virno, paolo. gramática da multidão

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GRAMÁTICA DA MULTIDÃO Para uma Análise das Formas de Vida Contemporâneas http://geocities.yahoo.com.br/autoconvocad/gramatica_da_multidao.html por Paolo VIRNO http://es.wikipedia.org/wiki/Paolo_Virno GRAMMATICA DELLA MOLTITUDINE Per un’analisi delle forme di vita contemporanee per Paolo VIRNO GRAMMAIRE DE LA MULTITUDE Pour une analyse des formes de vie contemporaines Par Paolo VIRNO GRAMATICA DE LA MULTITUD Para una Análisis de las Formas de Vida Contemporáneas por Paolo VIRNO Maruchicyûdo no Bunpou: Gendaitekina Seikatsu-keishiki wo Bunsekisuru tameni by Paolo VIRNO A Grammar of the Multitude For an Analysis of Contemporary Forms of Life by Paolo VIRNO 1

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  • GRAMTICA DA

    MULTIDOPara uma Anlise das Formas de Vida Contemporneas

    http://geocities.yahoo.com.br/autoconvocad/gramatica_da_multidao.html

    por Paolo VIRNOhttp://es.wikipedia.org/wiki/Paolo_Virno

    GRAMMATICA DELLA MOLTITUDINEPer unanalisi delle forme di vita contemporanee

    per Paolo VIRNO

    GRAMMAIRE DE LA MULTITUDE

    Pour une analyse des formes de vie contemporaines

    Par Paolo VIRNO

    GRAMATICA DE LA MULTITUDPara una Anlisis de las Formas de Vida Contemporneas

    por Paolo VIRNO

    Maruchicydo no Bunpou: Gendaitekina Seikatsu-keishiki wo Bunsekisuru tameni

    by Paolo VIRNO

    A Grammar of the MultitudeFor an Analysis of Contemporary Forms of Life

    by Paolo VIRNO

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  • Pubblicazione italiana: Rubbettino EditoreCatanzaro, Italia. 2001.

    Pubblicazione italiana: DeriveApprodi

    Roma, Italia. 2002.

    Traduction franaise: Vronique DassasEditions de lclat, Nmes & Conjonctures

    Montal, Qubec,Canada. 2002,

    Traduccin al espaol: Eduardo SadierBuenos Aires, Argentina. Abil de 2002.

    Traduo para o portugus: Leonardo Retamoso Palma

    Santa Maria, RS, Brasil. Setembro de 2003.

    Traduccin al espaol: Adriana GmezEdicin: Traficantes de Sueos

    Madrid, Espaa. Diciembre de 2003

    Translated from Italian into Japanese by Jun Fujita HiroseThe Japanese edition belongs to Getsuyosha Limited

    Tokyo, Japan. 2004 January

    Translated from the Italian: Isabella Bertoletti, James Cascaito& Andrea Casson

    Semiotext(e)Distributed by The MIT Press, Cambridge,

    Mass and London, EnglandPrinted in the United States of America, 2004

    DA APRESENTAO ITALIANA, 1 edio (Rubettino) Na crise do conceito moderno de povo, crise ligada inevitavelmente quela do conceito hobbesiano de Estado, a multido re-emerge como categoria mais adequada para traar uma gramtica das inquietudes do homem ps-moderno. O volume de Paolo Virno tenta, portanto, uma anlise das formas de vida contemporneas, atravs da lente privilegiada de tal categoria filosfica redescoberta, a qual devm, desse modo, um eficaz princpio sociolgico.

    O presente volume rene as lies levadas a cabo por Paolo Virno no Doutorado de Investigao em Cincia, Tecnologia e Sociedade, desenvolvido no Departamento de Sociologia e Cincia Poltica da Universidade da Calbria, co-financiado pelo Fundo Social Europeu.

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  • Paolo Virno docente de tica da Comunicao na Universidade da Calbria.

    A transcrio das lies foi preparada pela Dr Giuseppina Pellegrino. O texto foi revisado pelo autor e serviu de base para as tradues para o espanhol, o francs e para o portugus.

    NDICEPRLOGO ( PREMISSAS ) .................................................................. 041. Povo versus Multido: Hobbes e Espinosa ...................................... 042. A pluralidade exorcizada: o privado e o individual....................... 063. Trs aproximaes aos Muitos....................................................... 07 1. PIMEIRA JORNADA: TEMORES E PROTEES ................................ 09Ante a dupla medo/angstia ............................................................ 09Lugares comuns e intelecto geral.................................................... 12Publicidade sem esfera pblica ........................................................ 16Qual Um para os Muitos?.................................................................. 18 2. SEGUNDA JORNADA: TRABALHO, AO, INTELECTO ....................... 22Justaposio de poiesis e prxis ....................................................... 23Do virtuosismo. De Aristteles a Glenn Gould ..................................... 24O falante como artista executor......................................................... 27Indstria cultural: antecipao e paradigma ....................................... 28A linguagem em cena ...................................................................... 31Virtuosismo do trabalho.................................................................. 33O intelecto como partitura ............................................................... 35Razo de Estado e xodo.................................................................. 38 3. TERCEIRA JORNADA: A MULTIDO COMO SUBJETIVIDADE ................ 43O princpio de individuao .............................................................. 43Um conceito equvoco: a biopoltica ................................................... 48As tonalidades emotivas da multido ................................................. 51A tagarelice e a curiosidade .............................................................. 55 4. DEZ TESES SOBRE A MULTIDO E O CAPITALISMO PS-FORDISTA ... 61Tese 1............................................................................................ 62Tese 2............................................................................................ 63Tese 3............................................................................................ 64Tese 4............................................................................................ 66Tese 5............................................................................................ 67Tese 6............................................................................................ 68Tese 7............................................................................................ 69Tese 8............................................................................................ 71Tese 9............................................................................................ 72Tese 10.......................................................................................... 73 Bibliografia .................................................................................... 76A.................................................................................................. 76B.................................................................................................. 78

    ApndiceMultido e princpio de individuao .................................................. 80

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  • PRLOGO (PREMISSAS)

    1. Povo versus Multido: Hobbes e Espinosa Considero que o conceito de multido, por contrapor quele, mais familiar, de povo, seja uma ferramenta decisiva para toda reflexo sobre a esfera pblica contempornea. preciso ter presente que a alternativa entre povo e multido esteve no centro das controvrsias prticas (fundao do Estado centralizado moderno, guerras religiosas, etc.) e terico-filosficas do Sculo XVII. Esses dois conceitos em luta, forjados no fogo de agudos contrastes, jogaram um papel de enorme importncia na definio das categorias scio-polticas da modernidade. A noo de povo foi a prevalecente. Multido foi o termo derrotado, o conceito que perdeu. Ao descrever a forma de vida associada e o esprito pblico dos grandes Estados recm constitudos, j no mais se falou de multido, seno que de povo. Resta hoje perguntar, se ao final de um prolongado ciclo, no se reabriu aquela antiga disputa; se hoje, quando a teoria poltica da modernidade padece de uma crise radical, aquela noo derrotada, ento, no mostra uma extraordinria vitalidade, assumindo assim uma clamorosa revanche? Ambas as polaridades, povo e multido, reconhecem como pais putativos a Hobbes e Espinosa. Para Espinosa, a multido representa uma pluralidade que persiste como tal na cena pblica, na ao coletiva, na ateno dos assuntos comuns, sem convergir no Uno, sem evaporar-se em um movimento centrpeto. A multido a forma de existncia poltica e social dos muitos enquanto muitos: forma permanente, no episdica nem intersticial. Para Espinosa, a multitudo (multido) a arquitrave das liberdades civis (Espinosa, 1677). Hobbes detesta uso intencionalmente um vocbulo passional, pouco cientfico a multido e investe contra ela. Na existncia social e poltica dos muitos enquanto muitos, na pluralidade que no converge em uma unidade sinttica, ele percebe o maior perigo para o supremo imprio, isto , para aquele monoplio das decises polticas que o Estado. O melhor modo de compreender o alcance de um conceito a multido em nosso caso examin-lo com os olhos daqueles que o combateram com tenacidade. Descobrir todas as suas implicaes e matizes algo prprio daquele que deseja expuls-lo do horizonte terico e prtico. Antes de expor concisamente de que modo Hobbes descreve a detestada multido, til precisar o objetivo que aqui se persegue. Desejo mostrar que a categoria de multido (tal como considerada por seu jurado inimigo Hobbes) ajuda-nos a explicar certo nmero de comportamentos sociais contemporneos. Aps sculos de povo e, por conseqncia, de Estado (Estado-Nao, Estado centralizado,

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  • etc.), abolida nos albores da modernidade, a polaridade contraposta finalmente volta a se manifestar. A multido como ltimo grito da teoria social, poltica e filosfica? Talvez. Uma ampla e notvel gama de fenmenos jogos lingsticos, formas de vida, tendncias ticas, caractersticas fundamentais do modo atual de produo material resulta pouco ou nada compreensvel se no a partir do modo de ser dos muitos. Para analisar este modo de ser preciso recorrer a um arranjo conceitual sumamente variado: antropologia, filosofia da linguagem, crtica da economia poltica, reflexo tica. preciso cercar o continente-multido, mudando muitas vezes o ngulo da abordagem. Como dissemos, vejamos brevemente como Hobbes, adversrio perspicaz, delineia o modo de ser dos muitos. Para Hobbes, o antagonismo poltico decisivo aquele entre a multido e o povo. A esfera pblica moderna pde ter como centro de gravidade a um ou outro. A guerra civil, sempre uma ameaa, teve sua forma lgica nessa alternativa. O conceito de povo, segundo Hobbes, est estreitamente associado existncia do Estado; no um reflexo, uma reverberao: se for Estado, povo. Se faltar o Estado, no pode haver povo. Em De Cive, onde exps longamente seu horror pela multido, l-se: O povo um Uno, porque tem uma nica vontade e, a quem se lhe pode atribuir uma vontade nica (Hobbes, 1642: XII, 8; e tambm VI, 1, Nota). A multido , para Hobbes, inerente ao estado de natureza; portanto, aquilo que precede instituio do corpo poltico. Mas esse distante antecedente pode reaparecer, como uma restaurao que pretende fazer-se valer, nas crises que sabem sacudir a soberania estatal. Antes do Estado eram os muitos, depois da instaurao do Estado foi o povo Uno, dotado de uma nica vontade. A multido, segundo Hobbes, afasta-se da unidade poltica, ope-se obedincia, no aceita pactos duradouros, no alcana jamais o status de pessoa jurdica, pois nunca transfere seus direitos naturais ao soberano. A multido est impossibilitada de efetuar esta transferncia, por seu modo de ser (por seu carter plural) e de atuar. Hobbes, que era um grande escritor, sublinhou com uma preciso lapidar como a multido era antiestatal, e, por isso, antipopular: Os cidados, quando se rebelam contra o Estado, so a multido contra o povo (ibid.). A contraposio entre os dois conceitos levada aqui ao extremo: se povo, nada de multido; se multido, nada de povo. Para Hobbes e os apologistas da soberania estatal do Sculo XVI, a multido um conceito limite, puramente negativo: coincide com os riscos que ameaam o estatismo, o obstculo que pode chegar a atolar a grande mquina. Um conceito negativo, a multido: aquilo que no aceitou fazer-se povo, enquanto que contradiz virtualmente ao monoplio estatal da deciso poltica, isto , uma reapario do estado de natureza na sociedade civil.

