a morte do narrador na obra carta ao pai de franz kafka

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Apresentação Versar sobre autor e tema tão densos não é trabalho fácil e simples que pudesse ser resumido em poucas páginas. Não obstante essa constatação, a literatura kafkiana é extremamente instigante do ponto de vista da construção narrativa e também sob o aspecto das metáforas que revelam um ‘escondido e quase indecifrável’ modo de dizer a si e o mundo. O presente trabalho tem como provocação inicial a prévia leitura da Dissertação de Mestrado intitulada Do canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração de Walter Benjamin, especificamente o tópico O Narrador Kafkiano e O silêncio das sereias 1 . A leitura desse texto, aliás, muito bem construído, trouxe à tona alguns questionamentos: por que o autor não cita em momento algum de sua dissertação a obra Carta ao Pai de Franz Kafka? Não seria esta obra central para se discutir a morte do narrador no mundo moderno expresso por Kafka? Por ser uma obra autobiográfica e confessional não é ela essencial na medida em que reflete o conjunto da literatura kafkiana marcada pela crise e pela ruptura com a narrativa tradicional, ou seja, aquela narrativa na qual o 1 COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 243-281. 1

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Page 1: A Morte Do Narrador Na Obra Carta Ao Pai de Franz Kafka

Apresentação

Versar sobre autor e tema tão densos não é trabalho fácil e simples que

pudesse ser resumido em poucas páginas. Não obstante essa constatação, a

literatura kafkiana é extremamente instigante do ponto de vista da construção

narrativa e também sob o aspecto das metáforas que revelam um ‘escondido e

quase indecifrável’ modo de dizer a si e o mundo.

O presente trabalho tem como provocação inicial a prévia leitura da

Dissertação de Mestrado intitulada Do canto e do Silêncio das Sereias: um

ensaio à luz da Teoria da Narração de Walter Benjamin, especificamente o

tópico O Narrador Kafkiano e O silêncio das sereias1. A leitura desse texto,

aliás, muito bem construído, trouxe à tona alguns questionamentos: por que o

autor não cita em momento algum de sua dissertação a obra Carta ao Pai de

Franz Kafka? Não seria esta obra central para se discutir a morte do narrador no

mundo moderno expresso por Kafka? Por ser uma obra autobiográfica e

confessional não é ela essencial na medida em que reflete o conjunto da

literatura kafkiana marcada pela crise e pela ruptura com a narrativa tradicional,

ou seja, aquela narrativa na qual o narrador-herói é apresentado como o elo de

sentido e de possibilidade da própria narrativa.

Adentrar à problemática da ‘morte’ do narrador, ainda que de modo

sumário, a partir da Carta ao Pai - pois esta parece ser escrita privilegiada para

compreender a impossibilidade de narrar (morte) através da narrativa de si

(narrador-autor): nisso parece consistir o caráter aporético e ao mesmo tempo

instigante dessa obra kafkiana a qual nos deteremos para uma breve reflexão.

1 COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 243-281.

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Page 2: A Morte Do Narrador Na Obra Carta Ao Pai de Franz Kafka

Carta ao Pai

Escrita, provavelmente, entre os dias 10 e 20 de novembro de 1919

quando Franz Kafka contava com trinta e seis anos de idade, a Carta ao Pai,

que aparece nas obras reunidas e publicadas por Max Brod somente em 1950, é

uma peça literária na qual o autor parece intencionar um acerto de contas com

seu progenitor – Hermamm Kafka.

A carta é motivada pela desaprovação do pai de Kafka em relação a sua

terceira e última tentativa de casamento. Modesto Carone2 é categórico ao

afirmar que o tema do relacionamento com o pai já era, para Kafka quando da

escrita da carta, ‘substância literária’ presente nas obras do autor.

A obra inicia com o autor respondendo a uma pergunta que lhe fora feita

anteriormente pelo seu pai: o porquê de teme-lo. Aliás, o medo é uma

característica constante nas personagens das várias obras de Kafka. Aqui, na

Carta ao Pai, é ele o autor e narrador de si bem como um dos personagens da

narrativa. Nesse sentido, podemos pensar essa obra como autobiográfica e

confessional na medida em que trata das experiências pessoais e familiares do

autor.

