a mulher, o sexo e a dor

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A MULHER, O SEXO E A DOR Antonio Farjani Em 2014, a mídia divulgou uma pesquisa feita no Brasil cujos resultados causaram grande espanto e comoção à opinião pública. Deixando aqui os números de lado, descobriu-se que uma parte significativa da população brasileira acreditava que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” e que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Um toque dramático a essa constatação residiu no fato de que essa opinião não era exclusiva do mundo masculino, sendo compartilhada por muitas mulheres. Uma jornalista, em reação à notícia, fez-se fotografar nua portando um cartaz onde dizia não merecer ser estuprada. Surpreendentemente, seu gesto provocou uma onda de ira de alguns: “Acreditei na pesquisa do Ipea e experimentei na pele sua fúria. Homens me escreveram ameaçando me estuprar se me encontrassem na rua; mulheres escreveram desejando que eu fosse estuprada”, desabafou ela em um site de relacionamento. Até aqui, nada tão surpreendente vindo de um país no qual mulheres de topless são detidas por policiais portando fuzis. Mas uma outra mensagem, recebida por seu marido, enriquece ainda mais nossa discussão: nela, um homem escreveu que se ele não “cuidasse de mantê-la em casa calada, outros iriam fazer o trabalho que ele não estaria fazendo na cama”. Esta última mensagem se encontra em perfeito alinhamento com a antiga mentalidade patriarcal que domina nossa cultura há muitos séculos. Cabe a cada homem “controlar” a própria mulher: mantê-la “em casa” calada, vigiar seus impulsos ou instintos, perscrutar seus pensamentos, cercear seus caminhos, monitorar seus anseios, inspecionar suas paixões, censurar seus mínimos gestos e julgar suas decisões. Deverá assim proceder não só para dominá-la, mas para defendê-la dela própria, evitando que seja justiçada por alguma brigada machista pronta a agir em defesa da moral e dos bons costumes. Depreende-se que os instintos da mulher são intrinsecamente perigosos, e devem ser contidos com sexo e violência. Nossa preocupação aqui, no entanto, não será a de julgar tais ideias, mas investigar suas origens: trataremos de mostrar que a visão sobre a mulher que emergiu de uma simples pesquisa não caiu do céu nem consiste numa grande novidade, pois tem uma longa história, e cumpriu um longo percurso na história do Ocidente. Cerca de 1400 antes da era cristã ruiu a civilização minoica, uma das mais desenvolvidas da história do Mediterrâneo. Uma cultura próspera, justa, na qual homens e mulheres desfrutavam de direitos iguais. Talvez tenha sido o único povo que pôde se dar ao luxo de construir um palácio real, maior que o complexo de Buckingham, desprovido de muros, sinal da perfeita harmonia entre o povo e seus governantes. Seus príncipes foram retratados em afrescos não portando armas ou escudos, mas contemplando animais, pássaros, peixes e flores. As mulheres aparecem lindas e altivas, com penteados sofisticados, trocando olhares sutis em suas reuniões, dirigindo carruagens em corridas juntamente com os homens e até mesmo saltando acrobaticamente sobre touros nas cerimônias religiosas. Sacerdotisas envergando roupas douradas executavam uma estranha e misteriosa “dança das abelhas”, e foram representadas segurando serpentes enroladas em seus braços. Esta civilização, cuja economia era sustentada pelo comércio e navegação, ficava na ilha de Creta. Na época aqui mencionada, porém, uma violenta explosão do vulcão da ilha de Thera, uma colônia próxima, seguida de um gigantesco tsunami, debilitara terrivelmente a estrutura do império. A ruína do império minoico culminou com a invasão dos bárbaros micênicos, cultura dominada por uma aristocracia guerreira, fazendo de Creta uma possessão grega. Até hoje os bravos habitantes dessa magnífica ilha não se consideram propriamente gregos, mantêm cultura própria e sonham reconquistar sua autonomia perdida. Ao contrário da minoica, a cultura grega ficaria conhecida por suas características eminentemente patriarcais. Hesíodo, grande historiador grego do século VII ou VIII antes da era cristã prescreveu para a felicidade do homem “uma casa, depois uma mulher e um boi de arado”, talvez sequer necessariamente nessa ordem. Por sua vez o receio masculino de que a mulher se conscientize de seu próprio potencial já aparece na tragédia Hipólito, de Eurípides (séc. V AEC), quando o filho de Teseu declara: “Odeio a (mulher) inteligente; faço votos não entre em minha casa uma que saiba além do que convém a uma mulher. É antes nas espertas que Afrodite inocula o vício; as imbecis são preservadas dos desejos loucos pela curta extensão da inteligência”. Para Aristóteles (séc. IV AEC) a mulher é um homem “incompleto” ou “imperfeito”, um ser passivo e receptor, ao contrário do homem, ativo e doador. Por isso, os filhos herdam apenas as características do pai, e não da mãe. A mulher recebe e conserva a semente, e o homem é seu semeador: sua única função é a reprodução. Ela é fraca, sem energia própria, um recipiente passivo a ser ativado pelo homem. Bem mais tarde São Tomás de Aquino (séc. XIII) adotaria a concepção aristotélica da mulher. O santo padre observou que as proposições de Aristóteles combinavam com a mensagem bíblica, uma vez que a mulher fora criada da costela do homem, e depois ocasionara o pecado original. A mulher só adquiriria igualdade no céu, onde, segundo Jesus, não haveria mais distinção entre os sexos. Tais concepções atravessariam os séculos como um dardo envenenado, contaminando pensadores do porte de Sigmund Freud, que abraçou alegremente a tese da fraqueza e passividade femininas. Rousseau, no quinto capítulo do Emílio, nega à mulher a possibilidade de pensar: “elas devem aprender muitas coisas, mas apenas aquelas que lhes convém saber”. Na religião judaica, vistas como seres inferiores, as mulheres eram consideradas desprovidas de alma e incapazes de desenvolver-se espiritualmente. Nenhum rabino, como pessoa de respeito, se dignaria a conversar com uma mulher sobre questões religiosas, nem discutir com ela algum assunto espiritual. Nas sinagogas, onde se reunia a elite dos judeus, a separação das classes, inclusive a sexual, era rigorosamente observada, sendo as mulheres consideradas incapazes de exercer qualquer função religiosa. As mulheres não tinham acesso à doutrina, nem podiam estudar a Torah. Eliezer, famoso doutor da lei, asseverou que “quem ensina a Torah à sua filha, ensina-lhe a libertinagem”, e que “é preferível queimar a Torah a transmiti-la às mulheres”. Essa regra de decoro religioso estendia-se igualmente a todos os homens: assim como um discípulo dos escribas seria desonrado se falasse com uma mulher na rua, um leigo não podia cumprimentar nem sequer olhar para uma mulher casada. Até hoje não é de bom tom um rabino tocar uma mulher, pois ela pode estar menstruada e portanto impura. Certa vez o rabi Yossef Ben Iohanan recomendou: “Não fales muito com uma mulher. Isto vale para tua própria mulher, mas muito mais para a do próximo”. O Pirqei Avot V, por sua vez, recomenda “não manter discussões inúteis com as mulheres”, embora não especifique quais seriam as conversas úteis a se travar com elas. Por razões como essas, na ação de graças os homens devotos incluíam a fórmula: “Bendito sejais, Senhor e meu Deus, que não me fizeste mulher”! Veneráveis escritos rabínicos (Quiddushin 82-b e Nidda 31-b) rezam: “Desditoso aquele cujos filhos são mulheres”. As mulheres não eram contadas no número de convidados das reuniões sociais, nem figuravam nas estatísticas de qualquer evento público: quando os Evangelhos narram a multiplicação dos pães, por exemplo, e fornecem o número das pessoas saciadas pelo prodígio, referem-se exclusivamente aos homens ali presentes. Ademais, como se pode depreender de textos