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  • 2. A pluralidade exorcizada: o privado e o individual Como sobreviveu a multido criao dos Estados centrais? Em que dissimuladas e raquticas formas deu sinais de si, depois da plena afirmao do moderno conceito de soberania? Onde se escuta seus ecos? Estilizando ao extremo a questo, intentemos identificar o modo em que foram concebidos os muitos enquanto muitos no pensamento liberal e no pensamento social-democrata (isto , na tradio poltica que se desenvolveu a partir da unidade do povo como ponto de referncia indiscutvel). No pensamento liberal, a inquietude despertada pelos muitos foi aquietada mediante o recurso dupla pblico-privado. A multido, antpoda do povo, cobra a semelhana, algo fantasmagrica e mortificante, do denominado privado. Tenha-se em conta: tambm a dupla pblico-privado, antes de se tornar bvia, forjou-se entre sangue e lgrimas em mil contendas tericas e prticas; e derivou, portanto, em um resultado complexo. O que, para ns, pode ser mais normal do que falar de experincia pblica e de experincia privada? Mas essa bifurcao no foi sempre to bvia. E interessante esta falida obviedade, pois hoje estamos, talvez, em um novo Seiscentos; em uma poca na qual explodem as antigas categorias e se devem cunhar outras novas. Muitos conceitos que ainda parecem extravagantes e no usuais por exemplo, a noo de democracia no representativa tendem a tecer um novo sentido comum, aspirando, por sua vez, a fazerem-se bvias. Mas voltemos ao tema. Privado no significa somente algo pessoal, atinente interioridade de tal ou qual; privado significa, antes de tudo, privo: privado de voz, privado de presena pblica. No pensamento liberal a multido sobrevive como dimenso privada. Os muitos esto despojados e afastados da esfera dos assuntos comuns. Onde achar, no pensamento social-democrata, algum eco da arcaica multido? Talvez no par coletivo-individual. Ou, melhor ainda, no segundo termo, o da dimenso individual. O povo o coletivo, a multido a sombra da impotncia, da desordem inquieta, do indivduo singular. O indivduo o resto sem importncia, de divises e multiplicaes que se efetuam longe dele. Naquilo que tem de singular, o indivduo resulta inefvel. Como inefvel a multido na tradio social-democrata. conveniente antecipar uma convico que emergir prontamente de meu discurso. Creio que na atual forma de vida, como do mesmo modo na produo contempornea (contanto que no se abandone a produo carregada como est de ethos, de cultura, de interao lingstica anlise economtrica, mas que se a entenda como a enorme experincia do mundo), percebe-se diretamente o fato de que tanto a dupla pblico-privado como a dupla coletivo-individual no se sustentam mais, caducaram. Aquilo que

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  • estava rigidamente subdividido confunde-se e se superpe. difcil dizer onde finaliza a experincia coletiva e comea a experincia individual. difcil separar a experincia pblica da considerada privada. Nessa diluio das linhas delimitadoras, deixam de ser confiveis, tambm, as duas categorias do cidado e do produtor, to importantes em Rousseau, Smith, Hegel, e depois, como alvo polmico, no prprio Marx. A multido contempornea no est composta nem de cidados nem de produtores; ocupa uma regio intermediria entre individual e coletivo; e por isso j no vlida, de modo algum, a distino entre pblico e privado. por causa da dissoluo destas duplas, dadas por bvias durante tanto tempo, que j no possvel falar mais de um povo convergente na unidade estatal. Para no proclamar estribilhos de tipo ps-moderno (a multiplicidade boa, a unidade a desgraa a evitar), preciso reconhecer que a multido no se contrape ao Uno, mas que o re-determina. Tambm os muitos necessitam de uma forma de unidade, um Uno: mas, ali est o ponto, essa unidade j no o Estado, seno que a linguagem, o intelecto, as faculdades comuns do gnero humano. O Uno no mais uma promessa, mas uma premissa. A unidade no algo mais (o Estado, o soberano) para onde convergir, como era no caso do povo, mas algo que se deixa s costas, como um fundo ou um pressuposto. Os muitos devem ser pensados como individuaes do universal, do genrico, do indiviso. E assim, simetricamente, pode-se conceber um Uno que, longe de ser um porqu concludente, seja a base que autoriza a diferenciao, que consente a existncia poltico-social dos muitos enquanto muitos. Digo isto para assinalar que uma reflexo atual sobre a categoria de multido no tolera simplificaes apressadas, abreviaes arbitrrias, mas que dever enfrentar problemas rspidos: em primeiro lugar o problema lgico (para reformular, no para eliminar) da relao Uno-Muitos. 3. Trs aproximaes aos Muitos As determinaes concretas da multido contempornea podem ser abordadas desenvolvendo trs blocos temticos. O primeiro muito hobbesiano: a dialtica entre medo e busca de segurana. evidente que tambm o conceito de povo (em sua articulao dos Seiscentos, liberal ou social-democrata) identifica-se com certa estratgia tendente a afastar o perigo e obter proteo. Sustentarei (na presente exposio), que se acha debilitada, tanto no plano emprico como no conceitual, a forma de medo e seu correspondente tipo de resguardo, que se associou com a noo de povo. Em seu lugar prevalece uma dialtica temor-proteo [timore-riparo] muito distinta: ela define alguns traos caractersticos da multido atual. Medo-segurana: eis aqui uma tira ou papel de tornassol filosfica e

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  • sociologicamente relevante para mostrar como a figura da multido no s rosas e flores; para individualizar que venenos especficos contm nela. A multido um modo de ser, o modo de ser prevalecente hoje em dia: mas como todo modo de ser ambivalente, j contm, em si mesmo, perda e salvao, aquiescncia e conflito, servilismo e liberdade. O ponto crucial, no entanto, que essa possibilidade alternativa possui uma fisionomia peculiar, distinta daquela com a qual a comparamos na constelao povo/vontade geral/Estado. O segundo tema, que abordaremos nas sucessivas jornadas do seminrio, a relao entre o conceito de multido e a crise da antiga tripartio da experincia humana em Trabalho, Poltica e Pensamento. Trata-se de uma subdiviso proposta por Aristteles, retomada no Novecentos, em especial por Hannah Arendt, gravada at ontem no senso comum. Subdiviso que hoje cai em pedaos. O terceiro bloco temtico consiste em analisar algumas categorias a fim de avanar sobre a subjetividade da multido. Examinaremos em especial trs: o princpio de individuao, a tagarelice [Gerede, chiacchiera, conversa fiada, bate-papo, conversao recreativa, de passa-tempo; N. do T.] e a curiosidade. A primeira uma austera e injustamente descuidada questo metafsica: o que faz singular a uma singularidade? As outras duas, em troca, concernem vida cotidiana. Foi Heidegger quem conferiu tagarelice e curiosidade a dignidade de conceitos filosficos. Seu modo de falar, como o provam algumas pginas de Ser e Tempo, substancialmente no-heideggeriano ou anti-heideggeriano.

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    PRIMEIRA JORNADA: TEMORES E PROTEES Ante a dupla medo-angstia A dialtica do temor e da proteo encontra-se no centro da Analtica do sublime, uma seo da Crtica da Razo (Kant, 1790: Parte I, Livro II). Segundo Kant, quando observamos uma aterradora avalanche, encontrando-nos protegidos, sentimo-nos tomados de uma prazerosa sensao de segurana que, no entanto, mescla-se com a percepo da prpria falta de defesa. O sublime pelo que anteriormente foi dito este sentimento dual, parcialmente contraditrio. A partir do princpio da proteo emprica que usufrumos casualmente, perguntamo-nos o que pode nos garantir uma proteo absoluta e sistemtica para nossa existncia. Pergunto-me que coisa pode salvaguardar-me, no de um ou outro perigo determinado, mas, da insegurana inerente ao estar no mundo. Onde encontrar uma proteo incondicional? Kant responde: no Eu moral, j que ali est o no-contingente, e at o supramundano. A lei moral transcendente protege de modo absoluto a minha pessoa, j que coloca aos valores que lhe competem, acima da existncia finita e seus mltiplos perigos. O sentimento do sublime (ou, ao menos, um de dita espcie) consiste em transformar o alvio por ter encontrado um refgio ocasional na busca da segurana incondicional que s o Eu moral pode garantir. Mencionei Kant por um nico motivo: ele oferece um modelo muito ntido do modo no qual foi concebida a dialtica temor-proteo nos dois ltimos sculos. H uma rude bifurcao: por uma parte, um perigo particular (a avalanche, a m vontade evidente na ateno do Ministrio do Interior, a perda do posto de trabalho, etc.); e por outra, em troca, o perigo absoluto associado a nosso estar no mundo. A essas duas formas de risco (e de temor) correspondem duas formas de proteo (e de segurana). Frente a um fato desagradvel temos remdios concretos (por exemplo, o refgio de montanha quando cai a avalanche). Mas o perigo absoluto requer uma proteo... do mundo como tal. Diz-se: o mundo do animal humano no se pode equiparar ao ambiente do animal no-humano, isto , o habitat circunscrito, no qual este ltimo orienta-se perfeitamente em funo de instintos especializados. O mundo sempre tem algo de indeterminado; est carregado de surpresas e imprevistos, um contexto vital nunca dominvel: por isso fonte de permanente insegurana. Enquanto o perigo relativo tem nome e sobrenome, a insegurana absoluta no possui um rosto preciso nem contedo unvoco.

