a mulher chinesa na sociedade contemporânea

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Estudos femininos

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  • cultura

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  • 1014

  • Administrao n. 57, vol. XV, 2002-3., 1015-1028

    A MULHER CHINESA NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA

    Ana Cristina Alves*

    1. ENQUADRAMENTO

    A mulher chinesa, tem, por tradio, um lugar apagado na socieda-de chinesa. Ela o elemento Yin, escuro, noctvago, recolhido. O seu brilho lunar, a exercer-se, deve ser discreto e confinar-se aos aposentos interiores da casa. Ela dominada por um poder patriarcal que abarca todas as esferas do seu mundo. Obedece a um poder poltico masculino, submete-se a um poder familiar da linha do marido, verga-se a um poder religioso tambm ele dominado por figuras burocrticas e masculinas que decalcam a organizao poltica e social mundana. Claro que h deu-sas femininas como A-Ma e Kum Iam, mas que tm um poder perfeita-mente limitado e definido no mundo dos homens. Elas, com todos os seus sentimentos protectores e misericordiosos, apenas actuam ao nvel da esfera familiar. Para a comunidade e para os voos profissionais e da reali-zao pessoal, necessrio apelar a outros deuses, como o da Literatura, o da Riqueza, o da Longevidade, o da Prosperidade, que atendem preces, apenas quando estas so dirigidas em formulrios burocrticos e culturais, tradicionalmente associados criatividade tipicamente masculina.

    mulher, por costume, est-lhe vedada a educao, que lhe permi-tiria participar activamente na sociedade que a rodeia. Ou melhor, so-lhe fornecidos os instrumentos mnimos para que possa compreender os clssicos, feitos sua medida e, tambm, para que possa enfeitar, senti-mental e artisticamente, a sociedade em que est inserida. Ela , antes de mais, um objecto de adorno, por isso, se pertencer nobreza, sabe msi-

    * Licenciada e Mestre em Filosofia. Tcnica Superior do Ministrio da Educao Portugus, actualmente a leccionar no Instituto Politcnico de Macau. 1015

  • ca, caligrafia e poesia. Os livros que lhe chegam so cuidadosamente escolhidos. Tem acesso a obras consideradas exemplares, sobretudo s da Escola de Confcio, como O Clssico da Piedade Filial ou o Livros dos Ritos, que a educam segundo os mais acarinhados princpios da submisso. Alm disso, tem acesso a uma srie de admoestaes, analectos femininos e biografias de mulheres e deusas, que se distinguiram nas virtudes da bondade, abnegao e misericrdia. Assim, fora os clssicos, l ou lem-lhe histrias de comportamentos femininos exemplares, como Niu Chieh ou Admonies para Mulheres, redigidas por Pan Chao da Dinastia Han e Lieh Nu Chuan, ou Biografias de Mulheres-modelo, de Liu Hsiang, ou Nu Lun-Yu, numa traduo letra Analectos para Rapari-gas, elaborado na dinastia Tang e, ainda, Nei Hsun, Instrues para os aposentos interiores, que apareceu no incio da dinastia Ming.

    A mensagem dominante para as mulheres at finais do sculo XIX a que Feng-Meng Lung (1574-1646), o editor responsvel por grande parte da fico vernacular, resume no clebre aforisma: S talentoso o homem virtuoso, s virtuosa a mulher que no tem talento".

    Est bem patente na mitologia a modelao do comportamento fe-minino. A mulher assume papis sociais definidos e deve, por isso, desde muito cedo, enquadrar-se nos tipos mitolgicos mais usuais:

    Ela pode ser a me modelar maneira de Nu Gua, a deusa criado-ra, meia serpente, meia humana, que ter criado, numas verses os seres humanos sozinha, noutras, com a ajuda do Primeiro imperador, Fuxi, seu marido ou, talvez, irmo. Mas ela s , de facto, modelar se optar por ser A dona de casa exemplar, tal como Nu Gua se revelou, ao pacificar toda a desordem provocada pelos elementos masculinos da sua famlia, como nos descreve o mito Nu Gua remenda o firmamento.

