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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X “A MULHER IDEAL INDIANA” - REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE GÊNERO NO CINEMA Juily Manghirmalani 1 Resumo: O cinema popular indiano (cinema híndi) mantém, na maior parte de seus filmes, valores culturais ligados à histórias mitológicas hindus que alimentam a consciência da nação indiana. Uma das representações mais reiteradas é a da mulher derivada da deusa Sita, em que lhe cabe essencialmente três papéis: a de filha, esposa e mãe. Porém, com a influência dos processos de globalização, mudanças políticas e econômicas no país, e de movimentos sociais, como o feminismo, estas definições de representações do gênero feminino vem, cada vez mais, sendo questionadas em filmes desta indústria cinematográfica. A necessária compreensão de como as identidades são formadas através de suas representações faz com que, por um pouco mais de cem anos, o enorme cinema indiano consiga transmitir valores nacionalistas de forma direta e indireta. Essa comunicação, portanto, terá como premissa apresentar como foi criado esse cenário limitador entorno da mulher hindu e como a atual cinematografia popular indiana vem questionando seus próprios valores, muitas vezes em vão. Palavras-chave: Cinema Popular Indiano. Sita. Nacionalismo. Hinduísmo. Mulher. A Índia é hoje uma das maiores produtoras de cinema no mundo, o país chega a lançar cerca de mil títulos ao ano. Dentro do território indiano, há cinco grandes indústrias de cinema 2 , sendo o cinema híndi (conhecido popularmente como Bollywood) o maior exportador dentro do mercado interno e externo. A introdução histórica, a seguir, apresentará a importância da construção de um cinema com propaganda nacionalista para a Índia em seu processo de independência colonial. Porém, o fortalecimento desses pensamentos acabaram por delimitar as representações de personagens femininas e, com isso, a construção de gênero como vista como ideal para a sociedade indiana hindu. O início do cinema híndi 1 Juily Jyotsna Seixas Manghirmalani; filiação Coletivo Lumika; instituição de origem Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR); São Paulo, Brasil. 2 Os cinemas indianos são divididos por línguas, cultura e estados, chegam a ter dezessete polos de produção, porém possuem apenas cinco indústrias formadas. Sendo assim o cinema híndi de Maharashtra; o cinema telugu de Andhra Pradesh; o cinema tâmil de Tamil Nadu; o cinema malayalam de Kerala e o cinema bengalês de Calcutá. O cinema híndi não é o maior produtor cinematográfico do país, mas por ser o maior exportador de filmes, torna-se o mais consumido pelo mercado interno e externo.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

“A MULHER IDEAL INDIANA” - REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DE

IDENTIDADE DE GÊNERO NO CINEMA

Juily Manghirmalani1

Resumo: O cinema popular indiano (cinema híndi) mantém, na maior parte de seus filmes, valores

culturais ligados à histórias mitológicas hindus que alimentam a consciência da nação indiana. Uma

das representações mais reiteradas é a da mulher derivada da deusa Sita, em que lhe cabe

essencialmente três papéis: a de filha, esposa e mãe. Porém, com a influência dos processos de

globalização, mudanças políticas e econômicas no país, e de movimentos sociais, como o

feminismo, estas definições de representações do gênero feminino vem, cada vez mais, sendo

questionadas em filmes desta indústria cinematográfica. A necessária compreensão de como as

identidades são formadas através de suas representações faz com que, por um pouco mais de cem

anos, o enorme cinema indiano consiga transmitir valores nacionalistas de forma direta e indireta.

Essa comunicação, portanto, terá como premissa apresentar como foi criado esse cenário limitador

entorno da mulher hindu e como a atual cinematografia popular indiana vem questionando seus

próprios valores, muitas vezes em vão.

Palavras-chave: Cinema Popular Indiano. Sita. Nacionalismo. Hinduísmo. Mulher.

A Índia é hoje uma das maiores produtoras de cinema no mundo, o país chega a lançar cerca

de mil títulos ao ano. Dentro do território indiano, há cinco grandes indústrias de cinema2, sendo o

cinema híndi (conhecido popularmente como Bollywood) o maior exportador dentro do mercado

interno e externo.

A introdução histórica, a seguir, apresentará a importância da construção de um cinema com

propaganda nacionalista para a Índia em seu processo de independência colonial. Porém, o

fortalecimento desses pensamentos acabaram por delimitar as representações de personagens

femininas e, com isso, a construção de gênero como vista como ideal para a sociedade indiana

hindu.

