra das Maiorias Silenciosas1, no qual ele descreve o

    1Ver BAUDRILARD, J.A sombra das maiorias silenciosas. So Paulo: ed. brasiliense, 1998.

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    evento da no-reao, da ausncia de retorno recepo, por fim, do silncio real

    como forma de resistncia involuntria dos grandes coletivos sociais. Para

    completar seu raciocnio, afirma que o terrorismo uma das raras formas de atrito

    consciente no perodo ps-moderno e que, justamente por isso, funciona de forma

    razoavelmente aleatria ao no escolher suas vtimas. O que se pode dizer diante

    dessas afirmaes que, de fato, as configuraes coletivas transformaram a massa

    moderna em mero meio de propagao de controle.

    3. Mas a questo que se levanta seguinte: se a era moderna a poca das

    massas, como muitos autores j haviam dito, o que acontece potncia afirmativa

    dos grandes coletivos diante de um tempo que fora inteiramente marcado por

    guerras de Estado e grandes mobilizaes de contingentes humanos? Dito de outramaneira, como as grandes transformaes sociais que se deram ao longo dos

    ltimos trs sculos devem ser pensadas para fora do regime histrico cronolgico?

    Para a grande maioria da crtica chamada ps-moderna, a viso apocalptica de um

    futuro presente se delineia como o pior possvel. Sem dvida esses pontos so

    compreensveis, mas necessrio pensar para alm deste plcido nihilismo

    decadentista. A sada pode estar prxima a uma discusso sobre o carter do

    tempo. Se inserirmos esta discusso no regime de tempo que qualificamos como

    contemporaneidade, o evento de massa se aproximar da histria descrita como

    uma sucesso temporal causal, e o acontecimento da multido ser operado na

    marca da contemporaneidade.

    A distino entre massa e multido se d, portanto, no limite da criao do

    moderno. Se o surgimento da massa aparece como um evento constitutivo do

    moderno, a ao da multido extrapola qualquer recorte estritamente cronolgico

    para cair no campo da potncia constituinte. O Estado moderno um evento que

    constri, atravs de si mesmo, primeiramente o povo, e em segundo momento a

    massa. De fato, os grandes eventos de massa realizados no pice da modernidade

    demandaram uma mobilizao constante. A guerra o maior signo da relao

    massa/povo/Estado. As grandes guerra dos sculos XVIII ao XX realizaram ao

    mximo essa utopia. Seja a Revoluo Francesa, seja o socialismo de estado russo,

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    seja a Amrica para os americanos, seja a mquina de morte nazista, a

    modernidade o evento dos grandes contingentes de massa reduzidos

    subservincia pelo poder disciplinador do Estado. Explorar essa relao entre a

    trade Estado/massa/histria, alm de requerer um tempo extenso, no a

    pretenso deste trabalho. De qualquer forma, a mais importante distino a ser

    feita aqui se refere ao binmio conceitual massa/multido.

    A energia libidinal de Freud tambm deve ser pensada a partir dessas

    combinaes contemporneas. Quando se leva em conta a contribuio do

    pensamento freudiano para a reflexo dos eventos e acontecimentos do campo

    cultural, no se pode esquecer do momento em que suas reflexes estavam sendo

    construdas. A maneira pela qual as novas tecnologias e as atuais formas de

    composio sociais se combinam j era algo antevisto por Freud. Em umapassagem de O Mal Estar da Civilizao, ele chega a nomear o homem como um

    futuro Deus de prteses. O seu pensamento uma importante contribuio para as

    reflexes sobre o biopoder e a atual composio da sociedade de controle.

    Contudo, de bom tom afirmar que a sua teoria libidinal no deve ser pensada

    como um programa a ser aplicado sobre a construo do real. A teoria libidinal

    um elo de potncia no pensamento sobre a multido. No entanto, de certa maneira,

    ela se mostra insuficiente para desenvolver uma abordagem mais significativa

    sobre suas atuais configuraes.

    Se partimos da teoria libidinal freudiana, podemos chegar idia de que o elo

    que mantm a multido articulada, sem sucumbir ao desejo de uma unilateralidade

    acumulativa, o amor. atravs dele desse amor freudiano, desse desejo, dessa

    energia propagadora que existe em forma virtual - que surge a capacidade de

    atualizao da potncia constituinte e afirmativa realizada pela multido.

