a mulher e o sistema penal - de vitima à infratora e a manutenção da condição de subalternidade

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o presente trabalho que tem a questao de genero como objeto de analise, em especial na interface com a questao criminal. Analisa-se a posição da mulher diante da atuaçao do sistema penal enquanto vitima e como transgressora e o mesmo vies das respostas ofertadas pela estrutura institucional estatal, marcadas pelo sexismo. O trabalho esta publicado na mais recente publicação da revista de Estudos Juridicos do programa de pos-graduaçação da UNESP-Franca SP. em seu numero v.18 n. 27 de 2014

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  • A MULHER E O SISTEMA PENAL: DE VITIMA INFRATORA E A

    MANUTENO DA CONDIO DE SUBALTERNIDADE

    WOMEN AND CRIMINAL SYSTEM: THE VICTIM TO THE OFFENDER AND

    THE MAINTENANCE OF THE SUBALTERNITY CONDITION

    Jackson da Silva Leal1

    SUMRIO: APONTAMENTOS PRELIMINARES: situando a discusso. 1 MULHER ENQUANTO SUJEITO ATIVO: uma anlise baseada na econmica poltica da pena e as sobrecargas de opresso. 2 A VTIMA ENQUANTO

    PASSIVIDADE: o resgate do esteretipo da vtima e a reafirmao da subalternidade feminina. CONSIDERAES

    FINAIS. REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS.

    RESUMO: Nesse trabalho se analisa a problemtica de gnero, especificamente o caso da mulher em seu

    contato com o sistema penal, em sua dupla manifestao. Enquanto sujeito ativo e enquadrada como autora e

    definida como criminosa, e assim reconhecida como duplamente transgressora e duplamente punida. E tambm,

    na condio passiva de vitima, mormente na questo da violncia domstica e na centenria relao de

    submisso dentro do lar e no seio das relaes familiares dominadas pelo homem (patriarca/varo), e a funo de

    resgate/reafirmao dos papeis sexualizantes e legitimadores da subalternidade feminina que so

    operacionalizados pelo funcionamento do sistema penal (ainda que em funo supostamente defensiva). Assim,

    reafirmando e fortalecendo o lao das relaes modernas marcadas historicamente pela predefinio de papeis

    estereotipados de gnero ou seja, a menina que corre para o colo do pai, depois para os braos do marido, e por fim, para a assistncia/defesa/vingana operada pelo Estado como institucionalidade masculina. O presente

    trabalho se pauta por anlise terica e bibliogrfica, recuperando algumas pesquisas realizadas sobre a

    criminalizao da mulher e da aplicao da lei que amplifica as penas para violncia domstica. Tal analise se d

    a partir do arcabouo terico-analtico permitido pela criminologia critica. O objetivo deste trabalho o

    adensamento da discusso da problemtica relao mulher x sistema penal, com intuito de promover micro-

    rupturas intelectivas, e assim desvelar a face masculina da operacionalidade do sistema penal e sua importante

    parcela de contribuio nessa dominao histrica.

    PALAVRAS-CHAVE: criminologia crtica; sistema penal; dominao masculina; institucionalidade patriarcal;

    ABSTRACT: In this work we analyze the problems of gender, specifically the case of the woman in their

    contact with the criminal justice system, in its double manifestation. As active subjects and framed as author and

    defined as criminal, and thus recognized as doubly transgressive and doubly punished. Also, the passive

    condition of the victim, especially on the issue of domestic violence and the Centennial relation of submission

    within the home and within the family relationships male-dominated (patriarch/man), and the function of

    redemption / sexualizantes reaffirmation of roles and legitimating of female subordination that are operated by

    the operation (even in supposedly defensive function) penal system. Thus , reaffirming and strengthening the

    bond of modern relationships marked historically by default stereotypical gender roles - ie the girl who runs to

    his father's lap , then into the arms of her husband , and finally , for the assistance / advocacy / revenge operated

    by the state as male institutions . This work is guided by theoretical and literature review, recovering some

    research on the criminalization of women and law enforcement that amplifies the penalties for domestic

    violence. This analysis starts from the theoretical and analytical framework allowed for critical criminology. The

    objective of this work is the density of the discussion of the problematic relationship woman x penal system,

    aiming to promote intellective micro - breaks, and so reveal the male face of the operation of the penal system

    and its important contribution portion of this historical domination.

    KEYWORDS: critical criminology; penal system; male domination; patriarchal institutions

    A marca do batom vermelha, cor das bandeiras libertrias e, tambm,

    do sangue derramado pela opresso (Frei Beto)

    paz sem voz, no paz, medo [...]

    1 Graduado em Direito (UCPel); advogado criminalista inscrito na OAB/RS; mestre em Politica Social (UCPel);

    doutorando em Direito (UFSC) pesquisador da linha Criminologia e Sistema de Justia, bolsista pesquisador

    CAPES/CNPq

  • Qual a paz que eu no quero conservar

    pra tentar ser feliz

    (O Rappa)

    APONTAMENTOS PRELIMINARES: situando a discusso

    O presente trabalho analisa o contato da mulher com a estrutura institucional

    ocidental burguesa, em especial em sua feio patriarcal, especificamente na sua manifestao

    que o sistema de justia penal, ou sistema penal como se denomina desde a criminologia

    crtica.

    Nesta linha, a presente discusso se desenvolve em duas perspectivas distintas,

    mas interligadas pelo mesmo fio condutor, a reafirmao dos papis de gnero e a dominao

    masculina que continua sendo operada, s vezes abertamente, e em alguns momentos sub-

    repticiamente na atuao das instituies e dinmicas de sociabilidade moderna e institucional

    oficial.

    Assim, a problemtica que se apresenta com a mulher enquanto sujeito ativo, na

    condio de autora e definida como criminosa pelo sistema penal, entendida como

    duplamente transgressora; e, portanto, duplamente punida pelo sistema penal. Sobre ela recai

    uma sobrecarga de punio com a sano penal, e a reafirmao dos papis a ela

    historicamente atribudos, e os espaos culturalmente negados.

    Ou ainda, enquanto sujeito passivo e assim feita vitima da histrica subalternidade

    em relao ao masculino e suas criaes culturais, sociais e politicas; que tem seu epicentro

    na modernidade contempornea com a manifestao da violncia domstica e a sujeio fsica

    absoluta levada ao limite com o feminicdio.

    Aborda-se a questo do recurso ao sistema penal como instituio masculina

    (criado com fins determinados de sujeio e docilizao dos indivduos) como dinmica de

    domesticao e controle da violncia intrafamiliar baseada no gnero. Entretanto, trabalha-se

    com a hiptese de que essa estratgia permite a reforo dos prprios valores da separao

    entre os gneros pautados pela ambivalncia e que atribui a mulher o (des)qualificativo de ser

    o sexo frgil. Alm de resgatar diversos esteretipos de gnero e manter a dominao

    patriarcal histrica. Isso sem falar na histrica e imanente incapacidade do sistema penal em

    resolver os conflitos, e sequer de proteger a mulher, produzindo meramente uma

    (re)vitimizao e simplificao da problemtica a partir do populismo punitivo.

    O presente trabalho construdo a partir de abordagem terica e bibliogrfica,

    desde o acmulo terico e emprico permitido pela criminologia crtica, especialmente latino-

    americana, e assim se resgata pesquisas realizadas no Brasil envolvendo o objeto deste

    trabalho a mulher x sistema penal , a fim de contribuir com a anlise. Assim, analisa-se a questo envolvendo a mulher enquanto vitima desde o

    desvelamento do sistema penal e sua incapacidade de proteg-la, e de resolver conflitos, na

    perspectiva de demonstrar as reais funes que cumpre o sistema penal, ou seja, suas funes

    encobertas. Tambm, traz-se a mulher enquanto objeto da criminalizao a partir da anlise da

    econmica poltica da pena e sua funo de docilizao da mulher, incorporando (atravs da

    socializao secundria/substitutiva) seu papel historicamente atribudo.

    Antes de adentrar diretamente na discusso especfica, intenta-se situar a

    discusso que envolve gnero x sistema penal na construo histrica da modernidade

    burguesa e o porqu se entende essa relao pelo antagonismo e pelo conflito.

