a missão (mônica rocha)

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  • Mnica Rocha

    A Misso

    Romance

  • NDICE

    Pg. Prefcio 03 Augusto e Pedro 11 Danilo 28 Tambores 37 A expedio 49 O Hospital 65 O despertar de Danilo 80 A visita de Francisco 101 Primeiro passeio 124 Os terrores de Pedro 138 A revelao 150 Dona Marieta e Dona Cacilda 159 Novos amigos 167 Os sonhos de Pedro e Andr 177 A reunio 188 Encontro de amigos 202 A Misso apresentada 216 Alegria na enfermaria 237

  • A partida 249 Nas estradas da Terra 262 Me Maria Eufrsia 279 Um pedido de socorro 288 Em que mundo estamos? 307 A fortaleza medieval 319 Parada no bar 342 No corao do inimigo 354 Numa priso sombria 371 O encontro com Simeo 387 Os cientistas 398 Combate final 415 Vamos voar, voar, voar,

    meus amigos... 422

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    PREFCIO A MISSO Foi bem no incio da dcada de sessenta, que ficamos conhecendo, pessoalmente, a Autora deste livro, a jornalista Mnica Ribeiro Rocha, quando de sua visita a Uberaba, no somente com misso de fazer uma reportagem sobre o mdium Chico Xavier, mas, principalmente, para mostrar-lhe algumas pginas por ela psicografadas, de grande beleza, assinadas por um Esprito que a intrigou bastante pela pureza e a fluncia das idias que eram passadas para a folha em branco, e temerosa de que estivesse sendo assediada por alguma entidade culta, porm menos feliz, com vistas a lev-la ao ridculo. Achou por bem ouvir, o quanto antes, quem lhe pudesse, calcado em sua grande experincia, dar os esclarecimentos necessrios, tranqilizando-a tanto quanto possvel. Apresentada ao nosso amigo e mdium de Emmanuel, este, depois de passar os olhos pelas pginas cuidadosamente datilografadas, afirmou-lhe, em nossa presena:

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    Minha filha, estas mensagens so, de fato, do Esprito que as assina, seu amigo de vidas passadas, mas, seguindo as orientaes de Allan Kardec, precisamos ter mesmo muito cuidado com os nomes utilizados pelos Espritos e apostos ao final das comunicaes medinicas. O que nos interessa a orientao evanglica, mesmo em se tratando de pginas de cunho cientfico, que nos chegam por intermdio da mediunidade, e no propriamente o nome do Esprito comunicante, a no ser nos casos em que haja absoluta necessidade de sua identificao, para consolo dos que ficaram neste mundo, contribuindo assim para a divulgao da verdade irretorquvel de que no existe a morte, prosseguindo, estuante, a vida alm do tmulo.

    No so estes os termos ipsis litteris do mdium do Parnaso de Alm-Tmulo, devido ao tempo transcorrido desde que foram pronunciados, mas o certo que Mnica ficou radiante de alegria com o que ouviu, solicitando como proceder no caso de prosseguir na tarefa psicogrfica. Foi quando Chico Xavier lhe disse, despedindo-se de ns, em seguida, para

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    atender outros companheiros que o aguardavam, ansiosos para registrar-lhe a palavra sempre sbia e confortadora: J que voc jornalista, permita Deus que doravante possa vir a ser, alm de jornalista, escritora e mdium. Passaram-se anos at que, nos primeiros dias de setembro de 1994, Mnica nos informou que estava escrevendo um livro e ainda se perguntando o que fazer com semelhante material. Solicitamos-lhe nos mandasse, por via postal, no mximo seis captulos de cada vez, de quinze em quinze dias, a fim de que pudssemos, superando a nossa indisciplina pessoal e a falta por que no dizer material de tempo, percorrer, palavra a palavra, o livro em andamento. E deste modo os captulos foram se sucedendo e cada vez mais nos convencamos de que se tratava de experincia sria, narrada de modo bastante descontrado, com dilogos freqentes, em estilo inquestionavelmente cinematogrfico, narrando a perplexidade de Espritos colhidos pela desencarnao, sem nenhum preparo para se adequar vida que prossegue no Plano Extrafsico.