    Para Gabriel Tarde, a multido " o grupo social do passado; depois da

    famlia o mais antigo de todos os grupos sociais".2Essa afirmao, no contexto

    do pensamento de Tarde, uma forma de desqualificar e de caracterizar a multido

    como um momento que deve ser ultrapassado. Mas o que bastante interessante

    que, se trabalharmos com a idia da multido como um dos mais primordiais

    2Ver TARDE, G.A Opinio e as Massas. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 1992, p. 37.

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    acontecimentos sociais, podemos chegar ao ponto de pensarmos que o elo amoroso

    da multido realmente significativo. Colocando de outra forma, podemos chegar

    idia de que as foras constituintes da multido estiveram percorrendo os mais

    diversos momentos histricos, transformando, elaborando e agindo nas/pelas

    transformaes ao longo dos mais diversos acontecimentos. O ponto ao qual se

    chega o da imanncia da potncia constituinte da multido, enquanto forma de

    atualizao e realizao de um tempo virtual que se propaga nos diversos

    momentos histricos. A potncia da multido tambm reside na sua capacidade de

    instaurar e realizar a contemporaneidade em sua plena intensidade.

    A distino de Tarde entre o pblico e a multido remete, de alguma forma,

    quela presente entre a massa e a multido. O pblico de Tarde um parente

    prximo da massa. Contudo, sua preocupao principal direciona-se para a maneiracomo se constri a opinio, j que a evoluo dos meios de comunicao coloca

    questes em relao aos grandes coletivos sociais. A multido de Tarde

    prioritariamente um evento social muito antigo, que naquele momento comea a

    ser transformado em pblico, pela opinio dos publicistas leia-se jornalistas e

    suas publicaes. o incio do processo de produo de sentido via meios de

    comunicao. Tarde se mostra perplexo diante das transformaes dos meios e da

    formao deste novo grupo social:

    Mas o pblico indefinidamente extensvel, e como sua vida particular se tornamais intensa, medida que ele se estende, impossvel negar que ele seja o gruposocial do futuro. Formou-se assim, por um feixe de trs invenes mutuamenteauxiliares tipografia, estrada de ferro, telgrafo o formidvel poder da imprensa,esse prodigioso telefone que ampliou desmesuradamente a antiga audincia dostribunos e dos pregadores. (TARDE, 1992, p.37)

    O que h de interessante neste pequeno trecho a discusso entre a

    extensividade e a intensidade do pblico. Esse ponto pode auxiliar no processo dediferenciao entre massa e multido que est sendo desenvolvido aqui. O

    fenmeno observado por Tarde sublinha a idia de que a massa ou o pblico, no

    sentido que ele descreve depende de regimes de extenso para se realizar como

    elemento comum de opinio. Um dos elementos principais da lgica de massa o

    comum, ou o mesmo, construdo pela maior extenso territorial possvel. a partir

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    desta extenso que ela ir re-territorializar devires, restabelecendo produes de

    sentido que tangenciam as noes de controle e acumulao. a partir da sua

    capacidade de estratificao e anexao que a opinio se transforma em comum

    produzido como mesmo. Porm, se a intensidade, no caso da massa, s refora a

    inteno extensiva de reproduo da opinio, no caso da multido ela um

    elemento funcional de realizao. na intensidade da ao que a multido se

    realiza como acontecimento produtor de real. A multido escoa pelos canais de

    intensidade, rompendo suas bordas, sem desejar constituir nichos cumulativos.

    essa mobilidade que lhe d a possibilidade de articular reas de resistncia em

    meio ao Imprio. Como ela est fora do desejo de tomada de poder ou seja, de

    produzir biopoder ela propaga a potncia da vida, sua biopotncia produtora de

    diversidade, atravs da sua intensidade de realizao.O contgio, ou a contaminao, que para Tarde elemento fundamental, pode

    ser pensado na lgica da multido como um dos seus devires nmades; a que

    reside sua capacidade de escapar ou de reproduzir o controle, uma vez que a massa

    se propaga por imitao fato que remete necessidade de identificao fechada e

    unilateral, traduzida como o desejo unificador do lder.