    Uma variante da criadora e dona de casa exemplar a da esposa amante, tipificada em Nujiao, mulher do lendrio imperador Yu, o Gran-de, fundador da dinastia dos Xia. O imperador, devotando um amor extremo ptria esteve 13 anos ausente de casa, a fim de colocar em ordem o pas. Ora a Penlope chinesa tudo suportou e dedicou ao marido o primeiro poema de amor de que h memria: homem que eu espero, sabers tu que o tempo longo...1

    Um outro tipo consentido o da trabalhadora modelo, que comete um grave delito se pensar, por exemplo, em amar, como nos explica o

    1Charles Meyer: La femme Chinoise. 4000 ans au Pouvoir, Lattes, 1986. 1016

  • mito do Vaqueiro e da Tecedeira. Recordemo-lo: a Tecedeira filha do imperador celestial. Trabalha, noite e dia, para bordar as vestes de toda a corte do seu pai. Mas, como vive numa priso laborai, o palcio da famlia, onde tece as nuvens do cu, aproveita, uma visita terra e um encontro auspicioso com um vaqueiro, para escapar. Tem dois filhos e vive feliz por algum tempo, at que novamente chamada aos seus deve-res de mulher laborai. Separada da sua famlia terrestre, v-se obrigada a cumprir o seu destino.

    Um outro tipo aceite, normalmente personificado em concubinas, o da mulher objecto, ou melhor, o da bela. Tambm os deuses casam e vivem, em sistema de concubinagem, na melhor das harmonias. Exem-plo disso o relato das Damas de Xiang. Estas princesas da gua, de uma beleza inexcedvel, so concedidas ao Imperador Shun para o satis-fazerem at morte. O que, de facto, acaba por suceder.

    Seguem-se vrios tipos que funcionam como avisos de comporta-mentos femininos a evitar:

    A mulher desobediente. A deusa da Lua, que no fundo traduz o que os chineses julgam ser a essncia feminina, o tipo da mulher rebelde e castigada pelo seu comportamento negativo, no mito: Chang E voa para a Lua.

    A mulher fatal, papel normalmente atribudo a concubinas, favori-tas de imperadores mticos, que com a sua imensa beleza, e ainda maio-res caprichos, provocam a queda destes e as maiores perturbaes na or-dem social. Casos clssicos de figuras mitolgicas seduzidas por esta "pe-rigosa fauna" so: Zouxin, o 30. imperador Shang, que para satisfazer a bela concubina Daji infligia torturas de indescritvel malvadez aos que caam em desgraa, e o Imperador You, da dinastia Zhou, que por causa de o sorriso de uma concubina, Baosi, perdeu o seu reino, arruinando a dinastia.

    A estranha. H deusas e figuras mticas estranhas. Estas tm uma fisionomia diferente, habitualmente so estrangeiras e, por isso, revelam comportamentos dbios ou, at, incompreensveis. Representam, tal como a mulher fatal ou a desobediente, tipos a evitar. A Rainha Me do Oes-te, Xi Wang Mu uma das figuras duplas mais conhecidas. Ela femi-nina e masculina. Assim, to depressa a vemos curar, distribuindo elixires da imortalidade, como fez com o arqueiro Hou Yi, como a apanhamos a punir as gentes, espalhando pragas um pouco por toda a parte. Outras

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  • estranhas famosas so as figuras mitolgicas que pertencem ao Povo das Mulheres. Elas no so chinesas. Caracterizam-se por ser altas e claras, ter o corpo coberto de plos e muito medo dos homens descendentes do drago. Alm disso, so uma espcie de amazonas, cujos bebs masculi-nos no passam dos 3 anos de idade.

    Uma variante deste tipo so as mulheres guerreiras, que se mascaram literalmente de homens para poder agir num universo masculino. Ao nvel humano, elas so guerreiras, como Mu-lan ou,mais recentemente, Qiu Qing; amantes, como as do belssimo conto, os amantes-borboleta; ou mercadoras, que, transformadas em homens, procuram defender a fortuna e actividades familiares.

