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MUDANÇA ORGANIZACIONAL E AS MÚLTIPLAS RELAÇÕES QUE AFETAM A RECONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES DOS INDIVÍDUOS

Autoria: José Roberto Gomes da Silva, Sylvia Constant Vergara

Resumo

Diante das dificuldades que as organizações encontram em lidar com mudanças freqüentes e intensas, diversos autores têm se empenhado na busca pela descoberta dos fatores que afetam a possibilidade de sucesso nos processos de transição. Entre tais fatores, destaca-se o fato de que muitas vezes a mudança organizacional implica a necessidade dos indivíduos reconstruírem as suas identidades no contexto do trabalho, o que pode dificultar o seu pleno engajamento ou, segundo uma perspectiva mais reducionista, elevar as suas resistências.

O presente trabalho apresenta os resultados de pesquisa de campo, na qual buscou-se levantar como pode ocorrer esse processo de reconstrução das identidades. Para tanto, utiliza um enfoque relacional e interpretativo (Giordano, 1998), baseado na premissa de que os contextos de mudança organizacional tendem a modificar o modo como os indivíduos percebem o conjunto de relações sociais relevantes para eles, no seu dia-a-dia na empresa. A pesquisa foi realizada em cinco importantes organizações de diferentes ramos de atividades no Brasil e que vivem momentos de intensas mudanças. Com base nos resultados, procurou-se construir um quadro referencial sobre um conjunto de relações percebidas pelos indivíduos, que parecem pesar no modo como as suas identidades pessoais, coletivas e institucionais são reconstruídas.

1. Introdução

O presente artigo tem por objetivo apresentar os resultados de pesquisa de campo realizada em cinco organizações, acerca do processo de reconstrução de identidades em momentos de mudança organizacional.

O artigo está estruturado em oito seções, além desta introdução. Na primeira argumenta-se sobre as situações de mudança como mobilizadoras das identidades. Na segunda, discute-se o processo de construção das identidades. A terceira apresenta o conceito de identidade organizacional. A quarta seção explicita o objeto e a metodologia da pesquisa de campo realizada, enquanto a quinta apresenta os resultados da investigação. Na sexta seção são apresentadas conclusões a que o estudo permitiu chegar.

2. As situações de mudança como mobilizadoras das identidades

Na sociedade moderna, talvez as organizações sejam a arena mais significativa nas quais as identidades dos indivíduos são constituídas. Para muitas pessoas, sua identidade profissional ou organizacional pode ser mais persuasiva e importante do que as identidades atribuídas, com base em gênero, idade, etnia, raça ou nacionalidade (Hogg e Terry, 2000).

Um dos motivos que têm levado a administração a um crescimento do interesse pela pesquisa sobre a questão da identidade, nos últimos tempos, tem sido a ocorrência cada vez mais freqüente de situações de mudança organizacional, uma vez que elas tocam profundamente a identidade das pessoas (Giroux, 1993; Rouleau, 1999.a.b), bem como afetam o modo pelo qual os indivíduos percebem o contexto de suas relações (Silva e Vergara, 2000).

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Segundo Rouleau (1999.a), as grandes reestruturações organizacionais, por exemplo, tendem a ser uma fonte de mobilização das identidades dos indivíduos, na medida em que afetam diferentes dimensões de sua relação com o trabalho e com a organização. A autora define o conceito de reestrutração organizacional como a realização de mudanças rápidas e significativas que visam à transformação das estruturas corporativas e organizacionais da empresa. Uma reorganização supõe, então, a implementação de diferentes projetos de mudança, as quais implicam transformações que dizem respeito à estratégia da empresa e seu modo de funcionamento. Segundo a autora, nesse tipo de transformação é comum que ocorram ambigüidades, as quais acabam dificultando o processo de criação de sentido (Weick, 1995) e o desenvolvimento da ação. Um tipo de ambigüidade que se verifica, por exemplo, nesses tipos de transformações polimorfas, é a simultaneidade entre um esforço de taylorização, como tentativa de racionalização, e um esforço de flexibilização organizacional.

No caso das intensas reformas que vêm sendo operadas nas organizações do setor público no Brasil, Monteiro (1998) destaca alguns aspectos relacionados à identidade dessas organizações e à cultura tradicional do aparelho do Estado, que geram dificuldades de assimilação de tais mudanças: a necessidade de superar tendências patrimonialistas seculares que se instalaram na administração pública; o “engolfamento” social (alto grau de penetração de algumas organizações no mundo político e social); o “insulamento” burocrático (o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias) presente em variados graus, em algumas áreas da administração. Assim também, Silva e Macedo (1998) vêem no movimento de reforma administrativa do setor público a tentativa de mudar-se uma cultura marcada por traços tais como o clientelismo, o nepotismo e outras degenerações que a burocracia não conseguiu debelar. Em paralelo a essas transformações no modo como se concebe o todo organizacional, desenvolve-se um amplo discurso em defesa da mudança do perfil do próprio funcionário público, de quem demanda-se a aderência a um conjunto de características comportamentais tidas como representativas dos trabalhadores da esfera privada.