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  • A distino kantiana entre dois tipos de risco e de segurana prolonga-se na discriminao, traada por Heidegger, entre medo e angstia. O medo refere-se a um fato preciso, a avalanche ou o desemprego; a angstia no possui, por sua parte, uma causa desencadeadora precisa. Nas pginas de Ser e Tempo de Heidegger (Heidegger, 1927: 40), a angstia provocada pela pura e simples exposio ao mundo, pela incerteza e pela indeciso com que se manifesta nossa relao com ele. O medo sempre circunscrito e nominal; a angstia multilateral, no se associa a nenhuma ocasio privilegiada, pode sobrevir em qualquer momento ou lugar de perigo. Essas duas formas de temor (medo e angstia, segundo explicamos) e seu correspondente antdoto, prestam-se a uma anlise histrico-social. A distino entre temor circunscrito e temor indeterminado possvel ali onde h uma comunidade substancial que constitui um leito capaz de canalizar as prticas e experincias coletivas. Um leito constitudo por usos e costumes repetitivos e, por isso, confortveis, de um ethos consolidado. O medo situa-se no interior da comunidade, de sua forma de vida e comunicao. A angstia faz sua apario, por outra parte, ao afastar-se da comunidade de pertencimento, dos costumes compartilhados, dos jogos lingsticos j conhecidos, adentrando-se no vasto mundo. Fora da comunidade o perigo ubquo, imprevisvel, constante: em suma, angustiante. A contrapartida do medo uma segurana que a comunidade pode, em princpio, garantir; a contrapartida da angstia (isto , da exposio ao mundo como tal) o refgio provido pela experincia religiosa. Pois bem, a linha divisria entre medo e angstia, temor relativo e temor absoluto, precisamente aquilo que est deteriorando-se. O conceito de povo, se bem que com mltiplas variaes histricas, est ligado separao clara entre um dentro habitual e um fora obscuro e hostil. O conceito de multido, ao contrrio, est unido ao fim de dita separao. A distino entre medo e angstia, e entre resguardo relativo e resguardo absoluto, ficam privadas de fundamento, ao menos, por trs motivos. O primeiro que j no se pode falar mais, razoavelmente, de comunidade substancial. Hoje, cada impetuosa inovao no transtorna a forma de vida tradicional e repetitiva, mas intervm sobre os indivduos, agora habituados a j no ter costumes slidos, adaptados s mudanas repentinas, expostos ao inslito e ao imprevisto. H que se mover numa realidade sempre e de todos os modos renovada mltiplas vezes. J no mais possvel uma distino efetiva entre um dentro estvel e um fora incerto e telrico. A transformao permanente da forma de vida e o treinamento para afrontar uma aleatoriedade ilimitada, comportam uma relao contnua e direta com o mundo enquanto tal, com o contexto indeterminado de nossa existncia.

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  • Existe, portanto, uma completa superposio de temor e angstia. Quando perco o trabalho devo afrontar um perigo bem definido, que suscita um temor especfico; mas este perigo, de fato, tinge-se imediatamente de uma angstia indeterminada, confunde-se com uma desorientao mais geral frente presena no mundo, une-se insegurana absoluta do animal humano, devido a sua carncia de instintos especializados. Poder-se-ia dizer: o medo sempre angustiante, o perigo circunscrito inclui sempre o risco geral de estar no mundo. Se a comunidade substancial ocultava ou amortecia a relao com o mundo, sua atual dissoluo expe esta ltima plena luz: a perda do posto de trabalho, as inovaes que modificam as conotaes das tarefas de trabalho, a solido metropolitana que carrega em si muito do que antes correspondia ao terror sentido fora dos muros da comunidade. Necessitaramos poder contar com um termo distinto de medo e angstia, um termo que desse conta da sua fuso. E me vem mente perturbao. Mas seria muito extensa a justificao desta escolha, nessa ocasio (ver: Virno, 1994: 65-7). Passemos segunda aproximao crtica. Segundo a representao tradicional, o medo como um sentimento pblico, enquanto que a angstia associa-se ao indivduo isolado de seu prximo. Distintamente do medo, provocado por um perigo que corresponde virtualmente a muitos membros da comunidade e que pode ser neutralizado com a ajuda alheia, a desorientao angustiosa descarta a esfera pblica e concerne unicamente denominada interioridade do indivduo. Essa representao torna-se totalmente no fidedigna. E por isso deve ser eliminada. Hoje, toda forma de vida experimenta aquele no se sentir em sua prpria casa que, segundo Heidegger, a origem da angstia. De modo que no h nada mais compartilhado e comum, em certo sentido, mais pblico, que o sentimento de no se sentir em sua prpria casa. Ningum se acha menos isolado que aquele que suporta a espantosa presso do mundo indeterminado. Dito de outro modo: o sentimento em que confluem medo e angstia imediatamente assunto de muitos. Poder-se-ia dizer, talvez, que o no se sentir na prpria casa nada mais que um trao distintivo do conceito de multido, enquanto que a separao entre o dentro e o fora, entre o medo e a angstia, marca a idia hobbesiana (e no s hobbesiana) do povo. O povo uno porque a comunidade substancial coopera para acalmar os medos que emanam dos perigos circunscritos. A multido, por outra parte, est unida pelo perigo de no se sentir na prpria casa, da exposio multilateral ao mundo. Terceiro e ltimo aspecto crtico, talvez o mais radical. Concerne ao conjunto temor-proteo. errnea a idia segundo a qual primeiro experimentamos um temor e, s depois, buscaremos encontrar uma proteo. Est totalmente fora de lugar um esquema estmulo-resposta ou causa-efeito. Bem mais, de supor que a experincia inicial a de se procurar proteo. Antes de tudo,

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  • protegemo-nos; logo, enquanto intentamos proteger-nos, analisamos quais so os perigos que devemos enfrentar. Arnold Gehlen dizia que o transcorrer, para o animal humano, uma tarefa incmoda; que para enfrent-la, deve-se, sobretudo, minimizar a desorientao provocada por no dispor de um ambiente pr-estabelecido (Gehlen 1940: 60 e seg.). algo bsico isto de se engenhar, com cuidado, no prprio contexto vital. Enquanto procuramos orientar-nos e salvaguardar-nos, prevenimo-nos, com freqncia retrospectivamente, das diversas formas de perigo. H mais. No s o perigo define-se a partir da busca originria de proteo, mas que e este o ponto verdadeiramente crucial manifesta-se para a maioria como forma especifica de proteo. O perigo consiste, bem visto, em uma estratgia horripilante de salvao (pensemos no culto de uma pequena ptria tnica). A dialtica entre perigo e proteo resolve-se, finalmente, na dialtica entre formas alternativas de proteo. redobrada proteo se lhe ope uma proteo de segundo grau, capaz de ser o antdoto para os venenos da primeira. Desde um ponto de vista histrico e sociolgico no difcil dar-se conta que o mal se expressa precisamente como horrvel rplica periculosidade do mundo, como perigosa busca de proteo: basta pensar na tendncia a confiar em um soberano (robusto ou de opereta, pouco importa), na convulsiva obsesso pela carreira profissional, na xenofobia. Tambm poderamos dizer: verdadeiramente angustiante s um certo modo de enfrentar a angstia. Repito: decisiva a alternativa entre diversas estratgias de segurana, a contraposio entre formas antpodas de proteo. Por isso, digamos de passagem, to estpido descuidar o tema da segurana como (sobre tudo) brandi-lo sem qualificaes ulteriores (no detectando com isso o autntico perigo em suas declinaes). nessas modificaes da dialtica temor-proteo onde radica, em primeiro lugar, a experincia da multido contempornea (ou, se se prefere, ps-fordista). Os muitos enquanto muitos so aqueles que compartilham o no se sentir na prpria casa e, assim, instalam essa experincia no centro da prpria prtica social e poltica. Alm disso, no modo de ser da multido, pode-se observar, a olho nu, uma contnua oscilao entre diversas s vezes diametralmente opostas estratgias de segurana (oscilaes que o povo, fazendo corpo com o Estado soberano, desconhece).

    Lugares comuns e intelecto geral A fim de compreender melhor a noo contempornea de multido, oportuno refletir com mais profundidade acerca de quais so os recursos essenciais com os quais ela pode contar para proteger-se da periculosidade do mundo. Proponho identificar esses recursos mediante um conceito aristotlico, um conceito lingstico

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  • (ou, melhor ainda, atinente arte da retrica): os lugares comuns, os topoi koinoi. Quando hoje falamos de lugares comuns, referimo-nos a locues estereotipadas, privadas de todo significado, banalidades, metfora apagada, convenes lingsticas conhecidas. No entanto, esse no era o significado original da expresso lugares comuns. Para Aristteles (Retrica, I, 2, 1358), os topoi koinoi so a forma lgica e lingstica de valor mais geral, tambm, a estrutura ssea de todo nosso discurso, aquilo que possibilita e ordena qualquer locuo particular. So comuns, ditos lugares, porque ningum (tanto o orador refinado como o embriagado que, a duras penas, emite palavras entrecortadas; o comerciante como o poltico) pode deix-los de lado. Aristteles indica-nos trs: a relao entre mais e menos; a oposio dos contrrios e a categoria da reciprocidade (se eu sou seu irmo, ela minha irm).Essa categoria, como toda estrutura ssea efetiva, nunca aparece como tal. a trama da vida da mente, mas uma trama no-aparente. Mas o que que se deixa ver em nosso discurso? Os lugares especiais, como os denomina Aristteles (topoi idioi). Eles so os modos de dizer metforas, sutilezas, alocues, etc. que somente se desenvolvem junto a um ou outro mbito da vida associada. Lugares especiais so os modos de dizer/pensar que resultam apropriados numa sede partidria, ou na igreja, ou em uma aula universitria, ou entre os aficionados de um time de futebol, etc. A vida da cidade, como o ethos (hbitos compartilhados), articula-se mediante lugares especiais, diversos e com freqncia inconciliveis. Uma certa expresso funciona aqui, mas no ali, um tipo de argumentao serve para convencer a este interlocutor, mas no quele, etc. As transformaes que enfrentamos podem ser resumidas assim: hoje, os lugares especiais do discurso e da argumentao se decompem e se dissolvem, enquanto adquirem uma visibilidade imediata os lugares comuns, quer dizer, a forma lgico-lingstica que alinhava todos os discursos. Isto significa que para nos orientarmos no mundo e proteger-nos de seus perigos j no podemos contar com as formas de pensamento, de raciocnio, de discurso que se assentavam em um ou outro contexto particular. O cl dos fanticos, a comunidade religiosa, a seo do partido, o posto de trabalho: todos estes lugares, obviamente, continuam subsistindo, mas nenhum deles, caracterizado e caracterizador de tal modo, capaz de oferecer uma rosa dos ventos, isto , um critrio de orientao, uma busca confivel, um conjunto de hbitos especficos, de modos especficos de dizer/pensar. Em todas as partes e em toda ocasio falamos/pensamos de um mesmo modo, sobre a base de construes lgico-lingsticas, tanto fundamentais como gerais. Desaparece uma topografia tico-retrica. Aparecem em primeiro plano os lugares comuns, esses descarnados princpios da