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    Evitando, naturalmente, tirar ao leitor o prazer de sentir e compreender o desenrolar de todas as passagens de A Misso, tomamos a liberdade de esclarecer apenas alguns pontos que reputamos valiosos para os nossos estudos doutrinrios. Da imensa galeria de personagens, num total de pouco mais de trinta que movimentam esta narrao, algumas aparecendo em raros lances, somente duas pertencem bom que se frise ao Plano Fsico. Todas as demais desempenham os seus respectivos papis, nas regies inferiores da Espiritualidade, com episdios de acentuado realismo, prendendo a nossa ateno da primeira ltima pgina. So feitas referncias aos locais de transio onde os Espritos se abeberam de energias que lhes so necessrias, dando nfase ao Grande Lar Francisco de Assis. Dramticas, a nosso ver, as cenas de socorro aos Espritos de paleontlogos e sua equipe, enquanto os bombeiros da Terra se esforam na remoo de escombros, onde antigos caadores de

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    tesouros h longo tempo desencarnados, se encontram ensandecidos, e a descrio da paisagem dantesca do Campo de Pedras, com as esttuas que vivem chorando e que se derretem com as prprias lgrimas, anteriormente hipnotizadas por perseguidores cruis, que desconhecem, por enquanto, a Lei do Perdo. O fato de a quase totalidade dos Espritos em torno dos quais gira a trama do presente livro ter chegado ao Mundo Espiritual, sem o devido apresto, desconhecendo, por completo, o continusmo da vida alm da tumba, e de que somos o que somos, sem qualquer disfarce, no devido lugar onde nos encontremos, sempre colhendo o que semeamos, vem confirmar o que constatamos, desde 1959, em nossas sesses de Desobsesso: entidades espirituais, depois de com muito amor esclarecidas, notadamente as intelectuais, suplicam-nos levar aos profitentes das religies formalistas e aos cultores do materialismo semelhantes verdades, para que no venham a enfrentar o terrvel choque, que elas mesmas sentiram,

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    idnticas s descritas por Lucas, em XVI, versculos de 19 a 31, e estudadas por Allan Kardec no item 5 do Captulo XVI No se Pode Servir a Deus e a Mamon de O Evangelho Segundo O Espiritismo. Os idosos que aparecem neste volume, assim se apresentam devido s suas respectivas condies espirituais, no nos esquecendo de que o Esprito que atingiu a senectude no corpo fsico e desencarnou de conscincia tranqila, poder retomar a sua condio de maturidade ou de juventude, desde que isto lhe seja de proveito para ajudar outros Espritos a buscarem Jesus, na grande caminhada evolutiva, ou por deciso de foro ntimo. Enfim, a persistncia do chefe ligado s inteligncias perversas do Plano Espiritual dito inferior, no caso Gabriel, negando-se a aceitar o prprio socorro dos pais e dos amigos da Espiritualidade, mais do que natural, e dia vir em que o aludido companheiro, ao sentir indcios de arrependimento, ser imediatamente amparado e conduzido a uma sesso de Enfermagem Espiritual de um Centro Esprita bem assistido pelos Benfeitores da