O início do cinema híndi

1 Juily Jyotsna Seixas Manghirmalani; filiação Coletivo Lumika; instituição de origem Universidade Federal de São

Carlos (UFSCAR); São Paulo, Brasil. 2 Os cinemas indianos são divididos por línguas, cultura e estados, chegam a ter dezessete polos de produção, porém

possuem apenas cinco indústrias formadas. Sendo assim o cinema híndi de Maharashtra; o cinema telugu de Andhra

Pradesh; o cinema tâmil de Tamil Nadu; o cinema malayalam de Kerala e o cinema bengalês de Calcutá. O cinema

híndi não é o maior produtor cinematográfico do país, mas por ser o maior exportador de filmes, torna-se o mais

consumido pelo mercado interno e externo.

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A chegada do cinema na Índia ocorreu em 1896 através da exibição de filmes dos irmãos

Lumière, quando o país ainda se encontrava sob domínio britânico. Logo, fotógrafos nativos

começaram a ter interesse pela arte cinematográfica e, com a proliferação de casas exibidoras em

território nacional, deu-se inicio também à demanda por narrativas que tivessem relação com a

cultura e as preocupações indianas. Esse emergente sentimento nacionalista foi importante para o

crescimento de filmes com temáticas culturais endógenas ainda durante o período colonial.

O mais conhecido pioneiro do cinema indiano foi Dadasaheb Phalke. Ele acreditava

fortemente na filosofia nacionalista de swadeshi,3 crença segundo a qual os indianos deveriam

administrar sua própria economia na perspectiva de uma futura independência (Thoraval, 2000,

p.6). Phalke decidiu usar essa nova arte para contar histórias com as quais ele e a maioria dos

indianos estavam familiarizados, pretendendo, assim, educar e difundir conhecimento para a

sociedade indiana (ainda majoritariamente analfabeta). Viajou à Londres, onde comprou

equipamentos e então produziu o primeiro filme popular indiano, chamado Raja Harishchandra

(1913). A obra foi baseada em dois grandes épicos indianos: o Ramayana e o Mahabaratha.

Raja Harishchandra imediatamente deu ao emergente cinema indiano, a autenticidade de

conteúdo cultural, intelectual e de movimento anticolonialista (ou movimento swadeshi) do final do

século XIX e começo do XX. Esse filme também é importante por apresentar o gênero mitológico,

específico do cinema indiano. Filmes com a atmosfera do “fantástico” e devoção religiosa atraíram

enormes multidões por serem considerados educacionais em relação a cultura indiana e a religião

hindu (Thoraval, 2000, p.6). O entrelaçamento do cinema com a cultura era tamanho que houve

vezes em que a audiência chegou a relacionar, através desses filmes, atores e atrizes com figuras

religiosas, colocando fotos desses artistas em locais de reza junto às imagens de deuses.

Em 1927, apenas 15% dos filmes distribuídos na Índia eram produções nacionais e, dos 85%

estrangeiros, 90% eram hollywoodianos. A Primeira Guerra Mundial provocou o fim da

distribuição de produções europeias no mundo e na Índia não foi diferente (Thoraval, 2000, p.22).

A Universal Pictures4 americana dominou o sistema de distribuição indiano e na época, os filmes

hollywoodianos, por terem a distribuição mais barata, mesmo se comparados a filmes indianos,

tiveram mais facilidade com a mercantilização. No entanto, entusiasmados pelo espírito swadeshi,

associações de produtores e distribuidores como a Bombay Cinema and Theatres e a Indian Motion

3Swadeshi significa autossuficiência. O movimento swadeshi foi uma estratégia política destinada a remover o Império

Britânico do poder e das condições econômicas da Índia. Estratégias do movimento swadeshi envolviam boicotar

produtos britânicos e revitalização dos produtos nacionais e seus processos de produção. 4 A Universal Pictures (também conhecida por Universal Studios) é, hoje, subsidiária da NBC Universal, um dos seis

maiores estúdios do cinema mundial.

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Picture Producers Association protestavam a favor de que filmes nacionais tivessem 50% das telas

dos cinemas, com a ideia implícita de prejudicar a produção externa, especialmente dos

colonizadores. A maior preocupação era a de “proteger a sociedade indiana e seus costumes da

ameaça ocidental” (Thoraval, 2000, p.18).