    Comecei por abordar os tipos femininos descritos na mitologia, porque creio que atravessam toda a China clssica e continuam vivos, ainda, na literatura contempornea chinesa, macaense e at portuguesa, que elege para protagonistas as mulheres chinesas. Num segundo mo-mento, o mundo da literatura contempornea servir-me- de campo de reflexo para apreender o estatuto da mulher chinesa actual. Baseei-me em escritores e, sobretudo escritoras, chinesas, macaenses e portuguesas para apresentar o que julgo ser as principais tendncias comportamentais da mulher contempornea, que transporta consigo, como no podia dei-xar de ser, muito do seu passado. Por isso, passo a apresentar as figuras do passado na literatura contempornea para posteriormente me dedicar s actuais. laia de concluso, entrego-me futurologia, feita de muitos desejos e esperanas, como a melhor do seu gnero.

    2. FIGURAS DO PASSADO A literatura chinesa, macaense e portuguesa que se faz na China e

    em Macau, sobretudo a que sai da mo de escritoras como Deolinda da Conceio, Maria Pacheco Borges e Ondina Braga e de escritores como Senna Fernandes, est povoada de figuras femininas do passado, mas que continuam a existir no presente. Sem esquecer os tipos fornecidos pela mitologia clssica, opto agora por os reclassificar em relao sua posi-o espacial. Antigamente, encontrvamos as mulheres principalmente em casa, mas estas tambm podiam ser encaradas como pertencendo rua ou, ainda, ao mundo.

    As mulheres de casa. As mulheres de casa so figuras do passado, por excelncia. Elas so

    as esposas, ou primeiras mulheres, as matriarcas, as avs poderosas, as 1018

  • verdadeiras mes de famlia, pilares de muita fora, capazes de sustentar numerosas proles. So, tambm, certas meninas compradas em pequenas para futuros casamentos, so as mulheres de ps atados, as flores de ltus, as vivas-noivas e as vivas suicidas. No so belas, no so fatais, tm normalmente fortes qualidade morais e, quase sempre, aparecem descri-tas como figuras altamente abnegadas.

    Entre as vivas-noivas recordemos, de Maria Pacheco Borges, o Conto A Viva-Noiva, em que Sai-si, a protagonista a quem faleceu o noivo, se v forada a uma existncia meio irreal, permanecendo em casa dos sogros at ao resto dos seus dias, enlaada a um defunto.

    As esposas entram nas casas dos maridos, onde, por longo tempo, permanecem ofuscadas, tanto pelos maridos, como, sobretudo, pelas mes destes. As matriarcas, umas vezes, so descritas como seres que exerci-tam o seu poder, com verdadeiros requintes de malvadez, mas outras, so retratadas como mulheres de uma fora admirvel, avs que so o verdadeiro corao da famlia, como nos relata Ondina Braga, por exem-plo no seu conto A Morta. Este a estria de uma mulher com fora de leo, que enviuvou de repente e conseguiu, ainda assim, criar dez filhos, outros tantos netos e ser um exemplo para a sua comunidade.

    A mulher de casa , no passado, a figura suicida por excelncia. Ela a filha devotada e dilacerada entre o amor e obedincia filiais, que a obrigam a uma submisso cega aos desejos paternos e o seu sentimento pessoal, que independentemente da sua vontade, lhe dita a escolha do par. Ora, como por tradio chinesa, o amor sentimento ausente dos casamentos, traados a pensar na convenincia de interesses das famlias e at das comunidades, as meninas solteiras acabavam, algumas vezes por se suicidar para fugir ao estigma da desobedincia, como nos relata Deolinda da Conceio em A Vingana de A-lin e no O refgio da Saudade.