    Para Jean Jacques Rousseau na obra sobre a origem e o fundamento da

    desigualdade entre os homens, escreve que esta (a desigualdade) se deu a partir do momento

    em que o homem cercou um pedao de terra e disse que era seu; por seu turno Eduardo

    Galeano escreve:

  • [] Y en los campos labrados fuimos devotos de las diosas de La fecundidad, mujeres de vastas caderas y tetas generosas, pero con el paso del tiempo ellas fueron

    desplazadas por los dioses machos de la guerra. Y cantamos himnos de alabanza a la

    gloria de los reyes, los jefes guerreros y los altos sacerdotes. Y descubrimos las

    palabras tuyo y mo y la tierra tuvo dueo y la mujer fue propiedad del hombre y el

    padre propietario de los hijos (GALEANO, 2008, p.6).

    Verifica-se que a criao da ideia de propriedade privada no influenciou somente

    nas relaes econmicas, sociais ou polticas, mas nas relaes entre gnero, tendo em vista

    que determinou a separao de um espao pblico destinado poltica a ser desenvolvida pelo homem; e, um espao privado s relaes domsticas, a serem cuidadas pela mulher.

    A partir disso o espao pblico se constitui no lcus de domnio/controle

    masculino, e em grande medida resultado da criao de seus prprios indivduos; da que se

    fala em que o espao pblico e suas instituies eminentemente masculinas, e disso advm a

    separao de espaos de atuao e papis sociais e a separao entre o sexo (biolgico homem

    e mulher) e o gnero como resultado de uma construo sociocultural (masculino e o

    feminino). Escreve Alessandro Baratta sobre a diviso social do trabalho de acordo com o

    gnero masculino x feminino:

    a construo social do gnero, e no a diferena biolgica do sexo, o ponto de

    partida para a anlise critica da diviso social de trabalho entre mulheres e homens

    na sociedade moderna, vale dizer, da atribuio aos dos gneros de papeis

    diferenciados (sobre ou subordinado) nas esferas da produo, da reproduo e da

    politica, e, tambm, atravs da separao entre publico e privado. A prpria

    percepo da diferena biolgica no senso comum e no discurso cientfico depende,

    essencialmente, das qualidades que, em uma determinada cultura e sociedade, so

    atribudas aos dois gneros, e no o contrario (BARATTA, 1999, p. 21)

    Essa a estrutura social que se pode dividir entre proprietrios e trabalhadores, e

    tambm, entre o masculino e o feminino, tendo seu status e espaos de atuao de acordo com

    a posio ocupada na estrutura social. E justamente para defender essa sociedade (a ideologia

    da defesa social) e seu cdigo de valores (manuteno do cdigo da estrutura social patriarcal)

    que se erige o sistema penal com todas as instituies que lhe so pertencentes polcias, poder judicirio, priso (...), ou seja, estruturas institucionais preparadas para a manuteno

    social e no para sua modificao.

    Aponta-se ainda, que o mbito domstico h bem pouco tempo ingressou no mapa

    de preocupaes regulatrias do poder do Estado e do ius puniendi, tendo em vista que este

    espao (privado) era visto como mbito de domnio do homem, patriarca e varo, e assim

    como seu espao de privacidade.

    Assim se situa a problemtica trazida pelo presente trabalho, essa a

    institucionalidade que ora se apresenta como protetora, ora como punitiva, mantendo-se os

    mesmos discursos e instrumentos. Analisar a questo da violncia domstica baseada no

    gnero em suas origens histricas dar ateno a esta problemtica que permanece na

    contemporaneidade, verificando-se que esta questo no se faz como uma demonstrao de

    patologia social, mas sim como resultado de uma determinada formao societria que

    produz/reproduz e perpetua esta dinmica relacional marcada pela submisso e que v na

    violncia a forma preponderante de demonstrao e manuteno de poder e autoridade.

    A mesma autoridade que se identifica como sendo a chamada a resolver conflitos

    de gnero pela via da punio, como o Estado que abraa a sdita fragilizada, e tambm se

    apresenta como Soberano na defesa da sociedade (e seu discurso moralista punitivista) que se

    manifesta na mecanicidade do sistema penal na interveno sobre as mulheres definidas como

    criminosas.

  • Minimamente situada a discusso, tendo como pano de fundo a construo

    histrica da separao/dominao entre o masculino e o feminino e suas interferncias

    sociopolticas, passa-se a abordagem especfica, da mulher enquanto sujeito ativo da relao

    com o sistema penal e sua insero no mapa de interesses do poder punitivo estatal; e,

    posteriormente, na condio de sujeito passivo.

    1 A MULHER ENQUANTO SUJEITO ATIVO: uma anlise baseada na econmica

    poltica da pena e as sobrecargas de opresso

    Neste ponto passa-se a analisar o contato da mulher, ou melhor, do gnero

    feminino como construo sociocultural com o sistema penal como instituio masculina, que

    para efeito deste ponto a mulher como duplamente infratora , assume funes especficas. Assim, se permite analisar a questo do atual incremento do encarceramento

    feminino a partir de um fundamento de economia poltica da pena, mormente com base em

    Georg Rusche e Otto Kirchheimer2 (2004) e tambm Dario Melossi e Massimo Pavarini

    (2006) e como isso se apresenta com feies especficas sobre a sua clientela feminina, no

    obstante mantenha suas funes muito bem apresentadas pelos autores e guarde fundamental

    importncia para a manuteno da estrutura social burgus-capitalista e sua diviso de papis

    sociais e espaos de atuao organizados por rgidos controles legais-morais.

    Realizando, ainda que sinteticamente, um resgate da instituio prisional3 e

    controle social centralizado no Estado e no Sistema penal para situar a mulher e o feminino

    nesta instituio, nesse novo paradigma de administrao da justia e da resoluo/suspeno

    de conflitos pelas instituies oficiais, permite trazer as contribuies aportadas por Rusche e

    Kirchheimer (2004) que apontam o surgimento da priso de acordo com o nascimento das

    relaes capitalistas de produo e as desigualdades geradas, assim como a obrigatoriedade do

    trabalho (pelo valor que fosse oferecido a essa mo-de-obra) e tambm como forma de fazer o

    grande contingente de trabalhadores proporcionarem as condies de desenvolvimento

    capitalista nascente e ascendente, bem como constituir seu exrcito de reserva.

    Nesta medida o sistema penal tem sua origem e vem a substituir o que se conhecia

    por instituies de assistncia social para os pobres, ou seja, as politicas sociais, tendo uma

    relao de atrelamento e mudana de perspectiva na atuao estatal. Obviamente que a partir

    disso no se pode pensar no direito penal, como o discurso tentava fazer crer, como

    humanizador e substituto das dinmicas brutais do antigo regime, pautados pelas penas

    corporais; mas sim, se trata de uma nova dinmica eficiente do ponto de vista do novo

    paradigma de organizao social que se estava construindo o regime capitalista , ou seja, um discurso estratgico, para uma operacionalidade utilitria. Nesta linha complementa

    Rusche e Kirchheimer sobre a clientela dessa poltica de controle da misria:

    A fora de trabalho que o Estado podia controlar melhor era composta por pessoas

    que exerciam profisses ilegais, como mendigos e prostitutas, e tantas outras que

    estavam sujeitas sua superviso e dependiam de sua assistncia por lei e por

    tradio, como vivas, loucos e rfos. A historia da politica publica para mendigos

    e pobres somente pode ser compreendida se relacionarmos a caridade com o direito

    penal (RUSCHE;KIRCHHEIMER, 2004, p. 58)

    Verifica-se, a partir de Rusche e Kirchheimer, a utilidade da nova modalidade de

    penas, baseadas no trabalho forado no momento de necessidade de desenvolvimento e

    2 Verso original em Ingls Punishment and Social Structure de 1939, com verso em portugus pela Editora

    Revan, de 2004. 3 Refere-se a priso como penal definitiva, tendo em vista que a priso como medida provisria (aguardando

    julgamento) j era utilizada sculos antes.