Giroux e Dumas (1997) observam também que nas fusões e aquisições de empresas há um importante potencial de ativação do processo de mobilização das identidades nas organizações, já que as fusões e aquisições representam um tipo de experiência de mudança que força os indivíduos a renunciarem ao seu passado e, então, a desconstruirem seus engajamentos precedentes em uma certa forma de trabalhar, em um certo estilo de relações sociais ou de práticas culturais. Além disso, esse tipo de mudança exige das pessoas a aprendizagem de novos modos de fazer (novos métodos e equipamentos) e novas formas de ligação (nova estrutura, nova cultura). A integração, nesse caso, é um processo de experimentação mais ou menos errático que depende das circunstâncias do nível de informação e de enquadramento fornecidos. Ela é constituída de uma variedade de ações difusas cujos efeitos nem sempre são previsíveis ou controláveis. No nível da comunicação, a fusão ou aquisição vem revolucionar as redes de comunicação, o estilo das trocas lingüísticas e mesmo os meios de comunicação habitualmente utilizados. No entanto é, justamente a comunicação o meio privilegiado pelo qual se reconstrói, ao longo do tempo, a nova coletividade organizacional.

Na visão de Giroux e Dumas (1997), a fusão ou aquisição implica, ainda, a necessidade de lidar-se com duas modalidades distintas de integração :

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Uma no nível mais macro de integração planejada, que corresponde a um conjunto de decisões formais, de longo prazo, sobre o futuro da organização, das quais participa, em geral, apenas um grupo restrito de dirigentes;

Uma no nível mais micro de integração emergente, que surge da interação entre os membros da organização e que é fruto da ações realizadas por cada um desses membros, em função de sua interpretação da situação e do impacto que ela provoca em sua vida pessoal e profissional. Nesse nível, a fusão ou aquisição tende a ser vista pelas pessoas menos como um projeto global da organização e mais como uma grande perturbação provocada por outros e que pode afetar de modo positivo ou negativo os projetos pessoais de cada um.

Giroux e Dumas ressaltam que um dos grandes entraves da integração da organização como um todo é proveniente, justamente, da dificuldade de integração desses dois níveis, uma vez que eles apresentam diferenças nos objetivos, no modo de perceber a situação, no modo de agir e até mesmo no ritmo em que serão afetados pela mudança.

Segundo Hogg e Terry (2000), uma fusão ou aquisição é um caso especial de alteração da dinâmica das relações intragrupos e intergrupos nas organizações. Quando duas organizações se fundem ou, mais usualmente, uma adquire outra, as entidades pós-fusão englobam as relações intergrupais entre os parceiros. Essas relações são freqüentemente competitivas e algumas vezes amargas e antagônicas. Assim, as respostas e sentimentos negativos contra os empregados da outra organização, envolvidos em uma verdadeira dinâmica do nós e eles, podem destruir a possibilidade de sucesso da fusão. Nesse caso, os comportamentos tendem a ser influenciados pelas crenças mútuas acerca das relações entre os grupos. Tais crenças dizem respeito à estabilidade e à legitimidade das relações de status entre os grupos, bem como à possibilidade de mobilidade social (a possibilidade de passar de um grupo a outro) ou à possibilidade de mudança na forma como os grupos se auto-avaliam.

Piotet e Sainsaulieu (1994) também destacam algumas outras importantes fontes de mobilização das identidades dos indivíduos em diferentes situações de mudança:

as mudanças provenientes das novas tecnologias, que muitas vezes modificam significativamente as funções ou as competências dos indivíduos, o que faz com que alguns vivam essas mudanças como inovadores ávidos por experiência, enquanto outros se sintam excluídos ou divididos entre o conservadorismo e a mudança;

as situações de mobilidade e instabilidade no emprego, que tendem a ativar no indivíduo todo um conjunto de experiências simbólicas que acompanham esses movimentos e a afetar suas expectativas de evolução profissional e a avaliação de suas próprias competências.

3. A natureza múltipla e dinâmica das identidades

Dejours (1995) distingue os conceitos de identidade e de personalidade do sujeito. Segundo esse autor, a personalidade ou o caráter, que tem sido alvo de atenção de uma parte importante da tradição psicanalítica, corresponde à constituição de uma estrutura psíquica, à sedimentação do drama da infância, conferindo à pessoa uma estabilidade. Essa personalidade, caráter ou estrutura, portanto, não é suficiente, por si mesma, para explicar os riscos de crise psíquica e de descompensação do indivíduo.

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O recurso à noção de identidade permite problematizar a tensão entre o que, vindo do passado, confere a estabilidade e aquilo que, no presente, oferece o risco de desestabilizar o sujeito ou provocar neles crises mutativas. Sob essa ótica, a identidade do indivíduo possui, então, uma característica relacional com o presente, fazendo com que ela “conserve sempre uma certa precariedade e não seja jamais definitivamente adquirida” (Dejours, 1995, p.189).

A noção de identidade está ligada ainda à idéia de como o sujeito constitui-se como único, como idêntico a nenhum outro indivíduo. Mas, ao mesmo tempo, como ressaltam Piotet e Sainsaulieu (1994, p. 202) a identidade é também “um sistema de referências que conduz à descoberta daquilo que é próximo de alguns e diferente de outros. É a identidade pelos outros”. A identidade é, assim, localizável na medida em que alguém representa a sua posição em um contexto humano no seio do qual esse alguém situa-se, diferencia-se como outro e reconhece o que possui de comum com alguns outros.

Segundo Dejours (1995) a identidade está na essência da própria saúde mental do indivíduo. Toda crise psicopatológica do trabalho implica uma crise de identidade. A construção da identidade representa, então, uma vitória sobre a ameaça principal ao indivíduo, no domínio de sua racionalidade subjetiva (Habermas, 1989), que corresponde à alienação.