    As linhas de fora que iro compor esse campo de ao so multifacetadas em

    suas potncias de transformao. No possvel reduzir a sua leitura a somente um

    ponto de inflexo. preciso buscar articular o campo em sua complexidade.

    nesse sentido que a teoria libidinal pode ser retomada aqui, para dar conta desta

    complexidade, como um elo comum s mltiplas facetas da questo. Todos ns

    sabemos que existem vrias formas de amor. Assim, apesar de Freud salientar que

    esta palavra tem a mxima concentrao de significados, o ponto que interessa

    reside justamente na sua capacidade de romper com qualquer possibilidade de

    definio a priori ou qualquer desejo de unificao da experincia. Sendo assim,

    pode ser que a energia libidinal seja o elemento comum que viabilize tanto a

    distino como a proximidade entre a massa e a multido. Pode ser que atravs dos

    devires amorosos - presentificados na ao da multido pela propagao das

    massas - se d o encontro da contaminao e da imitao realizados nesses meios.

    O elemento libidinal no ter a capacidade de pr-determinar nada que seja

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    descrito como definitivo ou finalizado. O amor tambm algumas vezes,

    infelizmente - produtor de dios. O trao sutil que separa esses sentimentos da

    mesma ordem do que os aproxima. O que necessrio a percepo afetiva da

    maneira como os campos iro se compor e quais as foras que esto em jogo.

    Pulses fascistizantes esto presentes nas diversas formas de amor Contudo, a

    energia libidinal descrita por Freud um veio, um rastro, um fluxo de produo de

    sentido que s deve ser pensada como capacidade de multiplicao de

    multiplicidades. Nesse caso, a multido uma de suas possveis tradues,

    traies, invenes, criaes.

    4. Se a questo para Tarde a relao entre opinio e multido, a questo

    para Ortega Y Gasset refere-se entrada em cena da massa, seus levantes erebelies. Ambos se preocupam com a massa enquanto evento histrico. Vejamos

    como Ortega y Gasset define seu conceito de massa:

    A rigor, a massa pode definir-se como fato psicolgico, sem necessidade de esperaro aparecimento dos indivduos em aglomerao. Diante de uma s pessoa, podemossaber se massa ou no. Massa todo aquele que no atribui a si mesmo um valor bom ou mau por razes especiais, mas que se sente como todo mundo e,certamente, no se angustia com isso, sente-se bem por ser idntico aos demais.Imagina-se um homem humilde que, ao tentar se avaliar por razes especiais ao seperguntar se tem talento para isso ou para aquilo, se se destaca em algum aspecto -conclui que no possui nenhum qualidade fora do comum. Esse homem se sentirmedocre e vulgar, mal dotado; mas no se sentir massa (ORTEGA Y GASSET,2002, p.45).

    Hoje ns podemos falar em um devir-massa. Cada um de ns tem alguma

    pulso, algum desejo de massa. Nossos corpos se encontram vetorizados por essas

    linhas duras. Esse lado reativo tambm pode assumir um carter afirmativo: s

    vezes, ser esse devir que nos tornar mais prximos, que estabelecer nveis de

    troca a partir de campos de sentido semelhantes. necessrio escapar a uma

    simples condenao desses elementos. Nossa composio subjetiva se encontra

    conectada a essa imensa e poderosa rede de produo de sentido e informao.

    Seria no mnimo uma hipocrisia querer negar esse fenmeno. assim que muitas

    crticas so colocadas de forma bastante sectria, impedindo a percepo de como

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    as configuraes atuais se encontram, tornando-se perigosas e comprometedoras. A

    idia de purismo s pode apontar para a cristalizao de micro ou macro

    fundamentalismos e suas aes ideologicamente justificadas. Alm desse ponto,

    ainda existe uma limitao instrumental complicada: uma linha de pensamento que

    no conseguir levar em considerao a complexa multiplicidade das composies

    de fora em jogo na atualidade no conseguir ler de maneira satisfatria e

    suficiente a maneira como essa mesma realidade est em ao. Chamar a ateno

    para leituras fundamentalistas e sectrias uma das funes do crtico na

    contemporaneidade.

