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1 Ivo Stainiclerks A MORTE ENTRA EM CAMPO 2013

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Ivo Stainiclerks

A MORTE ENTRA EM

CAMPO

2013

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1 Prossegue a partida entre o Flamengo e o São Paulo

Futebol Clube.

O Flamengo parte para o ataque em vantagem. Bola com

Willians. Passa para Fernando, que encontra Leonardo Moura

com bastante espaço na lateral. Ele carrega em direção ao

ataque, passa por Alex Silva com um movimento e se

aproxima da grande área. Nick Herman pede o passe, mas

Danilo intercepta e dá a bola para Cleiton Xavier que tenta um

longo lançamento na direção de Robert, mas o auxiliar já

havia marcado impedimento. Grande chance de contra ataque

desperdiçada.

Miranda tem a bola na defesa e dá um bicão para frente em

direção a Hernanes que ganha a briga pelo alto e acha Rodrigo

Souto no meio-campo. Se movimenta para a lateral e recebe

um passe esquisito de Richarlyson. Cruza no primeiro pau e

Bruno move em direção à bola. Ele desvia a bola com seu

joelho e peeeerdeeeuuu! A bola passou ao lado da trave!

André Luiz cobra curto o escanteio. Dagoberto recebe o

passe, finta o marcador e cruza a bola botando curva nela em

direção ao segundo pau, Bruno pula na bola,mas não alcança.

A bola vai até Welinton que tira da sua defesa.

Alex Silva está com a bola na defesa. O zagueiro tenta um

longo lançamento para Miranda que divide com seu

adversário e leva a melhor nesta, e então redireciona o

cabeceio para Henrique. Ele dribla o seu adversário e avança

pela ala. Chega na linha de fundo e cruza para a marca de

pênalti onde está Rodrigo Souto que tenta um lindo voleio e o

goleiro pula na bola e consegue desviar e mandar.

O Flamengo está com dificuldade em parar o ataque

adversário aonde trocam bons passes. Vitor e Fernando

partem para armar a jogada. O primeiro finta dois e acha

Maldonado livrinho na lateral. Ele cruza de primeira bem na

cabeça de Nick Herman, e Alex Silva consegue desviar para

escanteio.

André Luis corre até a bandeirinha do escanteio, põe a bola

no chão e se prepara para fazer a cobrança do tiro de canto.

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Ele cobra rápido e pega a maioria dos jogadores

desprevenidos, a bola vai na direção de Rodrigo Souto que

está posicionado na entrada da área, mas Welinton chega

primeiro e dá um chutão para aliviar o perigo.

Hernanes e Dagoberto olham para a barreira. Miranda vai

para a cobrança e joga a bola na grande área. Petrovick pula

junto com o goleiro e Bruno mostra habilidade e pega a bola

no ar impedindo que o jogador cabeceasse.

Fernando recebe a bola no meio-campo e cobra o lateral.

Nick Herman se livra do seu marcador e toca de primeira para

Kleberson que dispara para o ataque. Junior Cesar não tem

outra opção, a não ser puxar a camisa do atacante para forçar

uma falta. Ele tem sorte por não receber punição maior do

árbitro pela falta.

O jogo reinicia e Bruno cobra o tiro de meta. Kleberson

ganha pelo alto, mas Rodrigo Souto sai com a bola. Ele lança

a Richarlyson. Este analisa as opções que tem e vê Dagoberto

pedindo a bola. Faz o passe em profundidade, Dagoberto

domina, olha para o goleiro, Bruno sai fechando o ângulo,

Dagoberto tenta chutar tirando do goleiro e perde o gol.

Estádio lotado como um formigueiro cinza. Torcidas se

agitam enfurecidas. Vermelho e preto de um lado, preto e

branco do outro. Explosões violentas, como ondas de um mar

revolto e tempestuoso. No gramado a disputa ferrenha pela

redondinha. Nas arquibancadas cada um se martiriza, e se

torturam como loucos, na expectativa do gol marcado pelo seu

time. Rostos corados e banhados de suor. Impaciência e

indignação por erros cometidos.