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Sagrado Feminino

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A MULHER, O SEXO E A DOR

Antonio Farjani

Em 2014, a mdia divulgou uma pesquisa feita no Brasil cujos resultados causaram grande espanto e comoo opinio pblica. Deixando aqui os nmeros de lado, descobriu-se que uma parte significativa da populao brasileira acreditava que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas e que se as mulheres soubessem como se comportar,haveria menos estupros. Um toque dramtico a essa constatao residiu no fato de que essa opinio no era exclusiva do mundo masculino, sendo compartilhada por muitas mulheres.

Uma jornalista, em reao notcia, fez-se fotografar nua portando um cartaz onde dizia no merecer ser estuprada. Surpreendentemente, seu gesto provocou uma onda de ira de alguns: Acreditei na pesquisa do Ipea e experimentei na pele sua fria. Homens me escreveram ameaando me estuprar se me encontrassem na rua; mulheres escreveram desejando que eu fosse estuprada, desabafou ela em um site de relacionamento. At aqui, nada to surpreendente vindo de um pas no qual mulheres de topless so detidas por policiais portando fuzis. Mas uma outra mensagem, recebida por seu marido, enriquece ainda mais nossa discusso: nela, um homem escreveu que se ele no cuidasse de mant-la em casa calada, outros iriam fazer o trabalho que ele no estaria fazendo na cama.