Em uma revisão da literatura sobre as teorias acerca da identidade, Ting-Toomey (1998) diferencia os conceitos de identidade pessoal e identidade social:

A identidade pessoal refere-se ao modo como o indivíduo define suas características próprias, seu autoconceito, geralmente comparando-se com outros indivíduos;

A identidade social refere-se aos conceitos que o indivíduo desenvolve de si mesmo e que derivam de sua afiliação em categorias ou grupos emocionalmente significantes para ele. Esse tipo de classificação inclui, portanto, entre outras, as identidades por afiliação étnica ou cultural, de gênero, de orientação sexual, de classe social, de idade ou profissionais.

Em oposição a uma visão tradicional, que concebe a identidade social de um indivíduo como fixa e contínua, como algo que pertence a ele de modo quase permanente, uma corrente significativa de autores tem procurado desenvolver um conceito de identidade como algo fluido, multidimensional, dependente do contexto sociocultural das situações nas quais os indivíduos vêem-se envolvidos e como algo que possui um forte componente relacional (Brickson, 2000; Dantas, 2001; Garcez, 2001; Hogg e Terry, 2000; Holmer-Nadesan 1996; Lopes, 2001; Oliveira e Bastos 2001).

Segundo Oliveira e Bastos (2001), seguindo o senso comum nos vemos como a mesma pessoa em diferentes interações. No entanto, é possível também perceber que nos posicionamos de modos diferentes, em diferentes momentos e lugares, de acordo com, entre outras coisas, os diferentes papéis que estamos exercendo.

Como observa Dantas (2001), a identidade possui uma natureza dialógica, com base nas relações estabelecidas com o outro, configurando-se como um sistema de sub-identidades.

Segundo Brickson (2000), a identidade é multifacetada, dinâmica e influenciada por forças que atuam em múltiplos níveis de análise, tais como os traços de personalidade, a qualidade dos relacionamentos, a composição dos grupos, a estrutura organizacional, as normas sociais.

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De acordo, ainda, com Lopes (2001), o significado é construído pela ação conjunta de participantes discursivos, em práticas discursivas situadas na história, na cultura e na instituição. O autor enumera, ainda, algumas características importantes das identidades sociais:

a sua natureza fragmentada, no sentido de que as pessoas não possuem uma identidade social homogênea, como se pudessem ser definidas por sexualidade ou raça, por exemplo;

a possibilidade de que identidades contraditórias coexistam na mesma pessoa. Um exemplo, seria pensar-se na existência de um homem que vote em um partido conservador, embora seja sindicalista;

o fato de que as identidades sociais não são fixas, uma vez que estão sempre construindo-se e reconstruindo-se no processo social de construção do significado.

Em outras palavras, não há sentido em falar-se em identidade dos indivíduos, mas sim em múltiplas identidades que constróem-se dinamicamente, ao longo do tempo e nos diferentes contextos ou espaços situacionais dos quais esses indivíduos participam, sem que esses contextos específicos, ou microcontextos, sejam desvinculados de um contexto macro que envolve, entre outras coisas, as estruturas sociais, a cultura e o histórico das relações. Assim também não há como pensar-se a noção de identidade se não for em função da existência de um outro, ou de diferentes tipos de outros que possuem algum tipo de relevância para o indivíduo.

4. O processo de construção das identidades

Brickson (2000) identifica três modos distintos de como os indivíduos orientam as suas identidades nos diferentes contextos específicos nos quais vêem-se envolvidos. Segundo o autor, essas orientações da identidade do indivíduo são ativadas em função da forma como esse indivíduo define a si mesmo, prioritariamente, em cada contexto - se como um indivíduo, como um ser interpessoal ou como um membro de um grupo:

Quando a pessoa define-se prioritariamente como um indivíduo, tende a ativar uma orientação para a identidade pessoal, a ser motivada pelo auto-interesse, a conceber-se em termos de suas características e traços individuais e a avaliar-se por meio da comparação com os outros indivíduos.

Quando se define prioritariamente como um ser em relação com outros, a pessoa tende a ativar a orientação para uma identidade relacional, na qual a principal motivação passa a ser a procura pelo benefício do outro. A concepção de si mesma baseia-se, predominantemente, em seus papéis na relação com esses outros que significam algo para ela e a auto-avaliação tende a dar-se em termos da proficiência com a qual ela desempenha seus papéis interpessoais diante desse outro.

Finalmente, quando define-se prioritariamente como um membro de um grupo, a pessoa tende a ativar uma identidade de orientação coletiva. Sua motivação passa a ser a garantia do bem-estar de seu grupo, freqüentemente com relação a outros grupos. Ela procura caracterizar-se em termos do perfil ou do protótipo do grupo e tende a determinar seu autovalor com base na comparação de seu grupo com outros grupos.

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Na visão de Brickson, cada uma dessas orientações de identidade pode ser impulsionada por elementos do contexto organizacional, tais como:

a estrutura organizacional – o grau e a forma de integração entre os membros da organização, se eles estão primariamente atomizados como indivíduos, integrados por meio de redes que ultrapassam as fronteiras das divisões formais, ou separados por divisões e grupos formais;

a estrutura das tarefas executadas pelos indivíduos – a maneira pela qual o trabalho é organizado, se de modo individual, por cooperação interpessoal ou em equipe;

a estrutura de reconhecimento - como o desempenho é medido e recompensado, se de modo individual, pela cooperação interpessoal ou por equipe.