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    Vida Maior, onde, depois de se comunicar psicofonicamente atravs de um abnegado mdium, e atendido com maternal dedicao por um dos esclarecedores da casa, sob a assistncia paternal dos Espritos ligados Vida Superior que supervisionam os trabalhos, demandar a Colnia Espiritual mais prxima, a fim de que, mais pacificado, receba o tratamento mdico adequado para, posteriormente, participar dos diversos cursos nas escolas especializadas para atendimento aos egressos das regies denominadas umbralinas pelo Esprito de Andr Luiz, em Nosso Lar, recebido pelo mdium Francisco Cndido Xavier, em 1943. Agradecendo prezadssima Autora deste livro pela sua coragem ao nos convidar para que desempenhssemos a honrosa tarefa de modesto prefaciador, permitindo-nos tornar um leitor de primeira mo, rogamos a voc que vem percorrendo, pacientemente, estas linhas, escusas pela extenso delas, esperando que, sem perda de tempo, mergulhe, de corpo e alma, nas pginas de A Misso, das quais h de sair disposto a continuar estudando as obras de Allan Kardec, as de

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    Andr Luiz e as de Emmanuel, psicografadas pelo mdium Xavier, seguindo os passos de Jesus, na divulgao da Doutrina Esprita, abenoada sempre, auxiliando os nossos irmos em Humanidade na preparao para o fenmeno mais do que natural da desencarnao, praticando, em esprito e em verdade, os ensinamentos do Cristo. Elias Barbosa Uberaba, MG

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    AUGUSTO E PEDRO

    A corrida era cansativa, o local ermo e inspito. Tenebroso mesmo. As trilhas, mal delineadas, cheias de pedras e plantas espinhosas. Em alguns locais, rvores ressequidas estendiam os contorcidos braos para cima e grandes rochas negras interrompiam a caminhada. Ento, era necessrio contorn-las e, muitas vezes, escal-las perigosamente, usando apenas as mos e os ps, ferindo as unhas, para continuar novamente o trajeto do outro lado. Sempre em direo nenhuma, para lugar nenhum.

    Neblina baixa e espessa, frio intenso, nem pensar em sol. Ser que ali algum dia existira sol e calor? De vez em quando, poas de gua lamacenta e escura, pegajosa, pesada. Em alguns locais, havia tanta lama que ela podia engolir tranqilamente um homem. Em outros, o cho rachado e seco parecia querer tragar algum incauto que por ali passasse. J em outros, era puro pntano para atravessar. A gua lodosa atingia a altura dos joelhos e era preciso segurar nos galhos para no

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    afundar. Por isso, era importante no se afastar da trilha, por piores que fossem as condies dela, por mais terrveis que fossem o pntano ou o espinheiro.

    Augusto tentava correr e no conseguia, respirando com dificuldade, tentando chegar, nem mesmo sabendo onde. Havia dias que percorria aquele caminho, no por opo, mas porque era o nico. Nem queria pensar em se desviar, pois a que se perderia de vez naquela imensido de pedreiras, entremeadas por extenses de areia, de pedras, de cascalho, de espinhos, de barro e lama. Por onde andava, pelo menos estava bem claro: era um caminho reconhecvel pelas marcas deixadas pelos caminhantes que haviam passado antes dele, to desesperados quanto ele: roupas rasgadas, sinais com panos nos galhos, como que marcando passagem e, nos locais castigados pela seca, havia marcas de ps gravadas no cho rido. Como toda estrada, possivelmente levaria a algum lugar. No entanto, assustado, faminto, cansado, com frio e com sede, estranhava no ouvir nem um rudo, nenhum sinal de vida. Parecia que, naquele silncio

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    absoluto e inquietante, o relgio do tempo havia parado h muito.

    Chegou a um local mais espaoso, limpou com a manga rasgada o suor gelado do rosto e sentou-se em uma pedra para pensar, colocar as idias no lugar, tentar equilibrar a mente cansada. A nica coisa de que se lembrava, assim mesmo vagamente, que, ao acordar do desmaio, se vira andando. Que coisa estranha! No conseguia se recordar do que ocorrera entre o desmaio, ntido em sua mente, e a hora em que sentira que andava. Mas o momento da perda dos sentidos estava claro em sua lembrana: atravessava a rua com Esther, quando cara. Depois, o vazio: nem Esther, nem rua, nem nada! Apenas aquele caminho feio e infinito e o cansao extremo.