Segundo Jorge3, a quase unanimidade dos exegetas do escritor toma a

carta como um verdadeiro catecismo de interpretação do mundo estranho e

turvo de Kafka. Além de ser um protesto contra a educação recebida, é um

documento onde a decepção marca uma tônica constante, ainda que oculta por

um espírito crítico atuante e não poucas vezes intencional.

Interessante observar que não obstante ser uma carta de caráter

autobiográfico e confessional, jamais Kafka enviou a seu pai. E aqui parece

residir uma das aporias ‘fundantes’ que perpassa toda a literatura kafkiana: a

impossibilidade de narrar presente à própria narrativa. Assim Costa apresenta

tal aporia:

“... Num tempo em que ‘a arte de narrar caminha para o fim’, Kafka não se obstina, porém, em recompor ligeira e falsamente uma sabedoria épica já comprometida; ao contrário, acolhe sem concessões a

2 CARONE, Modesto. Uma Carta Notável. In: KAFKA, Franz. Carta ao Pai, 1997, p. 77.3 JORGE, Ruy Alves. Interpretação de Kafka, 1968, p. 136.

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Page 3: A Morte Do Narrador Na Obra Carta Ao Pai de Franz Kafka

incomunicabilidade da experiência, a dificuldade de articular experiência e palavra, a destituição da matéria narrável que sustém as histórias, enfim, a incapacidade mesma de narrar. Kafka o faz, entretanto, preservando o próprio ato narrativo – integra à operação narrativa o caráter problemático e a dimensão de fracasso do narrar, transforma paradoxalmente em experiência narrável a experiência de dissolução da palavra-narrativa, faz a narração da impossibilidade de transmitir e de narrar4”.

Por mais ‘objetiva’ e direcionada que pareça a narrativa contida na carta,

tem-se nela elementos que permitem a percepção do conjunto de características

próprias do autor quanto à impossibilidade de narrar de maneira épica e

tradicional. A Carta ao Pai, segundo Carone5, deve ser vista também como

explicitação de uma dedicatória ou direção da obra no seu todo, pois em última

instância, a ficção de Kafka passa pela figura do pai e do tirano para chegar a

falta de liberdade objetiva do mundo administrado.

A figura paterna presente na obra parece ser uma metáfora que acessa o

universo simbólico que perpassa toda a produção kafkiana. Torrieri Guimarães

assim interpreta tal metáfora:

“... Antes que sua alma recebesse os influxos da religião de seus pais e entrasse a tremer pela majestade do Deus dos Exércitos, Deus de Abraão e Jacó, ele já havia colocado a imagem desse Deus no centro de seu universo, personificado na figura do Pai. Este, severo, enérgico, rígido preceituador para os outros e complacente consigo, dinâmico e mal-humorado, era realmente o típico deus decaído, engolfado nos problemas humanos. Kafka sentia em sua carne o poder desse deus, que o aturdia pelas suas leis extraordinárias para a criança que ele era, e impostas sem admitir contestação...”6

Um Deus ao qual não se tem acesso, um pai ao qual não se pode falar

(narrar): o fim da narrativa tradicional. Essa parece ser uma possível chave de

leitura da Carta ao Pai que possibilita uma visão do conjunto da obra kafkiana,

embora já disse alguém, não sem razão, que cada leitor de Kafka é um seu

intérprete7.

A Narrativa kafkiana

4 COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias, 2005, p. 243-4.5 CARONE, Modesto. Uma Carta Notável. In: KAFKA, Franz. Carta ao Pai, 1997, p. 78.6 GUIMARÃES, Torrieri. Prefácio. In: KAFKA, Franz. O Castelo, p. IX,X.7 SILVERIA, Alcântara. Prefácio. In. KAFKA, Franz. Josefina, a Cantora, p. 09.

