a mulher sem pecado - nelson rodrigues

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Page 1: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues
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DADOS DECOPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizadapela equipe Le Livros e seusdiversos parceiros, com oobjetivo de oferecer conteúdopara uso parcial em pesquisas eestudos acadêmicos, bem como osimples teste da qualidade daobra, com o fim exclusivo de

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compra futura.

É expressamente proibida etotalmente repudiável a venda,aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceirosdisponibilizam conteúdo dedominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmentegratuita, por acreditar que oconhecimento e a educaçãodevem ser acessíveis e livres atoda e qualquer pessoa. Você

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pode encontrar mais obras emnosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceirosapresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unidona busca do conhecimento, e

não mais lutando por dinheiro epoder, então nossa sociedade

poderá enfim evoluir a um novonível."

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NelsonRodrigues

A MULHERSEM PECADO

Drama em três

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Atos

(1941)

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PERSONAGENS

OLEGÁRIO (paralítico emarido de Lídia) INÉZIA(criada)

D. ANINHA (doida pacífica,mãe de Olegário) UMBERTO(chofer)

VOZ INTERIOR (Olegário)LÍDIA (esposa de Olegário)JOEL (empregado de Olegário)MAURÍCIO (irmão de criação deLídia) D. MÁRCIA (ex-lavadeira

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e mãe de Lídia) MENINA (Lídiaaos dez anos) (O autor, em 45,excluiu a menina quando darepresentação dirigida porTurkow. Conforme aconveniência, a menina poderáser suprimida, já que o autorassim o fez na segunda versão,levada em cena em 1945.)MULHER (primeira esposa deOlegário, já falecida) (Como amenina, poderá ser suprimida, jáque o autor assim o fez nasegunda versão.)

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PRIMEIRO ATO

(Cenário com um fundo decortinas cinzentas. Uma escada.Mobiliário escasso e sóbrio. ODr. Olegário - um paralíticorecente e grisalho - está na suacadeira de rodas. Impulsiona acadeira de um extremo a outrodo palco, e vice-versa. Excitaçãocontínua. Num canto da cena, D.Aninha, de preto, sentada numapoltrona, está perpetuamente

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enrolando um paninho. D.Aninha, mãe do Dr. Olegário, éuma doida pacífica. Luz empenumbra. Sentada num degrauda escada, está uma menina dedez anos, com um vestido curto,bem acima do joelho, e semprecom as mãos cruzadas sobre osexo. Luz vertical sobre acriança. Esta é uma figura quesó existe na imaginação doentiado paralítico. No decorrer dostrês atos, ela aparece nosgrandes momentos de crise.)

(A menina atravessa o palcoe sai de cena.)

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OLEGÁRIO - Inézia! Inézia!INÉZIA (a criada, entrando)

- Pronto, doutor.OLEGÁRIO (parando a

cadeira no meio do palco) -Então? O que há?

INÉZIA - Nada, doutor, nadade novo. Quer dizer...

OLEGÁRIO (impaciente) -Quer dizer o quê? Alguémtelefonou para minha mulher?

INÉZIA - Telefonaram,doutor. A manicura, perguntandose podia vir hoje. D. Lídia disseque hoje não. Marcou paraamanhã.

OLEGÁRIO (atento) - Quem

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mais?INÉZIA - A modista. D. Lídia

foi lá. Ah, também telefonou umavoz de mulher que eu nãoconheço.

OLEGÁRIO (com o maiorinteresse) - Hum! Voz de mulher,mesmo? (aproxima-se) Temcerteza que não era voz de homemdisfarçada?

INÉZIA (hesitante) - Não.Pelo menos, não parecia. Não,era voz de mulher, sim.

OLEGÁRIO - Você perguntouquem queria falar com ela?

(lnézia desconcerta-se.)OLEGÁRIO (ríspido) - Eu não

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lhe disse para perguntar sempre?INÉZIA (contrita) - Disse

sim, doutor, mas...OLEGÁRIO (interrompendo)

- Mas... quê? Ela recebeu algumacarta?

INÉZIA (tirando do avental)- Só um telegrama.

OLEGÁRIO (curioso) - Umtelegrama. Deixe ver.

INÉZIA (entregando otelegrama) - Se D. Lídiasouber!...

OLEGÁRIO (abre otelegrama e o lê com certaansiedade. Ainda olhos fitos nopapel) - Souber, como? Só se

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você disser. Você ou Umberto.Mas não caia nessa asneira!

INÉZIA (com precipitação) -Deus me livre! Eu não! (noutrotom) Mas, às vezes, fico assim...

OLEGÁRIO - Fica assim...(noutro tom) Não pago mais avocê para fazer essas coisas?Pode ir. Não, espere... Espere umpouco.

(E abstrai-se, relendo otelegrama.) INÉZIA - Está nahora da comida de D. Aninha.

OLEGÁRIO (distraído com otelegrama, custa a falar) Está?(noutro tom) Então dê e... ChameUmberto.

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INÉZIA - Sim, senhor.(Inézia sai.) OLEGÁRIO

(pensativo, relendo o telegrama)- Engraçado...

UMBERTO (entra. É moço,meio sinistro, com uniforme dechofer) - Me chamou, doutor? Eujá vinha pra cá...

OLEGÁRIO (embolsando otelegrama) - O que é que há? Asenhora saiu, aonde foi?

UMBERTO (mascandoqualquer coisa) - Saiu depois doalmoço. Mais ou menos umasduas horas. Voltou às cinco horas.

OLEGÁRIO (irritado) - Quediabo é isso que você está

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mastigando? Que mania!UMBERTO (parando de

mastigar) - Nada. Um palito defósforo.

OLEGÁRIO - E você viu oquê? (com desconfiança) Eu achoque você me esconde as coisas!Eu pago para obter informações!(noutro tom) Ela foi aonde?

UMBERTO - À modista.OLEGÁRIO - À modista.

Qual?UMBERTO - Aquela

francesa. Aquela!OLEGÁRIO - Sim, sim, sei.

Continue.UMBERTO - Demorou lá...

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OLEGÁRIO (em movimento)- Quanto tempo?

UMBERTO - Quase umahora.

OLEGÁRIO (parando acadeira. De costas paraUmberto) - Uma hora?

UMBERTO - Sim, senhor.OLEGÁRIO - E depois?UMBERTO - Depois foi à

Confeitaria Colombo. Ládemorou mais ou menos uma horae meia.

OLEGÁRIO (surpreso) - Umahora e meia na Colombo! (noutrotom) Sentou-se sozinha?

UMBERTO - Não. Encontrou

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lá três moças. Duas vêm aqui: D.Bárbara e D. Sandra. A outra nãoconheço.

(Entra Inézia.) INÉZIA - Voudar comida à D. Aninha. Naúltima vez ela não quis.

OLEGÁRIO - O quê? Nãoquis? (impaciente) Ah, bom,bom! Insista, que diabo!

(Inézia vai dar comida à D.Aninha. Olegário acompanhacom os olhos a menina quepassa. Umberto olha,displicente, um detalhe qualquerdo mobiliário.) OLEGÁRIO -Então, como foi? Sentou-se comD. Bárbara e D. Sandra.

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UMBERTO (displicente) - Ésó?

OLEGÁRIO (ríspido) - Quesó, o quê? O que é que houve naColombo? Quero saber tudo!

UMBERTO - Eu fiz como osenhor disse: fiquei vendo se elaolhava para fora.

OLEGÁRIO (com atençãoconcentrada) - E então?

UMBERTO (com certaintenção) - Bem, de vez emquando ela olhava para fora.

(A menina sobe a escada edesaparece. Maquinalmente,Olegário impulsiona um pouco acadeira de rodas. Para, ficando

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de costas para Umberto.)OLEGÁRIO - D. Lídia estavaolhando para alguém, paraalguém... “particularmente”?Olhar sem querer, por acaso, elapodia olhar. Mas eu quero saber é- se olhava para alguém cominsistência.

UMBERTO (depois de umsilêncio, em voz baixa) - Nacalçada estava aquele sujeitocoxo.

OLEGÁRIO (virando acadeira para Umberto comespanto) - Que sujeito coxo éesse?

UMBERTO - É um que

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sempre está na calçada quando D.Lídia vai à Colombo.

OLEGÁRIO (aindaespantado) - E é coxo? Vocênunca me falou dele! Mas queespécie de sujeito?

UMBERTO - Andamancando. Tem uma perna maiscurta do que a outra.

OLEGÁRIO (apreensivo) -D. Lídia olha para ele?

UMBERTO (sintético) - Não.OLEGÁRIO (noutro tom,

com certo alívio) - Ele olha paraD. Lídia?

UMBERTO - Não.OLEGÁRIO (espantado) -

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Então o que é que tem de notávelesse camarada?

UMBERTO (confidencial) -Eu acho que ele não regula bem.Fica andando de um lado paraoutro, o tempo todo, e não saidisso. Mancando.

OLEGÁRIO (ríspido) - Que éque eu tenho com isso? Tenhoalguma coisa?

UMBERTO - Falei nele porfalar. Me lembrei dele.

(Olegário olha Umbertodemoradamente. Pausaincômoda. Umberto desvia oolhar.) OLEGÁRIO (incisivo) -Você quer saber de uma coisa?

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Não, nada. (noutro tom) Querdizer que D. Lídia não olhou paraninguém - particularmente?

UMBERTO - Não, não olhoupara ninguém - particularmente.Quer dizer...

OLEGÁRIO (curioso) - Querdizer o quê? Continue! Podefalar!

UMBERTO (com intenção) -Ela estava olhando de vez emquando...

OLEGÁRIO - Para quem?Diga!

UMBERTO (comdescaramento) - Para mim.

OLEGÁRIO (espantado) -

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Para você? (noutro tom) Paravocê, hem?!

UMBERTO (cínico) - Paramim.

OLEGÁRIO (olhando paraUmberto) - Para você...E quandosaiu... (interrompe-se) Masespere um pouco... (em tomespecial) Você disse que D. Lídiaolhou para você?

INÉZIA (nervosa, voltandocom o prato) - Doutor, outra vezela não quer comer!

OLEGÁRIO (com irritação) -Não quer!... Você precisa terpaciência - que diabo!

INÉZIA (nervosa) - Eu tenho,

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doutor, eu tenho! Mas se ela nãoquer?

OLEGÁRIO (saturado) -Então espere um pouco e depoisveja se ela come!

INÉZIA (com resignação) -Vou esperar, doutor. (numlamento) Mais do que eu faço!...

(Inézia volta para junto deD. Aninha.) OLEGÁRIO(impaciente) -. Até perdi o fio dahistória! (lembrando-se) Então D.Lídia olhou para o senhor? Vocêestá querendo insinuar algumacoisa, seu...

UMBERTO (escandalizado) -Nada, doutor! Que o quê!

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OLEGÁRIO - Tome cuidado!Você não me conhece!...

UMBERTO (ressentido) - Eusei-me colocar no meu lugar,doutor. Conheço a minha posição.

OLEGÁRIO - Venha cá. Olhebem para mim!

(Pausa. Os dois se olham.)UMBERTO (com desplante) -Estou olhando.

OLEGÁRIO (encarandoUmberto) - Ainda agora você mefalou, sem quê, nem pra quê, nohomem coxo. Você está-mequerendo fazer de idiota?

UMBERTO (firma o olhar) -Não. Me lembrei porque...

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(baixando a voz) As pessoascoxas me impressionam muito!

OLEGÁRIO (irritado) - Vocêpara ou não para de mascar essaporcaria? Tire isso da boca!

UMBERTO (parando eolhando para o teto) - Eu estavadistraído!

OLEGÁRIO (com suspeita) -Estou começando a desconfiarque você não é chofer. E quandocismo uma coisa, dificilmenteerro!

UMBERTO (entre misteriosoe sardônico) - O senhor achaentão que eu não sou... chofer?(noutro tom) Quer ver a minha

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carteira profissional?OLEGÁRIO (insistente) -

Você não tem cara de chofer!...(Aproxima-se lnézia,

nervosa, com o prato.) INÉZIA -Não adianta, doutor! Ela não queroutra vez!

OLEGÁRIO (com irritação) -Se ela não quer, o que é que euvou fazer? (saturado) Nãoprecisa tentar mais. Depois eufalo com minha mulher.

(Inézia sai.) OLEGÁRIO(irritado) - Essa “zinha” nãoserve nem para dar comida àminha mãe! (noutrotom,voltando-se para Umberto)

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Olhe aqui, Umberto: se vocêarranjar uma coisa positiva, umacarta, por exemplo - eu dou avocê cinco mil cruzeiros. Semdiscutir.

UMBERTO - Fiquedescansado, Dr. Olegário. Nãoera preciso dinheiro... Mesmosem dinheiro...

OLEGÁRIO (impaciente) -Eu sei, eu sei... Mas dou um contode réis. Está ouvindo?

UMBERTO - Está bem, Dr.Olegário. É só?

OLEGÁRIO - É só. Pode ir.Não, espere. Na Colombo, minhamulher não encontrou nenhum

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conhecido - conhecido homem?UMBERTO - Não. Não vi

cumprimentar nenhum homem.OLEGÁRIO - Tem reparado

se olham muito para minha mulherna rua?

UMBERTO - (hesitante) - Osenhor sabe como é.

OLEGÁRIO (noutro tom) -Então o tal coxo é velho?

UMBERTO - É, doutor.OLEGÁRIO - Está bem, pode

ir.(Umberto sai.) OLEGÁRIO

(sozinho, impulsionando acadeira) - Tem descaramentoesse malandro...

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(Mudança de luz.) VOZINTERIOR (microfone) - E eufalando sozinho! Será isso umsintoma de loucura?

OLEGÁRIO - Homem manco.VOZ INTERIOR (microfone)

- Não pode ser! Um louco nãopergunta a si mesmo: Serei umlouco?

OLEGÁRIO - Mas será queesse imbecil pensa que Lídia queralguma coisa com ele?

VOZ INTERIOR (microfone)- Muitas mulheres achariambonito amar um chofer.

OLEGÁRIO - Ah!VOZ INTERIOR (microfone)

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- Eu devo estar doente daimaginação, para admitir isso.

VOZ INTERIOR (microfone)- Lá vem ela outra vez. Não melarga.