    Pensou em seqestro. Claro! Recebera algum golpe e perdera os sentidos. Fora ento levado e abandonado em local desconhecido. S poderia ser isto! Mas, uma dvida: por que algum iria seqestr-lo? Ele no era rico, no tinha nada para dar em troca da prpria vida... Que confuso!... E quanto a Esther,

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    onde estaria? Se tivesse sido o tal seqestro, ela estaria nas mos dos bandidos ou teria conseguido fugir? Deus! Cruel dvida!

    Resignou-se: a nica soluo era andar. Procurar um sinal de vida, algum, pelo menos um som! Irritante aquele silncio! Ou ele teria ficado surdo? Outra dvida, Deus do cu! Mas, se seguisse a trilha principal, mais larga um pouco que as outras, certamente chegaria a uma estrada, uma fazenda, um stio, um posto policial, um local qualquer, onde pediria socorro e se informaria.

    Ficou de p, colocando as mos nos bolsos da cala. Outra surpresa! Onde o dinheiro, os documentos, os culos, o revlver carregado que sempre trazia consigo? Olhou as mangas outrora compridas da camisa francesa, de seda. Rasgadas, sujas de lama e sangue. Foi quando notou que a testa doa intensamente. Compreendeu que, ao enxugar o suor, espalhara sangue pelo rosto e pela manga. Estava ferido na cabea. Bandidos! Se no tivesse sido seqestro, o que era improvvel, um

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    assalto poderia ter acontecido. Agora entendia: pancadas na cabea criam amnsia temporria. Era isso! Por isso no se lembrava de nada, ficara um lapso em seus pensamentos, criando a dificuldade de coordenar as idias. Mas, no podia se desesperar, seno as coisas piorariam. Pelo jeito, a memria estava voltando, pois j conseguia recordar nitidamente a hora em que cara no meio da rua.

    O frio cortava a pele. No sabia dia nem hora. Uma sensao de flutuar no vcuo, de medo mesclado incapacidade de reagir contra quem ou contra qu? tomou conta dele. Criou coragem. Respirou fundo e sentiu uma dor aguda no peito. Recomeou a andar, tropeando, pois o caminho estava pior, com pedras e galhos secos espalhados pelo cho, estalando a qualquer toque.

    Olhou para cima para se orientar e constatou que no havia cu. A nvoa espessa cobria e envolvia tudo, inclusive ele. Parecia grudar em sua pele, entrar pelos seus poros, fazer parte dele. Nem mesmo dava para enxergar um palmo

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    adiante. Puxa! Tiveram o cuidado de deix-lo bem longe de casa!

    Gritou com sua voz forte, perguntando se havia algum por perto. Nada respondeu e ele notou que nem eco sua voz tinha.

    Apanhou do cho um galho seco, grosso e cheio de espinhos. Escolheu o maior. Poderia precisar de uma arma. Tentou olhar as horas, mas surpresa! haviam roubado seu relgio tambm. Ficou bravo de verdade. Afinal, seu Rolex fora de seu pai. E ele gostava muito deles, do pai e do relgio. Foi quando sentiu algo passando muito perto, se arrastando. Parou, apertou mais o galho nas mos, cujos dedos sangraram com os espinhos. Nem notou, de to tenso. Olhou em volta, devagar. Nada. Pensou que havia imaginado aquilo, era fruto do medo. Tinha que se controlar, pois no havia ningum e o pnico s podia trazer mais complicao e alucinaes. E complicao ele j tinha o bastante.

    Esbarrando e tropeando, tentando andar mais rpido, soltando improprios e nada enxergando nem ouvindo, sangrando

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    na testa e nas mos, empunhando a estranha arma, continuou seguindo a inusitada trilha, como um louco perdido no meio do nada.