  • produo capitalista e acumulao de capital (obviamente que por parte dos detentores dos

    meios de produo utilizando a mais-valia pura), ainda a pena da forma de gals e desterro no

    perodo do colonialismo, em que era necessria essa fora motriz para levar o descobrimento

    das novas terras e encobrimento dos povos brbaros, ou ainda o exlio quando nada

    necessidade de povoar essas novas terras, para no permitir novas invases.

    A mulher e o feminino se colocam neste contexto, a partir do momento em que a

    Escola da Criminologia Positiva volta suas atenes para esse contingente. Em 1876 o mdico

    Cesare Lombroso escreve o L'Uomo Delinquente, que traz os caracteres identificadores do

    criminoso, rompendo com as premissas do classicismo, principalmente baseado no livre-

    arbtrio, aportando a ideia de naturalidade e condicionamento do criminoso condies e

    causas internas, tais como a epilepsia, o atavismo e a loucura moral, em suma, a anormalidade

    do indivduo, que se fazia passvel de identificao e tratamento/controle; e em 1893 sua

    preocupao se volta para a mulher, com a obra La donna delinquente: la prostituta e la

    donna normale, na qual atualiza suas categorias e as direciona ao pblico feminino

    identificando suas patologias crimingenas.

    Mas o que isso tudo tem a ver com a mulher, e, sobretudo com a mulher moderna,

    do perodo contemporneo? Muitos diriam que as construes de Lombroso tenham ficado

    como rplicas/peas de seu museu sediado em Turim, entretanto. Entretanto esses muitos

    ficariam espantados como as categorias de Lombroso, ainda que sob nossas formulaes e

    atualizaes, continuam atuais e operativas. Talvez a principal categoria que remonta a

    etiologia positivista e que mantm uma vitalidade indiscutvel a ideia do estereotipo, ou

    seja, apresentao de uma caracterologia identificadora do tradicional criminoso lombrosiano,

    ou mesmo da criminosa.

    Assim, identifica-se a mulher criminosa como a figura feminina que no se

    adaptou (por defeito em sua formao moral) condio de subalternidade intrafamiliar e a

    vida do lar, ou seja, de conduo da casa, dos filhos e do imprio domiciliar (quando o

    patriarca est fora, no mundo do trabalho e da poltica no espao pblico); ou ainda, que no se satisfaz com a insero no mercado de trabalho, realizando as tradicionais atividades

    femininas menos valorizadas, ou ainda, realizando atividades iguais as do homem percebendo

    valor inferior pelo simples fato da sua condio feminina; ou mais, que apresenta qualquer

    outra manifestao de distrbio em sua formao biolgica ou moral, como relaes afetivas

    tidas como anormais, vista como pervertida, entendida como desonesta, prostituta, sem falar

    na rotulao da louca, utilizadas como forma de patologizao de pessoas com status social

    um pouco mais elevado. Como confirmam Rusche e Kirchheimer:

    Seu objetivo principal era transformar a fora de trabalho dos indesejveis,

    tornando-a socialmente til. Atravs do trabalho forado dentro da instituio, os

    prisioneiros adquiririam hbitos industriosos e, ao mesmo tempo, receberiam

    treinamento profissional. Uma vez em liberdade, esperava-se, eles procurariam o

    mercado de trabalho voluntariamente. O segmento visado era constitudo por

    mendigos aptos, vagabundos, desempregados, prostitutas e ladroes. Primeiramente,

    somente os que haviam cometido pequenos delitos eram admitidos; posteriormente,

    os flagelados, marginalizados e sentenciados com penas longas. Como a reputao

    da instituio tornou-se firmemente estabelecida, cidados comearam a internar

    nelas suas crianas rebeldes e dependentes dispendiosos. Em geral, a composio

    das casas de correo parece ter-se espalhado de forma similar por toda parte

    (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 69)

    Passados duas centrias, parece que o perfil dos clientes da politica de controle

    social-assistencial do Estado atravs do brao punitivo e que, falhas as tentativas de introjeo

    da socializao primria (escola e famlia no deram certo), restam ento as dinmicas de

    socializao secundria ou substitutiva, ou seja, a socializao forada, e a internalizao do

  • ethos burgus, e a aceitao/imposio da condio de subalternidade na camada mais baixa

    do estrato social. Assim, se verifica o perfil das mulheres que so selecionadas pelo sistema

    penal contemporneo a partir de dados oferecidos pelas prprias agncias estatais, como o

    Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN), a partir de levantamento realizado nas

    instituies de privao da liberdade para mulheres, sejam estabelecimentos nicos (somente

    para mulheres) ou mistos (que inclui confinamento de homens e mulheres que so a maioria das instituies).

    Traz-se, desta forma, o perfil da mulher presa no Brasil a partir da cor,

    escolaridade e faixa etria, bem como dos delitos praticados, para ter ideia da clientela do

    sistema de justia criminal na condio feminina.

    Grfico 1, 2, 3 seleo quanto a cor/escolaridade/idade4

    18-29

    anos

    30-45

    anos

    mais 46

    anos

    idade

    Fonte: Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN, 2011)

    Primeiramente a questo mais candente que a etnia, pois, remete-se de forma

    muito visvel a grupos historicamente negados e objetos de interveno dominao, ou no

    mnimo do discurso pretensamente humanitrio por parte do Estado e suas estruturas oficiais

    de controle-assistncia, que tem sido acompanhado, no transcurso histrico da modernidade

    ocidental burguesa, do brao esquerdo e punitivo (substituindo o direito assistencial do

    welfare state), ou no mnimo docilizante, disfarado de discursos politicamente corretos, cuja

    atuao remonta ao preconceito e ao racismo mais desnudo.

    A questo da escolaridade, da mesma maneira, remete e vincula a grupos alijados

    dos meios legtimos de obteno das promessas da modernidade, como aponta Alessandro

    Baratta (2011) sobre a desigualdade na distribuio dos bens positivos da modernidade

    (includas as oportunidades), acompanhada da desigualdade inversa na distribuio dos bens

    negativos a criminalizao e estigmatizao oferecida pela operatividade do sistema penal opressivo e seletivo , ou seja, conforme maior acesso a bens e oportunidades, menor ser a vulnerabilidade diante do sistema penal, e conforme o menor acesso oportunidades, maior

    ser a vulnerabilidade a operacionalidade do sistema penal. Demonstra-se ser esse pautado

    pela seletividade na sua atuao.

    Ou ainda a questo da idade, demonstra que existe uma verdadeira guerra inter-

    geracional que est produzindo uma dizimao da juventude brasileira como demonstra Julio

    Waiselfisz (2012) nas estatsticas de mortes violentas (por causas externas) que tem na

    juventude, e, em especial, pobre e no branca, seus principais alvos.

    4 Os dados do grfico 2 so do acumulado de dados de 2008 do DEPEN, tendo em vista que em 2011 no se

    publicou dados referentes a escolaridade, mas, dada a pequena variao nos demais dados, optou-se por manter a

    informao dada sua pertinncia.

  • Esse perfil se completa com a tipologia delitiva que leva grande maioria deste

    contingente tutela do Estado e das ingerncias de uma socializao substitutiva, definida

    como processo de ressocializao (ainda que essa ideia no resista s crticas formuladas pela

    criminologia crtica).

    Essa discusso em termos de perfil das internas se apresenta atrelada intimamente

    a discusso sobre a questo da proibio das substncias denominadas e demonizadas como

    drogas (em sentido pejorativo), da guerra insana contra algumas substncias qumicas e

    alteradoras de estado de conscincia definidas como crime seu consumo, porte, distribuio e

    produo. Como o grfico abaixo apresenta.

    Grfico 4 seleo quanto a tipologia delitiva

    Fonte: Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN, 2011)

    Ademais, para controle de massas tidas como perigosas ou indesejveis,

    necessrio e fundamental uma explicao ou justificativa para essa perigosidade, que durante

    muito tempo se apresentou na prpria constituio do ser (o ser anormal, atvico, criminoso

    nato), e que contemporaneamente se apresenta aliado ao exrcito inimigo na guerra contra as

    drogas.