    As mulheres de rua Entre as mulheres de rua so figuras tpicas as concubinas. Estas so

    trazidas, tantas vezes, contra a vontade expressa da esposa, para o mundo da casa. Normalmente so belas ou at fatais, ou, pelo menos, assim as consideram os maridos embeiados. O suicdio tambm no era estranho entre jovens reservadas a concubinas que almejavam um futuro mais alto, ou cuja pureza de sentimentos em relao aos entes amados, no lhes permitia aceitar como natural a situao de segundo plano a que

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  • estavam reservadas, tal como nos conta Deolinda da Conceio em O anel de Jade. As concubinas pertencem decisivamente a um mundo feminino chins do passado, como bem apreendeu ainda a referida escri-tora na sua estria Conflito de sentimentos. As mulheres actuais, cada vez mais educadas, tm tendncia a no permitir esses luxos estticos aos maridos. As concubinas, em muitos dos contos, aparecem at como fonte de grande prejuzo monetrio, chegando mesmo a arruinar as casas que as recebem.

    Entre as mulheres da rua, encontram-se as abandonadas. Estas, dei-xadas pelos maridos ou pela sorte, ficam, habitualmente, com os filhos, merc de uma sociedade pouco dada a ddivas, por muito acostumada pobreza. Recordo tristes relatos de Deolinda da Conceio sobre este tema, como Arroz e lgrimas e Aquela mulher. Ontem, as mulheres formavam a grande maioria das famlias monoparentais, eram, por isso, mais afectadas pela pobreza, j que tinham de encontrar sustento para os filhos, sem que tivessem recebido educao, ou, simplesmente, os ins-trumentos necessrios que as tornassem membros activos da sociedade em que se inseriam.

    As mulheres do mundo, com ou sem marido, eram aquelas que esta-vam, de algum modo, em contacto com a sociedade que as rodeava. Vi-viam comprometidas com o mundo do trabalho, da arte e, at, do estran-geiro. Pode-se, ainda, incluir neste grupo as mulheres comerciadas, as famosas mui tchai, como as chamavam em Macau.

    Embora no passado, houvesse poucas mulheres a trabalhar fora de casa, acabvamos por encontrar algumas, sobretudo entre as classes mais desfavorecidas, tanto no campo como na cidade. A partir do sculo XIX, com o desenvolvimento das indstrias na China, comearam a surgir as operrias. Estas, embora fossem economicamente independentes, man-tinham uma postura familiar perfeitamente tradicional. Quando casa-vam, contribuam para o sustento do marido e da sua famlia; se perma-neciam solteiras, eram o ganha po da sua famlia de bero. Assim, mes-mo independentes financeiramente, nunca chegavam a s-lo afectiva-mente. Um bom exemplo do que fica dito o conto de Maria Pacheco Borges, a Mulher Pequena. Este a estria de Mei-Mei, uma linda operria, cobiada pelo capataz. Quando tudo indicava o caminho de um desenlace feliz, a futura sogra ope-se ao casamento, o que acaba por conduzir morte do filho, que deixa, assim, a me desamparada. ento

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  • que Mei-Mei, assumindo o seu papel de noiva-viva, perdoa me do rapaz e a convida a ir viver com ela, a fim de poder prover ao seu susten-to. Quanto s artistas, as mulheres sentimentais por excelncia, eram, na grande maioria dos casos, e se no pertencessem a famlias nobres, apro-veitadas pela sociedade, para a prostituio. Em Macau, antigamente, como to bem descreve Senna Fernandes, eram, por exemplo as famosas cantadeiras da Rua da Felicidade.

    Entre as mulheres do mundo encontramos aquelas chinesas que se misturavam com estranhos, ou melhor, com estrangeiros.

    Estas nem sempre tinham o melhor dos destinos, sobretudo se fos-sem pobres. Aqui em Macau acabavam, muitas vezes, abandonadas pelos seus pares de alm-mar. No morriam fome, porque eram trabalhado-ras. Recordo sobre o tema, o conto de Senna Fernandes A-Chan, a Tancareira. A-Chan apaixonou-se por um marujo portugus, que uma vez concluda a comisso, devia regressar a Portugal. Deu-lhe uma filha, que o homem no queria deixar com a me na hora do regresso, pois temia pelo futuro, cheio de privaes e fome que a pequenina teria de enfrentar no tancar. A- Chan tudo perdoa e consente, acabando sozinha, com uma dor de alma indescritvel.