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  • vida da mente: a relao entre mais e menos, a oposio dos contrrios, a relao de reciprocidade, etc. Eles, e somente eles, podem oferecer um critrio de orientao, e portanto, alguma proteo ao curso do mundo. No mais invisveis, mas elevados ao primeiro plano, os lugares comuns so o recurso apotropico da multido contempornea. Emergem superfcie como caixas de ferramentas de utilidade imediata. Que outra coisa so os lugares comuns seno o ncleo fundamental da vida da mente, o epicentro desse animal lingstico que o ser humano? Assim, se poderia dizer que a vida da mente transforma-se em pblica. Recorre-se a categorias gerais para se desempenhar nas mais diversas situaes determinadas, j no dispondo mais de cdigos tico-comunicativos especiais, setoriais. No-se-sentir-na-prpria-casa indica a preeminncia dos lugares comuns. O intelecto como tal, o intelecto puro se faz a bssola concreta ali onde se debilita a comunidade substancial, ficando expostos ao mundo em seu conjunto. O intelecto, ainda em suas mais estranhas funes, apresenta-se como algo comum e aparente. Os lugares comuns j no so mais um fundo inadvertido, mbito do pulular dos lugares especiais. So um recurso compartilhado ao qual recorrem os muitos, em qualquer situao. A vida da mente o Um que subjaz sob o modo de ser da multido. Repito e insisto: a chegada ao primeiro plano do intelecto como tal; o fato de que a estrutura lingstica mais geral e abstrata se faa instrumento para orientar a prpria conduta , em meu entender, uma das condies que definem a multido contempornea. H pouco se falou de intelecto pblico. Mas a expresso intelecto pblico contradiz uma longa tradio, segundo a qual o pensamento era uma atividade solitria e apartada, que separa do prximo uma atividade interior, privada de manifestaes visveis, estranha ao tratamento dos assuntos comuns. A essa longa tradio, segundo a qual a vida da mente refratria publicidade, somente se lhe excetuam, segundo meu parecer, algumas pginas de Marx, quem coloca o intelecto como algo exterior e coletivo, como um bem pblico. No Fragmento sobre as mquinas dos Grundrisse (Marx, 1939-1941: II, 389-411), Marx fala de um intelecto geral, de um general intellect: utiliza o idioma ingls para dar fora expresso, como se desejasse sublinh-la. A noo de intelecto geral pode ter diversas origens: talvez seja uma rplica polmica vontade geral de Rousseau (segundo Marx, no a vontade, mas o intelecto o que os produtores acumulam); ou talvez, o intelecto geral seja continuao materialista do conceito aristotlico de nous poietikos (o intelecto produtivo, poitico). Mas aqui, no importa a filologia. Importa o carter exterior, social, coletivo que compete atividade intelectual, enquanto que dali provm, segundo Marx, o verdadeiro motor da produo de riqueza.

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  • exceo destas pginas de Marx, repito, ao intelecto se lhe atribuiu sempre a caracterstica da reserva e do estranho esfera pblica. Em um escrito juvenil de Aristteles (Protreptico, B43) a vida do pensador comparada vida do estrangeiro. O pensador deve estranhar-se de sua comunidade, alijar-se do rumor da multido, colocar surdina aos sons da agor. A respeito da vida pblica, da comunidade poltico-social, tanto o pensador como o estrangeiro, em sentido estrito, no se sentem em sua prpria casa. Este um bom ponto de partida para analisar as condies da multido contempornea. Bom ponto de partida, sob a condio de extrair outras concluses da analogia entre o estrangeiro e o pensador. Ser estrangeiro, isto , no se sentir em sua prpria casa, hoje condio comum dos muitos, condio incontornvel e compartilhada. Bem, e aqueles que no se sentem em sua prpria casa, devero , a fim de se orientarem e se protegerem, recorrer aos lugares comuns, isto , s categorias gerais do intelecto lingstico; em tal sentido, os estrangeiros so sempre pensadores. Como vem, inverto a direo da comparao: no o pensador que se torna estrangeiro na confrontao com sua comunidade de pertencimento, mas que o estrangeiro, a multido dos sem casa, os que adquirem necessariamente o status de pensadores. Os sem casa, no podem mais que, comportar-se como pensadores: no porque saibam de biologia ou de matemtica superior, mas porque devem recorrer s categorias mais essenciais do intelecto abstrato a fim de resistir aos golpes aleatrios, para se proteger das contingncias e dos imprevistos. Para Aristteles, o pensador estrangeiro, sim, mas provisoriamente: quando terminou de escrever a Metafsica pde ocupar-se novamente dos assuntos comuns. De igual modo, os estrangeiros prximos, os espartanos chegados a Atenas, so estrangeiros por um tempo determinado: antes ou depois podero retornar ptria. Mas para a multido contempornea a condio de no se sentir em casa permanente e irreversvel. A ausncia de uma comunidade substancial e de seus lugares especiais associados, fazem vida dos estrangeiros ao no-se-sentir-em-sua-casa que o bios xeniks seja uma experincia inelutvel e duradoura. A multido dos sem casa confia no intelecto, nos lugares comuns: a seu modo, uma multido de pensadores (ainda que tenham somente educao elementar e no leiam um livro nem sob tortura). Uma observao margem: fala-se s vezes da puerilidade do comportamento metropolitano. E, faz-se isso em tom depreciativo. Indubitavelmente essa depreciao absurda, mas vale a pena perguntar-se se h algo de consistente, um indcio de verdade, nessa associao entre vida metropolitana e infncia. Talvez a infncia seja a matriz ontogentica de toda busca ulterior de proteo contra os golpes do mundo circundante; exemplifica a necessidade de vencer

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  • uma indeciso constitutiva, uma insegurana originria (indeciso e insegurana que logo originam a vergonha, sentimento desconhecido para o cachorro no humano, que sabe sempre como se comportar). A criana protege-se mediante a repetio (outra vez o mesmo conto, o mesmo jogo, o mesmo gesto). A repetio resulta uma estratgia de proteo para confrontar os chocs provocados pelo novo e pelo imprevisto. Agora bem, o problema parece ser este: a experincia da criana no se transfere do adulto e ao comportamento prevalecente dentro dos grandes conglomerados urbanos (comportamentos descritos por Simmel, Benjamin e tantos outros)? A Experincia infantil da repetio prolonga-se na vida adulta, j que constitui a principal forma de proteo ali onde faltam os costumes slidos, comunidade substancial, um ethos completo. Na sociedade tradicional (na experincia do povo) a repetio, cara criana, deixava seu lugar a formas de proteo mais completas e articuladas: o ethos, os usos e costumes, os hbitos que constituam a ordem da comunidade substancial. Agora, no tempo da multido, esta substituio no tem mais lugar. A repetio, longe de ser substituda, perdura. Foi Walter Benjamin quem compreendeu bem esse ponto. Prestou uma grande ateno infncia, ao jogo infantil, ao amor da criana pela repetio; e ao mesmo tempo, ao culto da reprodutibilidade tcnica da obra de arte como mbito no qual se forja novas formas de percepo (Benjamin, 1936). Bem, de supor que h um nexo entre esses dois aspectos. Na reprodutibilidade tcnica revive potencializada a instncia infantil da outra vez mais, o general intellect manifesta-se tambm como repetio reafirmadora. certo: a multido tem algo de infantil; mas esse algo, mais do que tudo, o mais srio. Publicidade sem esfera pblica Dissemos que a multido define-se pelo no-se-sentir-em-sua-casa, e pela conseqente familiaridade com os lugares comuns, com o intelecto abstrato. Falta agregar agora que a dialtica medo-proteo radica nessa familiaridade com o intelecto abstrato. O carter pblico e compartilhado da vida da mente est carregado de ambivalncias: hospeda em si, inclusive, possibilidades negativas, figuras temveis. O intelecto pblico o tronco unitrio do qual podem brotar tanto horrendas formas de proteo como formas de proteo capazes de buscar um bem estar real (na medida em que possam salvar da primeira). O intelecto pblico que a multido logra, o ponto de partida para desenvolvimentos contrapostos. A chegada a um primeiro plano, das atitudes fundamentais do ser humano (pensamento, linguagem, auto-reflexo, capacidade de aprendizagem), pode derivar em aspectos inquietantes e opressivos, ou originar uma esfera pblica indita, uma esfera pblica no-Estatal, longe dos mitos e dos ritos da soberania.

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  • Para resumir ao extremo, minha tese, em ajustada sntese, esta: se a publicidade do intelecto no se inscreve em uma esfera pblica, em um espao poltico no qual os muitos possam se ocupar dos assuntos comuns, produzir-se-o efeitos aterradores. Uma publicidade sem esfera pblica: eis ali a vertente negativa o mal, se assim se quer da experincia da multido. Freud, no ensaio O estranho [Das Unheimliche] (Freud, 1919: 292-3), mostra como a potncia extrnseca do pensamento pode tomar aspectos angustiantes. Diz que os males para os quais o pensamento tem um poder exterior, prtico, imediatamente operativo, devem ser condicionados e dominados pelos outros. a mesma situao, por outro lado, que se determina em uma sesso esprita, na qual os participantes esto estreitamente unidos numa relao de fuso que parece anular todo trao individual. Pois bem, a crena na onipotncia do pensamento estudada por Freud, ou a situao-limite da sesso esprita, exemplificam adequadamente o que pode ser uma publicidade sem esfera pblica; o que pode ser um intelecto geral, um general intellect, que no se articule em um espao pblico. O general intellect, ou intelecto pblico, se no se faz repblica, esfera pblica, comunidade poltica, multiplica demencialmente as formas de submisso. Para aclarar o ponto, pensemos na produo contempornea. O compartilhar as atitudes lingsticas e cognitivas o elemento constitutivo do processo de trabalho ps-fordista. Todos os trabalhadores participam na produo enquanto pensantes-falantes. Nenhuma relao, vemos, com a profissionalidade, ou com o antigo ofcio: falar/pensar so atitudes genricas do animal humano, o contrrio de qualquer especializao. Esse compartilhar preliminar, por um lado, caracteriza aos muitos enquanto muitos, a multido; por outro, a mesma base da produo atual. O compartilhar, enquanto pr-requisito tcnico, ope-se diviso do trabalho, a contradiz, a faz desmoronar. Isto no significa, naturalmente, que o trabalho j no esteja subdividido, parcializado, etc.; significa que a segmentao do mbito do trabalho j no responde a critrios objetivos, tcnicos, mas, que explicitamente arbitrria, reversvel, cambiante. Para o capital, o que conta verdadeiramente a unificao originria do dote lingstico-cognitivo, j que isso o que garante a velocidade da reao frente s inovaes, a adaptabilidade, etc. Mas evidente que essa unificao dos dotes genricos cognitivos e lingsticos no interior do processo de produo real, no se faz esfera pblica, no se faz comunidade poltica, princpio constitucional. Pois, que coisa sucede? A publicidade do intelecto, sua situao de compartilhada, se por um lado dinamiza a rgida rea da diviso de trabalho, por outro, fomenta a dependncia pessoal. General intellect, fim da diviso de trabalho, dependncia pessoal: os trs aspectos esto correlacionados. A publicidade do intelecto, ali onde no se articula