(Refere-se à menina, quevolta debaixo do foco luminoso.Inézia desce a escada. Volta aluz normal.) OLEGÁRIO -Inézia! (Inézia se aproxima) Nãoapareceu nenhum homem meprocurando?

INÉZIA - Não, doutor.OLEGÁRIO - Estou

esperando um camarada. Quandoele chegar, mande entrar. E vejase arranja alguma informação útil.

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Você e Umberto são doisfracassos! Pago a vocês e quandoacaba não sei de nada, continuona mesma. Vocês precisam dar umjeito nisso.

INÉZIA (justificando-se) -Mas é que não tem havido nada,doutor! Se houvesse, a gentediria!

OLEGÁRIO (sardônico) -“Não tem havido nada!” Sei lá senão tem havido nada? (saturado)Está bem, está bem!

(Inézia sai. Entra Lídia.Lindo tipo de mulher. Muitojovem e vestida com gosto.)Lídia - D. Aninha não quis a

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comida, meu filho? Inézia medisse!

OLEGÁRIO (com mauhumor) - É. Não quis. Não quisagora, nem antes. Você precisadar um jeito nisso.

LÍDIA (admirada) - Eu? Masque jeito você quer que eu dê?

OLEGÁRIO (de mau humor)- Que jeito, ora!... Você podiainteressar-se mais - que diabo!Mas não. Larga tudo na mão dacriada.

LÍDIA (magoada) - “Largatudo na mão da criada”, não! Eunão posso fazer mais do que faço.

OLEGÁRIO (irônico) - Ah,

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não pode!... Está bem. (noutrotom) O que eu acho é que você,enfim, devia-se lembrar que ela éminha mãe!

LÍDIA (com veemência) -Você pensa então que se ela nãofosse sua mãe eu estaria sempreem cima? (noutro tom,suplicante) Eu já disse a você,não disse, que às vezes nãoposso, fico nervosa? (comangústia) Ah, Olegário! Trataruma pessoa que não compreende,que passa todo tempo enrolandoum paninho... (exasperação)Aquele pano que ela enrola,aquele pano!..

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OLEGÁRIO (sardônico) -Acho engraçado você. “Ficonervosa.” (outro tom) Está bem.Um dia você vai ver minha mãemorrer, aí, de inanição! Nãocome!

LÍDIA (com angústia) - Pelomenos, Olegário, pelo menos digao que quer que eu faça. Sua mãenão quer comer: o que eu devofazer? Diga!

OLEGÁRIO (depois de umapausa) - Está bem. Vamos esperarentão. Daqui a pouco você tentaoutra vez.

LÍDIA - Bem, meu filho. Voumudar de roupa.

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OLEGÁRIO - Acho graçadessa mania que você tem de mechamar “meu filho”!

LÍDIA (com um suspiro) - Háalgum mal nisso?!

OLEGÁRIO - Mal, mal, nãohá. (outro tom) Mas eu não gosto.Isso devia bastar!

LÍDIA (contendo-se) - Vocêagora se aborrece com asmínimas coisas! Ah, meu Deus!

OLEGÁRIO (impaciente) -Não é se aborrecer! (sardônico)Interessante isso. Você não quister filhos, e quando acaba cismade ser maternal comigo!

LÍDIA (nervosa) - Parece

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mentira. Tudo porque eu disse“meu filho”. Está bem. Nuncamais chamarei você de meufilho...

OLEGÁRIO - Isso é um vícioem você. Outra coisa. ..

LÍDIA. - O quê?OLEGÁRIO - Você deu para

me chamar “meu filho” depoisque eu fiquei assim. Foi, sim!

LÍDIA - Que bobagem,Olegário!

OLEGÁRIO - Bobagem, eusei!

(Silêncio. Os dois se olham.Olegário impulsiona a cadeirapara mais perto de Lídia.) LÍDIA

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- Ah, uma coisa, Olegário. Porque é que você não chama outromédico? Mamãe disse que tem umtão bom!...

OLEGÁRIO - Não interessa.Para que outro médico? Já nãotenho um?

LÍDIA - Mas esse que vocêtem - esse seu amigo - é tãoesquisito! Dizem até que bebe!...

OLEGÁRIO (impaciente) -“Bebe!” E o que é que tem isso?Pois olhe. Ele é melhor do quemuitos que andam por aí. E, alémdisso, minha filha, basta que eutenha confiança nele. Eu é que souo doente, não é?

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LÍDIA - Está certo, Olegário,está certo. Mas você podiachamar outro - só pra ver! Nãocusta!

OLEGÁRIO (comexasperação) - É. Mas nãoquero! Basta um e eu estousatisfeito com o meu!

LÍDIA (resignada) - Estábem.

OLEGÁRIO (sombrio) - E,além disso, não adianta. Eu seique nunca ficarei bom. O médicodisse.

LÍDIA - Que não fica bom oquê! Você também é, Olegário!...

OLEGÁRIO (recordando-se)

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- Antes que eu me esqueça: vocêtem um primo Rodolfo, não tem?

LÍDIA - Tenho sim. Ele atéassistiu ao nosso casamento.

OLEGÁRIO - “Assistiu aonosso casamento”. (entregando otelegrama) Ele mandou essetelegrama.

LÍDIA (queixosa) - Vocêsempre controlando as minhascoisas! Eu não me incomodo. Sóacho que você não tem confiança- nenhuma mesmo - em mim.

OLEGÁRIO (irônico) - Seidisso. Mas eu quero que você meexplique: por que cargas d’águaele tem que dar satisfações a

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você?LÍDIA (surpresa) -

Satisfações a mim?!OLEGÁRIO (incisivo) -

Satisfações a você, sim! “Partoamanhã.” O que é que você temcom isso?

LÍDIA (nervosa) - Ora,Olegário, ora! (outro tom) Sou aúnica parente que ele tem no Rio!Eu, mamãe, Maurício e você.

OLEGÁRIO (desabrido) -Eu, não! Tenha paciência! Nãosou parente dos primos de minhamulher.

LÍDIA - Está bem, Olegário,está bem.

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OLEGÁRIO (com irritação) -E no mínimo esse cavalheiro vai-se instalar aqui!

LÍDIA - Já começou vocêoutra vez!

OLEGÁRIO (incisivo) -Outra vez, sim! (patético) Queposso fazer senão começarsempre?

LÍDIA - Mas que foi que eufiz, meu Deus? Aponte uma coisaqualquer, ao menos isso.(enérgica) Você não tem nada,nada, contra mim. Você não vêque isso até fica feio para você -feio?

OLEGÁRIO (irritado) -

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“Feio”! O que é que é “feio”?Como é imbecil a gente dizer“fica feio”!

LÍDIA (desafiante) - Entãoacuse. Pronto! Acuse! Acuse, masnão me faça sofrer à toa! Vocênão me acusa porque não pode.Minha vida não tem mistérios.Todo mundo sabe o que eu faço.

OLEGÁRIO - Você medesafia, hem?

LÍDIA (enérgica) - Desafio,sim!

OLEGÁRIO (sardônico) - Medesafia! Diz “minha vida não temmistérios”! E eu ando atrás devocê o tempo todo? Sei lá pra

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quem você olha na rua? Estoudentro de você para saber o quevocê sente, o que você sonha?

LÍDIA (suspirando,dolorosa) - Ah, Olegário!

OLEGÁRIO - Você olha paramim com um olhar de mártir! Poisbem. Agora mesmo, neste minuto,você pode estar-se lembrando deum amigo, de um conhecido oudesconhecido. Até de umtranseunte. Pode estar desejandouma aventura na vida. A vida damulher honesta é tão vazia! E eusei disso! Sei!

LÍDIA (nervosa e revoltada)- Você está louco, Olegário,

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doido! Então, até isso!OLEGÁRIO (repetindo) -

“Minha vida não tem mistérios”!Que é então o seu passado, senãoum mistério?

LÍDIA (dolorosa) - Mas que éque tem meu passado, meu Deus?

OLEGÁRIO (sombrio) - Eusei lá o que você andou fazendoantes de mim?

LÍDIA - Antes não importa!Só vale o que eu fiz depois devocê!

OLEGÁRIO (veemente) -Está enganada! Afinal de contas,eu me casei também com opassado de minha mulher.

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LÍDIA (irônica) - Ah, casou-se? Pois olhe, meu filho....

OLEGÁRIO (interrompendo)- Parou?

LÍDIA - Você fala no meupassado. Alguma vez já lheperguntei pelo seu? Já lhe falei nasua primeira mulher!?

OLEGÁRIO - E nem fale!Nunca, ouviu? Eu não quero, nãoadmito!

LÍDIA - Já sei, Olegário,nunca mais falarei.

OLEGÁRIO - Agora vou-lhefazer uma pergunta à queima-roupa, Você me responde - terácoragem?

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LÍDIA - Conforme. Sei lá seessa pergunta... Enfim...

OLEGÁRIO (enigmático) -Você...

LÍDIA (desafiante) - Ande.Está com medo?

OLEGÁRIO - O que querodizer é simples até demais. Euadmito que você não fez nada.Que não pecou... ainda.

LÍDIA (irônica) - Ainda?Que mais?

OLEGÁRIO (noutro tom) -Admitamos que não houve nada -até agora. Mas... e a suaimaginação?

LÍDIA (espantada) - O que é

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que você quer dizer com isso?OLEGÁRIO - Quero dizer o

seguinte: seus atos podem serpuríssimos. Mas seu pensamentonem sempre - seu pensamento, seusonho. Quem é que vai moralizaro pensamento? O sonho? Você,talvez!

LÍDIA (irônica) - Bonito,bonito. Continue.

OLEGÁRIO - Está bem, voucontinuar. Quando um homem vêuma mulher no meio da rua, beijaessa mulher em pensamento, põenua, viola. Isso tudo num segundo,numa fração de segundo - sei lá!Mas seja como for - a imaginação

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do homem faz o diabo!LÍDIA (revoltada) - Que é

que tem!...OLEGÁRIO - Se um homem é

assim - qualquer homem - por queserá diferente a mulher? Se euposso vibrar com uma belamulher, por que não vibrará vocêcom um belo homem? Mesmo queesse homem seja um transeunte?

LÍDIA - Quer dizer que eudevo... “vibrar”?!

OLEGÁRIO (impaciente) -Exclamações não adiantam. Nãoprovam nada. Posso continuar?

LÍDIA (contendo-se) - Ah,meu Deus, pode.

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OLEGÁRIO - Esses rapazesde praia que as mulheres veem narua. Você vai-me convencer quenunca viu um que aimpressionasse? Vai? Um rapazmoreno, forte, de costas grandes,assim. (faz respectivamente ogesto) Você nunca beijou empensamento um homem desses?Hem? Beijou, claro! Não temninguém - ninguém - tomandoconta de sua imaginação!

LÍDIA - Será possível? (comironia) Estou gostando de vervocê, tão descritivo, tãominucioso... Um rapaz forte,moreno... (explodindo) Você não

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vê que isso é infame? Nãodesconfia? Indecente!

OLEGÁRIO (sardônico) -Infame. Isso é um adjetivo, umreles adjetivo. Infame, é boa...

LÍDIA - Parece incrível!OLEGÁRIO (encarando-a

com raiva) - Eu queria encostarvocê na parede - ouviu?

LÍDIA (contendo-se) - Estououvindo...

OLEGÁRIO (continuando) -Mas de maneira que você nãopudesse fugir. Depois, então, eufaria uma série de perguntas, umaatrás da outra.

LÍDIA (amarga) - Faço ideia

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que perguntas!OLEGÁRIO (continuando) -

Perguntas concretas, exigindorespostas também concretas. Porexemplo, eu perguntaria. ... “Vocêsempre me foi fiel empensamento?” Você meresponderia...

LÍDIA (dolorosa) -Paciência, meu Deus,paciência!...

OLEGÁRIO (cruel) -Responderia: “Não. Já fui infielem pensamento.” Então euperguntaria: “Mas com quem?” Evocê: “Com um rapaz”, ouentão... Ah, é mesmo! “Com

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Maurício”. Está aí: Maurício!...LÍDIA - Você não achou

exemplo melhor? Logo meuirmão!

OLEGÁRIO - Irmão o quê?Irmão de criação não é nada, nãoé coisa nenhuma! E eu aindaponho ele aqui dentro, mora aqui,passa o dia todo em casa, não sai!Qualquer dia acabo com isso,você vai ver!

LÍDIA (sardônica) - Ummarido dizendo essas coisas!Sugerindo! Metendo coisas nacabeça da mulher. Eu acabo, nemsei!

(Inézia entra. Sobe a escada.

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Olegário acompanha-a com avista, demonstrando umairritação doentia.) OLEGÁRIO -Mas essa mulher não para dedescer e subir essa escada! Serápossível?

LÍDIA - Ora, Olegário! Elaestá fazendo o serviço dela!

OLEGÁRIO - Está bem.(outro tom) Você é mulher de umparalítico.

LÍDIA (numa explosão) -Você não devia falar tanto na suaparalisia! Isso é quase - quaseuma chantagem! Você me lança norosto, todos os dias, essaparalisia! E eu não posso reagir!

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OLEGÁRIO (admirado) -Como não pode reagir? Reaja,ora essa!

LÍDIA (exaltada) - Nãoposso! Seria o cúmulo que euquisesse ficar em igualdade decondições com você - eu sã, vocêdoente. Não me faça dizer coisasque eu não quero! Não meobrigue a ser cruel! Pelo amorque você tem...

(Umberto entra. Vê Dr.Olegário com D. Lídia e para,indeciso. Desce a menina, sob aluz vertical. Olegário olha-a.Depois, olha para Umberto.)OLEGÁRIO - Que há, Umberto?

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UMBERTO - Coisa semimportância. Eu volto depois.

OLEGÁRIO - Não, espere.(para Lídia) Depois eu falo comvocê.

LÍDIA - Então eu vou darcomida à D. Aninha.

OLEGÁRIO (impaciente) -Já, não. Depois, depois.

(Lídia sobe a escada)OLEGÁRIO (para Umberto) -Que é que houve, Umberto?

UMBERTO (aproximando-secheio de mistério) - O homemestá aí.

OLEGÁRIO (admirado) - Ohomem quem?

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UMBERTO - O coxo daColombo. O tal que manca.

OLEGÁRIO (espantado) -Mas está aqui, onde?

UMBERTO - Quer dizer, estána esquina. Está lá há uns dezminutos.