Essa medida protecionista criou, na audiência indiana, o hábito de consumir produções

internas. Até hoje, o espaço dado em salas de cinema para produções externas é de menos de 10%

ao ano, inclusive nos multiplex de grandes shoppings. Isso ocorre principalmente pela demanda do

público indiano em assistir filmes em sua própria língua e estilo cinematográfico.

Na década de 1940, a arte cinematográfica estava consolidada na Índia, com um significante

domínio sobre o entretenimento de massa e como grande construtor cultural. A fórmula de sucesso

nas bilheterias estava criada e consistia na inserção de elementos como as canções, dança,

espetáculo, retórica e fantasia, características relevantes do melodrama.

A década de 1950 foi marcada como a “Idade de Ouro” do cinema popular indiano.

Simultaneamente, o distinto cinema de arte, conhecido como Cinema Paralelo, tomou forma com o

bengalês Satyajit Ray. Seu filme Pather Panchali (1955) ganhou fama internacional e

reconhecimento de crítica. Pather Panchali, Aparajito (1956) e Apur Sansar (1959) ficaram

conhecidos como a Trilogia de Apu, uma das obras primas do cinema mundial.

Outro fator que deve ser levado em conta ao falar da indústria cinematográfica indiana é o

fato de que não existe apenas uma e, sim, cinco indústrias com características distintas na Índia.

Com o crescimento avassalador da cinematografia indiana, cada região seguiu seu próprio padrão

dentro dessa arte, estes são os chamados Cinemas Regionais (Thoraval, 2000, p.219). As razões

para a existência de tantas indústrias são, principalmente, as diferenças culturais e de idiomas entre

os estados, o que dificulta o intercâmbio de filmes dentro do próprio país. A maior parte dos estados

mantêm as línguas locais.

As influências do cinema popular indiano

Pesquisadores associam o cinema híndi como o cinema popular indiano por ser o maior

exportador de filmes do país, tendo grande visibilidade pela diáspora e, também, em território

nacional. Este cinema fortalece e determina o vigente sistema de estrelas, a forte produção musical

e a indumentária operante.

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Para entender como o cinema híndi tomou forma e distinção, K. Moti Gokulsing e Wimal

Dissanayake (1998, p.17) afirmam que é preciso analisar forças que exerceram profundo impacto

no crescimento deste cinema nacional.

A primeira força é a constituída pelos épicos Ramayana e Mahabharata. Esses dois contos

têm influenciado há séculos a vasta massa populacional indiana, sendo encontrados em diversas

formas de arte como poesia, drama, arte e escultura, alimentando a imaginação de vários tipos de

artistas e educando a consciência da nação. A influência deles no cinema pode ser analisada em

quatro níveis: temas, narrativa, ideologia e comunicação.

O Mahabharata (A Grande Índia) gira em torno das lutas entre duas famílias principescas,

os Pândavas e seus primos, os Kauravas, para possuir um reino localizado perto da atual cidade de

Déli. Além da narrativa épica, o Mahabharata desenvolve ideologicamente conceitos básicos do

hinduísmo, os quatro objetivos de vida, que são: dharma (ação correta), artha (propósito), kama

(prazer) e moksha (libertação).

Já o Ramayana (Viagem de Rama) celebra a vida e proeza do Príncipe Rama, que é exilado

por seu pai sob o comando de sua madrasta Kaikeji. Rama parte para a floresta com sua esposa Sita

e seu irmão Lakshman. Ao sair para caçar, Rama deixa Sita sozinha e ela é raptada pelo rei-

demônio Ravana. Rama, com ajuda do exército de macacos liderados por Hanuman, recupera Sita.

Com dúvidas sobre a lealdade e pureza de sua esposa, Rama aceita que Sita passe por um teste de

fogo e, com isso, comprovaria sua castidade caso ela saísse viva e intacta. Ela sobrevive ao teste de

fogo mas Rama sente-se obrigado a deixar sua esposa para que não suje sua imagem perante o

reino. Leal ao marido, Sita aceita a sua condição, mas abre uma fenda no chão e é tragada pela terra.

Triste com a perda da esposa, Rama se oferece ao deus da morte. Esse épico transmite os valores

que regem o relacionamento entre humanos pelo hinduísmo: o caráter de pai, filho, irmão, esposa,

monarca e servos ideais.