Na arquibancada do Flamengo, Emanuele Monforth olha o

jogo com apatia. A única que está quieta. Não vibra, não se

envolve. Não é torcedora fanática. Desses que ficam

arrancando os cabelos só por causa de um gol perdido. Aliás,

nem torcedora é. Futebol não é o seu fraco. O pai ficava

assistindo aquilo na TV. Espalhado no sofá. Garrafa de

cerveja ao lado, um cheiro azedo no ar. Dinheiro para encher

a cara sempre tinha. E, quando não, dava-se um jeito.

Pendurava. O duro é que no final do mês sequer conseguia

agradar a todos os credores. Havia sempre desavenças por

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falta de verba. Amigos fedidos, lhe faziam companhia,

conversando alto e gritando palavrões. Os imbecis falavam

sobre regras, estratégia, formação, primeira divisão, meio

campo, defesa, ataque, coisa que ela nunca entendeu bulhufas.

Na verdade nunca entra em discussões bobas a respeito deste

ou daquele time. O pai e os amigos eram donos de fazer isto.

Viviam se descompondo por causa de tal babaquice. Merda.

Já se pegou várias vezes tentando não se envolver ao maldito

passado. Mas, o passado é como a cicatriz de uma cirurgia.

Mesmo completamente curada ainda lá de vez em quando

comicha uma dorzinha indiscreta. Não quer mais se lembrar

disso. Sofrer novamente. Terá que aprender, custe o que

custar. Pois bem, Flamengo, São Paulo, Grêmio, pipocas. Não

possui nenhum time. Frescura bater boca por causa de

besteira. Está ali simplesmente em companhia de um amigo,

ou melhor, um colega de trabalho. Ou ainda, por causa de

Nick Herman. Senão, estaria em casa sem fazer nada. Às

vezes é melhor o silêncio de casa. É reconfortante. Sempre foi

uma garota quieta, discreta. Personalidade do pai, a única

herança do cretino. Imagine que droga de herança. E que

personalidade. Embriagado, o coitado só abria a boca para

xingar, proferir asneiras. Bêbado, queria ser homem, sóbrio,

um saco de batatas. Não agia com nada. Só sabia ficar

cismando, olhando para o tempo. Felizmente não tem este

hábito de palerma. Prefere a boca fechada, só falar quando

preciso. Mas, se alegra em possuir alguma iniciativa. Pensar é

bom. Porém, é necessário um pouco de ação. No entanto,

mesmo aqui feita uma imbecil, sem essa maluquice de ficar

gritando e se martirizando à toa, assiste ao jogo. Sente que por

algum motivo teria que estar aqui hoje, não para ver dois

times se massacrando. Mas, porque, na verdade, há um

jogador de futebol que a faz ir ao estádio de vez em quando.

Esse jogador é Nick Herman.

Lá está ele a correr. Suado, vermelho, ansioso, nem

imagina que esteja aqui para vê-lo. O cara é esfomeado por

bola. Só se preocupa em ganhar. Efetuar o passe, marcar o

gol. Mas, no fundo é um sujeito legal. Embora as recordações

que tem dele se remontem apenas à infância, não acha que

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perde tempo em vê-lo jogar. É apenas uma torcedora a mais.