OLEGÁRIO - Mas você nãodisse que ele não olha para D.Lídia, nem D. Lídia para ele?

UMBERTO - Disse.OLEGÁRIO - Então o que é

que eu tenho com ele? Queimporta que ele esteja na esquinaou deixe de estar? Nós temosalguma coisa com isso?

UMBERTO - Não. Mas...

Page 60: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

OLEGÁRIO - Mas o quê?Você tem cada uma!

UMBERTO - Achei que deviadizer ao senhor! Um manco que agente encontra sempre, naColombo, aparecendo agora,aqui, na esquina!

OLEGÁRIO (pensativo) - Eleé velho? Muito velho?

UMBERTO - Não. É moço.OLEGÁRIO (espantado) -

Moço o quê! Você não me disseque era velho?

UMBERTO - Eu disse? Entãome enganei! É moço! Só temaquele defeito na perna. No mais,é muito bem parecido.

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OLEGÁRIO (contendo airritação) - Está bom. Então fiquecontrolando esse camarada. Vejase ele se aproxima aqui de casa.Outra coisa. Talvez você pudessedar um jeito de falar com ele -quem sabe?

UMBERTO - É. Talvez. Vouver, doutor. Falo com ele, sim.

INÉZIA (de passagem) -Estão batendo aí.

(Sai Inézia.) OLEGÁRIO(aproxima a cadeira deUmberto) - Bem, Umberto. Fiquevendo esse camarada e depoisvenha-me contar o que houve.

UMBERTO - Está bem,

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doutor.OLEGÁRIO - Pode ir.(Umberto sai. Entram Inézia

e Joel. Joel, rapaz pobre; ternosebento; servilismo abjeto;mesuras. Inézia sai.)OLEGÁRIO (com certaimpaciência) - E então?

JOEL - Fiz o que o senhormandou. Falei com o Sampaio.

OLEGÁRIO (profundamenteinteressado) - E o que é que eledisse? Senta!

JOEL - Várias coisas, doutor.OLEGÁRIO - Conte tudo,

tudo, direitinho. Senão, já sabe.Deixo de me interessar por você.

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(advertindo) Você quer subir noescritório, não quer?

JOEL - Quero sim, doutor.OLEGÁRIO - E que é que o

Sampaio disse? (com rancor)Ordinário como é, esse sujeito!Uma alma de pântano! Ele seabriu?

JOEL - Se abriu! O Sampaiofalava de vez em quando.

OLEGÁRIO (severo) - Ecomo é que da outra vez vocêdisse que nunca tinha ouvido nadasobre a minha esposa noescritório?

JOEL (atrapalhado) - Fiqueisem jeito, doutor. Foi por isso

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que não contei logo. (pausa) OSampaio disse que sim.

OLEGÁRIO (ríspido) - Quesim, o quê? Fale claramente.

JOEL (ainda atrapalhado) -Ele disse que D. Lídia devia terum... amante.

OLEGÁRIO (desabrido) -Devia ter ou tem?

(Passos na escada. Lídiadesce.) LÍDIA - Boa noite!

JOEL - Boa noite!(Lídia sai.) OLEGÁRIO

(tendo acompanhado Lídia como olhar) - Olha, Joel, ou vocêdeixa de reticências ou... Bem.Quero saber o que ele disse. Pode

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repetir até os termos. Eu não meincomodo.

JOEL (mais resoluto) - Bom.Ele disse que ela tem. Foi o queele disse. Tem!

OLEGÁRIO (sombrio) -Disse que tem! E não disse quemera? Ele deve saber nomes,endereços, o diabo.

JOEL - Eu perguntei para verse ele me dizia quem.

OLEGÁRIO (sombrio) - Eentão?

JOEL - Não quis dizer. Fizforça, mas não adiantou. O senhorsabe que ele fez um poema edatilografou?

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OLEGÁRIO (semcompreender imediatamente) -Que história é essa?

JOEL - Uns versos mexendocom sua senhora. Bobagem,doutor!

OLEGÁRIO (exasperado,contendo-se) - Pode contar. Vácontando!

JOEL - Também falou...(Pausa.) OLEGÁRIO

(saturado) - Vá contando.JOEL - ... do Grajaú. O

Sampaio foi vizinho de suamulher, de sua senhora, noGrajaú.

OLEGÁRIO (impaciente) -

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Eu sei. E foi por isso que mandeivocê conversar com ele.

JOEL (um pouco relutante) -Ele me contou o apelido de suasenhora no bairro.

OLEGÁRIO (concentrando-se) - Apelido? E que apelido eraesse?

JOEL (depois de uma pausa,baixo) - V-8.

OLEGÁRIO (surpreso) - V-8,por quê? Que negócio é esse deV-8?

JOEL - Foi o que Sampaiodisse. Que todo mundo chamavaD. Lídia assim, no Grajaú.

OLEGÁRIO (abalado) - V-8?

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(pausa) Mas por que V-8, oraessa?

JOEL - Chamavam D. Lídiade V-8 porque - diz o Sampaio -namorava. Era muitonamoradeira.

OLEGÁRIO (como que emmonólogo) - Marido de V-8...(noutro tom) Naturalmente, todoo escritório sabe disso. Ou nãosabe?

JOEL (sem jeito) Sabe. É umpessoal incrível. Quando ela vaià caixa buscar dinheiro, ficamcomentando: “A V-8 veio aí.” Ecoisas parecidas. Comenta-se,também, que a sogra do senhor

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era lavadeira...(Umberto entra. Detém-se a

uma certa distância do Dr.Olegário.) OLEGÁRIO (comirritação) - O que é que vocêquer, Umberto?

UMBERTO (aproximando-se) - Aquele negócio.

OLEGÁRIO (semcompreender) - Que negócio?

UMBERTO - Do homemmanco. Ele foi embora.

OLEGÁRIO (lembrando-se) -E você falou com ele?

UMBERTO - Pois é. Nãopude. Quando voltei, depois defalar com o senhor, ele já tinha

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ido embora.OLEGÁRIO (encerrando o

assunto) - Então está bem. Podeir.

VOZ INTERIOR (microfone)- V-8. V-8.

(Umberto sai. Entra Lídia esobe a escada. Joel e Olegárioacompanham-na com o olhar.)OLEGÁRIO (sombrio, voltando-se para Joel) - Agora uma coisa,Joel. Eu quero avisar a você oseguinte: tudo o que dizem deminha mulher é uma infâmia.Minha mulher é honestíssima -está ouvindo?

JOEL - Estou. Eu sei, doutor.

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OLEGÁRIO (categórico) -Portanto, não se lembre de dizerque eu mandei você saber isso ouaquilo. Se você andarcomentando, não será negóciopara você, compreende?

JOEL - Eu sei, doutorOlegário.

OLEGÁRIO (aproximando-se) - O que é que você tinhapedido? Passar para o lugar doSampaio, não é?

JOEL (vacilante) - Eu estavaquerendo. Ou a caixa? O senhor équem sabe. Isso é com o senhor.

OLEGÁRIO (pensativo) - Vaipara o lugar do Sampaio.

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JOEL (animado) - Obrigado,muito obrigado!

OLEGÁRIO (ameaçador) -Esse negócio do poema não éinvenção sua para tirar o lugar dohomem mais depressa?

JOEL (atarantado) - Juro,doutor! Ele recitou pra mim.(levantando-se) Então, muitoobrigado, doutor Olegário.(noutro tom) Ah, outra coisa queo Sampaio disse que o senhor éum... predestinado.

OLEGÁRIO - Predestinado!Como?

JOEL - Quer dizer,predestinado porque a sua

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primeira mulher não lhe foi fiel. Eagora a segunda também não éfiel... Disse também que D.Lídia...

OLEGÁRIO (explodindo,agressivo) - E D. Lídia o quê?...(impulsiona a cadeira para juntode Joel, que recua alarmado)Lídia o quê?... (silêncio) Vocêchegou cheio de dedos - com mile uma reticências - e agora diz ascoisas espontaneamente! Quemmandou você dizer isso? Falar naminha primeira mulher?

JOEL (alarmado) - Mas oque é isso, doutor Olegário, que éisso?

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OLEGÁRIO (com asco) -Você é um canalhazinho. Fazer umpapel desses!

JOEL (justificando-se) Masfoi o senhor que mandou! Só fiz oque o senhor mandou.

OLEGÁRIO (gritando) - Nãofizesse! (olha para a escada ebaixa a voz) Você era obrigado afazer, era? (rancoroso) Bom,formidável, chamar - na minhacara - a minha mulher de V-8,hem?

JOEL (atarantado) - Eu sóestava repetindo o que os outros...

OLEGÁRIO (com voz surda)- Os outros!... (ameaçador) Eu

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devia te arrebentar a cara! (comdesprezo) Mas não farei isso.Você sairia daqui dizendo odiabo! Pode ir. Eu vou botar vocêno lugar do Sampaio. Mas suma!

JOEL - Boa noite, doutor!Boa noite!

(Joel sai, apressado. Inéziapassa e desaparece pela direita.Olegário acompanha-a com oolhar.) LÍDIA (descendo aescada) - O homem já saiu,Olegário? Vou buscar a comidade sua mãe. Tomara que ela comaagora.

OLEGÁRIO (com ar defadiga) - Come, sim. A questão é

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ter paciência.VOZ INTERIOR (microfone)

- Canalha! Canalha!(Lídia faz menção de sair.)

OLEGÁRIO - Lídia!(Lídia volta-se. Olegário

impulsiona a cadeira na direçãode Lídia.) OLEGÁRIO (parandojunto de Lídia) - Venha me fazerum pouco de companhia.

LÍDIA - Venho, sim. Vou sóbuscar a comida de D. Aninha.

OLEGÁRIO - Então ande.(faz manobra com a cadeira,para virá-la) (Lídia observa omovimento.) LÍDIA (com nervostrepidantes.) - Você sabe o que

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me deixa nervosa? É quando vocêvira a cadeira.

OLEGÁRIO (admirado) -Deixa nervosa, por quê?

LÍDIA (com certa angústia) -Não sei. Bobagem!

OLEGÁRIO (irritado) - Ah,bom!

VOZ INTERIOR (microfone)- Eu devia ter quebrado a caradaquele...

(Impulsiona a cadeira,afastando-se de Lídia. Esta, porum momento, acompanha, com oolhar, o marido com umaexpressão de ódio. Sai emseguida. Entra Inézia com um

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telegrama na mão.) INÉZIA(interrompendo o pensamento deOlegário) - Telegrama para osenhor, doutor!

OLEGÁRIO - Para mim?(Inézia entrega o telegrama e

sai. Olegário abre o telegrama eo lê com profunda atenção. Lídiaentra com a comida de D.Aninha.) LÍDIA - Vamos ver seela come, Olegário.

(Lídia fica dando comida aDona Aninha, de costas para aplateia. Olegário aproxima acadeira de Lídia e D. Aninha.)OLEGÁRIO (com amargura) -Logo que eu fiquei doente, você

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não saía de junto de mim o diatodo. Andava triste, não usavabatom. Agora... (amargo) Pinta-se. Vai à Colombo. Todos os diassai. Você me visita apenas. Sóvem quando chamo.

LÍDIA (nervosa) - Ora,Olegário, que é isso?

OLEGÁRIO (com irritaçãocrescente) - Eu sei! Você estásempre arranjando pretextos paranão ficar aqui! “Vou mudar deroupa”! “Preciso ver a comida”,“Tenho que ir lá dentro”. Passacomigo cinco minutos - assimmesmo por obrigação.

LÍDIA (sempre dando comida

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a D. Aninha) - Eu até tenho medode vir aqui! Você se aborrece e eume martirizo. Você não sabe comoisso é horrível!

OLEGÁRIO (com angústia) -Você diz: “Isso é horrível!” Epensa que eu não sofro, talvez?Tenho um inferno aqui dentro.

LÍDIA (sempre de costas) -Mas eu tenho culpa, Olegário?Tenho? Você tem raiva de mim,como se eu fosse culpada! MeuDeus! (com doçura e tristeza)Fui eu que fiz sua doença?

(Olegário vira a cadeira e aimpulsiona até a outraextremidade do palco. Lídia tem

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um olhar intraduzível para acadeira. Olegário volta parajunto de Lídia e Dona Aninha.)OLEGÁRIO (cruel) - V-8!

LÍDIA (virando-se, rápida) -O quê?!

OLEGÁRIO (com rancor ecom voz surda) - V-8! V-8, sim!Não adianta olhar para mim dessamaneira. (com escárnio) V-8! NoGrajaú era assim que todo omundo chamava você. Ou vaidizer que não?

LÍDIA (desesperada) - Vocêestá vendo? É por isso que euevito vir aqui! Para não ouvir oque você me diz! Para não

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aguentar seus ciúmes!OLEGÁRIO (com insistência

cruel) - Mas chamavam ou nãochamavam você de V-8?

LÍDIA (sem lhe dar atençãoàs palavras) - Engraçado, vocênão era assim!

OLEGÁRIO (obcecado) - V-8!

(Lídia vira-se para olhá-locom absoluto desprezo. Olegárioestá de costas para a plateia.)LÍDIA (com voz surda) -Continue dizendo V-8! Continue!

OLEGÁRIO (cínico) - Vocêquer saber de uma coisa? Eu achoque a fidelidade devia ser uma

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virtude facultativa.LÍDIA (com desprezo) -

Desistiu de me chamar de V-8?OLEGÁRIO (continuando,

cínico) - Você não acha que serianegócio para você e para todas asmulheres? Que a fidelidade fosseuma virtude facultativa? A mulherseria fiel ou não, segundo as suasdisposições de cada dia.(sardônico) Você com o direito -de ser infiel. Que beleza!

(Lídia volta-se para D.Aninha, ficando de costas para aplateia.) OLEGÁRIO (perverso)- Não diz nada?

(Lídia, em silêncio. Olegário

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mete a mão no bolso. Tira otelegrama. Lê para si.)OLEGÁRIO (com intenção) - Eutenho aqui um telegrama que vocêdaria tudo para ler!

LÍDIA (cortante) - Não meinteressa!

OLEGÁRIO (positivo) - Issoé o que você pensa! (provocador)Se você soubesse o que diz essetelegrama! Faça uma ideia!

LÍDIA (desabrida) - Nãofaço ideia nenhuma!

OLEGÁRIO (enigmático) -Sabe quem sofreu um acidente?Imagine!?