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A figura metafórica do Pai está presente em outras obras do autor, como

‘O Castelo’, ‘O Processo’, ‘A Metamorfose’, ‘América’, ‘A Muralha da China’,

etc, desenhada com contornos quiméricos, talvez podendo ser interpretada

como a exteriorização do ideal humano para o qual os homens se dirigem, mas

ao mesmo tempo não o sabem definir. Por isso também nas obras kafkianas está

abolida a noção de tempo e espaço – os personagens, principalmente das obras

citadas acima, movem-se

“... numa região fantasmagórica qualquer, controlados pelo mistério de seus destinos, dirigidos pelo absurdo de seus desejos e enquadrados em uma normalidade rígida e fastidiosa, que caracteriza perfeitamente a chatice da vida humana, a vacuidade de criaturas esquecidas pelo seu criador, que se debatem entre o berço e o túmulo contra as altas paredes de seus ideais8”

Nas obras de Kafka é inegável que os personagens são, de certo modo,

metáforas que encontram correspondência no próprio autor9. Na Carta ao Pai

podemos acrescentar que há uma identidade entre autor, narrador e personagem.

Mas o que precisa ser de fato ressalvada é a narrativa da carta, pois

através dela podemos pensar na aporia levantada por Costa quando afirma que

“já não se pode mais narrar e Kafka pretende, no entanto, dar forma narrativa a

essa impossibilidade10”.

Como Kafka não só pretende, mas dá essa forma narrativa ao que é

impossível de ser narrado? Essa pergunta por si só seria tema de um extenso

trabalho, mas é possível encontrar de modo sumário algumas pistas para nortear

a reflexão.

Kafka subverte a construção narrativa tradicional na qual o herói é o elo

de sentido da própria narrativa. Os personagens kafkianos são impotentes e não

encontram ao final da trama um happy end no qual teriam o sentido da

narrativa. Aliás, das obras mais conhecidas como ‘A metamorfose’, por

8 GUIMARÃES, Torrieri. Prefácio. In: KAFKA, Franz. O Castelo, p. XI.9 KONDER, Leandro. Kafka, 1967, p. 60.10 COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 244.

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exemplo, o fim é vazio, niilista, destituído de qualquer sentido metafísico ou

escatológico que aponta, conforme afirma Costa, para a

“... perda da faculdade de comunicar experiências e o fracasso da palavra... Assim, a radicalidade do narrador Kafka consiste propriamente em pretender narrar uma temporalidade vazia de experiência narrável – converter esse tempo sem história em narrativa... 11”

Kafka vai tecendo na própria construção da narrativa uma postura de

“impotência do indivíduo moderno às voltas com a trama do poder que toma

conta de sua vida, sem que ele ache uma saída para esse tipo por assim dizer

planetário de alienação12”. Tal é a situação em ‘O Processo’, ‘O Castelo’, ‘A

Metamorfose’, etc.

A narrativa transcorre em um ‘sem-lugar’ e ‘sem-tempo’. No caso

específico da Carta ao Pai, a noção de espaço e tempo é suprimida causando a

impressão de que tudo não passa das experiências subjetivas e da interioridade

do autor. Nesse sentido a narrativa parece comprometida, pois como narrar a

um ‘tu’ hipotético ao qual se sabe impossível comunicar e cuja identidade e

temporalidade inexistem porque o ‘eu’ também não se coloca como garantia da

narrativa13? Uma vez rompida a noção de temporalidade e identidade parece

impossível pensar numa narrativa autobiográfica e confessional, e Kafka parece

inaugurar esse paradoxo uma vez que mostra essa impossibilidade

resguardando o ato narrativo.

Segundo Benjamin14, a narrativa de Kafka retoma o difícil e radical lugar

(topos) do narrador tradicional não mais para transmitir certo tipo de sabedoria

épica, mas para comunicar sua desorientação.

De acordo com Blanchot15 são marcas da literatura moderna e, por

conseguinte kafkiana “a experiência do mundo desencantado; a banalidade do

11 COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 247-8.12 CARONE, Modesto. A Lição de Kafka. Folha De São Paulo, Caderno Mais, p. 3, 14 de setembro de 1997.13 STAROBINSKI, Jean. Le style de l’autobiographie. Poétique – revue de théorie et d’analyse littéraire. Paris, 1970, número 3, p. 260-2.14 BENJAMIN, Walter. Gesannmelte Schriften II-3, p. 1.233. In: Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 249.15 BLANCHOT, Maurice. De Kafka à Kafka, p. 174. In: COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 249.