    Esta guerra contra as drogas, que no se pretende adentrar a fundo, pois exigiria

    um trabalho prprio, mas que se resgata brevemente na perspectiva proposta por Rosa del

    Olmo (1990;1975). Desde sua origem, no incio do sculo XX serviu como elemento

    discursivo e justificador para a interveno Norte Americana em diversos pases em que

    detinha algum interesse poltico-econmico; alm de subsistir por detrs do suposto e alegado

    risco oferecido por tais substncias, algum grupo em especfico a ser controlado, como os

    orientais na proibio do pio, os latino-americanos (imigrantes) na proibio da maconha, os

    negros dos cintures industriais na proibio da cocana e herona (principalmente no perodo

    de desenvolvimento das grandes cidades como Chicago e Detroit enquanto surgiam as

    montadoras automobilsticas), as substncias sintticas na dcada de 70 vinculadas a grupos

    de contestao poltica como a cultura hippie, e atualmente o crack identificado como a

    substncia da ral social (dos prias urbanos), da escria residente nos guetos de que fala Loic

    Wacquant (2007).

    Diante do perfil apresentado, verifica-se que o encarceramento feminino no Brasil

    demonstra, de forma cabal, a manuteno dos mesmos critrios classistas, sexistas e racistas

    da origem do sistema penal que tinha como base uma matriz positivista e politicas

    utilitaristas, ou seja, retirar desta instituio o mximo de proveito, enquanto opera o que se

  • denomina ideologia da defesa social5. E tem como justificativa primordial a luta em prol da

    ficta guerra contra as drogas, enquanto gere desigualdade as ilegalidades, e gerencia o

    mercado de segurana pblica e privada de altssima rentabilidade.

    Nesta linha, resgatando uma discusso com base em uma economia politica da

    pena, desde Dario Melossi e Massimo Pavarini (2006), que apontam a origem e

    desenvolvimento do sistema penal como responsvel, primordialmente pela conformao do

    proletariado, como escreve Massimo Pavarini do no proprietrio homogneo ao criminoso, do criminoso homogneo ao preso, do preso homogneo ao proletrio. Isso significa em

    outras palavras, que o no-proprietrio deve existir apenas como proletrio (2006, p.232) e complementa, educao para o trabalho expropriado, educao para o trabalho assalariado como nico meio para satisfazer as prprias necessidades, educao-aceitao do prprio no-

    ser proprietrio (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 232), ou, no presente caso, na construo da donna normale, ou seja, a mulher normal e afeita a sua posio na estrutura social e aos

    papeis de gnero previa e scio-historicamente definidos.

    Continuando na linha proposta por Melossi e Pavarini (2006), o crcere cumpre

    uma funo que fundamental na manuteno da estrutura social, tendo em vista que opera a

    partir de duas regras/facetas; uma que ele chama de destrutiva, tendo em vista que a oferta de

    trabalho maior que a de emprego, o sistema penal serve para controlar o exrcito de reserva

    e assim determinar os baixos salrios atuando em harmonia com as leis da demanda e oferta e tal regra se apresenta (ainda que diferente, pois no mais se faz necessrio o exrcito de

    reserva, pelo contrrio, necessrio cada vez menos mo-de-obra e nessa medida o sistema

    cumpre a funo destrutiva de estocagem de sujeitos descartveis). E, em segundo, o que ele

    define como elemento utilitrio das foras exercidas pelo crcere no mercado de trabalho,

    tendo em vista que no passo do controle do exrcito de reserva, se processa uma reeducao

    que se d pela introjeo da ideologia burgus-capitalista e a aceitao da condio de

    subalternidade na estrutura social (e mesmo a naturalidade desta estrutura), isso quando no

    se retira lucro dessa prpria ferramenta de doutrinao chamada de reeducao ou mesmo

    quando o funcionamento do sistema passa a ser uma grande empresa capitalista (a indstria da

    segurana, ou do controle do crime como anunciada CHRISTIE, 1998).

    Assim escrevem Melossi e Pavarini sobre as funes desempenhadas pelo sistema

    penal no decorrer de seu processo histrico:

    O universo institucional vive, assim, de forma reflexa, os acontecimentos do mundo

    da produo: os mecanismos internos, as prticas penitencirias ficam assim

    oscilantes entre a prevalncia das instancias negativas (o crcere destrutivo, com

    finalidades terroristas) e das instancias positivas (o crcere produtivo, com

    finalidades essencialmente reeducativas). Entre estes dois extremos (tomados como

    pontos ideais e abstratos de um processo) situam-se as diversas e contingentes

    experincias penitencirias (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 212)

    E justamente so esses elementos/fatores que permitem explicar o atual perodo

    de encarceramento em massa, tendo em vista que na modernidade recente a mo-de-obra se

    apresenta cada vez menos necessria (sempre em menor nmero), e a necessidade de

    controlar um contingente cada vez maior de indivduos desamparados no sistema social se d

    pela via da criminalizao, como se pode ver seu pblico feminino (amplamente atingido por

    esse desenvolvimento desigual e combinado) de acordo com os dados da escalada do

    encarceramento feminino que dobra sua populao em menos de uma dcada.

    Grfico 5 Escalada do aprisionamento e do feminino eleito como inimigo

    5 Tendo em vista que o presente trabalho no teria folego para resgatar a discusso em torno da ideologia da

    defesa social, remete-se a leitura de Alessandro Baratta (2011).

  • Fonte: Conselho Nacional de Politica Criminal e Penitenciria (CNPCP, 2012)

    Salienta-se que, como se pode verificar a macia maioria das mulheres

    selecionadas pelo sistema penal, o foram em decorrncia de delitos contra o patrimnio, em

    sua grande maioria o furto (ou seja, sem violncia ou grave ameaa) - tradicionalmente

    reconhecido como delito dos desafortunados ; e tambm a problemtica do proibicionismo das drogas, no qual a mulher ocupa os mais baixos escales na carreira ilegal da produo,

    distribuio. Assim esclarece Orlando Zaccone,

    Este sacoleiro das drogas ocupa a mesma posio dos camelos e pivetes, sendo

    considerado bandido de 3 classe, uma vez que sobre ele que recai a represso

    punitiva. Isso explica, por exemplo, o aumento do numero de mulheres e crianas

    envolvidas com o narcotrfico. Para ser sacoleiro de drogas no preciso portar

    nenhuma arma e sequer integrar alguma dita organizao criminosa. Basta ter

    credito junto aos fornecedores (ZACCONE, 2008, p. 22).

    A questo que ela se depara com a ideia socialmente construda da mulher como

    duplamente transgressora, porque demonstra inadaptao vida privada e submissa, com suas

    limitaes e dependncia, rompendo com a ideia estereotipada de mulher, tendo de suportar a

    punio (e a socializao secundria/substitutiva) por infringir tal ordem, neste caso, dupla

    ordem e com ela a sobreposio de planos de opresso. Assim escreve Luiz Antonio Bogo

    Chies:

    a lei dos homens, o judicirio dos homens, a justia dos homens que encarcera as

    mulheres... esposas e mes falhas. No h nada na lei, ou muito pouco nas polticas criminais e penitencirias recentes, que enfrente e afronte significativamente s

    sobrecargas de punio [...] pelo contrrio, na conjuntura atual o que existe a

    ampliao das mesmas (CHIES, 2008b p.93).

    Como verificado na pesquisa realizada pelo GITEP6, permite fazer uma anlise

    das dimenses sobrepostas de opresso ou sobreposio de planos de dominao donde as

    6 A pesquisa, intitulada 'A priso dentro da priso: uma viso do encarceramento feminino na 5 Regio

    Penitenciria do Rio Grande do Sul' foi coordenada pelo Prof. Dr. Luiz Antnio Bogo Chies e financiada pelo

    CNPq. Participaram da pesquisa os membros do Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Estudos Penitencirios

    (GITEP) da Universidade Catlica de Pelotas. So participantes da pesquisa: Dr Ana Lusa Xavier Barros, Ms.