LÍDIA (vira-se para

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Olegário. Olha-o) - Quem?OLEGÁRIO (com afetação) -

Coitado! Um desastre deautomóvel - veja você! Ficou comas duas pernas esmagadas!

LÍDIA (contendo-se) - Masquem foi?

OLEGÁRIO (sardônico) -Então não desconfiou ainda?

LÍDIA (nervosa) - Desconfiarde que, Olegário? Diga!

OLEGÁRIO (cruel) - Quemficou com as pernas esmagadas!...

(O pano começa a descerlentamente.) OLEGÁRIO(gritando) - Foi ele! Ele, o seuamante! Ficou com as duas pernas

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esmagadas!...LÍDIA (num sopro de voz) -

Não! Não!...OLEGÁRIO - Seu amante!

Seu amante! (riso de louco)(Lídia cai de joelhos, aos pés deOlegário, chorando como umaalucinada.)

FIM DO PRIMEIRO ATO

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SEGUNDO ATO

(Abre-se o pano para o 2°ato. Olegário, na cadeira derodas, de costas para a plateia,aponta o dedo para Lídia. Esta,voltada para Olegário, olha-ocom uma expressão de assombro.O pano vai-se levantando eOlegário falando. D. Aninhacontinua enrolando o paninho.)

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OLEGÁRIO (berrando) -

Foi! Foi seu amante! Ficou comas duas pernas esmagadas!

(Lídia recua, de frente paraOlegário, em direção da escada.)LÍDIA - Não! Não! Eu não tenhoamante! Nunca tive amante!

(Olegário a acompanha, nacadeira de rodas.) OLEGÁRIO(num grito estrangulado) - Meenganando... Me traindo...

LÍDIA (com expressão deterror) - Eu vou-me embora. Nãofico mais aqui!

OLEGÁRIO (impulsionandoa cadeira, enquanto Lídia recua)

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- Vai embora, para onde? (comoque caindo em si) Lídia! Venhacá, Lídia!

LÍDIA (no segundo degrau,de frente para Olegário,obstinada) - Eu vou-me embora!

OLEGÁRIO (encostando acadeira na escada, em pânico) -Não, Lídia! Desça! Eu menti!Desça!

LÍDIA (subindo mais umdegrau, implacável) - Não!

OLEGÁRIO (em pânico) -Foi brincadeira, Lídia! Venha cá!

LÍDIA (com rancor) -Brincadeira, isso?

OLEGÁRIO (suplicante) - Eu

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quis fazer uma experiência comvocê, Lídia! Inventei a históriadas pernas esmagadas. Desça,Lídia! Desça! O telegrama nãotem nada! É outra coisa!

(Lídia desce lentamente esenta-se no 1° degrau.) LÍDIA(patética) - E eu ter que aturarisso!

(Olegário observa Lídia adistância, depois aproxima a suacadeira de rodas. Lídia olhapara o marido.) LÍDIA (com osnervos trepidantes) - Se aomenos você parasse com essacadeira! Ficasse quieto!

OLEGÁRIO (sem lhe dar

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atenção) - Eu quis ver se vocêcaía. (sardônico) Uma notíciadada à queima-roupa às vezesproduz reações surpreendentes.(para Lídia, com excitação) Sevocê desmaiasse, dissesse umnome...

LÍDIA (dolorosa) - Você édoido? Que ideia foi essa daspernas esmagadas?

OLEGÁRIO (vago) - Foi umacoisa de momento. Nem sei comofoi.

LÍDIA (amargurada) - Eagora, está satisfeito?

(Olegário impulsiona acadeira, ficando de costas para

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Lídia.) OLEGÁRIO (veemente) -Não, nunca! Por que satisfeito?(aproxima-se da mulher) Esseteu amante não existe. (feroz)Ainda assim, esmaguei-lhe aspernas! (ri, ignobilmente) Existaou não, está sem as pernas!

LÍDIA (dolorosa) - Ah, meuDeus! Dia e noite, a mesma coisa!(espremendo a cabeça entre asmãos) Antigamente, você não eraassim!

OLEGÁRIO (virando acadeira) - Não era assim, como?

LÍDIA (amarga) - Não eraassim, não! Está assim depois queficou doente. Antes, preferia o

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escritório a mim. (excitada) E sóconversava sobre negócios. (vemsentar-se numa cadeira)OLEGÁRIO (admirado) - Vocêqueria que eu conversasse sobreo quê?

LÍDIA - Ora, meu filho! Temtantos assuntos!

OLEGÁRIO (irônico) -Tantos assuntos! No mínimo vocêqueria - ah, queria - que euconversasse sobre artistas decinema? (noutro tom) Vocêgostava bem da minha conversa!

LÍDIA (com amargura) -Gostava, sim! Como não havia degostar? (com raiva) Quando me

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lembro que você - quantas vezes -depois de um beijo, de umacarícia... (Olegário afasta se coma cadeira) vinha me falar dosseus negócios! Essa mania deganhar dinheiro!

OLEGÁRIO (aproximando-secom a cadeira) - Agora sou euque digo: você é que estádiferente! Nunca se queixouantes! (amargo) Mas agora!

LÍDIA - Porque eu não mequeixava, você estava certinho deque eu era muito feliz!

OLEGÁRIO - E não era?LÍDIA (excitada) - Feliz, eu!

(afirmativa) Nunca fui, meu filho!

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(com ironia e noutro tom) Comoeu poderia ser feliz abandonada?Abandonada, sim, por um maridoque chegava em casa às 2, 3 horasda manhã!

OLEGÁRIO (sem olhar paraa mulher) - Diga só uma coisa.Você não teve sempre “tudo” demim, tudo?

LÍDIA (amarga) - O que éque você chama “tudo”? (noutrotom) Já sei. “Tudo” para você sãomóveis, casa, automóvel, umavitrola de 25 contos, cinema,dinheiro!

OLEGÁRIO (sombrio) -Muitas mulheres com muito

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menos seriam felicíssimas!LÍDIA (amargurada,

repetindo) - “Tudo”! Você seesquece que eu tive “tudo” -como você diz - tudo, menosmarido. É o que muitas não têm -muitas - marido!

OLEGÁRIO (irônico) - Entãovocê nunca teve marido?

LÍDIA (veemente) - Não tive,não senhor! Quer dizer, “quase”não tive! Só no princípio...Depois, os seus negócios!...(acusadora) Lá um dia, você selembrava que tinha mulher.

OLEGÁRIO - Tirei você daAldeia Campista.

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LÍDIA (veemente) - Você nãome provocou? Agora, meu filho,vá ouvindo!

OLEGÁRIO (sem ouvir amulher) - Trouxe sua mãe paracá, seu irmão...

LÍDIA - E eu?OLEGÁRIO (taciturno) - Dei

dinheiro à sua família!LÍDIA (nervosa) - Quero

saber de mim! Você não soube sermarido! Ainda hoje, eu quase nãosei nada de amor. O que é que eusei de amor?

OLEGÁRIO (sardônico) -Você quer dizer que não sabenada?

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LÍDIA (com veemência) - Seitão pouco! Era melhor que nãosoubesse nada!

OLEGÁRIO (mordaz) -Afinal, você queria o quê?

LÍDIA - As minhas amigas mecontam coisas... E eu ficoespantada, espantadíssima... Nemabro a minha boca, porque nãoconvém... Eu sou uma esposa quenão sabe nada, ou quase... Nocolégio interno, aprendi muitomais que no casamento. Pareceincrível!

OLEGÁRIO (cortante) -Porque eu respeitava você!

LÍDIA - Ora!

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OLEGÁRIO - Você eraesposa, e não amante! E eu nãopodia, compreendeu? Para aesposa, existe um limite!

LÍDIA - Ah, eu nãocompreendi, nunca, esseescrúpulo, esse limite! Eupensando que o casamento eraoutra coisa - tão diferente - equando acaba você foi sempre tãoescrupuloso! Até me proibia deler livros imorais. Tinha umcuidado comigo, meu Deus docéu! (agressiva) Tinha algumacoisa, eu - uma mulher casada -ler certos livros?

OLEGÁRIO (sombrio) - Você

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nunca falou tanto.LÍDIA (desabafando) - Tenho

direito! Depois do que você mefez - da farsa - tenho, não é?

OLEGÁRIO (sombrio) -Nunca teve marido!

LÍDIA (levantando-se,nervosa) - Então, quando vocêdeu para escrever sobreeconomia, me dava tudo para ler.Que é que me interessa carvão,manganês, minério não sei dequê?

OLEGÁRIO - (cortante) -Basta!

LÍDIA - Também acho.OLEGÁRIO - Mas eu quero

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te dizer, ainda, uma coisa. E voudizer. (num transporte) Sabesque eu acharia bonito, lindo, numcasamento? Sabes? Que o maridoe a mulher, ambos, seconservassem castos - castos umpara o outro - sempre, de dia e denoite. Já imaginaste? Sob omesmo teto, no mesmo leito, ladoa lado, sem uma carícia?Conhecer o amor, mesmo dopróprio marido, é uma maldição.E aquela que tem a experiênciado amor devia ser arrastada peloscabelos...

LÍDIA - Não! Não!OLEGÁRIO (novo tom) -

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Você falou, mas... Essa mágoaretrospectiva é apenas umaconsequência - sabe de quê?

LÍDIA (com desprezo) - Nãorespondo!

OLEGÁRIO (categórico) -De minha paralisia! (ri,arquejante) Foi esta a minhagrande gafe - ficar paralítico!

LÍDIA (saturada) Lá vemoutra vez a paralisia, meu Deus!(tapando os ouvidos) Acabe comisso!

OLEGÁRIO (cruel) - Tudovocê perdoaria, tudo. Menos asduas pernas assim. (faz o gestodemonstrativo) Esse é o único

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direito que nenhum marido tem:ficar paralítico!

LÍDIA (num lamento) - Porque você insiste?

OLEGÁRIO - Eu?LÍDIA (dolorosa) - Por que

você me provoca? Você me dizcoisas e eu falo o que não devia!

OLEGÁRIO - Mas não fazmal. Eu não me queixo. Até gosto,acho tudo ótimo, magnífico. E seme queixei foi antes. Agora, não.No momento, eu estou com umadisposição fantástica. Porque ofato é o seguinte: eu estou assim -imprestável. Muito bem. E, então,como consequência do meu

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estado, nós dois, e sobretudovocê, mocíssima, somos o casal -veja você - que, ao contrário dosoutros, se mantém ferozmentecasto... Que tal, hem?

LÍDIA (saturada) - Já vou,Olegário.

OLEGÁRIO - Um momento.LÍDIA - Que mais?OLEGÁRIO - Bem. Em

primeiro lugar, eu queria saberpor que os maridos irritam asesposas e vice-versa. Você falounum tom de evidente irritação.

LÍDIA - Desculpe.OLEGÁRIO (impulsionando

a cadeira para perto de Lídia) -

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Por despedida, eu vou-lhe dizeruma coisa. Dois pontos: você sepinta, frequenta cabeleireiro,manicura, modista, massagista, odiabo. Permite uma pergunta?

LÍDIA - Sim.OLEGÁRIO - É por minha

causa que você vai à massagista?Ao cabeleireiro? À modista? É?Alguma mulher se enfeita para sercasta? E se não é para mim, paraquem é? (berra) Vamos,responda!

LÍDIA (fechando-se) - Nãorespondo coisa nenhuma.(desesperada) Isso é umaindignidade!

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OLEGÁRIO (sardônico) -Indignidade! (com sombriaexasperação) Você está maisbonita do que nunca. Você nãopodia ser tão bonita. Chega aser... indecente. Agora é que vocêé, de fato, mulher.

(Inézia entra e desaparecepela outra porta.) LÍDIA (comironia dolorosa) - Isso é...galanteio?

OLEGÁRIO (impulsionandoa cadeira para longe de Lídia ecom amargura) - Ah, desculpe.Esqueci que o galanteio de umparalítico é uma coisa tremenda!

LÍDIA (exasperada) - Pelo

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amor de Deus, não fale assim -pelo amor de Deus!

(Maurício entra. Os doisolham para ele. Maurícioapanha um livro numa pequenaestante e sai.) OLEGÁRIO - Esseseu irmão fica andando pela casa.Não diz uma palavra. E nem olha.Não olha para ninguém.

LÍDIA (cansada) - Eu vouver uma coisa lá em cima,Olegário.

OLEGÁRIO (baixo) - V-8!LÍDIA - O quê?OLEGÁRIO - V-8!(Desesperada, Lídia sobe a

escada correndo. O olhar de

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Olegário acompanha Lídia. Luzem penumbra. Luz vertical sobreOlegário.) HOMEM (microfone)- V-8!... V-8!...

HOMEM (microfone) - V-8!...V-8!...

MULHER (microfone) - V-8!... V-8!...

DIFERENTES VOZES(microfone) - V-8! V-8!

(Luz volta a ser normal.Aparece Maurício. Vai recolocaro livro na prateleira. Olegário ochama.) OLEGÁRIO - Maurício!Maurício!

MAURÍCIO - Eu.OLEGÁRIO - Vem cá, um

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instante. Você parece que temmedo de mim. Ou ódio. Tanto faz,não é, Maurício?

(Maurício senta.)MAURÍCIO - Eu, medo? Mas porque, se, afinal.... (muda de tom)Apanhei o segundo volume, emvez do primeiro. Aliás, jáconhecia esse livro e vou reler.Até que esse sujeito escrevedireitinho... Aqui tem uma partesobre a fidelidade...

OLEGÁRIO - Fidelidade, é?Ah, me interessa muito... E quediz, aí, o cretino?

MAURÍCIO - Diz uma coisamuito interessante...

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OLEGÁRIO (sardônico) -Vamos ver.

MAURÍCIO - Diz que hámulheres que não têm o direito dese conservarem fiéis.

OLEGÁRIO - Ah, sim?...Quer dizer que existem essasmulheres? mulheres que têmobrigação de trair, o dever dainfidelidade? Vê se não é isso.Figuremos uma mulher que deixoude gostar do marido. O simplesfato de não gostar implica umdireito ou, mesmo, o dever - vejabem! - dever do adultério. Estoucerto?

MAURÍCIO - Mais ou menos.

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OLEGÁRIO - Perfeito. Outroexemplo: a mulher de uminválido, digamos de umparalítico... Sim, de umparalítico. A mesma coisa, não?Evidente! Em certos casos, afidelidade é uma degradação...Claro como água, não é?