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Page 6: A Morte Do Narrador Na Obra Carta Ao Pai de Franz Kafka

real; um cotidiano sem grandes feitos, aquilo que acontece quando nada

acontece; o tempo que escoa, a vida sumária e monótona”. Em Carta ao Pai a

narrativa apresenta essas características e poderíamos acrescentar a do medo

diante do desconhecido que, aliás, também é tema recorrente nas outras obras.

A Morte do Narrador e o Imperativo da Narrativa

“Há escritores que conseguem conciliar as atividades de criação literária com o atendimento a uma séria de obrigações práticas paulificantes. Kafka, porém, não pertencia ao número destes escritores. Apesar de todos os esportes que chegou a praticar, apesar dos banhos frios, do regime vegetariano, das experiências naturistas, ele se sentia um ser frágil e tinha a preocupação de poupar as suas energias (que a solidão devorava). Mesmo em face do sexo e da mesa, parecia, por vezes, tomado de escrúpulo e obsedado com a idéia de concentrar todas as suas forças na literatura. Uma ocasião chegou a escrever o seguinte: ‘Ao se tornar claro para o meu organismo que escrever era a direção mais fértil do meu ser, tudo se orientou nesse sentido e as faculdades que se dirigiam para as alegrais do sexo, do comer, do beber, da reflexão filosófica e da música permaneceram, afinal, paradas e vazias. Passei a emagrecer em todas estas direções. E isto era necessário, pois minhas forças, em conjunto, eram tão minguadas que só reunidas poderiam servir, parcialmente, à finalidade de escrever16’”.

Não obstante a impossibilidade da narrativa e, portanto, a morte do

narrador, narrar é um imperativo para Kafka e não uma mera questão de

escolha. Em Carta ao Pai – na qual ressalvamos que o autor é narrador-

personagem – a impossibilidade da comunicação e da narrativa é corroborada

pela seguinte passagem:

“A impossibilidade do intercâmbio tranqüilo teve uma outra conseqüência na verdade muito natural: desaprendi a falar. Certamente eu não teria sido, em outro contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem humana corrente e comum. No entanto, logo cedo você me interditou a palavra, sua ameaça: ‘Nenhuma palavra de contestação!’ e a mão erguida no ato me acompanharam desde sempre. Na sua presença – quando se trata das suas coisas você é um excelente orador – adquiri um modo de falar entrecortado, gaguejante, para você

16 KONDER, Leandro. Kafka, 1967, p. 59. Infelizmente Leandro Konder não menciona a fonte que usou para fazer a citação.

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também isso era demais, finalmente silenciei, a princípio talvez por teimosia, mas tarde porque já não podia pensar em falar... Você dizia: ‘Nenhuma palavra de contestação!’ e com isso queria silenciar em mim as forças contrárias que lhe eram tão desagradáveis, mas essa influência era muito forte para mim, eu era dócil demais, emudecia por completo, me escondia de você e só ousava me mexer quando estava tão distante que o seu poder não me alcançava mais, pelo menos diretamente...17”

A impossibilidade da comunicação é também a impossibilidade de narrar.

Kafka, na sua autobiografia, parece fazer a experiência da impossibilidade da

comunicação na própria relação com o pai ao mesmo tempo em que,

paradoxalmente, reabilita a posição do narrador não mais no lugar da

enunciação narrativa, mas na voz narrativa neutra “que diz a obra a partir desse

lugar sem lugar onde a obra se cala18”

Relacionando Carta ao Pai com a leitura que Costa19 apresenta da obra O

silêncio das sereias, pode-se considerar que o silêncio das serias, encontra, de

certo modo, paralelo com a escrita da carta e a omissão de Kafka em não tê-la

enviada ao pai e com o ‘desaprender a falar’ que supõe o princípio de

interrupção do discurso inerente ao próprio discurso. De acordo com alguns

comentadores20, Kafka não enviou a carta ou porque sua irmã, Ottla, e sua mãe

o desaconselharam, ou porque pôs em dúvida o sentido de tal empreendimento

provavelmente por causa da auto-imagem paradoxal que o autor constrói de si e

do pai.