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  • em uma esfera pblica se traduz em uma proliferao descontrolada das hierarquias, to infundada como poderosa. A dependncia pessoal em duplo sentido: no trabalho se depende da pessoa para isso ou aquilo, no desde regras dotadas de poder coercitivo annimo; alm disso, intenta-se fazer submissa totalidade da pessoa, a suas atitudes comunicativas e cognitivas bsicas. Hierarquias proliferantes, minuciosas, personalizadas: eis ali a contrapartida negativa da publicidade/unificao do intelecto. A multido, repetimos, um modo de ser ambivalente. Qual Um para os Muitos? O ponto de partida da presente anlise foi a contraposio entre povo e multido. De toda a argumentao resulta evidente que a multido no se desvencilha do Uno, quer dizer, do universal, o comum/conjunto, seno que o re-determina. O Uno da multido no tem nada em comum com o Uno constitudo pelo Estado, com o Uno para onde converge o povo. O povo o resultado de um movimento centrpeto: dos indivduos atomizados unidade do corpo poltico, soberania. O Uno o maior resultado desse movimento centrpeto. A multido, ao contrrio, o resultado de um movimento centrfugo: do Uno ao Muitos. Mas qual o Uno a partir do qual os muitos se diferenciam e persistem como tais? No pode ser o Estado, deve tratar-se de outra forma de unidade/universalidade. Podemos retomar agora um ponto que assinalvamos no comeo. A unidade que a multido tem s suas costas est constituda por lugares comuns da mente, das faculdades lingstico-cognitivas comuns espcie, do general intellect. Trata-se de uma unidade/universalidade visivelmente heterognea com respeito estatal. Sejamos claros: as atitudes cognitivo-lingusticas da espcie no sobem a um primeiro plano porque algum o decida, mas por necessidade, porque constitui uma forma de proteo numa sociedade privada de comunidade substancial (quer dizer, de lugares especiais). O Uno da multido no , por isso, o Uno do povo. A multido no converge numa vontade geral, por um motivo simples: porque j dispe de um general intellect. O intelecto pblico que no ps-fordismo aparece como mero recurso produtivo, pode constituir um diferente princpio constituinte, pode buscar uma esfera pblica no-estatal. Os muitos enquanto muitos tm como base o pedestal da publicidade do intelecto: para o bem e para o mal. H certamente, uma diferena substancial entre a multido contempornea e a estudada pelos filsofos polticos do Mil e Seiscentos. No alvorecer da modernidade, os muitos coincidiam com os cidados das repblicas comunais, anteriores ao nascimento do grande Estado nacional. Aqueles muitos asseguravam o direito

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  • resistncia, a jus resistentiae. Dito direito, no significa banalmente legtima defesa, mas algo mais sutil e complexo. O direito defesa consiste em fazer valer a prerrogativa de um indivduo, ou de uma comunidade local, ou de uma corporao, contra o poder central, salvaguardando formas de vida j instaladas. Trata-se, portanto, de defender algo positivo: uma violncia conservadora (no bom sentido do termo). Talvez o jus resistentiae, o direito a defender qualquer coisa que esteja e seja digna de perdurar, seja o que mais aproxima a multido do Seiscentos multido ps-fordista. No se trata, porm, de alcanar o poder, de construir um novo Estado, um novo monoplio da deciso poltica, mas de defender as experincias plurais, as formas de democracia no-representativa, usos e costumes, no-estatais. Quanto ao resto, no difcil ver as diferenas: a multido atual tem como pressuposto um Uno no menos, seno que mais universal que o Estado: o intelecto pblico, a linguagem, os lugares comuns (pensar na web...). Alm disso, a multido contempornea leva em si a histria do capitalismo, acha-se ligada duplamente s vicissitudes da classe trabalhadora. conveniente vigiar o demnio da analogia, do curto-circuito entre antigo e moderno; preciso sublinhar os traos historicamente originais da multido contempornea, evitando consider-la uma simples reedio de algo que j foi. Um exemplo: tpico da multido ps-fordista fomentar o colapso da representao poltica, no como gesto anrquico, mas como busca realista e tranqila de novas formas polticas. verdade que Hobbes j advertia sobre a tendncia da multido a prover-se de organismos polticos irregulares: no outra coisa mais que reunies e assemblias de gente privada de uma finalidade ou projeto particular, ou determinada por obrigaes de uns para com outros (Hobbes, 1651: 197). Mas bvio que a democracia no-representativa baseada no general intellect possui outro alcance: nada intersticial, marginal ou residual; bem mais, a concreta apropriao e rearticulao do saber/poder, hoje congelado no aparato administrativo do Estado. Falando de multido, encontramo-nos perante um problema complexo: procuramos um conceito sem histria, sem lxico, enquanto que o conceito de povo est completamente codificado, com palavras concretas e matizes de todo tipo. bvio que assim. J dissemos que, nas reflexes poltico-filosficas do Seiscentos, prevaleceu o povo sobre a multido: por isso, o povo usufruiu um lxico adequado. A propsito da multido descontamos, em troca, a absoluta ausncia de codificao, a ausncia de um vocabulrio conceitual perspicaz. E esse um belo desafio para filsofos e socilogos, em especial pela riqueza do tema. Trata-se de trabalhar sobre materiais concretos, examinando-os em detalhe e, ao mesmo tempo, obtendo deles categorias tericas. Um duplo movimento, da coisa palavra, da palavra coisa: isso o que demanda a multido ps-fordista. , repito, uma tarefa atrativa.

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  • certo que povo e multido so duas categorias mais atinentes ao pensamento poltico (indicando que so alternativas de existncia poltica) que sociologia. Mas, em minha opinio, a noo de multido extraordinariamente frtil para compreender e recensear o modo de ser do trabalho dependente ps-fordista, cujos comportamentos resultam to enigmticos primeira vista. Como desenvolverei melhor na segunda jornada, uma categoria do pensamento poltico derrotada, em seu momento, no debate terico que hoje representa um precioso instrumento de anlise do trabalho vivo do ps-fordismo. Dissemos que a multido uma categoria anfbia: por um lado, falamos da produo social baseada no saber e na linguagem, por outro, da crise da forma Estado. Talvez, atrs de ambos, exista um forte nexo. Carl Schmitt, algum que fez um culto ao Estado e um dos maiores tericos polticos do sculo transcorrido, nos anos sessenta, j velho, escreveu uma frase amarga (para ele) cujo sentido a reapario da multido e o ocaso do povo: A era do estatismo est chegando ao seu fim (...) O Estado como modelo na unidade poltica, o Estado como titular do mais extraordinrio de todos os monoplios, o monoplio das decises polticas, est por ser destronado (Schmitt, 1963: 90). Com um acrscimo importante: esse monoplio das decises tem sido verdadeiramente subtrado do Estado, somente cessar de uma vez por todas de ser um monoplio quando a multido fizer valer seu carter centrfugo. Desejo concluir dissipando, na medida do possvel, um equvoco no qual fcil cair. Pode parecer que a multido marca o fim da classe trabalhadora. No universo dos muitos j no h lugar para os rebanhos de ovelhas, todos iguais, um atrs do outro, pouco sensveis ao caleidoscpio das diferenas. Essa uma bobagem de algum que desejaria simplificar a questo e emitir frases de efeito (aplicar eletro-choque em um babuno, diria um amigo). A classe trabalhadora no coincide, nem em Marx, nem na opinio de nenhuma pessoa sria, com determinados hbitos, usos e costumes, etc. Classe trabalhadora um conceito terico, no um carto postal: indica o sujeito que produz mais-valia absoluta e relativa. Pois bem, a classe trabalhadora contempornea, o trabalho vivo subordinado, sua cooperao cognitivo-lingstica, possui os traos da multido, antes que do povo. J no tem a vocao popular pelo estatismo. A noo de multido no invalida o conceito de classe trabalhadora, j que este ltimo no se ligava, por definio, ao de povo. Ser multido no impede, em absoluto, de produzir mais-valia. certo que, desde que a classe trabalhadora no possui mais o modo de ser do povo, mas o da multido, mudaram muitas coisas: mentalidade, formas da organizao e dos conflitos. Tudo se complica. Seria muito mais simples dizer que agora a multido no mais a classe trabalhadora...mas se se deseja simplicidade a todo custo, basta tomar uma garrafa de vinho tinto.

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  • Por outro lado, tambm em Marx a classe trabalhadora perde a semelhana a povo e adquire a de multido. Somente um exemplo: pensemos nas pginas do ltimo captulo do primeiro livro de O capital, onde Marx analisa as condies da classe trabalhadora nos Estados Unidos (Marx, 1867: cap. XXV, A teoria moderna da colonizao). So longas pginas sobre o oeste americano, sobre o xodo, sobre as iniciativas individuais dos muitos. Os trabalhadores europeus expulsos de seu pas pelas epidemias, a carestia, as crises econmicas, chegam para trabalhar na costa leste dos Estados Unidos. Mas ateno, ficam alguns anos, somente alguns anos. Logo desertam das fbricas, dirigindo-se para o oeste, para a terra livre. O trabalho assalariado, antes que uma priso, apresenta-se como um transitrio episdio. Durante uns vinte anos os assalariados tiveram a possibilidade de semear a desordem nas frreas leis do mercado de trabalho: abandonando as prprias condies iniciais, determinaram a relativa escassez da mo-de-obra e, com isso, a elevao dos salrios. Marx, descrevendo essa situao, oferece um retrato muito vvido de uma classe trabalhadora que tambm multido.