MAURÍCIO - Depende. Variamuito.

OLEGÁRIO (subitamenteferoz) - Por que varia?! Ou ela éfiel ou não é. Só. Não há umaterceira hipótese, ouviu? Masescuta. Acompanha meuraciocínio. Uma mulher conheceisso a que nós chamamos “êxtase

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amoroso”. E pronto. Já não podeolhar para outro homem.Compreende? Cada homem é umapromessa do mesmo êxtase,talvez mais intenso ou quem sabese... (encarando, subitamente,Maurício) Você tem amante,Maurício?

MAURÍCIO (espantado) -Amante, como?

OLEGÁRIO - Quer dizer,mulher fixa, uma que estejasempre à sua disposição.

MAURÍCIO (levanta-se) -Assim não. Eu vario muito. Nãogosto de uma mulher só. Agora,se me casar, pode ser.

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VOZ INTERIOR (microfone)- Irmão de criação!

MAURÍCIO - Esse negóciode mulher é complicado. Àsvezes...

OLEGÁRIO (interrompendo)- Você brincava muito com Lídia,quando era criança?

MAURÍCIO (sentando-se) -Muito. A gente morava nos fundosde uma farmácia; tinha um tanqueno quintal.

OLEGÁRIO (sombrio) - Eque idade vocês tinham?

MAURÍCIO - Foi dos quatroaté oito, mais ou menos.

VOZ INTERIOR (microfone)

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- Eles têm a mesma idade. Comquatro anos, um menino e umamenina costumam até tomar banhojuntos.

(Sempre que o microfoneintervém, os personagensenchem as pausas com algummovimento.) OLEGÁRIO - Queidade você tem?

MAURÍCIO - Dezessete anos.OLEGÁRIO - Dezessete.

Muito bem. No Brasil, nessaidade, o homem já teve todas asexperiências... Somos homensdesde os doze anos... Em todocaso, você, com o seutemperamento... (toma

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respiração) Em suma, Maurício,eu queria saber se você teve umaexperiência de amor. Digo amor,no sentido mais físico. Teve?

MAURÍCIO - Não sei.OLEGÁRIO - Ou eu não

mereço a confiança de umaconfidência?

MAURÍCIO - Não é isso.Merece, mas... Há certas coisasque... E eu, francamente, gostariaque ninguém soubesse, nunca...

OLEGÁRIO (melífluo eignóbil) - Não entendi bem.Soubesse o quê? O que é queninguém deve saber, nunca?(persuasivo) Fala, Maurício,

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fala... Hem?... (muda de tom)Você é um homem que mora naminha casa. Como não?! E minhamulher é nova, bonita. Precisosaber se você é como certoshomens que não podem ver umamulher, porque, imediatamente,seriam capazes de um crime...(com a mão, parece estrangularalguma coisa no ar) E eu precisoproteger minha esposa...

MAURÍCIO (com angústia) -Mas é minha irmã!

OLEGÁRIO (espantado) -Sua irmã?... Sim, sua irmã... Nãohá dúvida. (novo tom) Irmã decriação não é a mesma coisa que

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legítima! (feroz) Responda! Eusustento você e tenho direito!

MAURÍCIO (num sopro) -Não...

OLEGÁRIO (sôfrego) - Nãoo quê? Fale, pode falar.

MAURÍCIO - Não conhecimulher nenhuma... Nesse sentidonão...

OLEGÁRIO - Compreendo.Perfeitamente. Era justamenteisso que eu precisava saber...Mas se você não conhece, aindanão conhece, não quer dizer quenão pense... Você há de pensar emmulheres. Por exemplo, você notaquando a mulher está sem cinta ou

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de cinta?MAURÍCIO - Como?OLEGÁRIO - Preste atenção:

você conhece uma mulher.Convive com esta mulher. Ela usacinta. Um dia, você nota que elaestá sem cinta. Ou porque fazcalor, a transpiração é horrível ea cinta a incomoda. Ela tira,então. Você sente o corpo damulher diferente sem a cinta? Agente deseja mais a mulher semcinta ou é a mesma coisa?

MAURÍCIO - Quem sabe?OLEGÁRIO (ri, sórdido) -

Uma mulher com cinta não meinspira desejo nenhum. Percebeu?

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Nenhum. (exasperado) Você temmedo. Medo de mim. Olha. Agoraque eu sei que nunca, que nãoconheceste nenhuma mulher, eudesejaria, juro, que tu tivessesmorrido antes do primeirodesejo... (agarra-se ao outro, emdesespero, numa espécie desúplica mortal) Ninguém é fiel aninguém. Cada mulher escondeuma infidelidade passada,presente ou futura.

MAURÍCIO - Nem todas!OLEGÁRIO (num berro) -

Todas!MAURÍCIO - Se eu soubesse

que não há nem houve, nunca, uma

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mulher fiel - fiel de qualquermaneira, sempre - eu te juro, eumeteria uma bala na cabeça. Nomesmo instante.

OLEGÁRIO (sorridente) -Então, mete a bala na cabeça, já!Onde está o meu revólver? Ali!Na gaveta! Apanha! (muda detom) Ou, então, se tu metessesuma bala na cabeça, eu poderiafazer o mesmo se... (sôfrego)Acreditas, então, que há umamulher assim? Já não digo duas.Uma. Basta uma que seja a fielabsoluta...

MAURÍCIO - Acredito.(Olegário começa a ouvir

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vozes. atento.) VOZ (microfone)- V-8!...

VOZ (microfone) - V-8!...VOZ (microfone) - V-8!...VOZ (microfone) - V-8!...MAURÍCIO - Que foi?OLEGÁRIO (lento) - Eu

tenho um inferno dentro de mim.Um inferno particular. E setivesse também um céu particular,uma eternidade minha, só minha,com tabuleta na porta proibindo aentrada de pessoas estranhas aoserviço? Não seria negócio? Umalto negócio?

MAURÍCIO - Você estábrincando!

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OLEGÁRIO (sôfrego) -Preciso que me convenças. Háessa mulher? Que não seja fria. Amulher fria é mil vezes pior queas outras. Pois bem. A mulherincapaz de trair, seja em sonho,pensamento, atos ou palavras.Quem é ela?

MAURÍCIO - Lídia.OLEGÁRIO - Quem?MAURÍCIO - Sua mulher.OLEGÁRIO - Minha mulher.

Fiel... Tu achas que sim?(furioso) E onde ela está? Nestemomento? e fazendo o quê?Inézia! Inézia! Inézia!

(Inézia entra.) INÉZIA -

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Pronto, Dr. Olegário!OLEGÁRIO - Onde está D.

Lídia?INÉZIA - No banho.OLEGÁRIO (angustiado,

para Maurício) - Viu? (paraInézia) Há muito tempo?

INÉZIA - Mais ou menos.OLEGÁRIO - Responda

direito!INÉZIA - Uns vinte minutos.OLEGÁRIO (para Maurício)

- Vinte minutos. (para Inézia)Entrou de roupão?

INÉZIA - Foi, de roupão.Aquele verde.

OLEGÁRIO - Pode ir. (sai

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Inézia. Exasperado, paraMaurício) Eu já disse que nãoqueria que ela usasse roupão! Foio mesmo que nada. Acabo tendoque tomar uma providência.

MAURÍCIO (sem ouvir suaspalavras) - Mas ela é a mulherque nunca... Qualquer outrapoderia talvez ceder... Mas Lídia,não. Eu sei, tenho certeza...

OLEGÁRIO (numa espéciede monólogo) - O banho de Lídiaé agora demorado como nunca...No banheiro, eu sei, tenho certezade que o próprio corpo aimpressiona. O corpo nu,espantosamente nu. Há de

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acariciar a própria nudez, etalvez, quem sabe? Gostasse deser amante de si mesma... (ri, comsofrimento) Por que a mulherbonita, linda, não pode ser umanamorada lésbica de si mesma?Seria uma solução... (noutro tom)Maurício, eu acabo assim comominha mãe... (aproxima-se de D.Aninha. Fala na direção damesma, de costas para orapaz)... enrolando um paninho,sempre, sem falar... Ela não sabegemer... Seria incapaz de umgrito, de um uivo... (com vozestrangulada) Acabo assim!

(Entra D. Márcia.) D.

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MÁRCIA - Preciso falar comvocê Olegário, de um assuntodesagradável.

OLEGÁRIO (Saturado) - Sei.(Ergue-se Maurício.)

OLEGÁRIO - Depois, vamoscontinuar a nossa conversa.

MAURÍCIO (saindo) - Estácerto.

OLEGÁRIO (acompanhaMaurício com o olhar) - Umaflor, o seu filho. (ri) Puro, umamenina. (grave) Que é que há?

D. MÁRCIA - Olegário, vocêprecisa tomar uma providência. Elogo, porque, senão, já sabe.Assim é que não pode continuar.

Page 127: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

OLEGÁRIO - E afinal?D. MÁRCIA - Imagina você

que ontem... É um caso sério... Eujá vinha desconfiando, há muitotempo. Como não tinha provas,deixava passar. E ontem, eu dissecomigo mesma: “Há qualquercoisa, aqui, que não está meagradando.” Apaguei a luz.Fechei a janela e fiquei espiandopelas venezianas. Tiro e queda!

OLEGÁRIO - Tiro e queda oquê?

D. MÁRCIA (enfática) - ViInézia entrando no quarto deUmberto.

OLEGÁRIO - Inézia.

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D. MÁRCIA - Francamente!Afinal, onde é que nós estamos?Estão pensando que isso aqui é acasa da mãe Joana?

OLEGÁRIO - Que miserável!D. MÁRCIA - E ela? Ela

também, porque quando a mulhernão quer, o homem não arranjanada! Isso é um desaforo!

OLEGÁRIO - Vou despediresse cachorro. Botá-lo para foradaqui a pontapé.

D. MÁRCIA - Ora veja!(Entra Umberto, mais

petulante do que nunca.)UMBERTO - Dr. Olegário!

(Ergue-se D. Márcia.) D.

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MÁRCIA - Com licença,Olegário!

UMBERTO (inclina-se, numamesura caricatural) - Madame!(pigarreia) Pelo que vejo, entrei,aqui, na horinha H.

OLEGÁRIO - Estive sabendode umas coisas a seu respeito...

UMBERTO - De mim?...OLEGÁRIO - E não quero

conversa. De maneira que vocêvai sair desta casa,imediatamente. Antes que euchame a polícia!

UMBERTO - Sairei.Perfeitamente. Mas...

OLEGÁRIO - Canalha!

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UMBERTO (Cínico) - Possofalar?

OLEGÁRIO - Rua! Rua!UMBERTO - Primeiro, Dr.

Olegário, o senhor ainda medeve... Uns dias, creio... E, alémdisso...

OLEGÁRIO - Nem umapalavra!

UMBERTO - Eu tenho direitode saber. Sou expulso. Está certo.Mas por quê? Há um motivo. Fizalguma coisa?

OLEGÁRIO - Você e Inézia...Na minha casa. Estão pensando oquê?... Viram quando elaentrava...

Page 131: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

UMBERTO - Eu e Inézia? (ri)Quer dizer que o senhor pensaque...?

OLEGÁRIO - Vou fazer suascontas e não me apareça nuncamais...

UMBERTO - E se eu Iheprovar...

OLEGÁRIO - Cínico!UMBERTO - ... Mas se eu lhe

provar que, entre mim e Inézia,não há, não houve absolutamentenada, hem?

OLEGÁRIO (gritando) -Viram!

UMBERTO - Eu possoprovar, Dr. Olegário. Provo e

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convenço o senhor!OLEGÁRIO - Mas Inézia

entrou ou não entrou?UMBERTO - Bem. O senhor

disse que viram... Então, entrou...É claro! Se viram, entrou...

OLEGÁRIO - Basta!UMBERTO (cínico) - Mas

não houve nada! Juro! Dou minhapalavra de honra... Não houve e...(pausa. Encara Olegário)... nempodia haver.

OLEGÁRIO (arquejante,espantado) - Como?... E por quenão podia haver?

UMBERTO (ri, comselvagem alegria) - O senhor já

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imaginou?... Uma mulher entra noquarto de um jovem. Muito bem.É criada, mas não faz mal... Estãosós. Encerrados num quarto. Amoça vem como uma esfomeada.Ela se oferece. Não fala, mas écomo se dissesse: “Toma! Tudo éteu!”

OLEGÁRIO - Imagino!Imagino! (impulsiona a cadeirade um lado para outro)UMBERTO - E, no entanto, nãopode acontecer nada,absolutamente nada. E, de fato,não aconteceu. Nada. (ri) Se osenhor visse o rosto assombradode Inézia. Correu para fora do

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quarto, como uma doida.OLEGÁRIO (quase sem voz)

- Mas por quê? (com progressivaexaltação) Quero saber por quê!

UMBERTO (baixo) - Quer?OLEGÁRIO - Quero!UMBERTO - Muito simples.

Simplíssimo. Um acidente demeninice, apenas.

OLEGÁRIO - E o meninoeras tu?

UMBERTO - Eu. Mas não foiacidente. Foi... uma vingança.Alguém quis se vingar de meu paina pessoa do filho único, que eraeu... (ri, ferozmente) Eu tomavabanho no rio, garoto ainda... E o

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inimigo de meu pai. Umamutilação tão rápida que eu nemsenti... Corri, gritando... Atrás demim, ficava o rastro de sangue...

OLEGÁRIO (rindo, também)- Engordaste, então, não foi? Epassaste a olhar os outros, debaixo para cima? Tinhas vergonhade tudo, não tinhas?

UMBERTO - Não sou comoos outros... E lnézia ou outraqualquer...

OLEGÁRIO - Qualquer uma?UMBERTO - Sim. Qualquer

uma podia entrar mil vezes nomeu quarto.

OLEGÁRIO - Continua.

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UMBERTO - Entra, digamos,de combinação. (muda de tom) Osenhor já reparou, Dr. Olegário?

OLEGÁRIO - Em quê?UMBERTO (pigarreia) - Que

uma mulher de combinação nãoparece séria? Mas isso não é bemo que eu queria dizer. Eu queriadizer outra coisa.

OLEGÁRIO (furioso) -Basta!