Obscura. Nem que seja como uma sombra, mas, foi para isto

que veio ao Maracanã. Passa a mão nos cabelos. Puxa-os para

trás, como querendo se livrar de velhas recordações. No

entanto elas continuam como num filme. Mesmo que lute, não

consegue apertar o maldito botão de pausa. Nick Herman joga

no Flamengo, e se conhecem desde criança, da época em que

estudaram juntos na antiga João Goulart. Qualquer coisa

sempre a atraíra para junto dele. Sentia-se segura. Talvez o

modo como a ajudava a enfrentar a vida. Sair da fossa,

encarar as dificuldades. Foi um amigo de verdade enquanto

durou. Porque tiveram de crescer, e se tornarem tão

diferentes? A vida distancia os seres. Naquela época era bom,

e se divertiam. Hoje, mesmo no meio desta grande multidão

aos berros, é uma porcaria. Também é um bocado chato ficar

pensando nisto. O pior é que nunca consegue afastar a solidão

interior que parece invadi-la. O desejo é voltar àqueles

tempos. Sorri, lembrando-se da vez em que fizeram o velho

Sucupira escorregar em uma casca de banana, caindo na

piscina. O infeliz levou um baita susto. Por pouco não

afogara. Mas, caso morresse, não se perdia grande coisa. No

entanto, o que lhe dói ainda hoje é pensar na ocasião em que

Nick Herman foi mordido por um cachorro. Também andou

perto de bater as botas. Ficou vários dias de cama em estado

crítico. O bom mesmo era ir todos os dias em sua casa. A mãe

dele era uma senhora gentil. E, quando ela não estava por

perto, acariciava-lhe a mão, torcendo para que sarasse logo.

Era terrivelmente chato vê-lo sofrer daquele jeito. Embora, ao

mesmo tempo achando boa aquela demora, pois, enquanto não

sarasse, poderia continuar com as visitas. Mas, finalmente

ficou bom. Só que pelo resto da vida o pobre Nick nutriu uma

aversão intolerável por cães. Um trauma dos diabos. Nunca

mais se deu bem com aquela espécie de animais.

Movimenta o corpo num gesto, afastando as recordações.

Olha para baixo. Milhares de cabeças e braços se agitam.

Garotos comem pipoca, espalhando sujeira e algazarra. Gente

é pior do que animal. Um bicho desorganizado. Ela é filha

única. Sequer tivera um irmão ou irmã. Talvez, se tivesse,

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hoje em dia seria mais tolerante. A mãe nunca tivera trabalho

com sujeira dela. Mas, de que adianta ser tão boa? Virtudes

não valorizam. O que manda é a safadeza, a pouca vergonha.

Ninguém gosta de santinhos ao seu redor. Santo só tem

serventia depois que morre, aí sim, é venerado por todos. Em

vida é ficar apontando os erros dos outros, coisa que a maioria

odeia. Tenso, Ângelo Torres grita, como se os jogadores

fossem obedecê-lo. O pai era assim. Gritava o nome dos

jogadores em frente à televisão, como se pudessem ouvi-lo, e

seguir as suas ordens. Miséria. O maldito fantasma de novo.

Cambada de malucos. Um homem abocanha um enorme

hambúrguer, berrando desesperado. Um pouco de pão e saliva

esguicham-lhe da boca. Nojento. O infeliz do pé de cana um

dia vomitou na sala. O porco lá de casa era ele. A coitada da

mãe limpava tudo, sem abrir a boca, a ouvir-lhe os insultos.

Um carro de paciência. Se existe santa na terra é ela. Nem

julgamento precisa. O céu a receberá de portas abertas. Talvez

seja esta a vantagem. Bandeiras estendidas, e ao pé do

gramado anúncios de patrocinadores. A TV lá em cima. Os

narradores e comentaristas esportivos ganhando o seu

dinheiro. Homens experientes no ofício. Quanto a ela, nem

tem certeza de uma atividade promissora. Sequer exerce

direito a porcaria da profissão. Talvez esteja perdendo o

tempo, mas, agora é tarde. Tem que ser mesmo esta droga de

policial. Boa ou ruim, que se dane. Respira fundo. Um cheiro

de suor e perfume barato lhe entra pelo nariz. Não se

incomoda. Acostumara-se a esta imundície. Primeiro com o

pai, e agora com os malditos prisioneiros que fedem como

carniça. É a vida. O barulho é ensurdecedor. A sua volta

torcedores se esgoelam com xingamentos e palavrões. Todas

as classes de idiotas se misturam aqui. Ricos e pobres na

mesma euforia. O banqueiro da Rua Cardoso de Morais no

Bonsucesso. Calva brilhante, barriga de chope coberta por

uma espichada camiseta, berra com o seu vozeirão rouco,

cercado de puxa sacos. Ao mesmo tempo em que o mecânico,

que ela conhece de vista, e já consertou o seu carro algumas

vezes, se esnoba em companhia de uma loira oxigenada e

outra moreninha. As piranhas com certeza usufruem do seu

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escasso dinheirinho, suado e ensebado de graxa e poeira. Na

animação esquece que na manhã seguinte os seus músculos

enrijecidos sofrerão dolorosas contrações e movimentos na

execução frenética das chaves e duros golpes de marreta.