Dois conceitos importantes para que se compreenda o processo de constituição das identidades sociais, segundo Hogg e Terry (2000), são a noção de protótipo de grupo e de despersonalização.

O protótipo de um grupo corresponde à representação cognitiva das características que descrevem e prescrevem os atributos do grupo e que o diferencia dos outros grupos. São representações armazenadas na memória dos membros, mas que são construídas, mantidas e modificadas pelas características do contexto social interativo.

A despersonalização refere-se à mudança no autoconceito e à base de percepção dos outros, as quais se operam na constituição do senso de grupo. É o resultado de um processo de categorização social, em que o self é assimilado cognitivamente no protótipo do grupo, despersonalizando o autoconceito. Essa transformação do self é a base da formação de atitudes do grupo, tais como: o comportamento normativo; a estereotipagem; o etnocentrismo; as coesões positivas; a cooperação e o altruísmo; o contágio emocional e a empatia; o trabalho colaborativo; o compartilhamento de regras; a influência mútua.

Ainda, na visão de Hogg e Terry:

Os processos de identidade social são motivados pela necessidade de redução da incerteza subjetiva quanto às percepções, às atitudes, aos sentimentos e aos comportamentos e, finalmente, quanto ao lugar e ao autoconceito das pessoas no mundo social;

A despersonalização que acontece com base nos protótipos dos grupos está no centro dos processos de identidade social, na medida em que os protótipos fornecem o suporte moral e a validação consensual para o autoconceito de alguém, bem como para suas cognições e comportamento acessórios;

Os grupos são internamente estruturados em termos da prototipação real ou percebida de seus membros.

Segundo Ting-Toomey (1998), os indivíduos tendem a experimentar um maior grau de vulnerabilidade em seus encontros iniciais com pessoas de outros grupos do que com as pessoas do seu próprio grupo. No encontro entre grupos estrangeiros, o desconhecimento mútuo sobre as características de cada grupo conduz a um processo de negociação das identidades, que permeia as interações entre eles. Esse processo relacional, de negociação das identidades está relacionado, entre outros aspectos: às categorizações mútuas, à

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comparação, e à expressão de visões estigmatizadas entre grupos; à tentativa de reafirmação das identidades, do orgulho, das ligações emocionais, dos valores, crenças e normas de comportamento de cada grupo; à tentativa de interpretação dos comportamentos de ambas as partes.

Se a identidade é algo relacional, que se constrói como um produto das interações dos diferentes indivíduos e grupos, criando, portanto, um senso comum, faz sentido falar-se, ainda, sobre a existência de uma identidade organizacional.

5. O conceito de identidade organizacional

Segundo Gioia, Schultz e Corley (2000), a noção de identidade organizacional tem sido definida como sendo a compreensão coletiva dos membros da organização, sobre as características presumidas como centrais e relativamente permanentes e que distinguem a organização de outras organizações.

Ao contrário da percepção de outros autores, os quais vêem a identidade organizacional como algo que tende a ser preservado ao longo do tempo, Gioia, Schultz e Corley argumentam que, assim como as identidades individuais, ela possui uma natureza fluida, contínua, adaptativa e depende do modo como os membros organizacionais interpretam os valores e as crenças essenciais da organização nos diferentes contextos com os quais ela se depara em sua trajetória. A identidade organizacional é, portanto, algo construído socialmente, de modo relacional. Um sentimento de formulação contínua e preservação do self é, por exemplo, tão central para a identidade organizacional quanto o é para a individual, uma vez que é também construída por meio de processos de interação com os elementos externos como, por exemplo, os consumidores, a mídia, os concorrentes, as instituições regulatórias e toda a sociedade.

De acordo com essa linha de pensamento, as situações de mudança podem representar, então, um contexto de forte mobilização da identidade organizacional, na medida em que se modifiquem as relações da organização com os seus interlocutores externos e, como conseqüência, se modifique a imagem da organização. Existe, segundo esses autores, uma estreita relação entre identidade e imagem organizacional. Eles observam ainda que o conceito de imagem organizacional tem recebido definições amplas, que incluem o modo como os membros da organização acreditam que os outros a vêem, como as elites organizacionais gostariam que o mundo exterior a visse, como ela é projetada diante do mundo exterior e as percepções públicas reais acerca dela ou de sua reputação.

Sob essa ótica, o conceito de imagem pressupõe a existência de uma relação entre os elementos externos e internos à organização, que irá influenciar o modo como seus membros percebem a identidade organizacional. Os mecanismos que influenciam essa negociação da imagem, que por sua vez resulta em uma mobilização da identidade, acontecem, tanto pelo fato de que os membros da organização são também participantes de grupos exteriores e, portanto, obtêm o feedback diretamente desses grupos, quanto por meio das interações que a organização mantém como o mundo exterior em suas ações do dia-a-dia. Oliveira e Bastos (2001), por exemplo, desenvolveram uma análise sobre o conteúdo das cartas de reclamações de clientes de uma empresa de seguro-saúde, nas quais misturam-se elementos da imagem que tais clientes constróem sobre eles mesmos, sobre a organização e sobre a sua interação com ela e que afetam as identidades assumidas por ambas as partes nos contextos das interações.