Esta ltima mensagem se encontra em perfeito alinhamento com a antiga mentalidade patriarcal que domina nossa cultura h muitos sculos. Cabe a cada homem controlar a prpria mulher: mant-la em casa calada, vigiar seus impulsos ou instintos, perscrutar seus pensamentos, cercear seus caminhos, monitorar seus anseios, inspecionar suas paixes, censurar seus mnimos gestos e julgar suas decises. Dever assim proceder no s para domin-la, mas para defend-la dela prpria, evitando que seja justiada por alguma brigada machista pronta a agir em defesa da moral e dos bons costumes. Depreende-se que os instintos da mulher so intrinsecamente perigosos, e devem ser contidos com sexo e violncia. Nossa preocupao aqui, no entanto, no ser a de julgar tais ideias, mas investigar suas origens: trataremos de mostrar que a viso sobre a mulher que emergiu de uma simples pesquisa no caiu do cu nem consiste numa grande novidade, pois tem uma longa histria, e cumpriu um longo percurso na histria do Ocidente.

Cerca de 1400 antes da era crist ruiu a civilizao minoica, uma das mais desenvolvidas da histria do Mediterrneo. Uma cultura prspera, justa, na qual homens e mulheres desfrutavam de direitos iguais. Talvez tenha sido o nico povo que pde se dar ao luxo de construir um palcio real, maior que o complexo de Buckingham, desprovido de muros, sinal da perfeita harmonia entre o povo e seus governantes. Seus prncipes foram retratados em afrescos no portando armas ou escudos, mas contemplando animais, pssaros, peixes e flores. As mulheres aparecem lindas e altivas, com penteados sofisticados, trocando olhares sutis em suas reunies, dirigindo carruagens em corridas juntamente com os homens e at mesmo saltando acrobaticamente sobre touros nas cerimnias religiosas. Sacerdotisas envergando roupas douradas executavam uma estranha e misteriosa dana das abelhas, e foram representadas segurando serpentes enroladas em seus braos. Esta civilizao, cuja economia era sustentada pelo comrcio e navegao, ficava na ilha de Creta.

Na poca aqui mencionada, porm, uma violenta exploso do vulco da ilha de Thera, uma colnia prxima, seguida de um gigantesco tsunami, debilitara terrivelmente a estrutura do imprio. A runa do imprio minoico culminou com a invaso dos brbaros micnicos, cultura dominada por uma aristocracia guerreira, fazendo de Creta uma possesso grega. At hoje os bravos habitantes dessa magnfica ilha no se consideram propriamente gregos, mantm cultura prpria e sonham reconquistar sua autonomia perdida.

Ao contrrio da minoica, a cultura grega ficaria conhecida por suas caractersticas eminentemente patriarcais. Hesodo, grande historiador grego do sculo VII ou VIII antes da era crist prescreveu para a felicidade do homem uma casa, depois uma mulher e um boi de arado, talvez sequer necessariamente nessa ordem. Por sua vez o receio masculino de que a mulher se conscientize de seu prprio potencial j aparece na tragdia Hiplito, de Eurpides (sc. V AEC), quando o filho de Teseu declara:

Odeio a (mulher) inteligente; fao votos no entre em minha casa uma que saiba alm do que convm a uma mulher. antes nas espertas que Afrodite inocula o vcio; as imbecis so preservadas dos desejos loucos pela curta extenso da inteligncia.

Para Aristteles (sc. IV AEC) a mulher um homem incompleto ou imperfeito, um ser passivo e receptor, ao contrrio do homem, ativo e doador. Por isso, os filhos herdam apenas as caractersticas do pai, e no da me. A mulher recebe e conserva a semente, e o homem seu semeador: sua nica funo a reproduo. Ela fraca, sem energia prpria, um recipiente passivo a ser ativado pelo homem. Bem mais tarde So Toms de Aquino (sc. XIII) adotaria a concepo aristotlica da mulher. O santo padre observou que as proposies de Aristteles combinavam com a mensagem bblica, uma vez que a mulher fora criada da costela do homem, e depois ocasionara o pecado original. A mulher s adquiriria igualdade no cu, onde, segundo Jesus, no haveria mais distino entre os sexos. Tais concepes atravessariam os sculos como um dardo envenenado, contaminando pensadores do porte de Sigmund Freud, que abraou alegremente a tese da fraqueza e passividade femininas. Rousseau, no quinto captulo do Emlio, nega mulher a possibilidade de pensar: elas devem aprender muitas coisas, mas apenas aquelas que lhes convm saber.