Comerciantes, vendedores, auxiliares de escritório, faxineiros.

E por falar em faxineiro recorda-se de Zico Zarôlho. Sujeito

que prendeu dias atrás, e que atualmente cumpre pena em

regime aberto, trabalhando nesta função em um restaurante.

Estaria aqui, caso estivesse solto? Não tem certeza. O

indivíduo é meio maluco, e não sabe se realmente é perigoso.

Mas, isto não vem ao caso. Veio se divertir, e não ficar

pensando em trabalho. Ao menos a intenção era se divertir,

desligar da rotina. Contudo, sequer participa. O corpo está

presente, mas o espírito insatisfeito naquele local.

Uma coisa estranha lhe comprime o peito. Mau presságio?

Qualquer influência negativa talvez. A mãe tinha sonhos.

Quando pressentia algo de ruim era avisada em sonhos.

Premonição? Cada louco com a sua mania. Coitada. Sofreu

muito na vida, e o sofrimento pode causar vários tipos de

medo. Ela, porém não acredita em tais besteiras, contudo não

contraria a mãe. Cada um tem direito de acreditar no que

quiser. Nick disputa a bola com garra. Assiste ao jogo com o

pensamento no passado. As suas vidas tomaram rumos

diferentes. Nick Herman é um jogador famoso. Não foi

preciso se dedicar muito aos estudos para se tornar um

milionário. Bom prá ele. O corpo rijo, a saúde de ferro, a

disposição física lhe proporcionaram tudo. É um vencedor.

Nem se deram conta de que haviam se separado. Ela se

dedicara com muito esforço. Estudou na Fundação Getulio

Vargas, formando-se em 2001 numa escola superior.

Especializou-se em Inglês e Espanhol, servindo depois como

assistente de promotoria em Duque de Caxias, entrando em

seguida para a polícia. Recebeu vários treinamentos na

carreira, e diversas promoções. Trabalhou na área

administrativa, alcançando finalmente o posto de agente da

Polícia Federal do Rio de Janeiro. Exerce o cargo em

companhia do seu fiel parceiro e amigo, Ângelo Torres, que

se encontra ao seu lado no momento. Mas, apesar de toda essa

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bagagem acadêmica não se considera ainda uma boa policial.

O problema é que as coisas parecem não ter dado muito certo

até agora. Não se sente realizada. Poderia ter tido um melhor

desempenho. Não satisfeita com a posição que ocupa,

considera-se rebaixada. Estudou, se esforçou, mas não sabe se

terá retorno. Às vezes pensa, será que valeu a pena? Tem a

impressão de que esse troço de marchismo, ou feminismo,

sabe-se lá, atrapalha um bocado a vida das pessoas. O chefe

Mathews Akcela nunca lhe deu um caso sério para resolver.

Apenas trabalhos de pouca monta, como pequenos furtos, ou

vigiar autoridades em eventos sem importância. O miserável

do velho bigodudo parece não levar em conta o trabalho de

mulher. Não compreende que pode ser tão valioso quanto ao

de seus talentosos detetives masculinos de merda. Mantêm-na

em seu departamento apenas para alimentar o seu descaso.

Mulher para ele não devia entrar na polícia. Como se diz, é

daqueles que pensam que lugar de mulher é em casa,

especialmente na cozinha. Uma pinóia. Ela precisa trabalhar,

pagar as contas. A mãe já não agüenta mais o tranco. Está

bem debilitada, coitada. O infeliz do chefe nunca imagina que

ela tem obrigações a cumprir, que é um ser humano como os

demais, que se alimenta e veste, e tem que pagar a porcaria da

luz, telefone e gás, não é? E, além do mais, possui ambição,

precisa crescer, progredir. Ou será que, de fato, é seu destino

ficar mourejando o resto da vida? Quem sabe não sirva

mesmo para esse negócio, e trabalho de polícia é uma merda

de ocupação estritamente masculina. Se pegar um caso irá

decepcionar a todos, ou melhor, apenas confirmar o que já

estavam cansados de saber. Na escola era inteligente, se saía

bem nas provas, mas, duvida que tenha sido brilhante. Nunca

foi boa em nada. Matheus Akcela até que tem certa razão em

não lhe confiar grandes tarefas. O cara sabe das coisas. Por

isso, qual a sua chance? Compensa lutar?