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    SEGUNDA JORNADA: TRABALHO, AO, INTELECTO Da ltima vez, intentei ilustrar o modo de ser da multido, a partir da dialtica temor-proteo. Hoje, desejo discutir a clssica diviso da experincia humana em trs mbitos fundamentais: Trabalho (ou poiesis), Ao poltica (ou prxis), Intelecto (ou vida da mente). O objetivo sempre o mesmo: articular e aprofundar a noo de multido. Como se recordar aqui, multido uma categoria central do pensamento poltico: a utilizamos para desenvolver alguns traos sobressalentes do modo de produo ps-fordista. Sob a condio de entender por modo de produo no somente uma configurao econmica particular, mas tambm um conjunto composto por formas de vida, uma constelao social, antropolgica, tica (tica, ateno, no moral: o tema so os hbitos, os usos e costumes, no o dever-ser). Pois bem, desejo sustentar que a multido contempornea tem por pano de fundo a crise da subdiviso da experincia humana em Trabalho, Ao (poltica) e Intelecto. A multido afirma-se como modo de ser, em alto grau, ali onde h justaposio ou ao menos hibridao entre mbitos que, desde no muito tempo atrs, ainda na poca fordista, pareciam claramente distintos e separados. Trabalho, Ao e Intelecto: de acordo com uma tradio que inicia com Aristteles e foi retomada com particular paixo e eficcia por Hannah Arendt (Arendt, 1958), esta tripartio pareceu perspicaz, realista, quase inquestionvel. Enraizou-se no senso comum: no se trata, por isso, de uma questo somente filosfica, mas de um esquema amplamente compartilhado. Exemplo autobiogrfico: quando comecei a ocupar-me de poltica, nos anos 60, essa subdiviso me parecia bvia; resultava-me irrefutvel, como uma percepo visual ou ttil. No era preciso ter lido a tica Nicomaqueia de Aristteles para saber que trabalho, ao poltica e reflexo intelectual constituam trs esferas de princpios e critrios radicalmente heterogneos. Obviamente, a heterogeneidade no exclua as interseces: a reflexo intelectual podia aplicar-se poltica; por sua vez, a ao poltica nutria-se, com freqncia e de boa vontade, de termos atinentes ao mbito da produo, etc. Mas, por numerosas que fossem as interseces, Trabalho, Intelecto, Poltica eram essencialmente distintos. Por motivos estruturais. O trabalho troca orgnica com a natureza, produo de novos objetos, processo repetitivo e previsvel. O Intelecto puro possui uma ndole solitria e no-aparente: a meditao do pensador escapa do olhar dos outros; a reflexo terica silencia o mundo das aparncias. Diferentemente do Trabalho, a Ao poltica intervm nas relaes sociais, no sobre os materiais naturais; tem a ver com o possvel e o

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  • imprevisto; no preenche de objetos ulteriores o contexto onde opera, mas, modifica esse contexto mesmo. Diferentemente do Intelecto, a Ao poltica pblica, entregue exterioridade, contingncia, ao rumor dos muitos; implica, para utilizar palavras de Hannah Arendt, a exposio ante os olhos dos demais (ibid: cap. V, A ao). O conceito de Ao poltica pode ser produzido por oposio com respeito aos outros dois mbitos. Pois bem, essa antiga tripartio, todavia, gravada no senso comum da gerao que debutou na cena pblica nos anos 60, precisamente a que entrou em decadncia. Dissolveram-se os confins entre a pura atividade intelectual, a ao poltica e o trabalho. Em especial, o trabalho denominado ps-fordista absorveu em si muitas das caractersticas tpicas da ao poltica. E esta fuso entre Poltica e Trabalho constitui um trao fisionmico decisivo da multido contempornea. Justaposio de poiesis e prxis O trabalho contemporneo introjetou muitas caractersticas que antes distinguiam a experincia poltica. A poiesis incluiu em si numerosos aspectos da prxis. Esse o primeiro aspecto da hibridao geral que desejo tratar. Vejamos: mesmo Hannah Arendt denuncia insistentemente o fim dos limites entre trabalho e poltica (sempre que por poltica no se entenda a vida em uma seo do partido, mas a experincia genericamente humana de comear de novo qualquer coisa, uma relao ntima com a contingncia e o imprevisto, a exposio vista dos outros). A poltica, segundo Arendt, passou a imitar o trabalho. A poltica do Novecentos, a seu juzo, derivou em uma espcie de construo de novos objetos: o Estado, o partido, a histria, etc. Pois bem, afirmo que foi tudo o oposto do que acredita Hannah Arendt: no a poltica que se conformou como o trabalho, mas o trabalho que adquiriu as conotaes tradicionais da ao poltica. A minha, uma argumentao oposta e simtrica de Hannah Arendt. Sustento que no trabalho contemporneo descobre-se a exposio vista dos demais, a relao com a presena dos outros, o incio de processos inditos, a familiaridade constitutiva com a contingncia, o imprevisto e o possvel. Sustento que o trabalho ps-fordista, o trabalho produtivo de mais-valia, o trabalho subordinado, introduz na cena dotes e requisitos que, segundo uma tradio secular, pertenciam ao poltica. Para guardar. Isso explica, segundo o meu parecer, a crise da poltica, o desprezo que circunda hoje a prxis poltica, o descrdito no qual caiu a ao. Com efeito, a ao poltica aparece fatalmente como uma duplicao suprflua da experincia do trabalho, j que esta ltima, tambm de modo deformado e desptico, subsumiu em si certos traos estruturais da primeira. O mbito da poltica copia

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  • estreitamente procedimentos e estilos que distinguem o mbito do trabalho, mas dita cpia, resulta uma verso empobrecida, plida, simplificada. A poltica oferece uma rede comunicativa e um contedo cognitivo mais pobre que o derivado do atual processo produtivo. Menos complexa que a do trabalho e, no entanto, muito similar a ela, a ao poltica aparece como algo pouco desejvel. A incluso na produo contempornea de certos traos da prxis poltica, ajuda a compreender porque a multido ps-fordista, hoje uma multido politizada. J existe muita poltica no trabalho assalariado (enquanto trabalho assalariado), porque a poltica como tal, pode tambm gozar de uma autnoma dignidade. Do virtuosismo. De Aristteles a Glenn Gould A subsuno no processo de trabalho, daquilo que anteriormente outorgava Ao pblica sua fisionomia inconfundvel, pode ser aclarada mediante uma categoria vetusta, mas eficaz: o virtuosismo. Seguindo, por ora, a acepo ordinria, por virtuosismo entendo a capacidade peculiar de um artista executante. Virtuoso , por exemplo, o pianista que oferece uma execuo memorvel de Schubert; ou o bailarino experimentado, ou o orador persuasivo, ou o docente no enfadonho, ou o sacerdote de sermo sugestivo. Consideremos atentamente o que que distingue a atividade do virtuoso, isto , do artista executante. Em primeiro lugar, a sua uma atividade que encontra seu prprio cumprimento (seu prprio fim) em si mesma, sem se objetivar em uma obra duradoura, sem se depositar em um produto acabado, vale dizer, em um objeto que sobreviva execuo. Em segundo lugar, uma atividade que exige a presena de outros, que existe somente na presena de um pblico. Atividade sem obra: a execuo de um pianista ou de um bailarino no deixa atrs de si um objeto determinado, separvel da prpria execuo, em condies de persistir quando aquela j finalizou. Atividade que exige a presena de outros: a performance tem sentido somente quando vista ou escutada. Intui-se que essas duas caractersticas esto correlacionadas: o virtuoso necessita da presena de um pblico, pelo fato de no produzir uma obra, um objeto que fique girando no mundo depois de haver cessado sua atividade. Na falta de um produto extrnseco especfico, o virtuoso deve dar conta de seu testemunho. A categoria do virtuosismo discutida na tica Nicomaquia; aflora aqui e l no pensamento poltico moderno, tambm do Novecentos; possui um pequeno lugar na crtica da economia poltica de Marx. Na tica Nicomaquia, Aristteles distingue o trabalho, ou poiesis, da ao poltica, ou prxis, utilizando para isso a noo de virtuosismo: h trabalho quando se produz um objeto, uma obra

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  • separada do ato; h prxis quando o ato tem em si mesmo seu prprio fim. Aristteles escreve: o fim da produo distinto da prpria produo, enquanto que no pode s-lo, aquele da ao: porque a ao (compreendida tanto como conduta tica ou como ao poltica) um fim em si mesma (Et. Nic., VI, 1139 b). Retomando implicitamente Aristteles, Hannah Arendt compara os artistas executantes, os virtuosos, com aqueles que esto impregnados da ao poltica. Escreve: A arte que no produz nenhuma obra possui grande afinidade com a poltica. Os artistas que a produzem bailarinos, atores, msicos e similares tm necessidade de um pblico para o qual mostrar seu virtuosismo, como aqueles homens que atuam [politicamente] necessitam de outros ante cuja presena poder aparecer: uns e outros, para poder trabalhar, requerem um espao de estrutura pblica, e em ambos, sua execuo depende da presena alheia. (Arendt, 1961: 206). Poderia-se dizer que toda ao poltica virtuosa. Com o virtuosismo compartilha, com efeito, a contingncia, a ausncia de um produto acabado, a imediata e inevitvel relao com a presena alheia. Opostamente, todo virtuosismo intrinsecamente poltico. Pensemos no caso de Glenn Gould (Gould, 1984: 15-24; Schneider, 1989). Esse grande artista odiava, paradoxalmente, o trao distintivo de sua atividade de artista executante; dito de outro modo: detestava a exibio pblica. Por toda a vida, combateu a politicidade inerente sua atividade. Em certo momento Gould declarou querer abandonar a vita activa, isto , a exposio ao olhar alheio (note-se que vita activa a denominao tradicional da poltica). Por tornar no-poltico o prprio virtuosismo, intentou aproximar, o mais possvel, a atividade do artista executante ao trabalho propriamente dito, que acaba dentro de seu produto extrnseco. Isso significou encerrar-se em um estdio de gravao, contrabandeando a produo de discos (por outro lado, excelentes), por uma obra. Para evadir-se da dimenso pblico-poltica prpria do virtuosismo, teve de fingir que suas execues magistrais produziam um objeto definido (independente da execuo mesma). Assim, eram uma obra, um produto autnomo, eram trabalho, j no mais virtuosismo nem, tampouco, poltica. Tambm Marx fala de pianistas, oradores, bailarinos, etc. Fala deles em alguns dos seus textos mais significativos: no Captulo VI indito (Marx, 1933: 83) e depois, em termos quase idnticos, em Teorias da mais-valia (Marx, 1905: I, 357-8). Marx analisa o trabalho intelectual distinguindo nele duas espcies principais. Por um lado, a atividade imaterial ou mental, que tem por resultado mercadorias com uma existncia independente do produtor (...) livros, quadros, objetos de arte em geral, enquanto distintos das prestaes artsticas daqueles que os escrevem, pintam ou criam (Marx, 1933: 83). Essa a primeira espcie de trabalho intelectual. Por outro lado escreve Marx consideremos toda aquela atividade na qual o produto