A literatura indiana é composta por inúmeros contos, porém o Mahabharata e o Ramayana

são os mais visitados pela cultura popular e também pelo cinema. Segundo os autores, “a ideologia

central subjacente nos dois épicos é a preservação da ordem social existente e seus valores

privilegiados” (Gokulsing e Dissanayake, 1998, p.18).

Os teatros sânscrito, folclórico e parsi (do século XIX) foram outras grandes influências do

cinema indiano. Por muitos anos, a cultura e histórias eram passadas oralmente e através de

encenações, cada um desses teatros contribuiu de forma distinta. O teatro sânscrito era constituídos

por grandes espetáculos de “dança-drama”; o teatro folclórico tinha características mais populares e

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atraiam as massas; enquanto o teatro parsi destacava-se pelos dramas sociais e históricos.

Esteticamente, as peças possuíam misturas de realismo e fantasia, música e diálogo, narrativa e

espetáculo, todos combinados no quadro do melodrama.

Em sequência, há as influencias estilísticas modernas que gradativamente alteraram a

estética da cinematografia indiana. Os musicais hollywoodianos fascinaram os cineastas indianos,

que relacionavam de forma única os traços do cinema clássico americano e das performances

indianas: o enredo não era usado para ligar a narrativa ao espetáculo. Pelo contrário, músicas e

danças eram – e ainda são – usadas como expressões naturais de emoções e situações emergentes no

dia a dia, intensificando o elemento fantasia através do espetáculo, criando a impressão de que são

naturais e lógicas. A música se constituiu como componente essencial na construção das emoções

culturais indianas.

A última força de que os autores recorrem é o impacto da Music Television. O ritmo dos

videoclipes, com cortes rápidos, sequências de dança e ângulos de câmera ficaram associados ao

canal musical de televisão. Após a década de 1980, os clipes musicais nos filmes ganharam força e

se tornaram um dos materiais mais rentáveis vinculados às obras cinematográficas.

Estas seis grandes potências foram levantadas pelos autores no final dos anos 1990.

Atualmente, pode-se pensar que a internet também é uma das grandes influências desse cinema

popular. Sendo uma das formas pela qual indianos, viventes na Índia ou no exterior, têm acesso a

filmes de forma globalizada e os consomem de forma ágil. Além de alterar a dinâmica de recepção,

a internet também presta assistência ao soft power5 deste cinema nacional.

Os filmes indianos que são vistos e apreciados por uma vasta massa de expectadores,

frequentemente são musicais, melodramáticos, com claras e simples mensagens de moral. Eles

representam um tipo específico de acesso ao cinema como uma forma de entretenimento de massa,

com a união de fantasia, ação, canção, dança e espetáculo. Em termos de reação popular e de como

a imaginação dos espectadores é formada, o cinema popular nacional é altamente significativo.

O melodrama indiano

5 Soft power é um conceito desenvolvido por Joseph Nye para descrever a capacidade de atrair e cooptar em vez de

coagir, usar a força ou dar dinheiro como meio de persuasão. O poder brando é a capacidade de moldar as preferências

dos outros, através de recurso e atração. Uma característica definidora deste poder suave é que ele é não coercitivo. A

moeda do soft power é a cultura, os valores políticos e as políticas externas. A saber, procurar a obra: Joseph S. Nye Jr.

The Means to Sucess in World Politics, Public Affairs, New York, 2004.

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A Índia independente tem a democracia como regime político e possui a propaganda secular.

É preciso ter em mente que existem duas formas de compreender o secularismo: “uma como prática

política ou doutrina e outra como categoria epistêmica ou ontologia” (Dwyer, 2006, p. 132). Na

Índia, esse assunto é tratado principalmente na esfera política e, dentro da indústria cinematográfica,

o secularismo é interpretado como a possibilidade de respeito mútuo entre todas as religiões. No

entanto, há uma preferência constante nos filmes indianos em fazer referências à rituais religiosos

hindus e mulçumanos, como sequências de adoração à Shiva ou versos de mantras, que revelam

uma preocupação nacionalista em preservar a religião e as tradições indianas.

Ira Bhaskar analisa questões de gênero, identidade e subjetividade dentro do contexto do

cinema hindi6. Para a autora, o melodrama é visto como uma das mais populares e contínuas formas

culturais em que crises contemporâneas são cinematicamente representadas e negociadas.