Às vezes, ao lhe pedir algo que exija mais dela, o filho da

mãe a descarta argumentando que não está preparada. Nunca

chega à conclusão de que se não arriscar jamais será capaz de

grandes coisas. E, enquanto isso, a insegurança, a frustração

vão tomando lugar em sua vida. Os colegas de trabalho

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tratam-na com superioridade. Os frescos só pensam em si

mesmos, com aquele ar de arrogância besta. Exceto Ângelo

Torres, que sempre a respeita e considera. O único a

reconhecer sua capacidade, e que nunca pisou na bola. Mas

não pode ajudá-la. Começaram a trabalhar juntos no caso de

Bartolomeu Ferrath, mas, logo retirados sem atinar pelo

motivo. Com certeza não querem mesmo que faça nada.

Ridicularizada ao extremo, ninguém lhe dá crédito ou

competência. Ângelo Torres nunca a subestima. Reconhece os

seus problemas, e não aprova o comportamento dos outros.

Conhece partes da droga de sua vida, que foi criada na

pobreza, e venceu com esforço. O babaca do pai morreu

devido ao alcoolismo que o consumiu. Por sorte tem ainda a

mãe, o seu refúgio nas horas difíceis. O parceiro, às vezes, lhe

faz perguntas embaraçosas como, por que nunca se casou, e

nem se apaixona. Ela não gosta de falar sobre isto. Apenas

sorri, e diz em tom de brincadeira, que cuide da sua própria

vida. Mas, na cama às vezes, fica horas e horas pensando. Por

que não se casou e não teve filhos? Será que já chegou a se

apaixonar? De que adianta viver na solidão, e ralar na polícia,

por um salário de merda, além das humilhações? Qual o seu

objetivo na vida? Viver para quê? Todo mundo sai, se diverte,

e ela não. Nunca aprendeu a dançar. Não leva jeito para essas

coisas. Nunca se solta. Na escola permanecia silenciosa nos

cantos. Todos os imbecis riam, falavam e se divertiam. Ela

não tinha sequer amigos. Jamais se enturmava. O único amigo

que teve foi Nick Herman. Talvez tenha se apaixonado por

ele, mas nunca teve certeza.

Ângelo Torres também é um bom amigo, e tem um jeitão

bacana. Torcedor aficionado do Flamengo, e tudo. De vez em

quando dá na telha de chamá-la para alguma coisa, talvez com

a intenção de agradá-la, ou, como diz ele, tirá-la daquela

vidinha estúpida em que vive. Por isso no dia anterior veio

com um convite:

_Que tal assistirmos a uma boa partida de futebol amanhã?

_Qual, já estou cheia de ver gente trucidada e pescoço

quebrado. Não pretendo nem um pouco estar lá, feito boba,

olhando aqueles cavalos se escoicearem.

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Ângelo Torres ri. É um sujeito de banhas, e a barriga

sacode. No entanto não deixa de ser simpático.

_Ora essa, não me diga que vai passar o dia de folga

esfregando chão, e limpando a poeira dos discos.

_Vou lixar as unhas. – Diz brincando.

_ Amanhã será um jogo especial para a cidade. Será

escolhido um dos nossos jogadores para a seleção.

_Não que eu não seja patriota, mas é uma coisa que pouco

me atrai.

Ângelo Torres tem um senso refinado em captar emoções.

Percebe logo o que se passa no íntimo das pessoas, por mais

que se queira esconder.

_Quer dizer que não se importa? Mesmo quando um amigo

de infância tem a chance de ser escolhido?

Ela o encara com desconfiança.

_Está se referindo a Nick Herman?