Todas essas considerações sugerem que a possibilidade de sucesso dos esforços de implementação de mudanças organizacionais está intimamente relacionada com a capacidade

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de reconstituição das identidades, seja no nível dos indivíduos, dos grupos ou da organização como um todo.

E parece impossível tratar-se esses três níveis de modo desvinculado. Ainda que a organização consiga construir uma nova identidade sobre si mesma, adequada às demandas do contexto, os indivíduos que não tiverem a possibilidade de adequar suas próprias identidades a esse contexto tenderão a ter dificuldades de adaptação à mudança, possivelmente tornando-se alienados ao processo. Essa mesma dificuldade pode ser pensada na relação entre o indivíduo e o seu grupo mais imediato ou entre determinados grupos e a organização como um todo. Mas pode-se pensar que mesmo a organização como um todo, como um grupo social complexo, pode ser vítima desse mesmo processo de alienação, na medida em que encontre dificuldades de reconstruir a identidade organizacional diante de seu contexto.

6. A pesquisa de campo realizada – objeto e metodologia

O presente estudo foi realizado em cinco instituições brasileiras que vêm passado ou que passaram recentemente por importantes processos de mudanças organizacionais.

A primeira delas é uma fundação privada que atua em pesquisa, educação e prestação de serviços de consultoria nas áreas de economia e gestão, cujo processo de mudança já vem ocorrendo há pouco mais de uma década. Nesse processo de mudanças, a organização vem modificando toda a sua estratégia de competitividade, face a: uma mudança brusca na sua estrutura de captação de recursos, devido a um corte drástico de verbas públicas que antes representavam a sua principal fonte de subsídios; uma mudança no contexto de competitividade nos setores de pesquisa, educação superior e consultoria em gestão, seus principais focos de atuação.

A segunda é uma instituição financeira estatal que realiza também uma mudança significativa em sua estratégia de atuação, em função de mudanças na política governamental para o setor e nas intensas transformações que vêm ocorrendo na economia do país nas últimas décadas. Essa necessidade de mudança no foco estratégico afeta, entre outros aspectos, a própria missão da instituição na sociedade, além de provocar uma significativa alteração no seu modelo de relações trabalhistas.

A terceira é uma empresa privatizada há poucos anos, que atua como concessionária em serviços urbanos. Após adquirida por um consórcio composto por grandes grupos nacionais e estrangeiros, teve o seu controle operacional assumido por uma grande empresa européia do mesmo setor, recém chegada ao mercado brasileiro. Entre as principais mudanças após a privatização, promoveu-se uma renovação e redução drástica do quadro de funcionários, bem como a informatização, transformação e terceirização de processos internos.

A quarta instituição pesquisada é um órgão da administração pública municipal que atua na fiscalização de tributos. A principal mudança é a tentativa de construção de uma nova filosofia de gestão e um novo modelo de relações com o contribuinte, em função das demandas da sociedade pela melhoria da qualidade dos serviços públicos e da difusão de um discurso, em todas as esferas da administração pública no país, em prol da modernização dos sistemas de gestão.

Finalmente, a quinta organização pesquisada corresponde a uma empresa farmacêutica multinacional que atua há muitas décadas no Brasil. Seguindo uma tendência nesse tipo de indústria, passa pelo terceiro grande processo de fusão ou aquisição nos últimos dez anos.

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Em cada uma das cinco instituições, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com cerca de 15 pessoas, compreendendo funcionários pertencentes à base e gerentes dos níveis intermediários da hierarquia da organização, totalizando-se, com isso, um conjunto de 75 entrevistas. As entrevistas foram realizadas entre maio e dezembro de 2000.

Um dos principais objetivos das entrevistas foi o de captar a percepção dos indivíduos sobre o conjunto de relações relevantes que são afetadas nas mudanças no contexto organizacional e sobre como esses aspectos influenciam o modo como eles interpretam as situações de mudanças, impactando o processo de reconstrução de suas identidades e a sua capacidade de ação.

Com a ajuda do software ATLAS/TI, para análise de dados qualitativos, o conteúdo das entrevistas foi classificado em torno de diferentes conceitos abordados pelos indivíduos em suas narrativas, entre os quais as múltiplas relações sociais e institucionais por eles visualizadas no contexto organizacional. Tal classificação permitiu a identificação de quatro níveis diferentes de relações: no nível interior ao indivíduo, no nível imediato da ação, no nível da organização e no nível da sociedade. Em termos de sua contribuição para a composição da identidade dos indivíduos, tais relações foram classificadas em quatro tipos de categorias: a relação do indivíduo consigo mesmo (eu e eu), as relações do indivíduo com o contexto geral (eu e o contexto), as relações do indivíduo com os outros indivíduos por ele considerados como relevantes (eu e os outros), as relações estabelecidas pelos grupos com os quais o indivíduo mantém identidade no contexto (nós e o contexto).

7. Os resultados da pesquisa de campo

Com base na narrativa dos indivíduos foi possível estabelecer-se um quadro de análise sobre o conjunto de relações envolvidas na comunicação organizacional, que se mostram significativas no que concerne ao modo como as pessoas situam-se no contexto das mudanças e conseguem reconstruir as suas identidades. Esse quadro é apresentado na Figura 1.