Na religio judaica, vistas como seres inferiores, as mulheres eram consideradas desprovidas de alma e incapazes de desenvolver-se espiritualmente. Nenhum rabino, como pessoa de respeito, se dignaria a conversar com uma mulher sobre questes religiosas, nem discutir com ela algum assunto espiritual. Nas sinagogas, onde se reunia a elite dos judeus, a separao das classes, inclusive a sexual, era rigorosamente observada, sendo as mulheres consideradas incapazes de exercer qualquer funo religiosa.

As mulheres no tinham acesso doutrina, nem podiam estudar a Torah. Eliezer, famoso doutor da lei, asseverou que quem ensina a Torah sua filha, ensina-lhe a libertinagem, e que prefervel queimar a Torah a transmiti-la s mulheres. Essa regra de decoro religioso estendia-se igualmente a todos os homens: assim como um discpulo dos escribas seria desonrado se falasse com uma mulher na rua, um leigo no podia cumprimentar nem sequer olhar para uma mulher casada. At hoje no de bom tom um rabino tocar uma mulher, pois ela pode estar menstruada e portanto impura. Certa vez o rabi Yossef Ben Iohanan recomendou: No fales muito com uma mulher. Isto vale para tua prpria mulher, mas muito mais para a do prximo. O Pirqei Avot V, por sua vez, recomenda no manter discusses inteis com as mulheres, embora no especifique quais seriam as conversas teis a se travar com elas. Por razes como essas, na ao de graas os homens devotos incluam a frmula: Bendito sejais, Senhor e meu Deus, que no me fizeste mulher! Venerveis escritos rabnicos (Quiddushin 82-b e Nidda 31-b) rezam: Desditoso aquele cujos filhos so mulheres.

As mulheres no eram contadas no nmero de convidados das reunies sociais, nem figuravam nas estatsticas de qualquer evento pblico: quando os Evangelhos narram a multiplicao dos pes, por exemplo, e fornecem o nmero das pessoas saciadas pelo prodgio, referem-se exclusivamente aos homens ali presentes. Ademais, como se pode depreender de textos como o Hagigah (I-1), a presena feminina era indiferente, seno indesejada, nos eventos religiosos: Todos os filhos de Israel devem se apresentar no Templo, para as trs Festividades, exceto os surdos, os idiotas, os andrginos, as mulheres, os escravos... - em suma, a escria da sociedade.

A mulher no tinha direito de efetuar qualquer depoimento em juzo, por ser considerada mentirosa por natureza, j que Ado somente incorrera em pecado por causa da malcia de Eva. Assim Yahveh, um deus homem e somente dos homens, decretou a completa submisso da mulher a seu companheiro. O Gnesis 2:18 define a mulher perante o homem como uma auxiliar que lhe seja adequada, e em 3:16 postula: teu marido te dominar.

H pouco menos de dois mil anos a instituio crist, inspirada no feroz patriarcalismo judaico, rejeitaria tudo aquilo que se referisse ao feminino: na teologia crist, a Grande Me foi eliminada da Trindade tal como constava nas trindades egpcia e hindu, de onde fora copiada -, tendo seu papel reduzido a uma receptadora passiva do poder divino masculino, e os verdadeiros sentimentos dessa instituio para com o feminino se revelariam em toda sua magnitude desde na caa s bruxas at o impedimento de que as mulheres tivessem qualquer funo significativa em seus rituais e em sua hierarquia.

J no primeiro sculo Paulo de Tarso indicara o lugar das mulheres na cristandade, instando-as a serem submissas a seus esposos (Ef. 5:22-24; Col. 3:18; Tito 2:4), e, se quiserem aprender alguma coisa, perguntem-na em casa aos seus maridos, porque inconveniente para uma mulher falar na assembleia (I Cor. 14:34-35; I Tim. 2:11-15). O homem no foi criado para a mulher, mas sim a mulher para o homem: por isso, a mulher deve trazer o sinal da submisso sobre sua cabea (I Cor. 11:3-10). Aos homens, por sua vez, cabe simplesmente amar suas mulheres e no trat-las com aspereza (Col. 3:9), o que quer que signifique essa expresso. A Primeira Epstola de Pedro (3:1-7) exorta os maridos a comportar-se sabiamente no convvio com as suas mulheres, por serem de um sexo mais fraco. Ou seja, aps a enfatizao ad nauseam da superioridade masculina, a nica compensao dada s mulheres por esses textos so as recomendaes complacentes aos maridos de que no maltratem suas esposas, gesto to pouco tico quanto o de espancar seus ces, escravos ou mulas de carga.