_Claro, e quem mais poderia ser?

_Qual é. Aquele imbecil não é tão bom assim.

_Ora, minha querida, ele é o melhor, e tenho certeza que a

sua estrela brilhará. Não tenha dúvidas de que é um jogador

de seleção, e bem merece mostrar ao mundo o seu talento.

_Puxa! Que convicção! Sobre isto eu não discuto, já que

não entendo de futebol, mas está quase me despertando o

interesse.

_Quer dizer então que vai?

E lá está agora no meio daquela multidão de desvairados.

Idiotas de toda a espécie. Conhecidos que lhe acenam,

estranhos que nunca viu, e nunca desejaria ter visto. Bandeiras

tremulantes, gritos, palavrões, protestos. Já está acostumada a

isto, lidando com seres do mais baixo nível, na profissão.

Olha a platéia. A excitação toma conta do estádio. Cores

alegres, rostos sorridentes. Todo mundo com aquela cara de

ansiedade besta. Mas no fundo estão felizes. Desajustada no

meio de tudo, considera-se ainda mais idiota do que a

multidão inteira. Quieta e introvertida, nunca foi de soltar a

franga com facilidade. É o seu modo de ser. A vida inteira foi

fechada. Séria, como um porco mijando. Além disso, se acha

ridícula vestida com uma simples camiseta cavada e um short

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curto. Meio insegura. O problema é que se acostumou com a

austeridade da polícia. A dureza de roupas pesadas, coldre,

coturno. O uniforme operacional, não permite que seja vista

em público daquele jeito. Só em casa fica à vontade com

aqueles trajes.

__Ei, você está aí? - Diz Ângelo Torres cutucando-a ao vê-

la tão distante. Olhe!

A torcida vibra. Nick Herman domina a bola. Com classe

passa por um dos adversários. Rumo à linha de fundo corre

em direção à grande área. A sua meta é aproximar-se o quanto

puder e chutar com toda a força para o gol.

_Vai Nick! É agora Nick! - Grita Ângelo Torres com

desespero, o qual se levanta junto com a torcida em êxtase.

Emanuele ouve os berros à sua volta. Se contorcem, e se

agitam como se imergissem nas lavas de um vulcão.

_Para o gol Nick! Para o gol!

Ela também se levanta. Mas, ao invés de vê-lo concluir a

jogada assiste com decepção a um ato de extrema brutalidade.

Um dos adversários vem com tudo prá cima dele. Salta com

violência acertando-lhe a perna direita, na altura da coxa, com

os cravos da chuteira. Nick rola no gramado, e o árbitro apita.

O jogo para. Foi atingido por Norivaldo Lagoinha. Na

verdade ela não entende de futebol, mas, é boa para

reconhecer pessoas. Principalmente uns da laia daquele patife.

Norivaldo não é benquisto por muita gente. Andou praticando

certas asneiras, que desmerecem qualquer elogio. Lembra-se

da vez em que espancou um mendigo até quase matá-lo. E é

fato corrente que há também atos de violência e maus tratos

contra a esposa. O animal parece que procura uma

oportunidade contra Nick. Com certeza não quer que ele se

classifique para a seleção. Já houve alguns desentendimentos

entre eles, pois, são adversários antigos, como os times em

que professam. O Flamengo que é o time de Nick e o São

Paulo no qual joga Norivaldo.

Nick, atendido pela equipe de socorro, se contorce no

chão. Segura a perna, enquanto o miserável do cavalo se

afasta sem nenhuma advertência do juiz. A torcida grita, com

raiva, palavras ofensivas. O barulho é imenso.

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_Juiz filho da puta!

_Juiz ladrão! - Grita Torres, enfurecido. Expulsa este

animal do campo!

Vaias, apupos e assobios. Emanuele, um pouco tensa, tem

o pressentimento de que algo ruim irá acontecer. Não sei

porque vim a essa merda. Pensa. Porcaria de diversão. Pareço

uma tonta no meio deste bando de malucos. Não devia ter

vindo.

_Miserável. - Desabafa Ângelo Torres. Só pode estar

comprado, este patife.