Emergente de períodos de transição do sagrado para o moderno, o “melodrama é visto como

negociador de traumas de deslocamento de lutas de classe e gênero, respondendo as dúvidas e

impasses consequentes da secularização” (Bhaskar in Gledhill, 2012, p.162).

Bhaskar enxerga caminhos pelos quais o cinema popular indiano desenvolveu

especificidades sobre o melodrama: em primeiro lugar, a orquestração do desejo. Com a

modificação da estrutura social indiana de feudal para moderna, logo após sua independência em

1947, diversos filmes dos anos 1950 apresentaram a modernidade como uma ameaça. Os

personagens eram cheios de conflitos internos e a única opção seria a autodestruição do sujeito.

Esse ato era frequente quando haviam tentativas de desafiar a divisão de classes (a mistura de castas

foi um grande assunto na época), a instituição da família e a ordem patriarcal.

Em segundo lugar e em sequência à orquestração de desejos, a autora entende o “melo” da

palavra melodrama de forma metafórica – Bhaskar enxerga a centralidade e a funcionalidade de

canções em filmes indianos como a opção para uma linguagem indizível. Elas aparecem de forma

hiperbólica e utilizam expressões do desejo do sujeito, em uma estética distintivamente indiana.

Por último, o tradicional sagrado é visto em diferentes formas e em quase todas as obras

melodramáticas. Ele aparece na citação direta e indireta da religião no texto fílmico.

Bhaskar afirma que “a ‘tradição’ reformada, com a espiritualidade como seu núcleo, foi

crucial para o domínio interno da cultura nacional que marcou o caráter distintivo da Índia

6 O cinema indiano é constituído por cinco indústrias cinematográficas. Com o crescimento avassalador da

cinematografia indiana, cada região seguiu seu próprio padrão dentro desta arte, chamados de Cinemas Regionais. As

razões da existência de tantos cinemas são primeiramente as diferenças culturais e de idioma dos estados, que

dificultam o intercâmbio de filmes dentro do próprio país. Porém o cinema híndi é o que mais possui destaque

internacional, dentro das maiores diásporas indianas.

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moderna” (Bhaskar in Gledhill, 2012, p. 172.). Junto com resquícios do colonialismo, a

modernidade indiana gerou, na elite do país, um olhar crítico sobre a tradição e, com o nascer do

nacionalismo pró-independência, deu-se início a uma grande autoconfiança nacional.

Jigna Desai utiliza das reflexões de estudiosos dos quadros pós-coloniais como Partha

Chatterjee para discutir como a polarização entre a tradição e a modernidade está relacionada às

políticas de gênero do nacionalismo anticolonial indiano (Desai, 2004, p. 163).

Partha Chatterjee associa o moderno à esfera masculina e pública, onde é possível detectar

discursos derivados do nacionalismo e do materialismo indiano. Enquanto pertencente à esfera do

feminino, o autor enxerga a tradição, espiritualizada e nativa, que está relacionada à manutenção da

casa, da família, da nacionalidade e da domesticação.

Assim, durante a primeira parte do século, a instituição da família que reproduz a cultura

nacional através do corpo feminino emerge da consolidação da classe média. Dentro do

contexto colonial e nacional, a independência [da Índia] marcou a mulher burguesa como

casa [home], nação e espiritualidade. Além disso, no discurso (neo)colonial, o fardo das

opressões sexuais e de gênero, está na base das “tradições” feudais e patriarcais (da

religião, do casamento e da heterossexualidade) localizado na família “indiana”. A

sexualidade também foi mobilizada pelo nacionalismo anticolonial em nome da família, da

maternidade e da pureza (marcadas pela tradição), em contraste aos moldes ocidentais de

romance e de amor (significadores da modernidade). Estas determinações binárias

continuam a configurar, centralmente, discursos nacionais (e também no cinema) e

instituições de gênero e sexualidade. (CHATTERJEE apud DESAI, 2004, p.163)

A transição política da Índia colonial para pós-colonial colocou na mulher indiana

(principalmente a de classe média) imposições de comportamento e responsabilidade sobre a

família, o lar e a espiritualidade. O cinema como grande construtor cultural, acabou por intensificar,

por décadas, a imagem da “mulher ideal” em seus filmes populares. Contudo, uma nova onda de

filmes do cinema híndi, mais críticos e menos palatáveis, está surgindo na Índia desde o início dos

anos 2000 e uma das temáticas principais dessa nova cinematografia é compreender os papéis

impostos às mulheres indianas.