    Por fim, temos as mui-tchai as meninas compradas no campo, a pais que as trocavam por um pedao de po. Estas, reduzidas situao de escravas de trabalho, sobretudo quando iam para casas nobres ou ricas, acabavam por ter o duplo estatuto de empregadas e concubinas. Muitas aguentavam mal o destino mundano que lhes estava reservado e morri-am cedo, tal como sucede no conto de Deolinda da Conceio O Sonho da Cuai Mui. Os pais, camponeses muito pobres, tinham-na vendido a uma mulher rica, na sequncia de uma inundao, onde haviam perdido todos os seus bens. A mulher transformou-a em empregada. Cuai Mui passava os dias a carregar gua da fonte e lenha do mato. Voltou a ser vendida aos 14 anos, a uma mulher muito pior do que a primeira. Fugiu e foi recolhida por um pequeno comerciante que a fez sua concubina. As outras mulheres odiavam-na e, entretanto, o marido morreu. Ficou gr-vida, enviuvou e deu luz uma linda menina. Empregou-se numa fbri-ca para conseguir sustentar a filha. A pequenita cresceu e ela tuberculizou. Acabou por morrer no hospital, com um sorriso de esperana pelo futuro da filha. Tambm para as mulheres do mundo a vida no era particular-mente animada: trabalhavam duramente, eram usadas, tais como as ou-tras como objectos de prazer, e, as que no constituam famlia, ou, que 1021

  • por qualquer motivo se viam privadas dela, acabavam por morrer na maior das solides.

    3. FIGURAS FEMININAS DO PRESENTE

    A partir dos finais do sculo XIX, sob a influncia das vrias igrejas crists, e, especialmente dos missionrios protestantes, os intelectuais chineses comearam a despertar para a necessidade de repensar o estatuto da mulher na sociedade chinesa. Com a implementao da repblica, a luta pela emancipao da mulher assumida pelo poder poltico. So fabricadas leis expressamente a pensar nas mulheres, como as do casa-mento e das partilhas, que, no entanto, na grande maioria dos casos, no passam do papel. Nunca chegam ao campo e nas cidades abrangem ape-nas os centros mais desenvolvidos, onde a influncia ocidental se faz sen-tir com mais fora.

    O movimento feminista inicial, que nasceu, como referi, por forte influncia ocidental, desde cedo comeou tambm a evidenciar caracte-rsticas chinesas. Assim, a libertao das mulheres, desenvolveu-se, por um lado, seguindo os padres ocidentais, que valorizavam sobretudo a educao e a aquisio de direitos cvicos e econmicos para as mulheres, por outro deu origem a tentativas de libertao de contornos mais revo-lucionrios e nacionalistas. Para muitas feministas chinesas, a emancipa-o da mulher s faria sentido se fosse integrada no movimento mais vasto de libertao do pas, leia-se das influncias, quer dinsticas, quer estrangeiras. Esta segunda vertente do movimento feminista acabou por se integrar no partido comunista chins. As mulheres, desde 1949, na nova China revolucionria, passaram, de facto, a ocupar metade do Cu, para tal deviam corresponder ao que a nova ideologia pedia delas: de-viam libertar-se, sobretudo economicamente. Passariam a ser as foras produtivas modelares da China vermelha. A mulher chinesa do mundo agora figura de algum peso, sobretudo, nas cidades. Masculiniza-se, en-durece e tem tendncia a isolar-se, numa reaco, por ventura natural, a um passado cheio de sofrimento e dor. No campo, porm, a sua situao no melhora grandemente, sobrecarregada e dividida entre as tarefas caseiras e laborais, continua a encontrar no suicdio uma resposta confortante para os males que a afligem.

    Nesta seco recorro essencialmente literatura feminina chinesa de Macau e da China Continental, a fim prosseguir com o estudo do estatuto da mulher chinesa na sociedade contempornea. E como o passado

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  • se prolonga em muitos dos comportamentos presentes, continuo a man-ter a classificao avanada para as figuras femininas do passado. A maior diferena que pude observar entre as figuras antigas e as do presente no foi a introduo de novos tipos, que j tinham sido traados, recor-demos, pela mitologia, mas a inverso da ordem de prioridades em rela-o aos mesmos. Hoje tipo principal a mulher do mundo, depois en-contramos a mulher da casa e, por fim, numa situao cada vez mais apagada, a da rua.