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  • inseparvel do ato de produzir (Ibid.), aquela atividade que encontra em si mesma o prprio cumprimento, sem objetivar-se em uma obra que a exceda. a mesma discriminao entre produo material e ao poltica j ilustrada por Aristteles. Salvo que aqui, Marx no se ocupa da ao poltica, mas sim, analisa duas figuras do trabalho. Ele explica a distino entre atividade-com-obra e atividade-sem-obra, em determinados tipos de poiesis. A segunda espcie de trabalho intelectual (a atividade na qual o produto inseparvel do ato de produzir) compreende, segundo Marx, todas aquelas nas quais o trabalho resolve-se numa execuo virtuosa: pianistas, mordomos, bailarinos, docentes, oradores, mdicos, sacerdotes, etc. Agora, se o trabalho intelectual que produz uma obra no apresenta problemas particulares, o trabalho sem obra (virtuoso, pelo indicado) resulta embaraoso para Marx. O primeiro tipo de trabalho intelectual acomoda-se mais definio de trabalho produtivo. Mas, e o segundo tipo? Recordo a passagem na qual, para Marx, trabalho produtivo no trabalho subordinado, fatigante ou humilde, mas justa e to-somente, trabalho que produz mais-valia. certo que tambm as prestaes [de algum servio, p.ex.; N. do T.] virtuosas podem, em princpio, produzir mais-valia: se a atividade do bailarino, do pianista, etc. se organizam de modo capitalista, podem ser fonte de mais-valia. Contudo, Marx est perturbado pela forte semelhana entre a atividade do artista executante e a tarefa servil, a qual, ainda que ingrata e frustrante, no produz mais-valia, e por isso, pertence ao mbito do trabalho improdutivo. Trabalho servil aquele pelo qual no se investe capital, mas se gasta uma renda (por exemplo, o servio pessoal de um mordomo). O trabalhador virtuoso, segundo Marx, se por um lado representa uma exceo pouco significativa, desde o ponto de vista quantitativo, por outro e isto o que mais importa converge quase sempre no trabalho servil/improdutivo. Tal convergncia est sancionada pelo fato de que sua atividade no d lugar a uma obra independente: onde falta um produto acabado autnomo, geralmente no se achar um trabalho produtivo (de mais-valor). Marx aceita, de fato, a equao trabalho-sem-obra=servio pessoal. Em concluso, o virtuosismo , para Marx, trabalho assalariado que no ao mesmo tempo trabalho produtivo (Marx, 1905: I, 358). Tiremos as concluses. O virtuosismo est aberto a duas alternativas: ou esboa o carter estrutural da atividade poltica (falta de uma obra, exposio ante os demais, contingncia, etc.), como sugerem Aristteles e Hannah Arendt; ou bem, em Marx, toma a semelhana do trabalho assalariado que no , todavia, trabalho produtivo. Essa bifurcao decai e se faz em pedaos quando o trabalho produtivo, em sua totalidade, faz suas as caractersticas peculiares do artista executante. No ps-fordismo, aquele que produz mais-valia, comporta-se desde um ponto de vista estrutural, certamente como um pianista, bailarino, etc. e, portanto, como um

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  • homem poltico. Com referncia produo contempornea, resulta perspicaz a observao de Hannah Arendt sobre a atividade dos artistas executantes e dos homens polticos: para trabalhar necessitam de um espao de estrutura pblica. No ps-fordismo, o Trabalho requer um espao de estrutura pblica e se assemelha a uma execuo virtuosa (sem obra). A este espao de estrutura pblica, Marx chama cooperao. Poder-se-ia dizer: a um certo grau de desenvolvimento das foras sociais produtivas, a cooperao do trabalho introjeta em si a comunicao verbal, assemelhando-se, assim, a uma execuo virtuosa ou, precisamente, a um complexo de aes polticas. Recordam o celebre texto de Max Weber sobre a poltica como profisso (Weber, 1919: 133-5)? Weber enumera uma srie de qualidades que distinguem o homem poltico: saber pr em perigo a sade da prpria alma, um justo equilbrio entre a tica das convices e a da responsabilidade, dedicao aos objetivos, etc. Devemos reler esse texto em referncia ao toyotismo [ps-fordismo], ao trabalho baseado na linguagem, mobilizao produtiva das faculdades cognitivas. O ensaio de Weber fala das qualidades hoje requeridas pela produo material. O falante como artista executor Todos ns somos, desde sempre, virtuosos, artistas executantes. Talvez medocres ou torpes, mas, para todos os efeitos, virtuosos. Com efeito, o modelo bsico do virtuosismo, a experincia em que se funda o conceito, a atividade do falante. No a atividade de um locutor sbio, mas a de qualquer locutor. A linguagem verbal humana, no sendo um simples utenslio ou apenas um complexo de sinais instrumentais (caracterstica essa que assemelha, no pior dos casos, linguagem dos animais no humanos: pensemos nas abelhas, nos sinais mediante os quais coordenam a proviso de comida), possui em si mesma sua prpria realizao, no produz (ao menos no necessariamente, no regularmente) um objeto independente da prpria execuo enunciativa. A linguagem sem obra. Toda enunciao uma prestao virtuosa. E o , obviamente, porque est conectada (direta ou indiretamente) presena alheia. A linguagem pressupe e ao mesmo tempo institui sempre de novo, o espao de estrutura pblica do qual fala Arendt. Devemos reler a passagem da tica Nicomaquia sobre a diferena entre poiesis (produo) e prxis (poltica) em estreita referncia noo de palavra em Saussure (Saussure, 1922: 28-30) e sobretudo, a anlise de Emile Benveniste (Benveniste, 1970) sobre a enunciao (onde por enunciao entende-se no o contedo do enunciado, o que se diz, mas a tomada da palavra como tal, o fato mesmo de falar). De tal modo constata-se que os traos diferenciais da prxis com relao

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  • poiesis, coincidem em tudo e por tudo com os traos diferenciais da linguagem verbal em relao com a motilidade ou tambm comunicao no-verbal. E mais ainda. S o falante diferente do pianista, do bailarino, do ator pode atuar sem uma cpia [cola] ou uma partitura. O seu um virtuosismo dual: no somente no produz uma obra que seja distinguvel na execuo, mas ainda, nem sequer tem suas costas uma obra para atualizar mediante a execuo. Com efeito, o ato de palavra serve-se somente da potencialidade da lngua, ou melhor, da faculdade genrica da linguagem: no de um texto pr-fixado, ao pormenor. O virtuosismo do falante prottipo e culminao de todo outro virtuosismo, exatamente porque inclui em si a relao potncia/ato, ali onde o virtuosismo ordinrio ou derivado pressupe um ato determinado (as Variaes Goldberg de Bach, por exemplo), para ser revivido, sempre, de novo. Voltaremos sobre este ponto. Basta dizer, por ora, que a produo contempornea torna-se virtuosstica (e portanto, poltica) porque inclui em si a experincia lingstica como tal. Se isto assim, a matriz do ps-fordismo se encontrar no setor industrial em que exista produo de comunicao por meio de comunicao. Portanto, na indstria cultural. Indstria cultural: antecipao e paradigma O virtuosismo torna-se trabalho massificado com o nascimento da indstria cultural. aqui onde o virtuoso comea a imprimir sua marca. Na indstria cultural, com efeito, a atividade sem obra, isto , a atividade comunicativa que tem em si mesma sua prpria misso, o elemento caracterizador, central, necessrio. E por esse motivo que, sobretudo na indstria cultural, a estrutura do trabalho assalariado coincidiu com a ao poltica. No setor em que se produz comunicao com meios de comunicao, a tarefa e a funo so, conjuntamente, virtuossticas e polticas. Um grande escritor italiano, Luciano Bianciardi, em seu romance mais importante, La vita agra, conta misrias e esplendores da indstria cultural em Milo nos anos cinqenta. Uma pgina admirvel desse livro ilustra eficazmente aquilo que distingue a indstria cultural da indstria tradicional e da agricultura. O protagonista de La vita agra, chegando a Milo, de Grosseto, com a inteno de vingar a recente morte do trabalho em sua regio, termina empregando-se na nascente indstria cultural. Mas, aps um breve perodo, licenciado [suspenso]. Eis aqui o fragmento que hoje possui um indubitvel valor terico: ...E me licenciaram, pelo nico fato de arrastar os ps, de mover-me lentamente; fico de um lado olhando em volta, mesmo quando no seja indispensvel. Em nossa ocupao, pelo contrrio, preciso separar bem a terra, os ps, e golpear sonoramente, necessrio mover-se, sapatear, saltar, fazer

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  • poeira, uma nuvem de p e depois se esconder dentro dela. No como fazem o campons ou o operrio. O campons se move lento, porque, como seu trabalho segue as estaes, ele no pode semear em julho e colher em fevereiro. O operrio se move rapidamente, mas est na cadeia, porque lhe contam em tempo de produo, e se no caminha nesse ritmo, est em apuros (...). Mas o fato que o campons pertence atividade primria, e o operrio secundria. Um produz do nada, o outro transforma uma coisa em outra. A medida de valorizao para o operrio e o campons fcil, quantitativa: quantas peas a fbrica retira do forno, quanto rende a propriedade rural. Em nossa tarefa diferente, no somos mensurveis quantitativamente. Como se mede a destreza de um sacerdote, de um publicitrio, de um RP? Eles no produzem do nada nem transformam. No so nem primrios nem secundrios. So aparentemente tercirios, e at podemos dizer, diretamente quaternrios. No so instrumentos de produo, e nem sequer correia de transmisso. So lubrificantes ao mximo, so vaselina pura. Como se pode valorar a um sacerdote, a um publicitrio, a um RP? Como se calcula a quantidade de f, de desejo de compra, de simpatia, que aqueles lograram obter? No, no temos outro mtodo que no seja a capacidade de cada um de se manter flutuando, de emergir por si mesmo, em suma, de chegar a bispo. Em outras palavras, aquele que escolha uma profisso terciria ou quaternria, necessita de qualidades e aptides de tipo poltico. A poltica, como todos sabemos, deixou faz tempo de ser a cincia do bom governo, tornando-se, em seu lugar, a arte da conquista e da conservao do poder. Desse modo, a bondade de um homem poltico no se mede segundo o bem que faa aos demais, mas pela rapidez com que alcance o cume e o tempo que possa manter-se ali. (...) Do mesmo modo, nas profisses tercirias e quaternrias, no existindo nenhuma produo visvel de bens que sirvam de medida, o critrio ser o mesmo (Bianciardi, 1962: 129-32). Em muitos sentidos a anlise de Bianciardi est visivelmente desatualizada, j que nele as tarefas da indstria cultural aparecem como uma exceo marginal e extravagante. E mais ainda: , quando menos, superficial a reduo da poltica a simples e pura transgresso. Contudo, no fragmento que lemos, brota ante os olhos uma formidvel intuio, que mescla e retoma, a seu modo, a tese de Arendt sobre a semelhana entre virtuosismo e poltica, e as anotaes de Marx acerca do trabalho que no tem por resultado uma obra independente. Bianciardi sublinha a crescente politicidade do trabalho na indstria cultural. Mas, e isto o importante, associa essa politicidade ao fato de que em tal indstria no se produzem obras separadas do prprio ato. Ali onde falta uma obra extrnseca , h ao poltica. Sejamos claros: na indstria cultural (como depois, hoje, na poca ps-fordista, na indstria em geral) no faltam alguns produtos acabados para a venda ao final do