    O processo de distino, seleo, formao de subjetividades singulares e/ou

    singularizantes acompanha e cruza as prticas e os processos de massa. No se

    pode negar isso. A singularizao no se d nica e exclusivamente pela via daexcluso, e a massa mesmo em seu sentido prioritariamente reativo - tem

    mobilizaes afirmativas. Porm, os processos singularizantes s aparecem,

    exclusivamente em sua potncia afirmativa, em meio aos traos e movimentos do

    acontecimento que a multido.

    No entanto, Ortega y Gasset est preocupado com a impossibilidade de

    qualquer deslocamento singularizante em meios aos processos de massa. Vejamos

    alguns de seus pontos:

    A diviso da sociedade em massas e minorias excepcionais no , portanto, umadiviso em classes sociais, e sim em classes de homens, e no pode coincidir com ahierarquia decorrente de classes superiores e inferiores. (...) Mas a rigor, dentro decada classe social h massa e minoria autntica. Como veremos, mesmo nos gruposcuja tradio era seletiva, a predominncia da massa e do vulgo caracterstica dotempo. (...) Se os indivduos que integram a massa se julgassem especialmentedotados, teramos apenas um caso de erro pessoal, mas no uma subversosociolgica. A caracterstica do momento que a alma vulgar, sabendo que vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impe em toda parte.Como se diz nos Estados Unidos: ser diferente indecente. A massa faz sucumbir

    tudo o que diferente, egrgio, individual, qualificado, e especial. Quem no forcomo todo mundo, quem no pensar como todo mundo, correr o risco de sereliminado. E claro que esse todo mundo no todo mundo. Todo mundo era,normalmente, a unidade complexa de massa e minorias discrepantes, especiais.Agora, todo mundo apenas a massa. (ORTEGA Y GASSET, 2002. p. 46-48).

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    Ortega y Gasset no percebeu que esse todo mundo e de certa maneira, sempre

    o foi um princpio de democratizao e incluso social. Ele defende a idia de

    uma aristocracia espiritual/intelectual, algo que funciona como uma salvaguarda do

    modo de pensar europeu, racional, branco e masculino.

    preciso diferenciar os dois pontos de vista. O desejo pela moral do senhor no

    pode ser camuflado por uma imposio solipcista de certo modo de pensar. As

    linhas afirmativas escapam caracterizao. Todo mundo , e deve ser, um

    objetivo. Sem possibilidade de consenso, sem o dialogismo comunicacional

    habermasiano, sem nenhum tipo de afunilamento. Todo mundo deve ser realmente

    todo o mundo. A produo de diferena se d atravs e a partir do comum. A

    produo do comum deve ser pensada como atualizao de um real devir de

    diferenciao. pela necessidade que se d o processo de seleo. Este processoproduz a todo o momento o escoamento de fluxos de diferenciao. Transformar o

    biopoder em biopotncia, ou seja, extrair da massa seus devires potentes e

    afirmativos, fazer escapar o corpo do poder sobre o corpo e perpetrar a potncia

    afirmativa de diferenciao nesse mesmo corpo, um ato de resistncia, de

    insistncia na vida. um ato de amor.

    5. Antonio Negri define sua idia de multido como uma multiplicidade de

    singularidades3, a partir de trs pontos de vista tericos: um sociolgico, outro

    poltico, e um terceiro por seus dispositivos ontolgicos. O primeiro ponto nos

    remete imediatamente discusso das atuais condies da fora de trabalho. A

    questo do trabalho imaterial4 e de suas condies enquanto produo

    comunicativa refere-se construo e aplicao de linguagem como acontecimento

    do comum.

    E aqui reside uma diferena entre pontos de vista de classe e o carter diverso

    da multido. A classe mantm em si linhas de excluso e de segmentao duras. Amultido da ordem do imaterial, sendo assim, no pode ser definida por um ponto

    3Essa afirmao e outras que sero realizadas ao longo do texto foram extradas de palestras, comunicaes eseminrios realizados durante a visita de Antonio Negri ao Brasil em outubro e novembro de 2003. A saber,na palestraAs Multides e o Imprio,Palcio Gustavo Capanema; a comunicao realizada no Estados Geraisda Psicanlise, no Hotel Glria; fala realizada no Departamento de Direito da PUC-Rio; em entrevistas econversas particulares, entre outras ocasies.