Figura 1 – O conjunto de relações que afetam o processo de interpretação do contexto e reconstrução das identidades dos indivíduos

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EU E A GERÊNCIA/OS SUBORDINADOS

EU E OS MEUS GRUPOS

EU E OS CLIENTES

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Os diferentes elementos relacionais apresentados na Figura 1 podem ser assim descritos:

A relação do indivíduo consigo mesmo ( eu e eu ) – Os indivíduos mencionam como um aspecto importante para os seus sentimentos no contexto das mudanças organizacionais a auto-avaliação de suas atitudes, da coerência entre as suas ações e seus próprios valores, bem como de sua capacidade de reagir aos desafios impostos pelo contexto. As mudanças tendem, também, a ser melhor percebidas, na medida em que possibilitam ao indivíduo a oportunidade de redescobrir-se como um ser competente no processo.

A relação do indivíduo com o seu trabalho ( eu e o trabalho ) – Um dos aspectos mais marcantes das narrativas é o orgulho com o qual os indivíduos descrevem, minuciosamente, as características de seu trabalho. E nessas narrativas, indicam perceber de modo mais negativo as mudanças, na medida em que elas interferem negativamente no domínio que detêm sobre o trabalho ou na qualidade do que são capazes de realizar.

As relações do indivíduo com os grupos com os quais possui alguma identidade ( eu e os meus grupos ) – São inúmeras as citações acerca da importância do modo como as mudanças afetam as relações do indivíduo com os grupos com os quais ele se identifica. Alguns exemplos desses grupos são a equipe de trabalho, o grupo dos colegas antigos, o grupo dos profissionais da mesma categoria, o grupo das pessoas oriundas de uma mesma fábrica. Um dos maiores sentimentos de perda revelados pelos indivíduos ocorre quando eles desenvolvem a percepção de que as mudanças provocam um enfraquecimento nessas relações.

As relações hierárquicas ( eu e os gerentes / os subordinados ) – Para os indivíduos que atuam na base hierárquica da organização, o gerente de equipe demonstra ser um dos agentes de mudanças mais importantes, uma vez que é visto, entre outras formas, como o seu principal canal de comunicação com a instituição, como um elemento decisor em termos das suas

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chances de continuidade no novo contexto, como uma espécie de referência de comportamento a ser seguido e até mesmo como um amigo ou conselheiro nas horas de maior tensão. Para os gerentes que atuam no nível intermediário da hierarquia, o nível de estresse, a aceitação e a capacidade de adaptação de seus subordinados parecem ser alguns dos principais aspectos que pesam na auto-avaliação de sua capacidade gerencial e de sua missão como agentes das mudanças ou como representantes da visão organizacional diante dos indivíduos.

As relações do indivíduo com a cúpula da organização ( eu e a diretoria ) – O nível de abertura que encontram para que possam desenvolver um diálogo com a cúpula da organização demonstra ser, também, um aspecto que afeta as percepções dos indivíduos sobre a sua posição nas mudanças, na medida em que parecem sinalizar o nível de importância recebida da instituição. A existência de uma política de portas abertas ou o fato de encontrar um diretor pelos corredores e poder dizer-lhe um bom dia são fatores que parecem ajudar o indivíduo a construir a segurança de que há, no novo contexto, um espaço para uso da palavra.

As relações do indivíduo com os outros grupos com os quais não mantém uma identidade forte ( eu e os outros grupos ) - Sob muitos aspectos, os indivíduos demonstram, também, avaliar a sua própria capacidade de adaptação ao novo contexto em função das relações que consegue estabelecer, individualmente, com as pessoas com as quais não há uma identidade forte constituída, sejam elas, por exemplo, os funcionários recém-admitidos, os estrangeiros, os prestadores de serviços, os funcionários de outras áreas. No discurso de alguns dos entrevistados, essa capacidade de estabelecer ligações com esses outros grupos é mencionada como uma espécie de diferencial com relação aos seus colegas que preferem manter-se defensivos em suas posições.

As relações entre os grupos com os quais o indivíduo mantém uma identidade e os outros grupos ( nós e os outros grupos ) - As negociações de identidade entre os diferentes grupos na organização são um outro tipo de aspecto que parece afetar significativamente as percepções dos indivíduos com relação às suas posições nas mudanças. Alguns exemplos mencionados nas narrativas obtidas nos diferentes casos são as relações entre os novos e os antigos, entre os técnicos e os políticos, entre os técnicos e os burocratas, entre grupos de diferentes áreas, entre os funcionários efetivos e os contratados ou entre os brasileiros e os estrangeiros. A existência de estereótipos, as disputas de poder, as disputas pelo espaço na organização são exemplos de fatores que demonstram permear com freqüência esses jogos de identidade. Mas os indivíduos narram também movimentos positivos importantes que observam nessas relações, quando essas disputas convertem-se em uma tentativa de aproximação que pode ajudar os dois lados a garantirem as suas posições no novo contexto e a propiciar uma maior coesão da identidade organizacional.

As relações entre os grupos com os quais o indivíduo mantém uma identidade e a instituição ( nós e a organização ) - Uma grande importância é, também, atribuída pelos indivíduos ao tratamento que a organização dedica a cada um dos grupos com os quais eles mantêm uma relação de identidade. Em alguns casos, por exemplo, o simples fato de ser um funcionário antigo na organização ou ter um perfil mais técnico faz com que o indivíduo desenvolva o sentimento de que possui chances reduzidas de sucesso no novo contexto, quando considera que a organização não valoriza esse perfil de empregado.