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  • processo produtivo. O ponto crucial que, enquanto que a produo material de objetos demandada ao sistema de mquinas automatizadas, as prestaes do trabalho vivo assemelham-se cada vez mais s prestaes lingstico-virtuosisticas. de se perguntar que papel jogou a indstria cultural na superao do fordismo-taylorismo. Acredito que ela havia colocado oportunamente o paradigma da produo ps-fordista em seu conjunto. Creio, em conseqncia, que os procedimentos da indstria fizeram-se, a partir de em certo momento, exemplares e invasivos. Na indstria cultural, inclusive naquela arcaica examinada por Benjamin e Adorno, possvel encontrar o prenncio de um modo de produzir que logo, com o ps-fordismo, generalizar-se-, alcanando a categoria de cnon. Para entender melhor isso, retornemos momentaneamente crtica da indstria da comunicao por parte dos pensadores da Escola de Frankfurt. Em Dialtica do esclarecimento (Adorno e Horkheimer, 1947: 130-80), os autores sustentavam, de forma geral, que tambm as fbricas de alma (editoriais, cinema, rdio, televiso, etc.), conformavam-se segundo os critrios fordistas da serialidade e da parcelarizao. Nelas, parecia afirmar-se a cadeia de montagem, smbolo ilustre das fbricas de automveis. O capitalismo esta a tese mostra poder mecanizar e especializar inclusive a produo espiritual, tal como fez com a agricultura e a elaborao dos metais. Serialidade, insignificncia da tarefa nica, econometria das emoes e dos sentimentos: so os estribilhos permanentes. Essa aproximao crtica admitia, bem entendido, que no caso peculiar da indstria cultural, permaneceram alguns aspectos refratrios a uma assimilao completa organizao fordista do processo de trabalho. Na indstria cultural, por isso, era necessrio manter aberto um determinado espao para a informalidade, para o no programado, a fuga imprevista, a improvisao comunicativa e ideativa: no para favorecer a criatividade humana, mas, a fim de obter uma produtividade empresarial satisfatria. Mas para a Escola de Frankfurt, esses aspectos eram nada mais que resduos sem importncia, escria do passado, detritos. S importava a fordizao geral da indstria cultural. Agora, parece-me que observando tudo isso desde a perspectiva do nosso presente, no difcil reconhecer que aqueles pretendidos resduos (um certo espao concedido ao informal, ao imprevisto, ao fora do programa), eram na verdade, avanos do futuro. No se tratava de resduos, mas de pressgios antecipatrios. A informalidade do acionar comunicativo, a interao competitiva tpica de uma reunio, as bruscas variaes que podem animar um programa televisivo, em geral, tudo aquilo que est disfuncionalmente rgido e regulamentado at um certo limite, visto hoje, na poca ps-fordista, como um trao tpico da totalidade da produo social. E no s da atual indstria cultural, mas at da Fiat

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  • de Melfi. Se Bianciardi falava do trabalho, no qual regia um nexo entre atividade-sem-obra (virtuosa) e aptides polticas, como se fosse uma extravagncia marginal, hoje se trata da regra. A trama entre virtuosismo, poltica e trabalho, est hoje propagada por todas as partes. Resta perguntar-se, no mais alto grau, que funo especfica assume hoje a indstria das comunicaes, quando todos os setores industriais inspiram-se em seu modelo? Aquela que em seu tempo antecipou a virada ps-fordista, que funo cumpre agora que o ps-fordismo est plenamente estendido? Para responder, convm deter-se, por um momento, nos conceitos de espetculo e sociedade do espetculo. A linguagem em cena Creio que a noo de espetculo, no pouco equvoca de per si, constitui ainda um instrumento til para decifrar alguns aspectos da multido ps-fordista (que , se quisermos, uma multido de virtuosos, de trabalhadores que, para trabalhar, recorrem a qualidades genericamente polticas). O conceito de espetculo, cunhado durante os anos sessenta pelos situacionistas, um conceito propriamente terico, no estranho trama de argumentaes marxianas. Para Guy Debord (Debord, 1967), o espetculo a comunicao humana tornada mercadoria. Aquilo que se d no espetculo , precisamente, a faculdade humana de se comunicar, a linguagem verbal enquanto tal. Como se pode ver, no se trata de uma acusao rancorosa contra a sociedade de consumo (sempre um pouco desconfiada, porque se corre o risco, como sucede a Pasolini, de ter saudade da boa convivncia em meio ao baixo consumo e misria). A comunicao humana, enquanto espetculo, uma mercadoria entre as demais, desprovida de prerrogativas ou qualidades especiais. Mas, por outro lado, uma mercadoria que concerne, a partir de um certo ponto, a todos os setores industriais. Aqui est o problema. Por um lado, o espetculo o produto particular de uma indstria particular, a indstria chamada cultural, pelo indicado. Por outro lado, no ps-fordismo, a comunicao humana tambm um ingrediente essencial da cooperao produtiva em geral; portanto, a rainha das foras produtivas, algo que ultrapassa o prprio mbito setorial, amparando, bem mais, a indstria em seu conjunto, poiesis em sua totalidade... No espetculo so exibidas, na forma separada e fetichizada, as foras produtivas mais relevantes da sociedade, aquelas foras produtivas que devem alcanar qualquer processo laboral contemporneo: competncia lingstica, saber, imaginao, etc. O espetculo possui, portanto, uma dupla natureza: produto especfico de uma indstria particular, mas tambm, ao mesmo tempo, quintessncia do modo de produo em seu conjunto. Debord escreve que o espetculo a exposio geral da

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  • racionalidade do sistema (ibd. 28). Do espetculo, por assim dizer, as prprias foras produtivas da sociedade enquanto coincidem, em medida crescente, com a competncia lingistico-comunicativa e com o general intellect. A dupla natureza do espetculo, trs mente, por certo, a dupla natureza do dinheiro. Como sabido, o dinheiro uma mercadoria entre as demais, fabricada na ceca [Casa da moeda ou Banco Central, para ns; N. do T] do Estado, em Roma, dotada de um corpo metlico ou de papel. Mas tambm tem uma segunda natureza: o equivalente, a unidade de medida de todas as demais mercadorias. Particular e universal ao mesmo tempo, o dinheiro; particular e universal ao mesmo tempo, o espetculo. A comparao, sem dvida atrativa, , no entanto, errnea. Diferentemente do dinheiro, que mede o resultado de um processo produtivo concludo, o espetculo concerne bem mais ao processo produtivo em si, em si mesmo, em sua potencialidade. O espetculo, segundo Debord, mostra o que homens e mulheres podem fazer. Enquanto que o dinheiro reflete em si o valor das mercadorias, portanto, aquilo que a sociedade j fez, o espetculo exibe, de forma separada, aquilo que o conjunto da sociedade pode ser ou fazer. Se o dinheiro a abstrao real (para usar uma clssica expresso marxiana) que se refere s obras concludas, ao passado do trabalho, o espetculo, ao contrrio, segundo Debord, a abstrao real que representa ao trabalhar mesmo, ao presente do trabalho. Se o dinheiro sinaliza para as trocas, o espetculo comunicao humana tornada mercadoria sinaliza a cooperao produtiva. Deve-se concluir, portanto, que o espetculo, a capacidade comunicativa humana tornada mercadoria, possui uma dupla natureza, mas distinta daquela do dinheiro. Qual? Minha hiptese que a indstria da comunicao (ou ainda melhor, do espetculo, ou tambm, da indstria cultural) uma indstria dentro das outras, com suas tcnicas especficas, seus procedimentos particulares, suas peculiares utilidades, etc., mas , que por outra parte, leva tambm a cabo o papel de indstria dos meios de produo. Tradicionalmente a indstria dos meios de produo a indstria que produz mquinas e demais instrumentos para serem empregados, depois, nos mais diversos setores produtivos. No entanto, em uma situao na qual os instrumentos de produo no se reduzem a mquinas, mas consistem em competncia lingstico-cognitiva indissocivel do trabalho vivo, lcito pensar que uma parte notvel dos denominados meios de produo consista em tcnicas e procedimentos comunicativos. Pois bem, onde so forjadas essas tcnicas e esses procedimentos, seno na indstria cultural? A indstria cultural produz (inova, experimenta) os procedimentos comunicativos que so depois destinados a fazer a vez de meios de produo at nos setores mais tradicionais da economia contempornea. Eis a o papel da indstria da

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  • comunicao, uma vez que o ps-fordismo afirmou-se plenamente: indstria dos meios de comunicao. Virtuosismo do trabalho O virtuosismo, com sua intrnseca politicidade, caracteriza no s indstria cultural, mas ao conjunto da produo social contempornea. Poder-se-ia dizer que na organizao do trabalho ps-fordista, a atividade sem obra, caso especial e problemtico (recordemos as dvidas de Marx a respeito), faz-se o prottipo geral do trabalho assalariado. Repito um ponto j dito: isso no significa, naturalmente, que no se produzam mais produtos mquino-faturados, mas, que para uma parte crescente das tarefas do trabalho, o cumprimento das aes interno ao mesma (no consiste em dar lugar a um semitrabalho independente). Uma situao desse tipo esboada pelo prprio Marx, nos Grundrisse, quando escreve que com a grande indstria automatizada e a aplicao intensiva e sistemtica das cincias da natureza ao processo produtivo, a atividade do trabalho coloca-se junto ao processo de produo imediato como o agente principal (Marx, 1939-1941: II, 401). Este se colocar junto ao processo de produo imediato significa, diz agora Marx, que o trabalho coincide sempre mais com uma atividade de vigilncia e de coordenao. Dito de outro modo: a tarefa do trabalhador ou do empregado j no consiste na obteno de um nico fim determinado, seno, em variar e intensificar a cooperao social. Permitam-me agregar algo. O conceito de cooperao social, que em Marx to complexo e delicado, pode ser pensado de dois modos distintos. , antes de tudo, uma acepo objetiva: cada indivduo faz coisas diversas, especficas, que so recolhidas pelo engenheiro ou o dono da fbrica: a cooperao, nesse caso, transcende a atividade do indivduo, no relevan