Juntamente com o rebaixamento da mulher, eliminou-se a noo do sexo como ato de prazer, e muito menos como caminho iluminao espiritual, ao contrrio do que acontece no tantrismo, na alquimia ou em outras tradies. Para proteger as mulheres dos desejos loucos que tanto atormentavam Hiplito e seus maridos de criar filhos de terceiros, dentre outros transtornos por direitos de herana -, elas teriam de aprender a ver o sexo com apreenso, por ser ele desagradvel, mero dever matrimonial, ou mesmo porque traria consigo a dor do parto. Como a culpa pelo Pecado Original coubera a Eva, o Gnesis, alm de dar fundamento tese de que a mulher quem desencaminha o homem, sentencia-a a sofrer as dores do parto como uma perptua punio atravs das geraes. Aparentemente, para o imaginrio cristo, se as mulheres perdessem o freio - o medo da sexualidade ou da dor do parto - a terra seria imersa no caos e nas trevas.

A Igreja desde cedo levou totalmente a srio todas as ameaas potenciais contidas no ente feminino. Foi proposto que a mulher seria desprovida de alma, intrinsecamente pecadora, e a maior causadora dos pecados dos homens. Os homens aprendiam que seus desejos luxuriosos consistiam numa mera reao s artimanhas da mulher, que os enfeitiavam para cometer atos prfidos dos quais normalmente no seriam capazes. Para a Igreja medieval, a mulher estuprada era responsabilizada pelo ato e pela perdio da alma do pecador, pela qual deveria responder diante de Deus no Juzo Final.

A misoginia latente na doutrina crist fez com que a Inquisio, inicialmente criada para para reprimir os ctaros, passasse tambm a perseguir bruxas, tortur-las e assassin-las, no que contou com a espontnea colaborao dos protestantes. Os primeiros julgamentos de bruxas aconteceram em Toulouse, sede da Inquisio antictaros, e a ltima bruxa queimada pela Inquisio foi executada no Canto de Glaris, na Sua, em 1788.

Em 1487 dois padres dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger, publicaram o clssico Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas), que se tornaria o livro de cabeceira dos caadores de bruxas europeus. Os autores fundamentaram as premissas do livro na bula Summis Desiderantes, emitida pelo Papa Inocncio VIII em1484, o principal documento papal sobre a bruxaria, que os agraciara com poderes especiais para combater a feitiaria no norte da Alemanha. O Martelo das Bruxas consistia numa espcie de manual de diagnstico, dividindo-se em trs partes: a primeira ensinava os juzes a reconhecer as bruxas em seus mltiplos disfarces e atitudes; a segunda expunha todos os tipos de malefcios, classificando-os e explicando-os; e a terceira regrava as formalidades para agir legalmente contra as bruxas, demonstrando como process-las, inquiri-las, julg-las e conden-las.

Era um guia passo a passo sobre como conduzir o julgamento de uma bruxa, desde a reunio de provas at o interrogatrio, incluindo as tcnicas de tortura. Para dar trs exemplos apenas, mulheres que no choravam durante o julgamento eram automaticamente consideradas culpadas de bruxaria; se elas confessassem sua culpa, seriam executadas, e, se no o fizessem, seriam torturadas para faz-lo. Outra tcnica consistia em jogar a acusada em um poo: se ela se afogasse, seria inocente; se flutuasse, porm, confirmaria sua condio de bruxa e seria executada ou torturada antes para confess-lo. Outra recomendao era de que as mulheres deveriam ser torturadas nuas, para fragiliz-las, e de costas para o torturador, pois seus gritos, expresses faciais e contores de dor no passavam de criaes do demnio para amolecer o corao do carrasco.

O dio sacrossanto mulher durante o perodo de caa s bruxas estendeu-se s parteiras, cujo conhecimento de como aliviar as dores do parto representava uma ameaa para o cumprimento dos desgnios divinos. Os autores do Malleus Maleficarum dedicaram s parteiras o pior tratamento possvel, por sua ousadia em contrariar a sentena do Gnesis: Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; dars luz com dores, teus desejos te impeliro para o teu marido e tu estars sob o seu domnio (3:16).