    A nvoa cada vez mais espessa e a falta de noo de tempo e hora estavam deixando Augusto cada vez mais perturbado, cansado, desesperado. No havia horizonte, enxergar era difcil, voltar atrs impossvel, ouvir ele no ouvia nada. E nem sequer sabia se estava surdo ou se o lugar era fantasmagrico e no tinha som. Gritar, j havia tentado e s conseguira o pnico de sentir algo rastejando por perto. Desesperava-se cada vez mais. Sabia que estava machucado, mas no o quanto, se era grave ou superficial. Temia desmaiar novamente e morrer abandonado naquele inferno terrvel. Para completar, o sangue escorria abundantemente da testa. Curiosamente, no coagulava, corria tranqilo, marcando veios em seu rosto, em seu peito. Deus! Aquilo era o pior! Se perdesse muito sangue, no sobreviveria! E se ali vivessem bichos ferozes? Eles poderiam devor-lo, atrados pelo cheiro de seu sangue! Mas, que nada! Como

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    pensar que algo poderia viver ali, naquele local que s lembrava morte? Sempre tem um abutre nesses locais, pensou... O medo, gerado e alimentado pelo desespero, criava em sua mente situaes impossveis e aterradoras. Augusto brandia o pau, que trazia na mo esquerda, como se fosse uma espada. Com o brao direito estendido, tateava a frente. E tentava correr, sem conseguir, tropeando, caindo, levantando, gemendo, reclamando, praquejando.

    Ele era um homem treinado para situaes difceis, um militar altamente graduado e medalhado por bravura e bons servios e, no entanto, contrariando o que aprendera durante a vida toda, sabia que estava perdendo totalmente o controle. Suava frio e o suor misturava-se ao sangue, raleando-o. A camisa j estava empapada. O que perturbava mais era a sensao de que tudo estava parado, sem sons nem movimento, o nada em direo ao nada. Nunca sentira um silncio to grande, no ouvia nada, nem mesmo os prprios passos. E, pior ainda, perdera a noo de h quanto tempo vagava sem rumo. No tinha tambm a menor idia de

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    porque estava ali, como chegara ou mesmo como sairia. Quanto mais fora fazia para se recordar, menos conseguia, mais se desesperava, mais se descontrolava. A cabea rodou, os olhos reviraram e ele caiu, braos e pernas abertos, estatelando-se de costas no cho, em completo silncio, ganhando mais um ferimento na nuca ao bater com ela numa pedra pontiaguda.

    Quando acordou nem tentou imaginar quanto tempo depois a nvoa havia se dissipado um pouco, o suficiente para que levasse um tremendo susto.

    Em p, observando-o com ar idiota, um homem imenso, alto e magro, cabelos pretos emaranhados, lisos e cortados retos, alguns fios compridos grudados na testa empapada de suor e sangue, olhos esbugalhados, machucado e assustado como ele, olhava-o fixamente, aparentando estar na mesma situao. Usava terno, se que aquele monte de molambos sujos e sangrentos podia lembrar um terno.

    Instintivamente, procurou o pau com uma das mos. Mas sentiu a inutilidade do

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    gesto, pois o estranho nem se moveu. Nem mesmo tentou ajud-lo a se levantar quando, com dificuldade e gemidos, ergueu-se. Nem falar ele falou. Continuou ali, olhando-o. Por um bom tempo, os dois continuaram se observando de maneira vaga, cada qual mais perdido no tempo e no espao e, principalmente, dentro dos prprios pensamentos desordenados.

    Augusto animou-se a falar primeiro: Ol! Quem voc? Meu nome

    Augusto e o seu? No tente me perguntar onde estamos, pois vejo que voc no sabe e muito menos eu. A propsito, s por perguntar e j sabendo de antemo a resposta: sabe onde estamos?

    O outro respondeu sem se mover, os olhos parados, como se fosse um rob:

    Pedro... No sei como cheguei aqui. Parece que estou vivendo um pesadelo... Sabe me dizer onde estamos? devolveu a pergunta, abobalhado, olhando em volta, sem nada ver.