    Carmem Lcia Alves da Silva Lopes; Ms. Marcelo Oliveira de Moura, Ms. Sinara Franke de Oliveira. Atuaram

    como bolsistas: Alexandre Melo Corra, Ms. Ana Carolina Montesano Gonzales Jardim, Ctia Gomes Shmidt,

  • mulheres esto sujeitas potencializao desta sobreposio impetrada pelo sistema.

    Sobreposio ainda mais visvel e dramtica no mbito e interior do sistema carcerrio.

    As mulheres, alm de carregar toda a pesada carga cultural de esteretipos e

    papis preestabelecidos, quando, no cumprimento de sua pena privativa de liberdade, vm-se,

    novamente, s voltas com todos os esteretipos, a partir de ento como responsveis pela

    ampliao de sua dor na punio.

    Comea-se propondo que a escassez de trabalhos e projetos envolvendo a

    problemtica do sistema carcerrio feminino sendo um indcio fortssimo de que estas esto

    relegadas a cumprir sua pena acompanhada do esquecimento, outrora a pena era a fogueira,

    contemporaneamente a solido. Fato este, da solido, corroborado quando da verificao

    que a grande maioria dos relacionamentos se desfaz quando a mulher selecionada pelo

    sistema de justia criminal e passa a cumprir pena privativa de liberdade; enquanto o

    companheiro est livre, ou mesmo, quando ambos cumprem pena, e ele obtm alguma

    modalidade de livramento antes dela, apenas 37% das mulheres encarceradas recm-visitas

    sociais; situao diversa quando da situao inversa, quando o homem cumpre pena, em

    grande parte dos casos, acompanhado pela esposa, companheira, me, irm, ou alguma outra

    figura feminina representante da ternura, 86% dos homens presos recebem as visitas sociais

    regularmente (CHIES, 2009).

    Outro elemento de resultados profundamente dolorosos para a reclusa o fato de

    haverem no Brasil, apenas 58 estabelecimentos exclusivamente femininos, e 5085 mistos,

    reflexo do silncio das polticas penitencirias quanto ao gnero feminino. Acarretando que

    milhares de detentas tenham que cumprir pena longe de suas comarcas, e os laos afetivos que

    j so abalados em virtude da falha para com seu papel de mulher, desfaz-se quando somada a

    distncia do ncleo familiar.

    Importante salientar que se faz ausente nas instituies carcerrias a estrutura

    adequada s particularidades femininas, desamparadas de quadro funcional e profissional

    adequada s mesmas, necessidade que vai desde ao acesso a sade, com mdicos

    ginecologistas e obstetras para atender as internas gestantes; at mesmo artigos de higiene

    pessoal, que se faz mais peculiar em relao mulher, isto sem levar em conta a vaidade,

    atribuda naturalmente mulher, o que desconsiderado a partir do momento em que esta

    identificada como criminosa, sendo privada de usufruir (CHIES, 2009).

    At a ausncia de estrutura de creche e berrio, onde a reclusa poderia

    amamentar e comear a criao de seu filho com condies minimamente dignas, se que isto

    possvel em uma instituio carcerria, de acordo com dados da CPI do Sistema Carcerrio

    apenas 27,45% dos estabelecimentos tem estrutura para gestantes, 19,41% contam com

    berrios e somente 16,13% possuem creches (CHIES, 2009).

    Outros elementos importantes na operacionalidade e governabilidade do sistema

    penitencirio nacional o acesso a direitos. Tais como: o acesso visita ntima, como

    verificado, para as mulheres exigido requisitos mais rigorosos, em comparao com os

    reclusos homens. Para essas, deve ser comprovada relao conjugal, enquanto que para os

    homens, basta a requisio da carteirinha para acesso visita ntima ressurgindo os

    Gabriel Prestes Espiga, Jackson da Silva Leal, Josiane Costa Espanton e Ms. Sabrina Rosa Paz. O trabalho expe

    resultados de uma pesquisa sobre o encarceramento feminino em presdios inicialmente masculinos.

    Desenvolvida com recursos do CNPq, atravs de dados da 5. Regio Penitenciria do RS (pronturios,

    entrevistas e Grupos de Foco) abrange nuances destas opes poltico- penitencirias: o incremento do

    encarceramento feminino associado a perfis de vulnerabilidade social e vinculado a delitos de entorpecentes e ao

    aprisionamento preventivo; a invisibilidade das encarceradas pela precarizao dos espaos prisionais atribudos,

    pelas ambguas situaes de exposio num ambiente masculino, por prticas administrativas e judiciais que lhes

    ofuscam como sujeitos de direitos, por suportarem sobrecargas de privaes e dores prisionais, bem como por se

    encaixarem em dinmicas que tendencialmente reproduzem os parmetros de dominao masculina existentes na

    sociedade extramuros.

  • esteretipos da castidade feminina e da liberdade sexual masculina e o direito a esse espao de

    privacidade.

    Ainda, quando do relacionamento entre homem e mulher presos, nunca esta

    recebe a visita ntima e sim oferta a visita ao seu companheiro, retomando novamente os

    papis de disponibilidade do corpo feminino, como mero repositrio reprodutor do varo. No

    s no se utiliza os mesmos critrios para concesso de tal direito, como tambm no se

    disponibiliza locais adequados para a realizao da visita. Em quase a totalidade dos

    estabelecimentos, no so respeitadas as condies mnimas de dignidade condizente sua

    privacidade, sobretudo neste momento particular do encontro, onde acontecem as relaes

    afetivas (CHIES, 2009).

    Outro direito que se v ofuscado e novamente trazendo tradicionais esteretipos e

    restries no que diz respeito s oportunidades de trabalho prisional, e cursos

    profissionalizantes, no apenas pelo fato de gerar a remio, mas pelo fato de poder ser um

    futuro elemento propiciador de alternativas em uma possvel e provvel vida extramuros

    (aps o cumprimento da pena). A mulher est restrita a trabalhos relacionados limpeza e

    atividades relacionadas com o mbito domstico, assim como os cursos a disposio, em geral

    de corte e costura e congneres, sem grandes possibilidades econmicas no mundo do

    mercado consumidor competitivo.

    E por fim, o acesso assistncia jurdica e celeridade processual; que verificado

    que, mesmo a populao carcerria masculina sendo maior, no argumento para as presas

    no terem acesso a esse direito ou verem seus direitos demorarem mais a serem analisados,

    tais como a informao sobre seu processo, demora em seus pedidos de toda ordem, por

    reviso de penas, etc.

    No que este seja o ltimo plano de apartao, pois as descries acima realizadas

    no so taxativas ou restritivas, apenas pelo fato de ser impossvel esgotar os planos de

    dominao que se processam no mbito do sistema carcerrio, sobretudo os dos

    estabelecimentos mistos, no presente trabalho; apenas procura-se traar brevemente o

    panorama carcerrio feminino.

    Demonstra-se o quanto o sistema punitivo carcerrio utiliza-se de mecanismos de

    castrao e subtrao da feminilidade, transformando-as e reconhecendo-as como mulheres-

    homens, por terem infringido a lei dos homens e, portanto, terem de sofrer como se tal

    fossem, pelas feies que adquirem pela truculncia institucional e quotidiana das

    necessidades no supridas e sofrimentos e necessidades suprimidas e tambm como forma

    estratgica de defesa durante o cumprimento da pena.

    Esta estratgia institucional de castrao da identidade feminina utilizada

    pedagogicamente para serem produtoras da ordem vigente e inquestionvel do capitalismo; e

    mes com seu eterno reino de silncio no colo do pai, nos braos do marido ou na tutela do

    Estado.

    2 A VTIMA ENQUANTO PASSIVIDADE: o resgate do esteretipo da vtima e a

    reafirmao da subalternidade feminina

    Neste ponto analisa-se a relao do feminino na condio de sujeito passivo em

    relao ao sistema penal, ou seja, na posio de vtima da violncia domstica pautada pela

    desigualdade nas relaes de gnero a partir de uma anlise permitida pela criminologia

    crtica enfocando o recurso ao sistema penal como forma de proteo da mulher diante da

    violncia patriarcal.