UMBERTO - Perfeitamente.OLEGÁRIO (caindo em si) -

Desculpe, Umberto, mas é queeu... Estou esgotado.Esgotadíssimo. Às vezes, não mecontrolo. De qualquer maneira,

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você me deu uma grande notícia.Porque, imagine você, eu chegueia pensar, quando me disseram quevocê e Inézia... Pois eu tive medo.(olha para os lados; voz baixa)Olha, eu queria perguntar-te umacoisa, só uma coisa, pordespedida. É o seguinte: se umamulher... Não digo qualquer uma.Mas uma certa mulher...

UMBERTO - Já sei quem é.OLEGÁRIO - Como?UMBERTO - Sei quem é essa

mulher... Essa senhora...OLEGÁRIO (atônito) - Sabe?

(numa irritação progressiva)Mas vem cá. Eu disse algum

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nome, disse?UMBERTO - Não, não disse,

mas eu, claro, imaginei logo!OLEGÁRIO - Seu cachorro!

Você está pensando que... Olhaque eu... (interrompe-se,arquejante) (baixo) Admitamosque seja mesmo essa mulher quevocê pensa... Faz de conta que é...Imaginemos que, um dia, porcasualidade, você visse...

UMBERTO - Já vi.OLEGÁRIO (aterrado) -

Viu? O quê? Viu o quê?UMBERTO - Vi.

Compreendeu? Vi. Foi umacidente. Fui lá em cima para ver

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um fio, que estava dando curto. Iaconsertar o fio. Quando passeipelo quarto do senhor, bom...bom...

OLEGÁRIO (berrando) -Não diga o nome, ouviu? Nãoquero que diga o nome! Nunca!

UMBERTO - Perfeitamente.“Ela” saía em direção dobanheiro... Ia, se não me engano,tomar banho. Presumo. Vestia umquimono rosa e... Bem. Oquimono estava entreaberto. Osenhor já entendeu, com certeza...(Umberto começa a rir. Empouco, Olegário ri também, mascom desespero) O senhor já teve

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ciúmes de mim, hem? Teve medo!(corta o riso. Com certadignidade) Ela ou outraqualquer... Eu podia espiar obanho de todas as esposas... Paramim é como se não existisse amulher nua...

OLEGÁRIO - Não há dúvida,não há dúvida... Quer dizer queessa pessoa não te impressionou,nem... Umberto, ainda agora euquis te despedir, mas . . .

UMBERTO - Compreendo.OLEGÁRIO (começa a rir) -

Porque, realmente, é umprivilégio ter, em casa, umhomem que poderia assistir,

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tranquilamente, ao banho de nossamulher...

UMBERTO (também ri) -Também acho! Também acho!

OLEGÁRIO - ... sem maioresconsequências ...

(Entra Maurício.)UMBERTO - Com licença.

(Sai Umberto.) MAURÍCIO -Quer que chame Lídia, agora?

OLEGÁRIO - Não. (baixandoa voz) Ontem eu a ouvi.

MAURÍCIO (admirado) -Ouviu quem?

OLEGÁRIO (misterioso) -Ela.

MAURÍCIO

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(espantadíssimo) - Ela? Mas ela,quem, Olegário?

OLEGÁRIO (vago) - Minhamulher. Minha primeira mulher.

MAURÍCIO (assombrado) -Sua primeira mulher? Mas elamorreu! Que negócio é esse?

OLEGÁRIO (misterioso,aproximando-se de Maurício) -Pois é, a minha primeiraMULHER. Não aparece -corporalmente, mas a voz é dela.

(Olegário vai e volta com acadeira. Maurício olha Olegáriocom espanto.) OLEGÁRIO -Enquanto for só a voz - bem.(com excitação) Mas quando for

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uma aparição - física - como viriaela?

VOZ INTERIOR (microfone)(espantado) - Estouenlouquecendo!

OLEGÁRIO (sem lhe daratenção) - Morreu há tantotempo, que viria cheia debichinhos - bichinhos saindo detodos os lugares.

MAURÍCIO (sentando-se) -Mas você está doente! Isso éesgotamento! Aposto como vocêtem febre!

OLEGÁRIO (aproximando-se) - Maurício, eu sei o que vocêestá pensando.

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(Olham-se.)MAURÍCIO (aliviado) - Não

é que eu pensei mesmo?OLEGÁRIO (irritado) - Eu

sei que estou doente. Tenhoconsciência da minha doença.

(LÍDIA aparece na escada.Os dois olham.) LÍDIA (paraOlegário.) - Eu vim ver se vocêquer comer agora.

OLEGÁRIO (triste) - Não.Estou sem vontade.

LÍDIA (persuasiva) - Então,daqui a pouco. Você precisa sealimentar, Olegário! (noutro tom)Estou tão atrapalhada. Cozinheiranova. Tenho de estar na cozinha.

Page 145: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

VOZ INTERIOR (microfone)- E se eu enlouquecesse agora?

MAURÍCIO - Mas você nãopensa que é mesmo a sua primeiraesposa que fala com você?

OLEGÁRIO (grave) - Não.(com exasperação) Sei que é umavoz interior. Uma voz que sai dasprofundezas do meu inferno.Também não estou tão ruimassim...

MAURÍCIO - Quer dizer quenão é espiritismo?

OLEGÁRIO (impaciente) -Que espiritismo! (noutro tom) Àsvezes, estou com outra pessoa, ecomeço a ouvi-la. Ouço outras

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coisas. (com angústia) Olha aí,está ouvindo?

(Ouve-se um berrotremendo.) MAURÍCIO(espantado) - O quê?

OLEGÁRIO - Um grito. Vocênão podia ouvir, nem ninguém -só eu. Outro. Um berro de genteassassinada.

(Novo berro de estrangulado.Maurício se mexe inquieto.)MAURÍCIO - Você ouve mesmo?Sério?

(Olegário agitado. Apareceoutra vez a menina.) OLEGÁRIO- E se eu lhe contar que tambémtenho visões? Vejo Lídia com dez

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anos, vestido curtinho, ascoxinhas aparecendo, bem feitas,(gaguejando) lindas. Você sabeque eu morei perto de vocês,quando Lídia era criança; e umavez a vi, assim mesmo, vestidinhaassim: é essa imagem que meaparece, que eu vejo...(surdamente) Lídia aos dezanos...

MAURÍCIO - Sério?OLEGÁRIO (espantado) Ali.

Está ali agora. (noutro tom)Também vejo homens descendo eLídia, no alto da escada, dandoadeus, de combinação. Ouço eladizer: “Mon cherri, mon cherri”...

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LÍDIA (microfone) - Moncherri, mon cherri, mon cherri,mon cherri. (tom variado: doce,apaixonado, sensual)MAURÍCIO - Assim você acabalouco, Olegário.

OLEGÁRIO (com sombriaexasperação) - Você acha?(excitação progressiva) Isso é oque você quer, deseja! Vocês nãome enganam. (arqueja, emudando de tom) Espera.

VOZ DE MULHER - V-8... V-8... V-8...

OLEGÁRIO (perturbado) - Éela outra vez.

(Entra sob a luz vertical uma

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mulher vestida de grená.)MULHER (sardônica.) - Largaessa cadeira.

OLEGÁRIO (sem olhar paraela) - Estou bem assim... (repete,surdamente) V-8...V-8... (apertaa cabeça entre as mãos)MULHER - Ficou zangadoporque falei na cadeira? Só porisso? Que é que tem?

OLEGÁRIO (irritado) - Nãofaz mal. Pensei em dizer umdesaforo, mas desisti. Para quê?Não interessa! Você não existe.Viu como eu tenho consciência domeu delírio? E isso provaapenas...

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(Sai Maurício, espantado.Olegário nem nota.) MULHER -Prova o quê?

OLEGÁRIO (triunfante) - ...prova que, apesar de tudo, nãoestou louco de todo.

MULHER - Está vaidoso -porque raciocina com lógica.

OLEGÁRIO - Talvez. Só umacoisa me intriga: por que ouço avoz de minha primeira mulher enão outra voz qualquer?

MULHER - Você queriatalvez ouvir a voz de um jogadorde futebol - por exemplo.Enquanto você não acreditar naminha eternidade...

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OLEGÁRIO (cruel) - A suaeternidade não impediu que outraviesse para seu lugar, ocupasse oseu quarto... dormisse na suacama!... (sem transição,saturado) E a cinta, meu Deus?Ela tirou a cinta! (baixo) Semcinta, está mais próxima dopecado.

MULHER - A mulher de umdoente irremediável é assediada atodo momento e em toda a parte.Olegário, sua doença é umconvite, uma sugestão, umaautorização. Esse seu falsocunhado...

OLEGÁRIO - Maurício...

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MULHER (apaixonando-se) -Um homem que passa todo otempo fechado num quarto, acabapensando em mulheres, muitasmulheres; ou, então, pensandonuma única mulher. Ele está numquarto pegado ao de Lídia,Olegário!

OLEGÁRIO (sombrio) - Euexpulso Maurício daqui.Expulso.. E se ela se opuser...

MULHER - Os doisbrincaram juntos em criança!Acontecem coisas terríveis entremeninos e meninas. Você podeimaginar o quê! As crianças têmcuriosidade, instintos incríveis!

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MULHER - É impossível queMaurício não tenha visto aindaLídia entrar no banheiro deroupão. Outro dia, Lídia estavade roupão, o roupão abriu assim...(faz um gesto na altura do peito)(Olegário aperta a cabeça entreas mãos.) (Entra Inézia.) INÉZIA- O homem da injeção.

OLEGÁRIO - Manda entrarpara a saleta.

(Sai Inézia. Entra Lídia.)LÍDIA - Meu anjo, o farmacêuticoestá aí.

OLEGÁRIO - Já sei.LÍDIA - E outra coisa. Você

despediu Umberto?

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OLEGÁRIO - Não.LÍDIA (surpresa) - Nem vai

despedir?OLEGÁRIO (sardônico) -

Por que esta conspiraçãouniversal contra o rapaz?

LÍDIA - Mas como? Afinal,mamãe viu!

OLEGÁRIO - O quê?LÍDIA - Ora, meu filho!OLEGÁRIO - Bem. Já que

vocês insistem, vou dar minhaopinião, a respeito. É a seguinte:sua mãe devia cuidar dospróprios pecados e deixar os dosoutros.

LÍDIA - Mas você acha justo,

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Olegário?OLEGÁRIO (sórdido) -

Quem sabe?LÍDIA - É uma situação muito

desagradável!OLEGÁRIO - Quem devia ser

despedida era Inézia. E vamosmudar de assunto, porque eu estousatisfeito com Umberto e pronto.No momento, o que me interessa éo seguinte: que você não me saiamais do quarto de roupão ouquimono.

LÍDIA - Qual é o mal?OLEGÁRIO - Mas evidente!

Você com o quimono ou o roupão,em cima da pele!

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LÍDIA - Só uso roupão,quando vou tomar banho. E aporta do quarto fica quase emfrente ao banheiro.

OLEGÁRIO - Imagine se, umdia, você abre a porta do quarto e- esbarra com Maurício. E mesmoque não esbarre com ninguém. Dequalquer maneira, não quero! Pormim, você nunca tiraria a roupa.Nua no banheiro - nunca.(suplicante) O fato de vocêmesma olhar o próprio corpo éimoral. Só as cegas deviam ficarnuas. (ri) Ou, então... Sim, háalguém que poderia entrar noquarto de todas as esposas.

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Compreendeu? Alguém que...Não, Maurício. Maurício, não. Eupensei que ele fosse um anjo. Masfalta em Maurício não sei comopossa dizer. Ele não é mutilado,ouviu? Perfeito. Realmenteperfeito é a pessoa que, nameninice...

LÍDIA - Arranjei uma agulhanova, de platina. Vamos?

OLEGÁRIO - Eu vou, masvocê fica. Você sabe que eu nãogosto que você me veja tomandoinjeção. (exalta-se) Todos, todosos homens deviam ser mutilados!(ri) LÍDIA - Que é isso?

(Olegário vai saindo,

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lentamente, com Lídiaempurrando a cadeira. A mulhere a menina o acompanham.)OLEGÁRIO - Sabes o que faria,se pudesse? Presta atenção quevale a pena. Arranjaria umquarto, do qual não se pudessesair, nunca. Um quarto para nóstrês. Eu, você e “ele”. Olhandoum para o outro, até o fim daeternidade. (ri e corta agargalhada. Fala comsofrimento) Agora você fica.

LÍDIA - Já sei, já sei.(Sai Olegário acompanhado

pela mulher e a menina. Lídiafica de pé, no meio da cena,

Page 159: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

amargurada. Umberto aparece.Sem que ela o pressinta, ele seaproxima, sem rumor.)UMBERTO - D. Lídia!

(Sobressalto de Lídia. Vira-se, assustada. Umberto segura-ae beija-a. Lídia esperneia.)LÍDIA (soltando-se) - Miserável,bandido!

FIM DO SEGUNDO ATO

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TERCEIRO ATO

(O mesmo ambiente.Umberto, Lídia e D. Aninha. Estaenrola o eterno paninho.) LÍDIA- Miserável! Bandido! (Passa ascostas da mão na boca, numaexpressão de supremo asco.)UMBERTO - Bandido, porquebeijei a senhora?

LÍDIA - Não fica nem mais

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um minuto nesta casa. Saia já!(olha a escada) UMBERTO -Não adianta olhar para a escada.A senhora não foge. Se correr ireiatrás. (cobre a passagem para aescada) LÍDIA - Cínico!

UMBERTO - Só sai daquiquando eu quiser, quando eudeixar!

LÍDIA - Vou dizer ao meumarido... (faz menção de correr,mas desiste) UMBERTO - Viu?Não adianta. Fique onde está,quietinha!

LÍDIA - Deixa eu passar!Indigno!

UMBERTO - Diz isso e

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quando acaba - gosta de mim!LÍDIA - Eu?UMBERTO - As mulheres são

engraçadíssimas!LÍDIA - Está doido!UMBERTO - Doido coisa

nenhuma... Você...LÍDIA - Não me chame de

você!UMBERTO - Chamo, sim...

Você, ouviu? Você... Você gostade mim e sabe disso.

LÍDIA - Deixa eu passar oueu grito agora mesmo!

UMBERTO - Grita? Tem essacoragem? Pois, então, grita.Quero ver e duvido.