E assim a mulher, a geradora da vida, nossa nutriz e provedora de amor cujo olhar a primeira imagem calma e pacificadora de nossas vidas teve os prprios filhos, recm-sados de suas entranhas, confiscados pelo patriarcado em nome do Pecado Original. A retirada dos bebs do contato com a me logo ao nascer, praticada na Idade Mdia e mais tarde nos hospitais, tanto quanto o batismo dos recm-nascidos, simbolizam com perfeio esse atentado contra a funo maternal. O afastamento do recm-nascido e a relativa restrio de seu contato com a figura materna, ou mesmo o despreparo desta ltima em exercer essa funo, cobra um preo bastante alto na formao do indivduo. inconcebvel que um sujeito que tenha desfrutado da presena, do colo, do toque, do calor, do olhar amoroso e da voz tranquilizadora de sua me possa um dia comprazer-se com a dor de qualquer outra mulher. Um homem que ameaa, maltrata, avilta ou estupra uma mulher provavelmente nunca desfrutou da plena e benfazeja presena de uma me, na acepo mais alta dessa palavra.

Esse mito perverso, alm de justificar a degradao das mulheres, negou qualquer alvio s dores e agonia do parto, e foi levado surpreendentemente a srio at tempos bastante recentes. Em 1591, a nobre escocesa Eufame Macalyne foi queimada viva por solicitar uma parteira para facilitar e aliviar as dores de seu trabalho de parto. Artigos Parlamentares de Inqurito em 1559 ordenaram a seus oficiais religiosos denunciar qualquer uso de bruxedos, magia, encantamentos, invocaes, crculos, feitiarias, adivinhaes, ou quaisquer procedimentos similares especialmente no tempo de angstias das mulheres.

Na viso oficial do cristianismo, aliviar os sofrimentos das mulheres em qualquer aspecto da reproduo era opor-se vontade de Deus quanto maldio a Eva. Deus decretara que ela e todos os seus descendentes do sexo feminino deveriam parir as crianas com lamentos e dor. Consequentemente, at o incio do SCULO XX, os mdicos se recusavam a tratar a principal causa de mortes de mulheres, a febre puerperal. O clero entendia essas mortes como uma consequncia justa para uma vida imoral, ou a consumao do veredito divino sobre a prtica sexual. Quando James Simpson props aliviar as dores de parto com os recm-descobertos anestsicos, clorofrmio e ter, provocou um grande clamor do clero, que classificou sua iniciativa como uma pecaminosa negao dos desejos de Deus. De acordo com clrigos escoceses, aliviar as dores de parto seria corromper a maldio primal contra mulher. Um ministro religioso da Nova Inglaterra escreveu: O clorofrmio um chamariz de Satans, aparentemente oferecendo-se para abenoar as mulheres; mas no final ele vai corromper a sociedade e privar Deus dos gritos profundos e fervorosos que surgem nos tempos de angstia, para obter ajuda.

Com o habitual sadismo semioculto da moralidade patriarcal, ele queria dizer que gritos femininos de dor eram agradveis a Deus, e os homens no deveriam privar nosso Criador desse prazer. O assunto s foi superado quando a rainha Victoria permitiu a seu mdico dar-lhe clorofrmio durante o parto de seu oitavo filho, e publicamente elogiou o novo analgsico como uma grande bno. Habitualmente alinhados aos altos crculos do poder, e acostumados a usufruir de suas benesses, os clrigos no tiveram coragem de contestar a soberana, concedendo-lhe o inesperado direito de suplantar a Deus, mesmo que a contragosto.

A negao crist da sexualidade feminina atingiu de tal modo a medicina que o clitris, cuja funo exclusiva provocar o prazer sexual, foi ignorado pela anatomia at tempos bastante recentes. Ao final do sculo XIX, mdicos do sexo masculino invadiram o ltimo reduto remanescente exclusivamente feminino, e colocou a funo obsttrica fora do alcance das mulheres. Por iniciativa da Associao Mdica Americana, o Congresso dos EUA proibiu a atividade das parteiras, dando lugar aos obstetras profissionais. Freqentemente, uma parteira mais velha era alijada do trabalho, ou at mesmo jogada na priso por prtica ilegal, em comunidades cuja maioria dos membros tinha sido trazida por elas mesmas ao mundo! (Barker-Benfield). Lewis Mumford, socilogo e historiador Americano, escreveu:

Nossa civilizao mecanizada, no interesse de um parto rpido, por convenincia, mesmo com a participao cronometrada do mdico, muitas vezes colocava em perigo me e criana com a interferncia impaciente no processo natural, e muitas vezes agravando esse erro ao anestesiar a me completamente. Muito em breve, como resultado de orgulho cientfico sobre inventar uma frmula para a alimentao independente da fonte natural de leite, a criana foi separada de sua me e privada no s do leite materno, mas da experincia de um caloroso, amoroso, comensal relacionamento com ela.