    A mulher do mundo. As mulheres do mundo continuam a ser as pro-fissionais, as artistas, em suma as que se dedicam a actividades liga-das ao exterior. No param de aumentar. Uma das escritoras chinesas de Macau, Seng Seong Ching no seu conto O que pensam eles das mu-lheres faz uma anlise muito completa da imagem feminina, que a soci-edade actual chinesa, leia-se ainda fortemente patriarcal, aceita e deseja. A mulher, no presente, deve ser, por ordem de prioridades decrescente: inteligente, com sentido de humor, independente, porque os homens no gostam de mulheres choramingas, bela, ou melhor saudvel, j que o padro de beleza foi redefinido em termos higinicos, e ter confiana em si prpria. Logo em Macau, cidade que nada tem a ver com o campo profundo, espera-se que a mulher seja educada, viva, independente, sau-dvel e segura. O que no deixa de ser interessante e pode at provocar alguns conflitos o facto da mulher dever ter todos estes requisitos de modernidade, sem olvidar que, como nos adverte a escritora em Surpre-sas da idade: "A chuva tem de continuar a cair sobre a terra, a mulher tem que entrar para a famlia do marido, a pessoa tem que ir envelhecen-do, assim e no h nada a fazer"2

    Ainda a mesma autora em Carta a uma Filha faz dizer me mo-derna e modelar, que o maior bem de uma menina a sua educao, pois mais importante do que a beleza exterior, a interior. Uma artista, ou qualquer outra mulher que procure apenas tirar partido dos seus atribu-tos fsicos, ser reprovada. Faz parte do passado. A bela, o objecto de prazer, lembra s mulheres chinesas a sua luta contra o sistema de concubinagem, numa poca em que no tinham fora social e econmica para impor famlia a sua voz, por isso cooperavam com o que muito lhes desagradava. Hoje, pululam contos como o de Lam Chong Ieng,

    2 Sete Estrelas de Macau. Antologia de Prosas femininas, p. 69 1023

  • que em O Peito de Yip Ji May, crtica a artista pelo facto de utilizar o seu peito para subir no meio do cinema. A mulher actual prescinde des-ses estratagemas.

    As mulheres divorciadas que vo surgindo na nova China, passam automaticamente categoria de mulheres do mundo. Assumem-se so-bretudo como profissionais. Ocupam lugares de destaque em empresas pblicas e privadas. So extremamente srias e responsveis nos seus tra-balhos, acabando, frequentemente, por ser ridicularizadas pela falta de flexibilidade que ostentam, em relao a posturas e regras comporta-mentais. Elas so as guerreiras do passado, as figuras duplas, que assumem vestes masculinas para sobreviver em postos habitualmente reservados a homens. So descritas como potenciais chefes de famlia monoparentais, onde a educao dos filhos relegada para segundo plano, acabando estes por fracassar, invariavelmente, nos estudos. Tal o panorama que contos como No foi por coincidncia da escritora Zhang Xin nos oferecem.

    A mulher de casa. A mulher contempornea vista essencialmente como uma figura do mundo do trabalho, uma carreirista solitria, que aprendeu a controlar os seus impulsos amorosos, como nos comunica Ding Lou no seu conto, intitulado A Mulher actual. Ela quer deixar de ser a geradora e educadora dos filhos, quer libertar-se dos seus papis tradicionais, por isso cada vez mais se dedica carreira e aos interesses pessoais. "A mulher actual pertence aristocracia dos solteiros (...) est a ajudar a aliviar a inflao populacional"3. No entanto, ainda h aquelas que procuram conciliar a profisso e a famlia. Entre estas so particularmente infelizes as que, agarradas ao modo de ser tradicional, tudo fazem para manter as suas famlias convencionais, mesmo contra a vontade expressa dos maridos. Essas acabam por cometer grandes violncias psquicas sobre si mesmas e os que as rodeiam, como to bem nos mostra a escritora Lu Xing'er na estria Debaixo do mesmo tecto4.