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LÍDIA (baixo) - Grito.UMBERTO - Grita e está

falando baixo. Fale alto!LÍDIA - Falo sim!UMBERTO - E o grito?LÍDIA (baixo e espantada) -

O grito!UMBERTO - Isso é para você

não andar me provocando!LÍDIA - Eu provoquei você?

Está completamente doido!UMBERTO - Doido! Diz isso

agora, mas antes...LÍDIA (revoltada) - Algum

dia já lhe dei confiança?UMBERTO (como num

sonho) - Já me beijou.

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LÍDIA (aterrada) - Quem?UMBERTO - Você.LÍDIA - Quando?UMBERTO - Naquele dia.

Beijou... Ou vai dizer que não selembra?

LÍDIA (num grito) - Cínico!UMBERTO - Juro!LÍDIA - Olhe bem para mim!UMBERTO (na sua euforia)

- Até posso contar como foi. Querque eu conte?

LÍDIA - Mentira!UMBERTO - Entrei...LÍDIA - Nunca entrou no meu

quarto!UMBERTO - Você me

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chamou... Quero que Deus mecegue se é mentira...

LÍDIA - Seu mentiroso! Vaiser expulso daqui a pontapés!

UMBERTO - Desde que eucheguei, nesta casa, que pensavano seu quarto, na sua cama, no seusabonete. (outro tom) E eu sairdaqui a pontapés. (ri) E quemvai-me dar pontapés?

LÍDIA - Meu marido vem jáaí!

UMBERTO - Seu marido?Enfim, talvez ele não possa dar...pontapé...

LÍDIA - Deixa ou não deixaeu passar?

Page 166: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

UMBERTO - Só se vocêdisser que eu entrei no seuquarto... É verdade ou não é?Entrei ou não entrei - a seuconvite?

LÍDIA - Não! Sabe que não!Sabe que está mentindo!

UMBERTO (grave e lírico) -Então, tudo o que eu disse émentira? Quer dizer que eu não abeijei, nunca? (baixo, com orosto bem próximo) Talvez seja aimaginação... Eu misturo muito,misturo sempre, e não sei nuncaquando estou apenas sonhando...Então foi sonho!

LÍDIA - Você sabia que era

Page 167: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

mentira!UMBERTO (exaltado) -

Sabia? Eu sabia? Também podeser. Eu gosto de mentir, sabendoque estou mentindo. Imagine queeu ia dizer que naquele dia, aliásum dia que nunca existiu... Poisbem. Naquele dia você estava dequimono rosa. Com dragõesbordados.

LÍDIA - Você está doido.UMBERTO - Doido? Só por

causa do quimono? Ou, então, dosdragões? Só por isso?

LÍDIA - Você será preso!UMBERTO - Sabe o sonho

que tive ontem?

Page 168: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

LÍDIA - Eu quero passar!UMBERTO - Primeiro, ouça.

Sonhei que você estava batendo,no seu marido, com um cinto. Umcinto de fivela. Primeiro, davaaqui nos rins, com toda a força.Depois, cismou de bater nosolhos. Com a fivela. Nos olhos doseu marido.

LÍDIA (parece fascinada) -Só isso?

UMBERTO - Não tive nuncaum sonho que me impressionassetanto. Você estava hedionda! E,depois, os olhos do seu maridosangraram!

LÍDIA (dolorosa) - Esse

Page 169: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

sonho também é mentira!UMBERTO - Se gritar, pior

para você. Direi a todo mundoque você me chamava para o seuquarto. E que eu roubei osabonete que você usou no banho.E que cheirei a toalha queenxugou seu corpo. Direi quenós...

LÍDIA - Duvido.UMBERTO - Então, grite.

Imediatamente. Já.(Umberto avança. Lídia

contorna a cadeira de D.Aninha.) LÍDIA - Fique ondeestá!

UMBERTO (aproximando-

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se) - Não se mexa. Assim, quieta.LÍDIA (num lamento) - Não

quero.UMBERTO - Quer, sim. Quer

agora mais do que nunca. (gravee triste) Agora que sabe quemsou eu.

(Estão quase boca comboca.) LÍDIA - Você é umassassino.

UMBERTO (com sofrimento)- Assassino? Acha que eu sou umassassino?

LÍDIA - Sim.(Os dois continuam quase

boca com boca.) LÍDIA - Àsvezes, eu penso que se você me

Page 171: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

encontrasse sozinha, num lugardeserto, eu talvez não tivessetempo de gritar. E você...

UMBERTO - Matar você,sem motivo?

LÍDIA - Com motivo ou semmotivo, não sei. Por amor, porciúmes - para que eu não fossemais de ninguém.

UMBERTO (baixo) - Gostade mim?

LÍDIA (baixo e maravilhada)- Não sei, não sei!

UMBERTO - Agora um beijo,sem resistir.

(Ouve-se um barulho.) LÍDIA- Vem gente aí!

Page 172: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

(Afastam-se. Atitude de umanaturalidade forçada. EntraInézia.) INÉZIA - Posso tirar ojantar, D. Lídia?

LÍDIA - Já não. Daqui apouco. (para Umberto) Então oque é que tem o carro?

UMBERTO - Um defeito nocarburador. Preciso ir, já, para aoficina.

INÉZIA - Mas já pode irpreparando, não é, D. Lídia?

LÍDIA - Eu aviso, criatura!(para Umberto) Que amolação!Eu precisava do carro! E demoramuito o conserto?

UMBERTO - Depende.

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(Sai Inézia.) UMBERTO -Ela percebeu tudo!

LÍDIA - Quem?UMBERTO - Inézia! E aposto

que vai dizer ao Dr. Olegário!(ri) Mas não há perigo. Ele pensaque eu - sabe como é? (grave, denovo, e insultante) Por que vocênão aproveitou agora? Diga?Cínica! (aperta entre as mãos orosto de Lídia) Como é bom techamar de cínica! (baixa a voz.Acariciante, trincando aspalavras) Deixa eu te dizer umnome feio, baixinho, no ouvido?Um insulto?

LÍDIA (com volúpia) - Não!

Page 174: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

UMBERTO - É uma palavrasó. Escuta... (diz a palavrainefável. Lídia crispa-se)UMBERTO - Gostou, não gostou?

LÍDIA (com volúpia e dor) -Não repita...

UMBERTO - Me ama?LÍDIA - Tenho medo! Não

sei, tenho medo!(Umberto toma Lídia nos

braços. Ela não resiste. A suacabeça pende.) UMBERTO(baixo) - É toda minha?

LÍDIA (com angústia) - Oh,não... não posso! Não contarei ameu marido, mas não posso. Jáme beijou... não faça mais nada!

Page 175: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

UMBERTO (baixo eacariciante) - O que fiz ainda nãofoi nada. Quase nada. Foi muitopouco. Quero tudo.

LÍDIA (assustada) - Tudo oquê? (outro tom, tapando com amão a boca de Umberto) Já sei.Não precisa dizer! E meumarido?

UMBERTO - Que importa?Ele nunca desconfiaria de mim...Nunca... Eu te direi aquelapalavra, no teu ouvido...

LÍDIA (fascinada) - Sei.UMBERTO - Quando gosto

de uma mulher, preciso insultá-la... Sempre com a mesma

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palavra... Todas gostam... E nãome chame nunca de louco...

(Barulho na porta.) LÍDIA -Meu marido!

(Entra Olegário. Experimentacordial surpresa, ante a presençade Umberto.) OLEGÁRIO - Você,Umberto?

UMBERTO - Dr. Olegário.LÍDIA (com relativa

perturbação) - Umberto veio-mepedir para ter folga amanhã.

OLEGÁRIO - Você estáficando um farrista tremendo,hem, Umberto?

UMBERTO - O negócio é oseguinte: tenho uma pessoa da

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família doente. E queria ver seera possível.

OLEGÁRIO (rindo) -Conversa fiada. Na sua idade,com a sua saúde, não escapa nemrato. É ou não é?

UMBERTO - Também não éassim.

OLEGÁRIO - Pode ir,Umberto. Aproveita, rapaz.

UMBERTO - Obrigado e boanoite. Boa noite, D. Lídia.

(Sai Umberto.) LÍDIA -Achei uma coisa tãodesagradável, meu filho, vocêfalar assim com Umberto, naminha presença... Você usou,

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francamente, um tom dedeboche... Afinal...

OLEGÁRIO - E que mais?LÍDIA - Só.OLEGÁRIO (ri,

sordidamente) - Umberto até queé uma figura. Bons dentes,gengivas sadias. Lídia!

LÍDIA (triste) - Eu.OLEGÁRIO - Se eu te

pedisse um beijo, você daria?LÍDIA - Um beijo?OLEGÁRIO (sôfrego) -

Daria?LÍDIA - Criança! (outro tom)

Daria, sim! Natural!OLEGÁRIO (anelante) - Mas

Page 179: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

na boca?LÍDIA (brevíssima

hesitação) - Na boca, sim.(frívola) Por que não?

OLEGÁRIO - Ora, por quê!Por que sim! E por que não seriana boca?

LÍDIA - Por nada. Acheiinteressante.

OLEGÁRIO (sardônico) -Realmente. Muito interessante.

LÍDIA (com irritação) - Ora,Olegário!

OLEGÁRIO (veemente) -Extraordinário um marido quererser beijado na boca?

LÍDIA - Meu filho!

Page 180: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

OLEGÁRIO - Mas se vocênão quer, paciência, não éobrigada. Não estou pedindo peloamor de Deus, não senhora!(outro tom) Você sabe há quantotempo não me beija?

LÍDIA (com ironia) - Vocêtomou nota?

OLEGÁRIO - Sim! Tomei! Esei, muito bem, o que issosignifica!

LÍDIA - E o beijo, quer?OLEGÁRIO (sôfrego) -

Quero, meu amor!(LÍDIA inclina-se e beija-o

rapidamente na boca.)OLEGÁRIO (exasperado) - É

Page 181: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

isso? é esse o beijo que você tempara mim?

LÍDIA (nervosa) - Você querque eu faça o quê?

OLEGÁRIO - Incrível! Eainda pergunta: “Quer que eu façao quê?”

LÍDIA - Eu não entendo você,Olegário!

OLEGÁRIO - Entende, sim.Finge que não entende. (novotom, com angústia) Vem cá.

(Lídia curva-se. Olegárioenlaça-a.) OLEGÁRIO(anelante) - Beijo é isso...

(Olegário força a mulher aum beijo longo demais. Lídia se

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desprende com violência.)OLEGÁRIO (chocado) - Você meempurra?

LÍDIA (desesperada) - Vocême fez perder a respiração. Eainda me machucou! (passa osdedos de leve pelos lábios)OLEGÁRIO - Machuquei! Fizvocê perder a respiração!(exasperado) Eu sei desdequando você começou a perder arespiração com os meus beijos!(rápido e incisivo) Foi quando eufiquei assim!

LÍDIA (com ar de mártir) -Que inferno!

OLEGÁRIO (irritado) -

Page 183: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

Responda - não é o que eu disse?LÍDIA - Não!OLEGÁRIO - É sim, é!

Explique, ao menos, uma coisa.Por que você não me beija comoantigamente?

LÍDIA (nervosa) - Mascomo? “Antigamente” como?

OLEGÁRIO - Não se faça deinocente!

LÍDIA (contendo-se) - Vocênão me pediu um beijo? E eu nãodei?

OLEGÁRIO - Deu, deu. Maseu queria um beijo - você sabecomo. (amargurado) Mas beijarum homem como eu deve ser,

Page 184: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

quase, uma infâmia. (começa arir, abjetamente) E, ainda porcima, eu sou marido,compreende? E o casamento éassim: nos primeiros dez dias,marido e mulher são dois caçõesesfomeados... E depois! (começaa rir, outra vez) Depois, evapora-se a volúpia... São tranquiloscomo dois irmãos... De forma queo desejo da esposa pelo maridoparece incestuoso... (grave, numdesafio) Por que você não diz, deuma vez, o que sente?

LÍDIA (chorando) - E porque você não me trata melhor?(com veemência) Eu queria que

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você, ao menos, tivesse pena demim!

OLEGÁRIO (espantado) -Pena?

LÍDIA (dolorosa) - Sim.Pena!

OLEGÁRIO (bate no própriopeito) - Você tem? de mim? pena,hem? Pois tenha, porque eu estouliquidado. Completamenteliquidado.

LÍDIA - Não fale assim! Mepõe nervosa!

OLEGÁRIO (sardônico) -Quer dizer que você ainda temilusões?

LÍDIA - Tenho fé em Deus!

Page 186: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

OLEGÁRIO (sardônico) -Ah, minha filha, tire isso dacabeça! Já, imediatamente! E senão fazia nada, se estava à esperade minha cura, então...

LÍDIA - Então, o quê?OLEGÁRIO (sardônico) -

Não compreendeu?LÍDIA - Fale claro!OLEGÁRIO - Você quer me

convencer que vai-se resignar aser eternamente a esposa de umparalítico? Sem procurar umsubstituto?

LÍDIA (atônita) -Compreendi agora! (comdesesperada ironia) Você acha

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que um substituto éindispensável?

OLEGÁRIO (sombrio) -Adianta que eu ache ou deixe deachar?

LÍDIA (com exasperação) -Você devia ter era maisdignidade!

OLEGÁRIO (veemente) - Oque eu não sou é idiota!

LÍDIA - É essa a sua -distração? Ficar pensando no diaem que será - “substituído”?

OLEGÁRIO (ri,ignobilmente) - Quem sabe se eujá não fui “substituído”?(incisivo) Por que é que você

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tirou a cinta hoje?LÍDIA - Quis tirar, ora! Tem

alguma coisa de mais?OLEGÁRIO (exasperado) -

Tem, sim senhora! Porque assimvocê vai acabar andando devestido sem combinação! (temuma explosão) Não acredito emmulher que anda de vestido semcombinação, mesmo em casa! Enão quero, ouviu? não quero!

LÍDIA - Eu acho que vocênão quer é que eu seja fiel!

OLEGÁRIO - Ah, não?LÍDIA - Pelo menos, está

fazendo tudo para que eu seja -infiel. Não está? Quem meteu na

Page 189: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

minha cabeça a ideia do pecado?É a sua ideia fixa!

OLEGÁRIO (em desespero) -Claro! A única coisa que meinteressa é ser ou não ser traído!