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    de vista predeterminado ou predeterminante. O trabalho que ocorre nas relaes

    sociais hoje demanda cooperao social e construo de linguagens comunais que

    iro extrapolar as antigas formas de composio corporativistas. A multido no

    pode ser representada por nenhuma entidade metafsica e por nenhum nvel

    institucional pelo simples fato dela ser irrepresentvel.

    A condio do trabalho na contemporaneidade vem se transformando. Os

    servios so, em sua grande maioria, a busca de solues para a constituio de

    bens comuns, cada vez mais singulares e singularizantes. Sendo assim, o trabalho

    entrou numa fase mais afetiva, mais feminina. Como diz Negri, o trabalho agora

    um elemento de amor.

    A segunda definio poltica. Segundo ele, se a multido uma

    multiplicidade de singularidades, ela no pode ser reduzida nem massa, nem apovo, pois o povo uma unidade produzida pelo Estado, enquanto a massa

    produzida pela reproduo do mesmo. O Estado moderno teve na figura do povo

    seu sujeito de legitimao em suas operaes de guerra. Qualquer poder

    democrtico fora constitudo na forma do um. Era a transferncia da potncia para

    o poder soberano do Estado. O conceito de multido deve ser pensado, portanto,

    como afirmao das singularidades, a busca de caminhos para o enriquecimento

    coletivo das singularidades.

    Para Negri, os vetores de sociabilidade antecedem individualidade belicosa.

    A fantasia hobbesiana do estado natural s tem legitimidade atravs/no/pelo

    Estado. A linguagem ser o evento de socializao no a linguagem em busca do

    consenso, mas as mil e uma linguagens da Babel em sua contemporaneidade, as

    singularidades que se multiplicam atravs do afeto. A idia de singularidade

    encontra-se fora da tradio de povo. Ela rompe com qualquer pretenso de se

    buscar uma unanimidade estatal, uma unidade simblica primordial, ou at mesmo

    um veio histrico comum transfigurado em princpio coeso/coero do corpo

    social.

    No final do livro Imprio, Negri e Hardt procuram definir alguns pontos

    significativos sobre a luta da multido contra o Imprio. A saber: uma nova cidade

    4Ver por exemplo NEGRI, A &LAZZARATO, M.. Trabalho Imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

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    (sua potncia singular); o direito a cidadania global (os caminhos do sem fim);

    Tempo e Corpo (direito a um salrio social); Telos (direito reapropriao); Posse

    (poder potncia). Vejamos como definem a relao entre multido e trabalho como

    construo de processos de singularizao:

    Quando a multido trabalha, ela produz autonomamente e reproduz todo o mundo devida. Produzir e reproduzir autonomamente significa construir uma nova realidadeontolgica. Com efeito, ao trabalhar, a multido se produz a si mesma comosingularidade. uma singularidade que estabelece um novo lugar no no-lugar doImprio, uma singularidade muito real produzida por cooperao, representada pelacomunidade lingstica e desenvolvida pelos movimentos de hibridizao. Amultido afirma sua singularidade invertendo a iluso ideolgica de que todos osseres humanos nas superfcies globais do mercado mundial so permutveis. Pondoa ideologia de mercado de p, a multido promove com seu trabalho assingularizaes biopolticas de grupos e conjuntos de humanidade, em todos e cada

    um dos ns da permuta global. (NEGRI; HARDT, 2001, p. 419).

    O trabalho, ou seja, a capacidade criativa e associativa, definir os processos

    pelo qual a multido poder se configurar como agente poltico-social de

    transformao/formao do real. Na mesma medida que a multido afirma sua

    singularidade, ela elabora e atualiza um real-outro, um real autnomo das

    territorializaes globais do Imprio, um real como ao e processo de

    diferenciao o que eles denominam de um lugar em meio ao no-lugar um

    real que fruto da traio aos princpios homogeneizantes de controle.