As relações do indivíduo com os clientes ( eu e os clientes ) - Os clientes são percebidos como aqueles que, em última instância, balizam a capacidade de adaptação do indivíduo às mudanças pretendidas pela organização, sobretudo nas organizações onde há um discurso

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predominantemente voltado para o desenvolvimento de um maior foco no cliente. São diversos os depoimentos, por exemplo, nos quais os entrevistados referem-se à satisfação de receber uma atitude de reconhecimento do cliente pelo seu trabalho. Mas são também vários os casos em que o cliente surge na narrativa dos funcionários como uma fonte de cobrança de comportamentos possivelmente mais rigorosa do que o próprio discurso da organização, reforçando o nível de estresse provocado nos indivíduos.

As relações do indivíduo com os colegas que deixaram a organização por ocasião das mudanças ( eu e os colegas que saíram ) - Os colegas que foram levados a deixar a organização, de modo voluntário ou involuntário, por ocasião das mudanças, parecem ocupar um papel ambíguo nas autopercepções dos indivíduos no contexto. São comuns as menções à perda de referências sociais provocadas pelo afastamento desses colegas. Outras vezes, eles assumem uma certa posição emblemática das injustiças cometidas pela organização, na medida em que não receberam a oportunidade de se mostrarem capazes de contribuir para o novo contexto. Entretanto, em diferentes pontos da narrativa dos indivíduos eles representam um tipo de identidade relativa ao passado, da qual é preciso descartar-se. São algumas vezes apontados como referências da incapacidade de adaptação às mudanças ou como a antítese do que deve ser o comportamento de um indivíduo com chances de sucesso na nova organização. São, ainda, algumas vezes, pessoas que parecem cobrar dos indivíduos que eles se mantenham presos ao passado e que vêem a adaptação dos colegas que permanecem na empresa como uma espécie de traição às antigas identidades. A relação com esses colegas é, portanto, uma fonte de uma variedade de sentimentos para os indivíduos, tais como a nostalgia, a culpa e a autopreservação.

As relações do indivíduo com a família e os amigos que não pertencem à organização ( eu e os entes queridos ) – Grande parte das preocupações reveladas pelos discursos de diferentes indivíduos estão relacionadas ao risco de que as mudanças venham a afetar a estabilidade econômica da família. Além disso, tanto a família quanto os amigos mostram-se como um apoio importante que tenta-se buscar nos momentos de maior tensão no contexto das mudanças. Por outro lado, alguns indivíduos queixam-se também do modo como as pressões do trabalho, decorrentes da situação de mudanças na organização terminam afetando negativamente essas relações, sobretudo pela falta de tempo. Em algumas narrativas, a opinião dos amigos e da família mostra-se, também, como uma espécie de referência sobre a imagem pública da organização à qual os indivíduos parecem atribuir um valor considerável, afetando, positiva ou negativamente, as suas percepções sobre as mudanças e, conseqüentemente, sobre a sua auto-imagem nesse contexto.

As relações do indivíduo com a instituição ( eu e a organização ) - Esse é um tipo de relação que não se inicia com o contexto de mudanças e cuja história os discursos dos entrevistados demonstram não ser possível apagar-se ou alterar-se repentinamente. A crença dos indivíduos nas intenções da organização ao propor a implementação das mudanças demonstra estar diretamente relacionada ao nível de confiança mútua existente, em termos históricos, nesse tipo de relação. O maior exemplo positivo dessa relação de confiança entre a instituição e os indivíduos, observa-se em uma das instituições estudadas, na qual, mesmo diante do risco da demissão, em decorrência de nova fusão anunciada, os funcionários fazem questão de reafirmar a sua gratidão pela organização e a crença de que ela lhes reservará um tratamento justo e humano no processo. Inversamente, verifica-se que o histórico de um tratamento mais autoritário, distante ou ameaçador, da parte da organização, em alguns dos outros casos estudados, parece minar a confiança dos indivíduos de que as definições relativas às mudanças levam em conta também o seu próprio bem-estar. Outros elementos que parecem

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contribuir para que o indivíduo avalie, positiva ou negativamente, este tipo de relação, bem como as suas próprias chances de sucesso no novo contexto, são as políticas e programas de gestão de pessoas que a empresa disponibiliza, tais como as oportunidades de treinamento, a gestão do desempenho, o nível de reconhecimento pelo esforço e as oportunidades de carreira.

As relações do indivíduo com o mercado de trabalho ( eu e o mercado de trabalho ) - na narrativa de diversas pessoas percebe-se que o seu nível de estresse, a sua auto-estima e a percepção acerca das suas chances de sucesso no novo contexto são, freqüentemente associadas ao nível de atualização e às possíveis oportunidades de recolocação com relação à situação do mercado de trabalho.

As relações do indivíduo com a sociedade em geral ( eu e a sociedade ) - Os indivíduos demonstram associar, também, as chances pessoais no novo contexto ao risco de que as mudanças venham a implicar um prejuízo ao seu status social, seja, entre outros motivos, pela perda do emprego ou pela possibilidade de desvalorização de sua categoria profissional. Em alguns casos, no entanto, observam-se alguns discursos de funcionários que associam as mudanças organizacionais ao resgate de sua imagem profissional diante da sociedade, em função do desgaste que observavam ocorrer na condição de servidores públicos.

As relações da instituição com a sociedade ( a organização e a sociedade ) - Os sentimentos e percepções dos indivíduos acerca de suas próprias posições no novo contexto são também associadas, em diferentes momentos da narrativa dos entrevistados, ao modo como observam que as mudanças afetam a identidade, a imagem ou a missão da instituição diante da sociedade.