A profisso mdica, dominada pelos homens, no s assumiu a funo feminina das parteiras, mas se arvorou at mesmo em ensinar as mulheres a exercer a maternagem. Esta pretenso levou a erros terrveis, como a teoria de virada de sculo da Manipulao Mnima, que preconizava que crianas ao chorar no deveriam ser ninadas para no estrag-las, devendo apenas ser pegas a intervalos cronometrados. O auge da arrogncia masculina reside no depoimento de L.K. Frank, que escreveu: O psiquiatra o nico competente para nos dizer como praticar a injuno crist de amar as criancinhas. A impropriedade desta postura pode ser comprovada no fato de que em culturas silvestres como as indgenas, aborgenes ou esquims, nas quais as crianas ficam todo o tempo grudadas s suas mes ao estilo dos cangurus -, no se verificam traos de angstia nas crianas, e comportamentos como estupros ou maltratos a mulheres so totalmente ausentes da vida adulta.

A tradio misgina do patriarcado judeu-cristo teve tal xito que apenas no sculo XX a civilizao ocidental admitiu a ideia de que as mulheres desfrutassem de sua sexualidade, embora sem a anuncia da Igreja Catlica. Atualmente, devido ao decrescimento de sua influncia e poder, a interferncia da Igreja na vida sexual do ocidente restringiu-se aprovao do sexo unicamente para a procriao, proibio do aborto em qualquer circunstncia mesmo no caso de gravidez por estupro e do controle da natalidade. A proibio do uso de preservativos contribui at hoje para a morte de milhares de pessoas - por doenas sexualmente transmissveis - em pases de menor desenvolvimento, como os pases africanos, em alinhamento doutrina de que o sexo no destinado procriao deve ser rigorosamente punido. Entretanto, contraditoriamente e apesar de processos milionrios, a Igreja romana mesmo hoje mostra-se lenta e complacente na punio dos padres abusadores de crianas.

As trs grandes religies patriarcais, o cristianismo, o judasmo e o islamismo, sempre deram suporte direto ou indireto inferioridade feminina. S recentemente as mulheres adquiriram o direito ao voto proibido em alguns pases muulmanos , embora ainda sofram flagrante desvantagem no mercado de trabalho, tanto em sua admisso, salrios ou mesmo na conquista de cargos de liderana.

Embora o fenmeno detectado na pesquisa mencionada neste texto extrapole os crculos religiosos, indubitvel a herana teolgica incutida no inconsciente coletivo presente nas ideias de que a mulher deve ser contida, controlada, calada, cerceada em suas aes, e maltratada e abusada quando resolver ultrapassar os tmidos territrios a ela permitidos. Exemplo bem-acabado o ttulo dado mulher de Rainha do Lar, uma melanclica soberana cujo reino no ultrapassa as paredes que a cercam. O puritanismo ocidental, com seu medo da mulher e dio ao sexo, deixaram um terrvel legado para o terceiro milnio, no s na forma de espancamento de esposas, pedofilia e estupro, mas na profisso de uma poltica, cincia, filosofia totalmente yang, desprovida dos valores femininos. E onde quer que tal atitude prevalea haver o impulso hostil latente que se manifesta em crimes contra mulheres, uma espcie de extenso caa a bruxas que ainda parece longe de terminar.

A averso ao gnero feminino detm at hoje tamanha magnitude que atinge seu paroxismo no dio da fmea contra a fmea, de modo que as mulheres que ousem questionar esse modelo acabam hostilizadas por outras mulheres, inconscientes de sua real condio. Assim, a cruel fbula bblica segundo a qual foi a mulher quem desencaminhou o homem, conduzindo-o ao pecado, ecoada ainda hoje, mesmo que inconscientemente, por homens e mulheres, crentes ou ateus, ao outorgarem o direito de se atacar impunemente uma mulher insinuante ou inapropriadamente vestida. Essa lei arcaica traz aos homens a fantasia de que suas prprias mulheres ficaro sob controle com a ajuda de seu prximo, e proporciona s mulheres alguma tranquilidade pela reduo do perigo de que uma dessas infratoras venha a desencaminhar seus maridos. Ambos, sem o saber, do um tiro no prprio p: os primeiros, por perderem a oportunidade de desfrutar de companheiras vibrantes, gratas, amorosas, felizes e participativas; controlar a prpria mulher faz tanto sentido quanto amarrar a mo direita para proteger a esquerda de um virtual ataque. Quanto s mulheres, ao trair seu prprio gnero perpetuam a prpria escravido, em troca da garantia imaginria de que o seu homem, atravs de quem adquiriu a duras penas seu tmido lugar na cultura de esposa e me, nunca lhe ser roubado.