    O ltimo ponto diz respeito aos dispositivos ontolgicos presentes em

    operao na lgica da multido. Trata-se basicamente do conceito de produo de

    potncia que a multido traz em sua forma constituinte, como acontecimento,

    atravs dos mais diversos eventos histricos. A multido desejosa do ponto de

    vista econmico e produtivo: ela produz e afirma a vida contra o capital, contra a

    lgica da sociedade de controle e contra o Imprio. Ela acontece a partir de um

    princpio associativo, que rompe com a perspectiva estatal da guerra, ou mesmocom o funcionamento da guerra permanente imperial. Como j foi mencionado

    anteriormente, a multido um acontecimento da ordem do amor. Aqui, de

    maneira surpreendente, nos aproximamos terrivelmente dos postulados da teoria

    libidinal freudiana: o desejo do outro que torna a multido um acontecimento

    potente.

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    As definies que Negri oferece em seu mais recente trabalho publicado no

    Brasil5 so muito esclarecedoras em relao maneira pela qual a multido ir se

    definir enquanto sujeito poltico:

    1. A multido ps-moderna um conjunto de singularidades cuja ferramenta de vida o crebro e cuja fora produtiva consiste na cooperao. Quer dizer: se assingularidades que constituem a multido so mltiplas, o modo no qual elas seconectam cooperativo. (NEGRI, 2003, p.171)

    Se a fora produtiva da multido est conectada a sua capacidade de estar e

    de afirmar a vida, ser esse elemento cooperativo que produzir os processos de

    diferenciao pelo qual se estabelecem as suas singularizaes. Fica claro que s

    num regime de cooperao a multido pode explicitar e propagar as potncias de

    singularizao que se constituem como foras de atualizao do real enquanto

    diferena comum. A esse fluxo de produo Negri chama de teleologia do comum:

    3. A teleologia do comum, como motor da transformao ontolgica do mundo, nopode ser submetida teoria da medio soberana. Na verdade a mediao soberana sempre fundao de uma unidade de medida, enquanto a transformao ontolgica sempre desmedida.(NEGRI, 2003. pp.173-174).

    Teleologia o termo utilizado para se pensar os fins ou as relaes entre as

    finalidades e suas finalizaes. De certa maneira, pode ser tomado como o opostode tautologia a repetio do mesmo, a ressignificao do dado e tambm como

    uma operao oposta lgica dos mecanismos6. O comum deve ser pensado como

    permanente tenso na produo de diferena, ou seja, como prtica de

    diferenciao. Nesse sentido, a teleologia do comum tem por finalidade

    constituinte encarar o comum como produo de diferena. Melhor dito, a

    maneira pela qual se devem pensar as potncias da multido em sua multiplicidade

    e singularidade, agindo no mundo, rompendo as medidas impostas por ele,

    constituindo reais-outros. Assim, a multido instaura espao-tempos outros diante

    da coero normativa do controle imperial:

    5Ver NEGRI, A. Kairs, Alma, Vnus, Multitudo. Nove lies ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: Ed.DP&A, 2003.6 Ver qualquer simples dicionrio de filosofia. Por exemplo Bihan, C.L. & Gras, A. Lexique de Philosophie.Paris: Edicin du Seuil, 1996.

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    6. O que significa dizer que a ordem poltica do ps-moderno exposta,destrutivamente, desmedida do tempo? Significa que, se a multido produz a vidaentregando-se a uma opo sobre o porvir, no o comando mas a potnciaconstituinte da multido que cria a existncia comum do mundo. E essa existnciacomum o pressuposto de qualquer ordem, porque desmede qualquer ordem.(NEGRI, 2003, pp. 177-178).

    A desmesura, perene multido, estabelece eixos de ruptura em relao a

    qualquer possibilidade de comando - isolado e inclume - em sua forma de ao no

    real. A multido no suscetvel a lderes, uma vez que rompe com qualquer

    possibilidade de acumulao de sentido, e irrompe em meio s medidas,

    constituindo o movimento do comum, ou seja, a realizao da produo de vida.