LÍDIA - Você se lembra doque me disse uma vez. Aquela eunão me esqueço. Lembra-se? Quese eu visse um rapaz, emCopacabana, forte, moreno, comum calção de banho...

OLEGÁRIO (triunfante) -Calção de banho, eu não disse!Você é que acrescentou agora odetalhe, completou a figura. (comdesesperada ironia) Em todocaso, o calção é uma homenagem

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- significa a folha de parreiramasculina. (com violência) Viu?A sua imaginação?

LÍDIA - Você me obriga a sópensar em homens, até emmeninos de quatorze, quinze anos!

OLEGÁRIO (com ferozsarcasmo) - E o colégio interno?

LÍDIA (atônita) - Colégio?OLEGÁRIO (com o riso

hediondo) - Você não disse quehavia lá uma menina que gostavamuito de você? Que escreviabilhetinhos? Que não comiaquando vocês brigavam?(subitamente, grave) Aquilo erao quê? (num grito) Amizade,

Page 191: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

talvez!LÍDIA (revoltada) - Você tem

coragem?OLEGÁRIO - Tenho coragem,

sim! (muda de tom e com tristezamortal) Não acredito em você.Por que você será sempre fiel?Fiel por seis meses, um ano, dois,pode ser. Mas sempre! (apertaentre as mãos o rosto einterroga-a, quase boca comboca) Não é um inferno estafidelidade sem fim? (baixa a voz)A mulher de um paralítico temtodos os direitos, inclusive odireito, quase a obrigação de ser- infiel.

Page 192: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

LÍDIA (patética) - Você mediz essas coisas. Eu já não meespanto. Nada me assombra.(espantada) Às vezes, tenho aimpressão que somos dois loucos.

OLEGÁRIO (exultante) -Você, hoje, caiu!

LÍDIA (assombrada) - Eu?OLEGÁRIO - Disse quase

tudo que eu queria saber!LÍDIA - Está sonhando!OLEGÁRIO - Pela primeira

vez você falou com impudor!(rápido, agarrando-a, olhando orosto da mulher) Como éobsceno um rosto! (um risosoluçante) Por que permitem o

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rosto nu?(Lídia desprende-se. Passa a

mão no próprio rosto. Recua.)LÍDIA - Meu Deus!

OLEGÁRIO (à meia-voz) -Você, aos dez anos, tinha umcorpo lindo, lindo, vestidinhoassim (faz mímica) muito acimado joelho. Parece que estouvendo.

(Entra a menina e se colocaao lado de Lídia.) LÍDIA - Vou ládentro.

(Sai Lídia. Sobe a escada.Olegário empurra a cadeira nadireção da escada.) OLEGÁRIO(desesperado) - Lídia, eu queria

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ter certeza! Lídia!(Lídia não atende. Aparece

Dona Márcia.) D. MÁRCIA(melíflua) - A respeito daquelecaso, Olegário.

OLEGÁRIO (atônito) - Quecaso?

D. MÁRCIA - Do Umberto.Estive pensando... E sabe de umacoisa?

OLEGÁRIO - Nãointerrompendo, Dona Márcia!Lídia não me vai mais a médiconenhum. Tem que arranjar médica,mulher. Eu não quero homem!

D. MÁRCIA - O Dr.Borborema é tão velho, Olegário!

Page 195: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

OLEGÁRIO (contido) - Nãointeressa!

D. MÁRCIA (melíflua) - Masassim, Olegário, você até ofende!

OLEGÁRIO - Ofendo. E quemais?

D. MÁRCIA - O que é que omédico pode fazer, a mulher nãoquerendo?

OLEGÁRIO - O quê? Ver! Omédico pode ver, apenas! Achapouco? (excitadíssimo). Asenhora está aqui para quê, DonaMárcia? Para discutir comigo?

D. MÁRCIA - Dei minhaopinião, Olegário.

OLEGÁRIO - Dispenso os

Page 196: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

seus pontos de vista. Lídia só iráà médica, mulher, pronto, acabou-se! A senhora está avisada!

D. MÁRCIA - Eu sei,Olegário.

OLEGÁRIO (explodindo) - Epare com esse negócio de mechamar Olegário. Antigamente, asenhora só me chamava de “Dr.Olegário”. Agora, não. Agora éOlegário.

D. MÁRCIA - Mas escutaaqui!

OLEGÁRIO - É isso mesmo!D. MÁRCIA - Que negócio é

esse? Você pensa que faz de mimgato e sapato? Onde é que nós

Page 197: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

estamos?OLEGÁRIO - Na minha casa,

mando eu! Sua lavadeira!D. MÁRCIA - Você é que é

um cretino muito grande!OLEGÁRIO - Rua!D. MÁRCIA - Mas primeiro

vai ouvir. Minha filha é porque éuma boba. Senão, já tinha dado ofora. Palhação!

OLEGÁRIO - Umberto fica,sua lavadeira! Você é quem estádespedida!

D. MÁRCIA - Lavadeira é amãe!

OLEGÁRIO - Não me ponhaos pés aqui, nunca!

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(Sai atrás de Dona Márcia.Pausa. Entra Lídia. Traz o pratode comida de D. Aninha.) LÍDIA- Vamos! Vamos! Tenho mais quefazer! (a idiota rejeita a comida)Quer ou não quer? Largo tudo evou-me embora! Anda, sua velha(trincando as palavras, cara acara) É a mãe, é o filho! (grita)Velha maluca! (circula em tornoda cadeira, depois de pousar oprato em cima do móvel) (baixoe feroz) Quem devia estar aquiera teu filho... meu marido...Enrolando esse paninho... Estouque não posso ouvir nada no meioda rua... Nem ver um nome feio

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desenhado no muro... (recua, numgrito, apertando a cabeça entreas mãos) Foi ele! Foi teu filhoque me pôs neste estado! (rápida,numa alegria selvagem,aproximando-se da velha)Umberto me beijou! a mim! tuanora! e me disse um nome, umapalavra que me arrepiou...(estende as mãos) E ainda mearrepia! (crispa-se. Passa a mãono próprio busto) Maluca! Vou-tedeixar morrer de fome e de sede!(de novo, aperta a cabeça entreas mãos) Meu marido mete naminha cabeça tudo o que nãopresta! O dia inteiro em cima de

Page 200: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

mim: “olha a cinta”... “Você nãopode andar sem cinta”... E até jáperguntou se eu, em criança...(violenta) Mas não passa um diaque eu não deseje a morte de teufilho! (sonhando) Olegáriomorto... Sem sapatos e com meiaspretas, morto... De smoking emorto! (em desespero, como quejustificando-se) Não sou eu aúnica mulher que já desejou amorte do marido. (ri, comsofrimento) Tantas desejam,mesmo as que são felizes...(baixa a voz, com espanto) Hámomentos em que qualquer umasonha com a morte do marido...

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(baixo, outra vez) Escuta aqui,sua cretina! Quando leio no jornala palavra “seviciada” - eu fechoos olhos... (com volúpia) Queriaque me seviciassem num lugardeserto... Muitos... (grita, numremorso atroz) Não, é mentira...(noutro tom) Umberto me chamoude cínica e eu... Eu gostei...(baixo e aterrorizada) Quemsabe se eu não sou? Não! Não!Minhas palavras estão loucas,minhas palavras enlouqueceram!(recua, aterrorizada e estaca.Súbito, corre para a louca; caide joelhos, soluça, abraçada àspernas da doida) Perdão!

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Perdão! (súbito, ergue-se. Corre,soluçando) (Entra Olegário comUmberto.) OLEGÁRIO - Mas porquê? Não está satisfeito aqui?

UMBERTO - Estou muito. Osenhor e D. Lídia sempre forambons comigo.

OLEGÁRIO - E então?UMBERTO - Tenho que ir de

vez, Dr. Olegário. Minha mãe estápassando mal.

OLEGÁRIO - Ora veja!UMBERTO - Pois é. Caiu da

escada. É cega. Foi descer erolou lá de cima. Caso seríssimo.Fraturou a bacia. E na idade deminha mãe é o diabo. Fez setenta

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anos.OLEGÁRIO - Você pode ir, e,

depois, voltar.UMBERTO - Impossível, Dr.

Olegário. Porque tem mais umacoisa... (baixa a voz) Minha irmã,a caçula, deu um mau passo. Ofato é que o velho diz que mata,porque mata. E ele me respeitamuito e...

OLEGÁRIO - Mas vocêmesmo não me disse, uma vez,que sua mãe tinha morrido?

UMBERTO - Eu não, Dr.Olegário! Pois se ela caiu outrodia da escada, não lhe parece?

OLEGÁRIO - Sei, sei (com

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irritação) Alguma coisa me dizque tudo isso é mentira. A irmãque deu o mau passo, a queda daescada... Tudo!

UMBERTO (cínico) - Deforma que eu queria ir hojemesmoo...

OLEGÁRIO (exaltado) - E ocoxo da Colombo? Hem? Outrainvenção sua!

UMBERTO - Nunca mais ovi! Então, Dr. Olegário, muitoobrigado. Desculpe de qualquercoisa.

OLEGÁRIO - Olha. Aquelahistória de espiar o que D. Lídiafazia - aquilo que eu mandei - foi

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brincadeira. Mas já sabe. Nãoconte nada a ninguém. Nunca.

UMBERTO - Claro. De mim,ninguém saberá nada. Deus melivre. E agora vou falar com D.Lídia. Adeus... Eu tinha outracoisa para dizer ao senhor.

OLEGÁRIO - Fala!UMBERTO - Aquele relógio

- que desapareceu. O senhor atédeu queixa à polícia. Não foi?

OLEGÁRIO - O que é quetem?

UMBERTO - Fui eu queroubei.

OLEGÁRIO - Que negócio éesse?

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UMBERTO - Fui eu, sim, Dr.Olegário. Fui eu e botei no pregopara comprar um terno.

OLEGÁRIO - E por que vem-me dizer isso agora? Para quê?

UMBERTO (vira-se. Cínico)- Quem sabe? Bem... mas voufalar com D. Lídia... (ri) Posso,não posso? Sou o único homemno mundo que... Não é mesmo,Dr. Olegário?

(Riem os dois sordidamente.)UMBERTO - Poderia espiar obanho de qualquer mulher...

(Sério Umberto. Ri Olegário.Olegário corta o riso.)OLEGÁRIO - Vá para o diabo

Page 207: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

que o carregue!(Sai Umberto. Prostração de

Olegário. Aparece Maurícioressentido.) MAURÍCIO - Quefoi que você fez com mamãe, queela está chorando?

OLEGÁRIO (melífluo) -Nada. Não fiz nada com sua mãe.Não a chamei de lavadeira, nemdisse que ela vendeu a filha.Aliás, sou a favor das mãesmercenárias que até tratam muitobem as filhas, engordam, põemnum colégio etc. e tal. Um altonegócio, certas mães!

MAURÍCIO - Isso é umaindignidade!

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OLEGÁRIO - Sua mãe quenão se faça de tola comigo. É elaquem anda dando maus conselhosà Lídia... Desencaminhandominha mulher...

MAURÍCIO - Cale essa boca,senão...

OLEGÁRIO - Você faz o quê?MAURÍCIO - Se você não

fosse um paralítico!(Maurício vira as costas

para Olegário. Caminha para aescada.) OLEGÁRIO (gritando)- Olha!

MAURÍCIO (vira-seassombrado) - Olegário!

OLEGÁRIO - Não sou

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paralítico, nunca fui paralítico!(Segura Maurício e subjuga-o.)MAURÍCIO - Não pode ser!

OLEGÁRIO - Agora me mate,me estrangule, ande!

MAURÍCIO (aterrado) -Nunca foi paralítico... Entãoesses sete meses na cadeira...

OLEGÁRIO - Farsa,simulação... Um médico, bêbedo,irresponsável, que me deviadinheiro, disse a todo mundo -inclusive à minha mulher - que euera um caso perdido... Que nãoficaria bom nunca...Compreendeu?

MAURÍCIO - Mas por quê?

Page 210: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

para quê?OLEGÁRIO - Foi uma

experiência... Uma experiênciaque eu fiz com Lídia... Precisavasaber, ter uma certeza absoluta,mortal... Agora sei, agora tenho acerteza... Há, no mundo, umamulher fiel... É a minha... Eperdão, Maurício... Chama a tuamãe... Ela que me perdoetambém... Vou me ajoelhar diantede Lídia... (exaltado) Milhões dehomens são traídos... Poucosmaridos podem dizer: “Minhamulher”... eu posso dizer - minha!(riso soluçante) Minha mulher(corta o riso, senta-se na

Page 211: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

cadeira) (grita) Lídia! Lídia!(Entra Inézia. Apanha a

manta e cobre as pernas deOlegário.) INÉZIA - Doutor.

OLEGÁRIO - Chame minhamulher. Minha!

INÉZIA - Saiu, Dr. Olegário.D. Lídia saiu e mandou entregarisso aqui - esta carta - ao senhor.

(Sai Inézia. Olegário abre acarta. Começa a ler.) VOZ DELÍDIA (microfone) - Olegário!Parto com Umberto. Nunca maisvoltarei. Não quero seu perdão.Adeus. Lídia. Nunca maisvoltarei. Nunca mais...

(Olegário continua de olhos

Page 212: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

fixos na carta.) MAURÍCIO -Que foi?

OLEGÁRIO - Nada. Coisasem importância.

VOZ DE LÍDIA (microfone) -Parto com Umberto. Não queroseu perdão. Adeus. Lídia.

OLEGÁRIO - Olha,Maurício. Você vai-me darlicença. Estou um pouco cansado.

(Maurício sai, olhandoespantado para Olegário. Só,Olegário vai à gaveta dasecretária. Apanha um revólver.Abre o tambor, olha-o, fecha-o)VOZ DE LÍDIA (microfone, emcrescendo) - Parto com Umberto.

Page 213: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

Lídia. Não quero seu perdão.Parto com Umberto.

(Olegário aproxima-se de D.Aninha. Esta continua, na suaatitude, enrolando o eternopaninho. Olegário encosta orevólver na fronte.) VOZ DELÍDIA (microfone) - Adeus. Nãoquero seu perdão. Lídia. Partocom Umberto. Umberto. Umberto.Umberto.

FIM DO TERCEIRO E

ÚLTIMO ATO

Page 214: A Mulher Sem Pecado - Nelson Rodrigues

Revisado e adequado ao NAO

por Joroncas