Quanto aos crimes contra a mulher, a punio contra os infratores importante e imprescindvel, mas no suficiente para erradicar esse fenmeno. Para tanto, se faz necessria uma profunda reflexo sobre os fatores que levaram nossa cultura a um estgio to antifeminino que tem em sua agenda a devastao da primeira e maior de todas as mes, a Me-Terra, que, a despeito de sua generosidade, hoje emite sinais de exausto na tarefa de sustentar os filhos mais ingratos jamais gerados em seu ventre. Enquanto nos arrogarmos a condio de proprietrios, e no filhos, da Me Terra, enquanto no devolvermos s mulheres sua liberdade e as condies logsticas, materiais e emocionais para exercerem a maternidade, e enquanto no readquirirmos os valores yin em nossa cultura, cincia e religio, ficaremos condenados a vagar por um mundo habitado por pessoas alienadas, infelizes, fteis, frias, violentas e desumanas.

Antonio Farjani

ISIS, A VIRGEM ME DE DEUS

sis, a me do menino-deus Hrus, era a deusa mais importante do panteo egpcio. Seu culto, na forma em que era praticado j em sua fase recente, cerca de dois mil anos atrs, serviu de matria-prima para a construo do cristianismo. Um de seus nomes alternativos era Meri. Dentre seus ttulos, constavam os de Rainha do Cu, Estrela da Manh, Estrela do Mar, Virgem Mede Deus. Era a mediadora entre o cu e a terra, e representada pisando a lua crescente, com seu filho ao colo, s vezes como uma pomba, ou com estrelas nos cabelos ou ao redor da cabea. Essa pomba surgia no episdio em que seu filho Hrus batizado por Anup ou Anbis no rio Nilo. Horus foi o Deus solar e o redentor do egpcios: era chamado O caminho, a verdade, a luz, o filho ungido de Deus, o Bom Pastor, o Salvador , Cordeiro de Deus, Po da Vida.

As imagens de sis como uma virgem negra segurando seu filho ao colo inspiraria todas as madonas negras do paganismo e da cristandade. Uma gravura em arte alexandrina de sis exibe a legenda: Imaculada Nossa Senhora sis, e uma de suas representaes mais comoventes mostrava sis pranteando a morte de Osris, o deus ressuscitado dos egpcios.

Nas procisses em sua homenagem, um homem velho sua frente conduzia um asno, smbolo da fecundidade, imagem que inspiraria a cena tradicional em que Jos conduz Maria grvida montada em um burrico. Lucius Apuleius se dirige a ela nestes termos: " Santa e eterna Salvadora da raa humana... tu ds luz ao Sol. Tu esmagas a morte sob teus ps", pois a crena nessa deusa levava vida eterna. Uma das frases mais conhecidas da deusa-me era "Vinde a mim os que sofrem, que eu os consolarei, lida na inscrio de seu templo em Dendera (cerca de 1500 AC).

O culto tardio a sis prometia a salvao individual, que dependia do arrependimento, e as faltas de seus seguidores eram confessadas e perdoadas pela imerso na gua. Na religio egpcia, a maior celebrao de sis acontecia em 25 de dezembro, quando se comemorava o nascimento de seu filho Hrus e ento, doze dias depois, em 6 de janeiro, o de seu outro filho, Aion. A primeira data foi incorporada pela Igreja Romana, e a segunda pela Igreja Ortodoxa para a celebrao do nascimento de Jesus. Em maro era comemorada a Anunciao do nascimento de Hrus.

Seu templo em Sas, uma antiga capital do Egito,exibia a seguinte inscrio "Eu sou tudo o que era, o que , e o que h de vir" - palavras muito mais tarde atribudas ao deus cristo no livro do Apocalipse (1:8). Seu filho Hrus, por sua vez, declarara Eu sou o caminho, a verdade e a vida cerca de 3000 anos antes de nossa era.

Com o advento da cristandade, muitos de seus templos foram transformados em igrejas dedicadas Virgem Maria. Devemos a Cirilo, bispo de Alexandria (c.378-444), a substituio de sis por Maria, a me de Jesus, como objeto de adorao. Dessa deusa, Maria haveria de tomar emprestados suas imagens, ttulos, smbolos, ritos e cerimnias, assim como a sua mstica condio de Virgem Me de Deus.

Texto de Antnio Farjani