    Augusto no se conteve e, como um louco, desatou a gargalhar nervosamente. No entanto, seu riso no tinha som nem eco e tornava ainda mais terrvel a

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    situao. Grande coisa lhe acontecera! pensou. Algum to perdido como ele, machucado, assustado e cansado que nem ele.

    Pedro continuava olhando para o outro, com olhos inexpressivos e doloridos. Tentou explicar-se, com voz pausada, baixa e assustada, muito lentamente:

    Eu acabava de estacionar o carro em frente minha casa... S me lembro de uma dor forte nas costas, como uma punhalada ou um tiro, sei l... Devo ter desmaiado e cado. Depois, no sei. Acordei aqui. Ou melhor, por aqui, vagando. No sei dizer se ando h dias ou h horas. No vejo nada, no ouo nada, estou cansado e, pela primeira vez na minha vida, estou com medo. Penso que roubaram meu relgio, documentos, carteira, pois no consigo encontr-los... Minhas costas doem terrivelmente e s estamos juntos porque tropecei em voc.

    Nossa situao mais ou menos a mesma. Acredito que fomos vtimas de bandidos, que nos doparam e nos abandonaram no mato. Ou talvez tenham

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    pensado que estvamos mortos e nos largaram na estrada. Cheguei a pensar que, no meu caso, fossem seqestradores. Mas, por que? No sou rico... J quanto a voc... rico? Se no for, devem ter sido ladres de carros. isto mesmo! De toda maneira, este deve ser um local de desova. Pensaram que estvamos mortos e nos jogaram aqui. Pode crer em mim: esta neblina intensa deve estar escondendo muitos cadveres, vtimas dos criminosos que pululam pela cidade, garanto. Quando chegarmos em local seguro, vou mandar vasculhar aqui, drenar onde houver pntano, e teremos muitas surpresas. Pegaremos os bandidos tambm. Os que me atacaram e os que atacaram voc. Ah, isto eu garanto!

    De repente, Augusto sentia que suas idias estavam se concatenando e pensava melhor. Aprumara-se, j no sentia tanto frio nem tanta dor. Curiosamente, o sangue no escorria mais pelo seu rosto: coagulara-se. Refez-se do medo. Respirou fundo. O instinto dizia-lhe que, para sair dali, tinha que reagir. A presena do outro lhe fizera bem, encorajara-o. Afinal, Pedro no era um

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    pesadelo ou um fantasma. Era real. E, se algo real acontecera, havia chance de ser superada aquela situao difcil e complicada. E ele, Augusto, tinha preparo suficiente para encarar fosse o que fosse, lidar com qualquer situao. Era a sua profisso a vida toda, fora treinado para superar situaes difceis, perigosas. Comeava a se controlar, tentava se orientar.

    E era justamente a que comeava o primeiro problema: sentia que, pelo menos por enquanto, no podia contar com o outro. Teria que ajud-lo e resolver tudo sozinho. Com olhar firme encarou Pedro, que continuava com os olhos fixos, perdidos e desesperados. S faltava cair em prantos o pobre homem! Augusto sacudiu-o pelos ombros.

    Acorde Pedro! Vamos conversar, nos organizar. Caso contrrio, morreremos aqui. Alis, pela nossa aparncia fsica, falta muito pouco... Diga-me: qual a sua profisso?

    Sou empresrio. Trabalho com armas e defesa.

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    Armas contrabandeadas, posso supor?

    No pode supor no! Dirijo uma empresa de consultoria de segurana. Tenho clientes em todos os setores: grandes empresas, pessoas famosas, polticos, etc. Somos quatro scios. Sob nossas ordens h laboratrios e pesquisadores, bons e experientes profissionais. Os estudos, planos e estratgias so muito seguros e precisos. Incentivamos a segurana em todos os nveis, em todos os locais, e treinamos pessoal para usar tcnicas inditas, de altssimo nvel. Nossos homens, aps cursos, estudos, estgios no exterior e provas prticas, ficam altamente especializados, no perdem o controle nunca e realmente so benficos para a populao. Meu trabalho mais ou menos isso. Se tiver mais coisa, esqueci.