    Ela cria, ento, o real como comum e diferenciado. O tempo histrico, cronolgico,

    atravessado pela permanente atualizao das potncias criativas da vida presentes

    no movimento da multido. O tempo colocado, pela intensidade dos

    acontecimentos, no instante, e transformado em um campo de ao da insurreio

    corporal das singularidades:

    6 bis. o biopoltico que determina qualquer produo do mundo, afirmando aconsistncia do ser na potncia constituinte e abrindo a flecha do tempo constitutivo inovao do eterno.6 ter. A teleologia do comum vive da sua prpria exposio ao porvir. Portanto, se oser biopoltico a matria da teleologia do comum, pobreza e amor so seuselementos-chave. Mas so a pobreza e amor que abrem para a desmedida do tempopor vir. Por isso, a teleologia do comum exposta a essa desmedida.(...) 6 quinque. Qualquer genealogia biopoltica determinada pela abertura ao 'paraalm da medida'. (NEGRI, 2003, p. 179).

    Estar para alm da medida, como coloca Negri, encontrar a fora da

    contemporaneidade em toda sua potncia de diferenciao, estabelecer o corpo

    como parmetro insurrecional, como acontecimento de diferena, como processos

    constitutivos de singularizaes mltiplas. A teleologia do comum aparece, ento,

    como a exposio do corpo extrado de seu controle biopoltico para ser lanado

    em sua afirmao de biopotncia.

    E a partir de dois elementos amor e pobreza que se pode encontrar a

    teleologia do comum. Esse amor, segundo Negri, no pode ser definido como

    pietas - o desejo de transcendncia - ou como amor um movimento asctico mal

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    direcionado mas trabalho vivo. E o trabalho torna-se vivo quando rompe com a

    medida, quando desmesura. Se o Amor "o que o sustenta [o trabalho vivo]

    nesse empreendimento comum de construo (no vazio) de ser (NEGRI, 2003,

    p.198); a pobreza, por sua vez, definida a partir de sua condio de excluso.

    Mas como a excluso pode definir o trabalho vivo? Justamente porque a figura da

    pobreza se estabelece no limite, na borda, nos pontos mximos de tenso

    teleolgica, que ela pode e deve ser pensada como o mais comum. O pobre aquele

    que mais comum e "na realidade, se apenas o comum que produz a produo,

    aquele que excludo, mas participa do comum, expresso de trabalho vivo"

    (NEGRI, 2003, p. 201). O trabalho vivo , portanto, o trabalho da multido. Amor

    e pobreza so os elementos imanentes do processo de singularizao da multido.

    6. A multido. De maneira contraditria e at paradoxal, os medos

    constitudos da poca moderna podem ser pensados atravs da contemporaneidade

    em toda as suas potncias singularizantes. De maneira inversa, as potncias da

    multido devem ser pensadas fora dos enganos dos primrdios da formao da

    poca das massas. Longe de ser uma questo solucionvel, a multido na

    contemporaneidade instaura a possibilidade de se pensar formas e foras de

    resistncias e seus dispositivos, que se encontram presentes em regimes de

    significao dos mais diversos. Negri aborda questes de linguagem, de um corpo

    lingstico:

    10 ter. Chamemos corpo lingstico o entrelaamento entre corpo singular ecomunidade lingstica. Forma-se quando a cooperao lingstica dos corpossingulares se expe inovao. o produto ontolgico do telos comum e integra,num novo corpo, a tenso entre singularidades e comunidades, assim como a tensoentre cooperao dos corpos e inovao do ser. O corpo lingstico sempre novo,ou seja, cada vez mais singular. (NEGRI, 2003, p. 202).

    esse entrelaamento entre o corpo e o comum que instaura a criao de um

    real diferenciado. O processo de luta pelo qual a produo de arte da

    contemporaneidade resiste e insiste encontra-se em tenso. A inovao do ser o

    ato de trair, a realizao da inveno. A traio, por sua vez, o ato do novo no

    corpo lingstico. O delrio a potncia constituinte presente no acontecimento

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    novo/atual de cada traio. A cada nova instaurao de reais, atualizam-se corpos,

    linguagem e comunidade num processo perene de criao de outros. A tradio

    delirante a rede de singularizaes atuantes no corpo lingstico, a inveno de

    outras lnguas, a produo de resistncia como insistncia na vida, a criao de

    diferena como comum e singular, enfim, a afirmao do corpo, de sua

    corporeidade e de sua fora de instaurao de reais atuais na contemporaneidade.

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