A representação da mulher ideal indiana

No cinema popular indiano há pouca diversidade de papéis femininos, sendo eles sempre

atrelados ao seu referencial masculino. O conceito de “mulher ideal” segundo práticas hindus

fundamentalistas é passado em contos mitológicos principalmente pela história de Sita, esposa de

Rama, no conto Ramayana (visto previamente no texto). Segundo o épico, a mulher deve obedecer

seu marido como se fosse um deus: “ele é seu amigo e seu mestre (professor)” (Gokulsing e

Dissanayake, 1998, p.75).

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O cinema popular indiano perpetuou esta imagem dentro de seus filmes, com isso, o papel

da mulher limitou-se essencialmente a:

filha (Beti), esposa (Patni) e mãe (Ma). De acordo com o Manusmriti7, a mulher deveria

estar sujeita ao pai na infância, ao marido na juventude, e quando seu marido morresse, aos

seus filhos. As mulheres não receberam nenhum tipo de independência. (GOKULSING e

DISSANAYAKE, 1998, p.75)

Há diversas histórias protagonizadas por diferentes personagens femininas nas mitologias

indianas, porém a passagem de Sita e Rama é uma das mais disseminadas na cultura hindu por estar

relacionada à outras formas de arte e rituais nacionais (como o maior feriado indiano, o Diwali, que

acontece graças ao retorno de Rama ao seu reinado).

No Mahabharata há outra forma de amor amplamente exaltada pela cultura hindu, o amor

romântico e proibido de Radha e Krishna. Porém, de forma sintetizada, esta relação constitui-se na

preservação de moldes sociais de divisão de castas e a proibição de um relacionamento que vá

contra essa norma. Como também, perpetua a submissão da personagem feminina Radha (de casta

menor) ao aceitar e tolerar, durante a vida toda, formas de assédio vindas do privilegiado Krishna.

O conto transmite a ideia de que a persistência de Krishna com Radha faz com que a garota se

apaixone pelo príncipe.

Esses dois épicos indianos utilizaram de duas histórias de relacionamento heterossexual para

passar normas de como a mulher indiana devesse agir, ignorando qualquer forma de existência da

mulher sem uma associação à homens.

Alguns filmes da indústria cinematográfica indiana buscaram questionar essa associação da

mulher com Sita, como no caso de Lajja (Rajkumar Santoshi, 2001) e Dilwale Dulhania Le Jayenge

(Aditya Chopra, 1995).

Lajja foi um fracasso de bilheteria, mesmo tendo o apelo do sistema de estrelas e músicas

famosas no filme. A obra conta a história de cinco mulheres, todas com nomes de avatares de Sita,

que passam por problemas interligados às questões de gênero características da cultura e religião

hindu, como: feminicídio, crítica ao sexo antes do casamento, estupro, gravidez indesejada, aborto,

manutenção de casamento arranjado de forma indesejada, entre outros.

Dilwale Dulhania Le Jayenge é considerado um dos melhores filmes do cinema híndi já

feitos (este filme é continuamente exibido por uma mesma sala de cinema a 22 anos). Ele foi um

marco nas mudanças de temáticas do cinema popular dos anos 1990, pois representa novos moldes

e ideias vindo do processo de modernização na Índia.

7 Um dos textos mais antigos do hinduísmo.

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Em uma das passagens mais dramáticas do filme, a mãe de Simran conversa com a filha

sobre as imposições que teve que passar na sua vida e que não gostaria que a filha passasse pelo

mesmo. Nesta fala ela cita todos os papéis de Sita, referindo-se também ao casamento arranjado

indesejado e de não possuir independência para tomar suas próprias escolhas, estando assim,

subordinada à todas decisões do pai da família. Inicialmente, a mãe da moça encontra-se

conformada e pede que a filha aceite seu destino. Porém, com o passar do filme, há uma troca de

valores e essa mesma mãe ajuda a filha a fugir com o rapaz que ela realmente ama.

O filme não reflete sobre a independência de Simran, pois ela só consegue fugir por estar na

companhia de um homem, porém ele altera a dinâmica patriarcal da escolha – quem escolhe seu

destino no casamento é a personagem feminina, não seu pai. Essa obra gerou grandes discussões

dentro da Índia na época e é até hoje referido em festas de casamento e outras obras

cinematográficas.