    A mulher de casa vive em situao de alto perigo nos novos tempos. Incapaz de pactuar com sistema matrimonial do passado, v-se muitas vezes sujeita a todo o tipo de presses psquicas e fsicas por parte do seu marido. Por sua vez, tambm convive mal com as alternativas de mu-

    3 Ob. Cit, pp. 162-163. 4 Six Contemporary Chinese Women Writers.

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  • dana, tipo divrcio, que a nova sociedade lhe apresenta, de modo que acaba por optar, cada vez mais, pelo celibato, uma vez que passou a ser o seu prprio ganha po. Por isso, a mulher solteira, dantes sempre em risco de suicdio, comea a no pertencer casa para se assumir como uma figura do mundo.

    Hoje, as mulheres casadas, mesmo quando esto apenas em casa, e confinadas a um ambiente rural, querem receber os ventos culturais dos novos tempos. Desejam ser educadas e, por isso, vivem com os olhos postos nas obras do mundo dos que tm acesso ao saber. Tal a conclu-so que se pode retirar de contos como A mulher grvida e a vaca de Tie Ning. Esta tem um casamento feliz, bem tratada por toda a famlia do marido, identifica-se com a natureza, tem at uma vaca como grande amiga, mas o seu sonho poder compreender os caracteres chineses, que a rodeiam.

    As vivas suicidas e as noivas-vivas esto hoje em vias de extino. Deixou de se ouvir falar de vivas suicidas, pois estas j tm a sua inde-pendncia e ganha po e quanto s vivas-noivas passou, tambm, a ha-ver maior esperana para elas, porque as mentalidades esto j mais aber-tas, como nos relata Deolinda da Conceio em O Novo Ano de Cam Mui.

    As mulheres da rua. No presente, vm-se menos mulheres abando-nadas nas ruas, com os filhos pela mo tanto em Macau, como na China. A pobreza e o abandono parecem ter sido transferidos para os mais ve-lhos, o que no de espantar, dado o aumento de famlias nucleares, sobretudo nas cidades chinesas. Nas ruas de Macau tambm deparamos com muitos pedintes idosos. As mulheres abandonadas, por um lado, gozam de um maior apoio das estruturas estatais, por outro, defendem-se atravs do trabalho, ainda que, frequentemente, tenham que conti-nuar a lutar pela equiparao salarial.

    Quanto s concubinas, ou s potenciais aspirantes, dispensam cada vez mais a "tigela de ferro" dos homens ricos ou, simplesmente com posses, nem que para isso tenham de abafar os seus sentimentos, como nos narra Deolinda da Conceio em O Romance de Sam Lei. A guerra contra o Japo roubou os pais herona. Esta deixada no mundo prati-camente analfabeta. Conhece um letrado muito mais velho, que se embeia por ela. Acontece que o senhor era casado e pediu-lhe, porque tinha um matrimnio feliz, para aceitar a situao de concubina clandestina. A rapariga rejeita e acaba por vir a casar, mais tarde, com um comerciante

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  • endinheirado, tendo-se feito uma verdadeira mulher com a troca, segun-do conclui a autora. Assim, os casos de jovens que recusam o estatuto de concubinas succedem-se na literatura contempornea chinesa. H, alm da sada clssica da menina solteira que se suicida, como no conto da mesma escritora intitulado O Anel de Jade, novas alternativas que pa-recem agradar bem mais actual gerao feminina. Algumas optam por continuar solitrias e escudam-se no trabalho, que passa a ser, no s sustento econmico, como espiritual. Preferem estar ss, andar de cabe-a erguida e no estragar a vida a ningum, nem mesmo a si prprias. Recorde-se a ttulo de exemplo, a Raposdia das Danarinas Desper-tas de Ye Mei, em que uma das figuras femininas centrais, A Lotus de Jade, pertencendo velha casta aristocrtica se enfeitia por um pescador, de quem se escova aps uma srie de peripcias, entre o cmico e o trgico, para liberta se entregar devotamente ao trabalho.