Na estratégia do jogo, às vezes o jogador se machuca de

verdade. Ou, em muitos casos apenas finge, a fim de obter

vantagem, atraindo o juiz ao seu favor. No caso de Nick,

pareceu levar uma forte pancada, e ainda de propósito. No

entanto, talvez pela tenacidade ou determinação em ir até o

final, e ter o esforço recompensado, recupera-se logo. Coloca-

se de pé com rapidez, e o juiz prossegue a partida.

Sempre foi um jogador disciplinado. Respeitado pela

diretoria e amado pela torcida. Durante o período que joga

para o Flamengo nenhum problema grave que lhe afete a

carreira. Dá o máximo de si, portando-se com humildade e

discrição. Nunca maltratou sequer um companheiro ou

superior.

Segundo tempo, e nada de gols. A torcida se agita de

ambos os lados com pressão. Os dois times são bons. Ângelo

Torres não se conforma com o resultado. Para Emanuele é

irrelevante. Babaquice dos infernos. Já deveria ter acabado.

Senta-se novamente, quando leva um forte esbarrão. Cacete.

A pessoa se desculpa. Observa com atenção o sujeito de meia

idade, forte, e de boa aparência. Reconhece o infeliz enquanto

caminha até um dos lugares mais à frente. É Leônidas

Carvalho, um executivo da Buchingan & Marconi Field S/C

Ltda. Acomoda-se sorrindo ao lado de uma linda mulher num

lugar especial. É a esposa do jogador Nick Herman. Leônidas

Carvalho é um amigo do casal. Do lugar em que se encontra

não dá para ouvir o que dizem. Mas, há uma certa

descontração entre ambos. Amigos bem íntimos. Nick joga lá

embaixo. Os dois nem parecem ligar para o que acontece,

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presos a um momento só deles. Emanuele balança a cabeça. O

que tem a ver com isto? O problema é a porcaria do aguçado

senso de observação que possui. Não é possível que ainda se

preocupe com Nick ao ponto de querer protegê-lo, como da

vez em que foi mordido pelo cão. Besteira, aquele tempo já

era. Não há mais nada entre eles. Aliás, nunca houve. Apenas

amizade besta de criança. Nick Herman nem se lembra dela.

Casado, mora em uma linda mansão. É famoso, e não precisa

de uma policialzinha de merda que usa calças e botas de

homem. Nem aparência possui. Magra, porém de corpo rijo e

resistente, gostava de brincar de luta com os garotos da

vizinhança, em um gramado no jardim da casa de Pitt. Era

respeitada por eles. Uma vez enfrentou o desgraçado do pai,

quando batia na mãe. Não conseguiu nada, mas ao menos

aplicou-lhe uma severa mordida no braço. O infeliz ficou com

a marca por vários dias. Os cabelos continuam da mesma

forma. Negros e lisos divididos ao meio, aparados na linha do

queixo. Não se acha bonita. A mulher de Nick sim. É dona de

uma rara beleza, mas, com uma cara inconfundível de piranha.

Onde foi que arrumou esta beldade? Corpo esbelto, bem

torneado, cabelos loiros e sedosos, e um sorriso que chama a

atenção, como em anúncio de perfume caro. Parece sempre

envolta em uma aura de riqueza e majestade. Nick Herman

deve ser feliz, e pelo jeito não mudou nada desde a infância. A

mesma safadeza e alegria no rosto, supõe-se por aí que seja

um homem realizado.

_Ei, o que há com você? Não está assistindo ao jogo?

Olha novamente em direção ao gramado. A partida

continua disputada. Alvoroço na torcida. Apesar do escasso

tempo que resta para o final, o Flamengo ainda não perdeu a

esperança. Leonardo Moura avança com a bola a partir do

campo de defesa e procura por alguém livre mais a frente. Vê

Leo Medeiros balançando o braço pedindo a bola, e faz um

passe em diagonal na direção dele. O jogador recebe a bola e

em seguida dá uma olhada para a defesa. Leo Medeiros corre

com a bola e passa por Junior Cesar do São Paulo. Cruza para

Kleberson que vira com categoria para Nick Herman de

calcanhar. Nick Herman fica na cara do gol, e depois de fintar

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Alex Silva, chuta de canhota, e o goleiro espalma. A bola

sobra na área. Nick Herman pega o rebote, chuta e é caixa.