Considerações Finais

17 KAFKA, Franz. Carta ao Pai, 1997, p. 21-2.18 BLANCHOT, Maurice. De Kafka à Kafka, p. 182. In: COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 250.19 COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 277-281.20 CARONE, Modesto. Uma Carta Notável. In: KAFKA, Franz. Carta ao Pai, 1997, p. 81.

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“... Realmente Kafka é um dos renovadores da literatura universal... Esta afirmativa não constitui novidades, porquanto Kafka, com Proust e Joyce (em que pese a diferença essencial existente entre o ‘universo’ dos três), são os renovadores do romance universal. A partir desse famoso trio, o romance deixou de ser a simples narrativa de uma estória sem complicações, com começo, meio e fim, uma leitura divertida ou repousante. Foi contra essa tradição de romance fantasioso, sem mistério, sem angústia e sem pesadelo que surgiu a ficção kafkiana, tão revolucionária quanto a de Proust e de Joyce21”

Se nos romancistas de outrora o comportamento dos heróis era algo de

épico, romântico, ora divertido, ora triste, refletindo os acontecimentos numa

linguagem comum, na ficção européia dos anos quarenta do século vinte surge

o personagem de Kafka, revelando a falta de significação e sentido do mundo

contemporâneo, agitado e tenso, lutando contra tudo e contra todos, com medo

terrível, sem mesmo saber do quê. Ou ainda, como afirma Costa22, o narrador

Kafka trabalha como um narrador-catador de lixo que recolhe os produtos da

destruição da tradição numa tentativa de restituir os estranhos vestígios do

inconciliado.

Kafka ao escrever se liberta dos fantasmas que lhe povoam a mente

agitada e o impedem de dormir, como dirá um fragmento do seu Dário: “É a

força dos meus sonhos que me impede de dormir, pois eles brilham já no estado

de vigília que precede o sono23”. Por isso, escrever não só lhe faz bem, mas lhe

é necessário e fundamental.

O maravilhoso e paradoxalmente estranho na obra de Kafka, inclusive

na Carta ao Pai, parece residir justamente na narrativa insólita que foge à

compreensão e a análise linear e épica da literatura. “... É a imensa dificuldade

de narrar e de transmitir que o narrador Kafka nos narra e nos transmite... 24”.

Referências Bibliográficas

21 SILVERIA, Alcântara. Prefácio. In. KAFKA, Franz. Josefina, a Cantora, p. 05.22 COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 270.23 KAFKA, Franz. Diários. In: KONDER, Leandro. Kafka, 1967, p. 6124 ? COSTA, Luís Inácio Oliveira. Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em Walter Benjamim, 2005, p. 271.

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Page 9: A Morte Do Narrador Na Obra Carta Ao Pai de Franz Kafka

CARONE, Modesto. A Lição de Kafka. Folha De São Paulo, Caderno Mais, p.

03, 14 de setembro de 1997.

________ .Uma Carta Notável. IN: KAFKA, Franz. Carta ao Pai. Tradução e

posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

COSTA, Luís Inácio Oliveira. O narrador Kafkiano e O silêncio das sereias. IN:

Do Canto e do Silêncio das Sereias: um ensaio à luz da Teoria da Narração em

Walter Benjamim. Dissertação de Mestrado do Programa de Filosofia da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PCSP, 2005, pp. 243-28.

GUIMARÃES, Torrieri. IN: KAFKA, Franz. O Castelo. Tradução e Prefácio

de Torrieri Guimarães. São Paulo: Edições Tema, s/d.

JORGE, Ruy Alves. Interpretação de Kafka. São Paulo: L. Oren Editora,

1968.

KAFKA, Franz. Carta ao Pai. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São

Paulo: Companhia das Letras, 1997.

KONDER, Leandro. Kafka: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro, editor,

1967.

SILVERIA, Alcântara. Prefácio. In. KAFKA, Franz. Josefina, a Cantora.

Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Clube do Livro Ltda,

1977.

STAROBINSKI, Jean. Le style de l’autobiographie. Poétique – revue de

théorie et d’analyse littéraire. Paris, 1970, número 3.

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