As relações da instituição com o mercado ( a organização e o mercado ) - Do mesmo modo, as pessoas demonstram avaliar as suas próprias chances no novo contexto em função das chances de sucesso que observam para a instituição diante do mercado. A competitividade da empresa, a capacidade de geração de recursos, o potencial de investimento, as chances de sobrevivência econômica da instituição são alguns dos fatores que parecem gerar um maior sentimento de segurança e uma melhor avaliação das mudanças pelos indivíduos nos diferentes casos analisados.

8. Para concluir

Os diferentes componentes da Figura 1 sugerem a importância da adoção de uma abordagem interpretativa que considere a comunicação como uma arena na qual os indivíduos, continuamente, redescobrem as suas identidades, constróem um sentido para a realidade em todas as suas dimensões e reconstituem-se como sujeitos e atores conscientes e competentes. A visão da mudança organizacional como uma teia de relações, sob a ótica dos indivíduos que dela participam, aponta para um papel da comunicação que não pode ser relegado a um mero mecanismo de transmissão de mensagens e de convencimento das pessoas sobre as intenções da organização, conforme abordado por muitos dos modelos de gestão de mudanças que a administração tem produzido ao longo das últimas décadas.

São múltiplas as identidades dos indivíduos que são afetadas pelas situações de mudança, o que requer uma compreensão aprofundada do modo como as novas identidades são negociadas, constituídas, na medida em que desenvolvem-se, de modo compartilhado, novos significados para o contexto organizacional.

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É importante observar-se que o conjunto de relações representadas na Figura 1 não dizem respeito somente ao modo como os indivíduos acessam o discurso oficial ou à estratégia macro da organização, mas sim a uma mistura de elementos constituintes dos níveis macro e micro, os quais demonstram que o sentido da mudança para os indivíduos é construída tanto pelos valores, diretrizes e regras sociais gerais presentes no contexto, quanto pelas inúmeras interações das quais eles participam à medida que desenvolvem a sua ação. Esse conjunto multidimensional e multidirecional de elementos sugere um novo tipo de agenda a ser considerada pelas organizações, ao efetuarem o seu planejamento de gestão das mudanças que precisa levar em conta, pelo menos: Os sentimentos, dúvidas, inseguranças, opiniões e autopercepções dos indivíduos no

processo e o quanto a instituição oferece espaço para que eles possam expressar-se livremente;

Como as mudanças afetam os anseios, os projetos, o status, as relações pessoais (profissionais e afetivas) e a vida cotidiana dos indivíduos dentro e fora da organização;

A avaliação que os indivíduos fazem acerca das suas chances de sucesso no novo contexto, no que concerne ao seu perfil pessoal, seus conhecimentos e competências, dados os requisitos valorizados pela empresa e as condições do mercado de trabalho;

Como as mudanças afetam o domínio e a satisfação das pessoas com relação ao seu trabalho;

O nível de compreensão dos indivíduos sobre os valores declarados, as diretrizes, os objetivos e as definições gerais estabelecidos pela organização, incluindo-se o perfil que ela deseja para os seus empregados no novo contexto;

Como se desenvolvem as interações pessoais em meio à ação; A lógica de coexistência, as visões estereotipadas e as assimetrias de poder entre grupos

ou categorias de pessoas; O nível de integração da visão entre as diferentes áreas; Como se desenvolvem as relações de poder e a integração entre os diferentes níveis da

hierarquia da instituição; Como são tratadas as demissões de pessoas e o que o afastamento desses antigos colegas

representa para os indivíduos que permanecem na organização; O tipo de relação construída pela instituição com os indivíduos, em função das políticas e

práticas usuais de gestão de pessoas e do modo como essas políticas e práticas são alteradas no contexto das mudanças;

A força e a coerência da imagem e da identidade organizacionais, diante de seus públicos internos e externos;

O nível de compreensão dos indivíduos sobre a missão e as chances de sucesso da organização e como eles percebem que esses aspectos são afetados pela situação de mudanças.

Ao mesmo tempo que permite lançar uma nova luz ao modo como as organizações lidam com a gestão das mudanças, o conjunto das relações apresentado na Figura 1 também descortina uma série de novas possibilidades para o estudo dos fenômenos que envolvem a comunicação e a mudança organizacional, de modo a se promover uma maior integração entre as diferentes áreas científicas interessadas na investigação dos fenômenos sociais das organizações e, particularmente, das questões relativas à identidade. Um poderia ser a combinação entre as análises pragmáticas do discurso dos indivíduos nas diferentes situações de interação com os tipos de pesquisas internas de opinião normalmente utilizadas pelo analistas de endomarketing, de modo a melhor se perceberem as relações entre as práticas discursivas no nível micro com a constituição da imagem institucional pelos indivíduos.

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Finalmente, o conjunto de elementos da Figura 1 sugere a necessidade de se construir, também, um novo tipo de enfoque e uma nova agenda de pesquisas relativas à questão das supostas resistências humanas à mudança organizacional, uma vez que a natureza relacional das percepções dos indivíduos lança um questionamento sobre a visão reducionista adotada por muitos dos textos da administração, os quais consideram as resistências humanas à mudança como uma espécie de característica natural do ser humano, a qual precisa ser combatida ou direcionada a favor dos interesses institucionais.

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