Contestações contemporâneas sobre a mulher

Desde o início dos anos 2000, uma nova onda do cinema híndi começa a se instaurar em

grandes casas exibidoras nacionais e internacionais, ganhando espaço na mídia e reconhecimento da

crítica internacional. Esta é conhecida como o Novo Cinema Indiano.

Em contrapartida às formatações cinematográficas vigentes, os filmes dessa onda possuem

menor tempo de duração (cerca de 90 minutos em comparação ao cinema popular que chega

facilmente aos 180 minutos); a invocação do fantástico, músicas e dança não fazem mais parte da

estrutura fílmica, entrando eventualmente em cenas de créditos finais; e a maior característica desse

novo movimento é a abertura para questionamentos e aprofundamentos em temáticas antes

negligenciadas ou proibidas graças ao rigoroso órgão de censura indiano8.

Alguns dos títulos mais importantes dessa geração e que discutem a relação da mulher

indiana com a sociedade em que estão inseridas, são: Queen (Vikas Bahl, 2014), Pink (Aniruddha

Roy Chowdhury, 2016) e Dangal (Aamir Khan, 2016). Todos dirigidos por homens.

Em Queen, a protagonista Rani é uma moça ingênua de família conservadora que está

prestes a se casar em um casamento arranjado. Seu noivo acaba com o contrato de casamento dias

8 O Central Board of Film Certification (CBFC) é um órgão de censura e classificação sob o domínio do Ministério da

Informação e Radiodifusão do Governo da Índia. Os filmes só podem ser exibidos na Índia após passagem pela

aprovação da censura, que segue a regulamentação do Ato Cinematográfico de 1952. O poder da censura indiana é

enorme e muitos filmes não conseguem autorização para exibição até hoje.

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antes das festas, isso deixa a moça marcada negativamente pela sociedade e leva vergonha e

desonra à sua família. Rani decide viajar pela Europa sozinha em busca de entender-se como pessoa

e essa atitude da personagem é uma das formas mais contestadoras já apresentadas pelo cinema

indiano popular contemporâneo sobre o comportamento da mulher. Rani não termina o filme noiva

de outro homem, nem se vitimiza perante o ocorrido, ela encontra força em si e muda sua vida.

Em resumo, esse filme foi recebido com enorme peso crítico na parte fundamentalista da

Índia, mas também abriu diálogo com uma nova geração que busca por temáticas mais atuais, como

casamentos que não possuem finais felizes e mulheres independentes. O filme possui problemas

sobre como retrata Rani, como por exemplo: ela é sempre ingênua e submissa aos homens que

esbarra; faz poucas amizades com mulheres; ela precisa da reafirmação de sua auto imagem através

de uma beleza globalizada e estereotipada. É um filme que transita entre os moldes tradicionais do

cinema híndi e o novo cinema que está emergindo.

Os próximos dois filmes tiveram grande repercussão de mídia, pois traziam como

protagonistas dois atores indianos de enorme sucesso. O cinema híndi ainda se vê dependente do

sistema de estrela masculino, em que, para grande bilheteria, precisa colocar atores em papéis

principais, mesmo que para discutir assuntos do gênero feminino.

Pink é baseado em fatos reais de um famoso caso judicial que ocorreu em Déli. Três moças

foram para casa de três garotos após uma balada. Lá, um deles tentou assediar uma das garotas que,

em auto defesa, quebrou uma garrafa de vidro no homem. Os amigos entraram com processo por

atentado à homicídio doloso contra a garota e mais as duas amigas, gerando enorme conflito no

país, principalmente pela visão parcial da mídia que culpabiliaza mulheres por terem domínio de

suas sexualidades. No entanto, um aposentado advogado que mora perto das garotas enxerga a

situação de forma diferente. Ele oferece seus serviços para defende-las e vence o processo

colocando questionamentos sobre imposições culturais e religiosas que as mulheres ainda são

obrigadas a passar nos tempos atuais.

Esta obra foi vendida como um filme feminista pela Índia, porém é preciso ter em mente que

foi necessário um advogado homem entrar na briga pelos direitos das mulheres que se encontravam

indefesas até então. As cenas do advogado convencendo o juiz, outro homem, de que as mulheres

eram inocentes é a maior questão sobre esse filme. A obra realmente é sobre a liberdade e poder das

mulheres perante seus corpos e existência ou apenas uma brecha para abrir a discussão sobre o

tema?