    4. CONCLUSO: UM POUCO DE FUTUROLOGIA

    Um dos contos que li mais admirvel intitula-se Regresso Vida Secular e de Fan Xiaoqing. a histria de uma abadessa, Huiwen, que perde o seu posto em 1950, aps a conquista do poder pela nova ordem poltica. Mais tarde, o convento reaberto, recuperado e a abadessa tam-bm. Mas a figura, a meu ver, mais interessante uma rapariga chamada Xu Meifang, que muito nova consegue um lugar de destaque na comu-nidade a que pertence. Ela assume o cargo de directora do comit da vizi-nhana. Este, como nos explica a escritora, eleva-a categoria de minis-tro da comunidade. Assim, ela passa a estar encarregada dos assuntos econmicos, administrativos, pessoais, culturais, educacionais, da segurana social e do planeamento familiar dos vizinhos. Muita gente se espanta como que uma rapariga to nova e com uma maneira de ser to pouco convencional consegue um lugar de tanto relevo. Mas a verdade, que ela, apesar de surpreender tudo e todos com as suas sadas pouco estereotipadas, continua frente dos destinos da pequena comunidade e quando chega a hora de tomar decises srias, que passam normalmente pela condenao de pessoas, opta sempre por dar uma segunda oportunidade aos prevaricadores. Revela-se, assim, apesar da sua juventude, uma mulher com corao, e que no tem medo de o mostrar. No precisa de se esconder atrs de uma linguagem burocrtica, nem to pouco necessita de assumir poses rgidas, marciais e mais masculinas do que as dos prprios homens, s porque est num lugar de destaque. Ela , segundo 1026

  • creio, o melhor exemplo do que pode vir ser a chinesa do futuro, com-prometida social e profissionalmente, sem receio de revelar a sua nature-za instintiva e sentimental. Xu Meifang, por enquanto ainda no conse-gue arranjar par. muito pouco formal e, por isso, irrita os homens. Mas ela assume-se solteira e no tem medo da solido. Acredito, tambm, que a mulher contempornea chinesa apenas optar por continuar sozi-nha, enquanto no encontrar interlocutores verdadeiramente capazes de a entender.

    Mas estou convencida que no dia em que ela puder expandir livre-mente as suas ideias e sentimentos, assumindo-se no seu modo mais in-formal e despida de roupagens masculinas, sem ter de pagar elevado preo pela sua naturalidade, vai voltar a contribuir, com a devoo e a abnegao que a tem caracterizado ao longo dos sculos, para o aumento demogrfico, e se necessrio for, contra todas as autoridades. Ora a Chi-na s ter a ganhar se incentivar a chegada de naturezas verdadeiramente femininas ao poder. Ganhar em desburocratizao, em espontaneidade social e, at, numa expanso extraordinria de sentimentos, porque no esqueamos, que o amor, a misericrdia, o perdo, a generosidade e to-dos esses afectos to enaltecidos no mundo da cultura, tm entrado na sociedade chinesa, e no s, pela mo de protagonistas femininas, como to bem evidenciam a mitologia e literaturas dos descendentes do Dra-go.

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  • BIBLIOGRAFIA:

    Borges, Maria Pacheco: Chinesinha: Instituto Cultural de Macau, Ins-tituto Portugus do Oriente, 1995

    Braga, Maria Ondina: A China Fica ao Lado, Instituto Cultural de Macau, 1991

    Conceio, Deolinda da: Cheong-Sam, Instituto Cultural de Macau, Instituto Portugus do Oriente, 1995

    Fernandes, Henrique de Senna: Contos de Macau, Instituto Cultural de Macau, 1997

    Meyer, Charles: La Femme Chinoise, 4000 ans au Pouvoir, Lattes, 1986

    Sete Estrelas de Macau. Antologia de Prosas Femininas. Trad. De Maria Trigoso, Apresentao de Tong Mui Siu, Instituto Cul-tural de Macau, 1998

    Six Contemporay Chinese Women Writers, Chinese Literature Press, 1995

    Women in Chinese Society edited by Margery Wolf and Roxane Witke, Standford University Press, 1975

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    A mulher chinesa na sociedade contempornea