    Tendo em vista que essa mudana legislativa foi em grande medida resultado da

    luta do movimento feminista, deve-se salientar que, por certo, no se pode atribuir ao esse

    movimento, cuja atuao das mais antigas dentre os movimentos sociais e tambm de tal

  • forma variada, comporta diversas tendncias, demandas e propostas no podendo ser compreendido como bloco uno e homogneo. Nesta linha aponta Carmen Hein Campos a

    importncia da atuao do movimento feminista como grupo e corrente representativa dos

    interesses das mulheres inserido no processo de construo e dialogo que precedeu a criao

    da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), e escreve nos seguintes termos:

    A Lei Maria da Penha reflete a sensibilidade feminista no tratamento da violncia

    domstica. Ao desconstruir o modo anterior de tratamento legal e ouvir as mulheres

    nos debates que antecederam a aprovao da Lei 11.340/2006, o feminismo registra

    a participao poltica das mulheres como sujeitos na construo desse instrumento

    legal e sugere uma nova posio de sujeito no direito penal (CAMPOS, 2011, p.9)

    Assim, de inegvel importncia a participao do movimento feminista no

    processo de requisio da tutela do Estado e enquanto movimento politico pautado pelo

    reconhecimento da realidade extremamente problemtica da violncia de gnero. De outro

    lado, no se pode deixar de apontar e constatar que, no obstante a importncia da conquista

    da lei que prev e tenta dar materialidade publica a questo da violncia de gnero, essa

    mesma lei que prev uma serie de mecanismos acessrios e auxiliares no processo de

    resoluo do conflito e tambm de auxilio as suas vtimas, mas que com 8 anos de sua

    vigncia e operacionalidade s se verifica a sua face punitiva operada atravs do sistema

    penal e sua atuao simplista que se divide entre autoria e materialidade e incidncia ou no

    do sistema ao caso.

    Salientando-se que a realidade da violncia domestica encerra uma infinidade de

    possibilidades conflitivas e relacionais, para os quais o sistema oferece apenas uma

    simplificadora resposta a atuao do poder punitivo , chamando-se ateno para o fato de se oferecer respostas simples para problemas complexos.

    Assim, parece que neste caso a sua vertente punitivista parece majoritria a saiu

    vencedora (ou pelo menos com mais fora politica principalmente a partir do every days theories senso comum punitivo), que em significativa medida recai no mito da ameaa da punio para resolver um conflito social que milenar. Assim escreve Vera Regina Pereira de

    Andrade de forma lapidar:

    O sistema penal , na travessia da modernidade, uma das instituies nas quais a

    sociedade sonha o resgate de algumas promessas do paraso perdido e dele parece

    no poder prescindir, ainda que tenha demonstrado sua virtual incapacidade de

    cumpri-las. As mulheres (ns?) continuam caindo na (sedutora?) tentao do sistema

    penal como Eva caiu na sedutora tentao do paraso. E neste sentido, continuamos

    pecadoras. O sistema promete, mas o paraso no passa pela sua mediao.

    Nenhuma conquista, nenhuma libertao, nenhum caminho para o paraso pode

    simbolizar o sistema penal e realizar-se atravs dele. Penso que apenas matando o

    mito e, reinventando o paradigma jurdico, imperial e masculino, que podemos

    buscar simetria para a balana jurdica j milenar e assimetricamente interposta entre

    Ado e Eva desarmando, qui, por caminhos mais criativos o sexo como arma e o

    corpo como alvo, da violncia (ANDRADE, 2003 b, p. 107-8)

    Ainda na linha apontada por Vera Andrade (2003), se verifica nesta parcela do

    movimento feminista a manifestao de uma importante ambiguidade, pois, ao longo do

    sculo XX se reivindicou a descriminalizao de diversas condutas que tinham por base a

    questo de gnero e sua desigualdade relacional e a incapacidade do Estado para gerir tais

    questes, como p.ex. a questo do aborto, a seduo a prostituio, o adultrio; entretanto, se

    verifica nesse movimento a reivindicao para ampliao do poder punitivo para outras tantas

    aes que tambm tem por base relaes de gnero, e que sabidamente o Estado e sua

    dinmica reducionista entre o legal-ilegal e sua dinmica de operacionalidade pautada pela

  • discricionariedade e seletividade de atuao, no servem para dar conta da complexidade

    destas questes; neste contexto se requer a criminalizao e ampliao das penas para, p. ex. a

    violncia domstica, homicdios, agresses, violncia psquica enfim a redefinio dos crimes sexuais e uma maior tutela/proteo penal por parte do Estado penal. O mesmo

    movimento requer a retrao e a expanso do sistema penal e da atuao do Estado.

    Assim, neste segundo ponto, analisa-se especificamente a questo do controle, ou

    da promessa de controle da violncia domstica e da problemtica de gnero a partir da

    atuao do sistema penal e seu fracasso anunciado. Ocupa-se, assim, do discurso da

    necessidade de mais pena e mais rigor punitivo para acabar com a violncia domstica, e

    assim aprimorar os controles veiculados na lei denominada Maria da Penha (11.340/2006).

    Atribui-se a ampliao da violncia domstica a ineficincia do sistema, sendo

    esta a causa da problemtica. Em realidade o sistema penal desde a sua gnese vive constantes

    reformas e o discurso sempre a justificativa de seu fracasso decorrente de alguma patologia

    em seu funcionamento, e com as reformas se processo uma nova relegitimao das estruturas

    de controle social at nova crise de legitimidade e novas propostas e diagnsticos de patologia

    e assim sucessivamente pra a permanente crise e relegitimao do estado e seus controles

    penais.

    Nesta traz-se os dois pontos detectados e anunciados como causas da falha no

    sistema e sua operacionalidade (no caso especifico da atuao da Lei Maria da Penha) na

    atuao e assim, condies para modificar essa realidade. Refere-se ao artigo 12, I7 que previa

    a titularidade ao direito de prestar a queixa (em realidade, no vocabulrio tcnico seria dizer

    noticia-crime) vitima a mulher. O outro ponto diz respeito ao artigo 168que possibilitava a retirada da queixa, e arquivamento do processo estando a vtima diante do juiz, nos casos em

    que a pena cominada permitisse, como a leso corporal leve, ou nos crimes cometidos e de

    competncia de ao penal privada ou publica mediante representao.

    Esses eram os entendimentos originrios desde a edio da Lei que define e

    recrudesce o combate aos crimes definidos como cometidos em situao de violncia

    domstica contra a mulher.

    Assim, como bem esclarece a professora Soraia Rosa Mendes (2012), foi proposta

    Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), tendo em vista que essa dico legal seria

    contrria constituio, propondo que os delitos previstos na lei seriam de titularidade

    incondicionada no Ministrio Pblico, e desta feita no deveria ser permitida vitima

    prescindir sobre a continuidade ou no da ao penal nos casos de leso corporal leve e nos

    demais casos em que a pena e a competncia permitiriam (como os de ao penal privada ou

    dependente de representao), assim como, no lhe permite a titularidade exclusiva para

    apresentao da notcia crime, sendo de qualquer pessoa que saiba da sua ocorrncia poderia e

    deveria noticiar as autoridades competentes.

    Ocorre que, com essa interpretao, meramente colocando a lei, e sua suposta

    intencionalidade garantidora (a afamada e mtica mens legis) de acordo com uma suposta

    regularidade constitucional, inserindo-a em uma dinmica tcnica e mecnica sistmica

    simplifica novamente a questo principal que o conflito, tornando-o meramente uma

    questo judicial e um nmero de processo nas varas judiciais, como a prtica da justia

    criminal diante dos conflitos. Alm de concluir o processo de usurpao do conflito da esfera

    7 Art. 12. Em todos os casos de violncia domstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrncia,

    dever a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuzo daqueles previstos no

    Cdigo de Processo Penal: I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrncia e tomar a representao a termo,

    se apresentada; [...] 8 Art. 16. Nas aes penais pblicas condicionadas representao da ofendida de que trata esta Lei, s ser

    admitida a renncia representao perante o juiz, em audincia especialmente designada com tal finalidade,

    antes do recebimento da denncia e ouvido o Ministrio Pblico.