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Dangaal segue a mesma reflexão de Pink, o filme apresenta outras formas da mulher se

colocar na sociedade indiana, porém sem perder o laço com a determinação masculina sobre ela.

O filme fala de um treinador de luta em decadência, ele sofre por não ter tido filhos homens

e não passar a luta em sua linhagem familiar. No decorrer do filme, ele percebe que suas filhas mais

novas possuem força física, pois se defendem de assédios de garotos na escola. O desejo ego-

centrado do pai faz com que ele abra exceção para mulheres e comece a ensinar suas filhas à lutar.

Elas inicialmente aceitam essa aprendizado, contudo, o estilo agressivo e impositor do pai começa a

incomodá-las, mas não encontram saída a não ser obedecê-lo. Elas são humilhadas na escola por

terem que raspar o cabelo (eliminando a vaidade, característica predominante da feminilidade), são

obrigadas a manter uma dieta assídua e não conseguem nunca negar os desejos do pai, com isso, a

luta vira suas vidas e, no futuro, também seus desejos pessoais.

Ao final do filme, quando umas das filhas consegue a estimada medalha de ouro - o

resultado máximo possível dentro desse universo – ela agradece ao pai dizendo que tudo que ela

sempre desejou na vida era agradar ele.

Dentro do filme há conversas dessas meninas com uma moça jovem que está prestes a se

casar. Nesse diálogo, a noiva comenta a sorte das garotas por terem um pai que não as obrigue a

seguir a vida esperada de uma mulher indiana. Porém, a questão sobre o filme anterior aqui retorna:

como as mulheres desse filme conquistaram sua independência sobre o patriarcalismo imposto?

Nesse caso, qual o papel dessas filhas quando todas as decisões de suas vidas, na adolescência e

vida adulta, foram impostas pelo pai?

A nova onda de filmes com preocupações em causas sociais na Índia abre importantes

discussões sobre a sociedade e cultura, com isso, é necessário levar em conta a relevância de filmes

como Queen, Pink e Dangaal. Porém, exatamente por eles influenciarem a crítica contemporânea, é

preciso que o espectador reflita sobre essa reformulação de zonas de poder e se realmente há algum

avanço sobre os direitos das mulheres sobre si, seus corpos e sexualidades. Há mudanças nas

características nacionalistas nesses textos fílmicos ou os paradigmas são os mesmos e o que mudou

apenas foi o estilo de contar essas histórias?

Referências

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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Bombay Films, 1940-‘50s in Christine Gledhill (ed). Gender meets genre in postwar cinemas.

Urbana, Chicago, Springfield. University of Illinois Press, 2012.

JIGNA DESAI. Beyond Bollywood: the Cultural Politics of South Asian Diasporic Film, New

York/London. Routledge, 2004

K. MOTI GOKULSING e WIMAL DISSANAYAKE. Indian Popular Cinema – A Narrative Of

Cultural Change. Inglaterra: Trentham Books Limited, 1998.

RACHEL DWYER. Filming the Gods – Religion and Indian Cinema. USA and Canada. Routledge,

2006.

YVES THORAVAL. The Cinemas of India. Nova Delhi. Macmillan India Ltd, 2000.

"The ideal Indian woman" - reflections on the construction of gender identity on cinema

Abstract: The Indian popular cinema (Bollywood or Hindi cinema) retains, in most of its films,

cultural values tied to Hindu mythological stories that feed the consciousness of the Indian nation.

One of the most replicated representations is the woman derived from the goddess Sita, in which

has essentially three roles: daughter, wife and mother. However, with the influence of globalization,

political and economic changes in the country and social movements, such as feminism, these

definitions of representations of the feminine gender are increasingly being questioned in movies of

this film industry.

The necessary understanding of how identities are shaped through their representations shows that

for over a hundred years the enormous Indian cinema is able to transmit nationalistic values directly

and indirectly.

This communication, therefore, will have as premise to present how the limited scenario

surrounding the Hindu woman was created and how the current Indian popular cinema has been

questioning its own values, often in vain.

Keywords: Indian Popular Cinema. Sita. Nationalism. Hinduism. Woman.