Desta vez, o jogador não perdoa e manda pro fundo do gol.

Corre até a bandeira de escanteio e começa a comemorar junto

aos demais jogadores. A torcida se derrete.

Mais alguns lances e o jogo termina. A grande vitória do

Flamengo é cantada pela torcida que se diverte ao sair do

estádio. Um cartola vem conversar discretamente com o

jogador Norivaldo Lagoinha.

_O que houve? Me diga afinal o que houve? - Fala,

nervoso, vibrando as mãos em frente ao jogador.

_Ora, você sabe que às vezes as coisas não acontecem

como a gente espera.

_Não acontecem! É isto o que me diz, não acontecem?

_É. E foi isto o que houve. Não deu certo.

O cartola está com raiva. O rosto branco e corado torna-se

mais vermelho.

_Olha, vou lhe dizer o que você realmente é: Um inútil,

um monte de merda, sabe, uma coisa imprestável!

_Não exagere, senhor, eu fiz o que pude para tirá-lo do

jogo.

_Fez o que pôde, é? Era para acabar com ele, deixá-lo

inutilizado, entende? E veja só o que fez. Deixou que

marcasse o gol.

_Não queria que eu fosse expulso, não é? Eu também

almejava a minha chance.

_Ora, você não tinha chance alguma!

_Não diga besteiras. Eu sou tão bom quanto ele. Nick

Herman apenas teve sorte. Nada mais.

_E agora Nick Herman, o sortudo craque do Flamengo,

jogará na seleção. Enquanto o azarado Norivaldo Lagoinha,

que deveria ter impedido tal desastre, continuará apodrecendo

em sua inutilidade.

_Fique calmo. - Diz o jogador com um sorriso cínico. Nem

tudo está perdido.

_O que quer dizer?

_Há muita coisa pela frente. Como se diz: Muita água a

rolar embaixo da ponte.

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_Como assim?

_Nick Herman não jogará na seleção. Escreva isto.

Mas, desistindo de qualquer argumento, e com um gesto, o

sujeito dá por encerrado o assunto.

_Vamos embora. Já nem sei mais o que pensar.

Em seguida saem do vestiário, e o estádio vai se

esvaziando aos poucos.

Nick Herman é o herói do dia.

_Pode ter certeza de que ele jogará na copa. - Comenta

Ângelo Torres, enquanto se preparam para deixar o estádio.

_Espero que consiga realizar este sonho. Ele merece.

_Sim, Nick é um bom sujeito.

Tumulto na saída. Gritos da torcida em saudação ao time

estrondam em toda parte. Emanuele está um pouco desligada

e apreensiva. Não sente, como os demais, aquela euforia,

aquele fogo. O mesmo pressentimento de antes, de que algo

de ruim irá acontecer. Tenta afastar aquela ideia olhando as

pessoas ao redor. Neste momento se depara com Nick ao lado

da esposa, conversando alegremente. Se preparam para sair, e

Leônidas Carvalho já não se encontra com eles. Porém, do

outro lado a pouca distância, uma figura sinistra os observa de

cara fechada e com rancor. Parece uma fera a espreitar a

presa. Talvez seja apenas impressão, mas o sujeito não

desprega os olhos do casal. Não se lembra de tê-lo visto antes.

Baixo, troncudo, e de aparência um tanto repulsiva.

_Vamos embora. - Fala Ângelo Torres. Você parece meio

estranha hoje.

_Bobagem. – Responde ainda de olho no sujeito.

A intenção é gravar na memória a sua fisionomia. Este é

um dos seus poucos dons. Tem uma boa memória capaz de

guardar traços de uma pessoa, lugar ou paisagem ao longo de

muitos dias. Tal atributo já favoreceu na solução de alguns

casos em colaboração com outros imbecis de sua área. No

entanto não há qualquer reconhecimento dos superiores, e ela

continua no anonimato.