  • de poder de atuao da principal envolvida e a maior atingida, seja pela violncia em si, seja

    pela atuao/deciso do Poder Judicirio. Assim, aprofunda ainda mais a sua falha

    interventiva retirando completamente o protagonismo da vtima em muitos casos atuando inclusive contra seus interesses.

    Nesta linha, colaciona-se a ementa da deciso da Ao Direta de

    Inconstitucionalidade e que definiu a interpretao que deve ser dada a lei, com a

    excluso/alterao dos dispositivos citados:

    Deciso: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou

    procedente a ao direta para, dando interpretao conforme aos artigos 12, inciso I,

    e 16, ambos da Lei n 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ao

    penal em caso de crime de leso, pouco importando a extenso desta, praticado

    contra a mulher no ambiente domstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar

    Peluso (Presidente). [...] Plenrio, 09.02.2012. (ADI 4424)

    Com a procedncia da ADIn 4424 o artigo 12, I que deixa o sistema jurdico, e

    passa a vigorar a interpretao autorizadora da queixa (tecnicamente denominada notitia

    criminis) de terceiro, alheio ao conflito, no necessitando da vontade da vtima para submeter

    o caso ao sistema penal; e ainda, com a supresso do artigo 16, passa-se ao entendimento da

    impossibilidade de retirada da queixa, ainda que seja a prpria vtima, mesmo diante do juiz e

    do sistema penal, no tem mais o poder de cessar a atuao da maquinaria punitiva.

    O argumento base para a mudana na interpretao da lei no sentido de que a lei

    no teria obtido o devido sucesso tendo em vista a impunidade, ou seja, o velho discurso do

    senso comum em torno da impunidade, da criminalidade endmica, e a difuso de um pnico

    social, pautada pela ideia de que o prximo pode ser voc! Entretanto, o mesmo no se

    verifica nas estatsticas das prprias agncias e instituies do Estado, que informam um

    encarceramento em massa, que em menos de 12 anos praticamente dobrou sua populao

    carcerria.

    Cumpre destacar que com a mudana na interpretao da lei com os seus

    dispositivos antes mencionados declarados como inconstitucionais pelo Supremo, se processa

    o golpe final nas expectativas do movimento feminista em constituir na Lei Maria da Penha

    uma seara de debate profcuo em torno da problemtica da violncia domestica, tendo em

    vista que com as mudanas se opera a total expropriao do conflito e da problemtica, se

    constituindo a vitima ou qualquer outra pessoa incumbida da vigilncia de propensas

    ilegalidades como um mero estopim ou start para a atuao do sistema penal.

    Em realidade, tal discurso opera como forma de legitimao e autorizao para a

    operacionalidade estatal punitiva gerir os grupos definidos como de risco, e nesta medida o

    sistema se apresenta com especial sucesso. O seu fracasso est na total incapacidade de

    contribuir com a resoluo dos conflitos.

    Outro ponto que se gostaria de trazer a seletividade da atuao do sistema, que

    se verifica nos nmeros permitidos da operacionalidade da prpria lei, dispostos a partir da

    Central de Atendimento a Mulher (disque 180) no ano de 2013, pois, foi majoritariamente

    procurado por pessoas do sexo feminino (88%) com idade entre 20-49 anos (78%) no perodo

    produtivo e reprodutivo. A maioria das vtimas tm filhos (82%) e uma grande parte destes

    (64%) presencia a violncia contra elas. As vitimas so predominantemente do ensino

    fundamental (31%) e mdio, em (29%). Verificando-se assim uma significativa seletividade

    quanto a clientela da atuao do sistema e o grupo de risco a que se pretende controlar.

    Ademais de reforar a questo simblica da fragilidade feminina diante do

    predador natural (o homem) e assim refora os papeis de gnero e os reafirma, alm de

    subtrair e solidificar ainda mais seu monoplio do poder de dizer o direito e geris

    desigualmente as ilegalidades (e com eles os grupos a eles pertencentes e circundantes).

  • Vera Andrade (1999) aponta a existncia da crise do sistema penal, a partir da

    afirmao da incapacidade de cumprir suas funes declaradas, tais como (1) a promessa de

    proteo de bens jurdicos pois se apresenta incapaz de defender as pessoas, o patrimnio, os costumes ou a sade; (2) a promessa de combate criminalidade atravs do sistema penal tendo em vista que est mais que provado que o sistema penal no intimida (a preveno geral

    uma falcia estrondosa), e a preveno especial (o discurso da ressocializao), a prova

    mais cabal do fracasso do sistema penal frisando-se, que essas so suas funes declaradas, ou ainda (3) a promessa de aplicao igualitria da lei penal, o que tambm j tem sido

    largamente objeto de anlise terica e cientifica, mormente a partir da criminologia critica,

    demonstrando a atuao seletiva do sistema penal e que muito antes de ser um direito penal

    do fato, um sistema penal do autor.

    Entretanto Andrade (1999) aponta que a problemtica e a crise muito mais

    profunda, e no um demrito isolado do sistema penal e seu funcionamento ordinrio (no

    qual seu fracasso nas funes declaradas apenas uma das suas facetas), a demonstrao de

    uma crise que epistmica e que em relao ao conflito social se apresenta na reduo da

    complexidade da vida social e suas relaes ao mundo do direito e em especial de uma

    determinada e especfica concepo de direito que est vinculado atuao jurisdicional, ou

    seja, o direito burgus centralizado no Estado, com monoplio do poder de dizer o direito e da

    fora (poder de punir), o que se denomina de monismo jurdico. Assim escreve Vera Andrade: modelo que identifica direito com a lei, ou seja, com o direito positivo estatal e, ao

    mesmo tempo, deposita neste a crena na soluo de todos os problemas sociais. Por

    isto um paradigma imperial, que acredita que tudo pode resolver atravs do

    Direito, que todo problema social tem que ter soluo legal (ANDRADE, 1999, p.

    107)

    Nesta linha importante o resultado de recente pesquisa de Leila Posenato Garcia

    (2013) que aponta a continuidade dos ndices de violncia contra a mulher, em especial com

    resultado morte. Assim o resumo da pesquisa e de fundamental importncia para a anlise

    neste trabalho esboada9, que se pauta pela total incapacidade do sistema penal em dar conta

    da complexidade das relaes e conflitos de qualquer espcie, mormente os que se baseiam

    em uma suposta e natural (naturalmente artificial) relao/separao entre gneros

    socialmente construdos ambivalentemente entre masculino x feminino.

    Grfico 6 ndices de feminicdio

    9 Pesquisa na integra disponvel em:

    http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf; e tambm

    os dados por unidades da federao:

    http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_feminicidio_por_uf.pdf.

  • No que diz respeito a interveno do sistema penal nas relaes marcadas pela

    violncia de gnero Vera Regina Pereira de Andrade (2003) aponta duas promessas ou

    pressupostos (a) a vitimizadora que torna a mulher como objeto passivo e inerte, incapaz de

    fazer frente demonstrao de fora do antagonista e (b) a protecionista que aponta como

    grande funo do sistema penal a proteo da mulher como nica forma de combater a

    violncia de gnero atravs, igualmente, da demonstrao de fora, institucional que se volta

    contra o violador. Assim so duas manifestaes da mesma condio feminina que se situa

    entre o violador e o protetor masculino.

    Continuando na mesma esteira proposta por Vera Regina Pereira de Andrade

    (2003 b), elenca-se trs dinmicas ocultas, ou inversas s discursivamente propostas e

    declaradas:

    (1) a funo garantidora a partir do qual aponta que, declaradamente se defende uma suposta defesa de princpios liberais de orientao garantista de direitos como a

    igualdade e a liberdade; mas a partir da sua incapacidade sistema em decorrncia de sua

    metaprogramao que proporciona o total fracasso das funes declaradas, enquanto que

    operacionaliza um estrondoso sucesso das funes ocultas, apresenta-se que as funes de

    garantir a defesa da mulher um total fracasso; Enquanto que, em uma perspectiva de

    inverso funcional, verifica-se que o sistema est mais apto a retomar o histrico de violaes

    a princpios e garantias, mantendo os conflitos que so geridos e distribudos desigualmente,

    ou mesmo a tutela dos bens supostamente protegidos pelo sistema penal so politicamente

    eleitos, enquanto que a sua atuao pautada pela total desigualdade. Vera Regina Pereira de

    Andrade fala sobre os resultados da interveno do sistema penal sobre as prprias vitimas

    que deveria proteger (ao menos esse o discurso):

    E isto porque se trata de um (sub)sistema de controle social seletivo e desigual (de

    homens e mulheres) e porque , ele prprio, um sistema de violncia institucional que

    exerce seu poder e seu impacto tambm sobre as vitimas. E, ao incidir sobre a vitima

    mulher a sua complexa fenomenologia de controle social a culminao de um processo de controle que certamente inicia na famlia o sistema penal duplica ao invs de proteger a vitimao feminina (ANDRADE, 2003 b, p. 86)

    (2) a funo preventiva aponta a funo declarada na qual o sistema deveria se antecipar a ofensa, ou seja, prevenir os injusto a partir de sua preveno geral; entretanto, o

    que se verifica a imanente incapacidade da funo da criminalizao, ou seja, preveno

    geral no impede que ofensas sejam cometidas, a partir disso surge a segunda

    dinmica/funo da pena, que a preveno especial e que tambm j se verificou que o

    sistema penal totalmente incapaz de produzir a efetivao das ideologias re (ou seja, a

    ressocializao, reeducao, reinsero etc), o que se percebe a construo de carreiras

    criminosas a partir da criminalizao secundria (efetiva incidncia da aplicao da norma

    penal, como pena de priso) e ainda a vitimizao secundria da vitima diante dos tribunais.

    Assim como escreve Vera Andrade (2003, p.91) a pena no previne, nem a priso ressocializa. O crcere, em vez de ser um mtodo ressocializador, um fator crimingeno e

    de reincidncia. Em realidade, o que se verifica na atuao do sistema penal, em sua suposta

    funo preventiva, a gesto e distribuio desigual das ilegalidades e sua atuao

    eminentemente seletiva, tanto para os ofensores, quanto para suas vitimas que tambm so

    recrutadas na mesma classe dos indivduos definidos como criminosos.

    (3) E, a funo resolutria por fim, aponta a funo do sistema de resolver os conflitos (ou ao menos dar sua parcela de contribuio), mas inversamente tm-se operado

    uma verdadeira reproduo, manuteno, acirramento e perpetuao dos conflitos, tornados

    casos de polcia e interminveis processos judiciais.

  • O que se apresenta que a centralizao da resoluo de conflitos no paradigma

    de monismo jurdico, especialmente em sua manifestao punitiva de monoplio do Estado,

    tem subtrado o conflito das partes real e diretamente (inclusive as diretamente interessadas,

    como a comunidade que o circunda) do conflito em si, e tambm de suas possibilidades de

    resoluo. Operacionalizando a vitimizao secundria, e o incremento do encarceramento

    sem que as taxas de ofensas e denncias diminuam (como se se demonstrou), propiciando,

    meramente que o conflito fique suspenso enquanto o individuo estiver privado da liberdade, o

    a mulher sob o palio de uma medida protetiva que no poder perdurar a vida toda. Ou seja,

    no resolve, suspende os conflitos, e assim perpetua-os. Como aponta a professora Vera

    Andrade (2003, p. 124):

    Enfrentar-se como sujeito implica, preliminarmente, se autopsicanalizar e

    decodificar os signos de uma violncia relacional, questionando nossa auto-imagem

    de mulheres sempre violentadas, para construir por dentro dos universos feminino-

    masculino e do cotidiano da sua conflituosidade, o cotidiano da emancipao.

    Assim resume Vera Andrade, sobre a problemtica questo da violncia de gnero

    na modernidade recente; reconhecendo a existncia de uma vitimao sim, mas tambm a

    capacidade de assumir protagonismo, como medida de alteridade para o feminino diante

    desses mesmos conflitos.

    obvio que nos somos vitimadas, mas at que ponto produtivo, progressista para

    o movimento, a reproduo social dessa imagem da mulher como vitima recorrendo

    ao sistema penal?, ou, em outras palavras, de que adianta correr dos braos violentos

    do homem (seja marido, chefe ou estranhos) para cair nos braos do Estado,

    institucionalizado no sistema penal, se nesta corrida do controle social informal ao

    controle formal, as fmeas reencontram a mesma resposta discriminatria em outra

    linguagem? (ANDRADE, 2003 b, p. 122)

    No obstante as critica que se tm a lei, no se pode deixar de trazer as inovaes

    que a partir dela se permitiu, como apontam Campos e Carvalho (2012), como p.ex., e

    principalmente para esse trabalho, a possibilidade de se conhecer melhor a realidade da

    violncia domstica atravs do aumento exponencial do numero de registros e denncias, que

    antes se escondiam na cifra oculta da criminalidade tendo em vista que se apresenta em

    grande medida como uma realidade privada e assim que clama ser publicizada.

    Neste cenrio de dominao e violncia por gnero, impe-se abordar, sim, uma

    alternativa, a proposio de uma dinmica relacional que no aceite as perversidades desta

    modernidade varnica.

    CONSIDERAES FINAIS

    Em sede de consideraes finais, cumpre sintetizar e reafirmar algumas questes

    que se propem a desvelar a real funo desempenhada pelo sistema penal, e principalmente

    que dizem respeito a mulher diante da tutela/controle do Estado patriarcal e suas instituies

    oficiais de assistncia/punio.

    Como se pode verificar o sistema penal tampouco uma sada para a mulher e

    para a violncia, seja na condio de autora/sujeito ativo criminalizado, seja na condio de

    sujeito passivo vitimizado. Em realidade, o sistema opera nos dois lados desta problemtica

    com as mesmas ferramentas a priso, o encarceramento em massa, a estigmatizao de autores e vtimas, perpetuando e ampliando a violncia e os conflitos.

    Nesse sentido, se pode ver que a mulher enquanto sujeito ativo objeto de um

    sistema penal seletivo, violento, discricionrio e eminentemente masculino que se utiliza dos

  • esteretipos para implantar a socializao substitutiva dirigida ao mesmo grupo

    historicamente objeto de interveno docilizadora, ou seja, os grupos situados na base da

    estrutura social e alijados da distribuio dos bens positivos da modernidade e suas

    oportunidades.

    Quando na condio de sujeito passivo e como movimento representante de um

    grupo violentado, tem demandado a tutela reafirmadora dos mesmos elementos que produzem

    a prpria violncia de gnero, ou seja, suposta inferioridade do feminino diante do masculino

    que se reafirma com a tutela do estado patriarcal; e, nesta medida, requerendo ambiguamente

    a aplicao de instrumentos que as prprias mulheres so vtimas, alm de perderem

    totalmente a condio de sujeito do conflito e seus poderes (ainda que na condio de vitima)

    para contribuir com a resoluo dos conflitos, que totalmente subtrado pelo monoplio do

    poder/dever de dizer o direito e que se apresenta na forma nica e simplificada da pena de

    priso ou de uma medida protetiva temporria, que j se mostraram ineficazes.

    Por derradeiro, cumpre a tentativa de formas dialogais e alternativas de

    resoluo de conflitos, que busquem encontrar a composio efetivamente do conflito e no

    se paute meramente pela celeridade processual, mas sim pela resoluo qualitativa dos

    mesmos, e no meramente concluir um processo com seu arquivamento judicial. Ademais, ter

    na pessoa da vitima, e no s; tambm dos indiretamente envolvidos no conflito pessoas

    tornadas sujeitos ativos na construo conjunta dessa resoluo, e no meramente como

    informantes judiciais. Ou seja, em sntese a resoluo encontra-se em posse das prprias

    pessoas envolvidas, e no no Estado que como ente externo s tem vindo a trazer mais

    complicadores e mais problemas que solues e o Direito Penal com sua dinmica

    simplificadora e maniquesta e sua estrutura patriarcal tem mais a dominar do que a proteger e

    libertar.

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