    Pedro sentou-se, esparramando-se no cho, cansado do esforo de falar e pensar. Segurou a cabea com as mos, tentou ajeitar os cabelos lisos e rebeldes e completou desolado:

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    No entanto, veja voc: agora estou s, desarmado, inseguro e desarvorado. No sei que lugar este, minhas costas continuam doendo, minha cabea roda, tenho dificuldades de orientao e concentrao, no consigo pensar direito e no tenho notcias de minha famlia. Nem mesmo sei o que aconteceu comigo, se foi um assalto, um acidente, ou qualquer outra coisa. O que estar acontecendo com minha famlia? No sei... Onde estou? H quanto tempo? Quem voc? Devo mesmo acreditar que se chama Augusto? E que importaria numa situao assim? E sou um expert em segurana...

    Segurana por segurana, empatamos. J disse quem sou. Chamo-me Augusto e sou militar. Vamos sair dessa. Coragem! E siga-me.

    Milagrosamente, Augusto sentia que havia se recuperado. Tinha esperanas de sair dali. Nada mudara na paisagem e na situao. Mas tudo mudara dentro dele, que, mesmo sem ver nada, comeou a andar com passo firme.

    Maquinalmente, o outro se levantou e o seguiu de perto, os dois andando

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    devagar e cautelosamente, evitando cair em algum buraco dos muitos existentes que apareciam repentinamente tentando enxergar frente, como duas sombras movendo-se no meio da bruma desconhecida. Nenhum dos dois saberia dizer ao certo e com segurana de onde vinham e para onde iam. No entanto, faziam a nica coisa que podiam fazer naquele momento cruciante: andavam.

    A dificuldade de concentrar os pensamentos era tanta, que eles nem tentavam pensar em algo, nem sequer olhavam para os lados e nem mesmo achavam necessrio gravar na mente o quanto andavam. Ou mesmo marcar os locais por onde passavam. Para que? Se por acaso voltassem atrs, no iriam mesmo achar onde j haviam passado... A neblina continuava forte, o frio intenso, pairava no ar a dvida se estavam andando em crculo. Mas nenhum deles ousava levantar o problema. Apenas caminhavam, um atrs do outro.

    Isto, at ouvirem os rudos, nicos no meio do silncio do abismo. Diferentes, surdos, graves, impossveis de serem

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    classificados como humanos ou de mquinas. Nenhuma identificao possvel para eles. Sobre-humanos? Subumanos? Mas quebravam o silncio terrvel. E sons so sinais. Sinais de vida por perto.

    Esquecidos do cansao, das dores e do medo, os dois comearam a correr, tropeando, escorregando e caindo, em direo aos sons.

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    DANILO

    O mdico dissera que seria uma operao banal, mas ele bem sabia que a verdade era outra. Simplesmente porque no existem operaes corriqueiras. Afinal, no pode ser simples abrir uma pessoa, mexer nos rgos dela, costurar, colocar remdios e muitas coisas mais! Cirurgies so interessantes: cortam o sujeito todo, emendam, tiram e acrescentam pedaos, fazem transplantes, costuram e, depois, na maior ingenuidade do mundo, dizem sorrindo que no foi nada!

    No caso dele, era apenas uma vlvula que no estava bem, mas o corao no sofrera ainda com isso. Troc-la era coisa simples, de rotina, e tudo voltaria rapidamente ao normal. No mais, ele poderia ficar tranqilo: o mundo estava cheio de gente que portava vlvulas artificiais. Havia at casos mais complicados, que envolviam vlvulas e grandes quantidades de pontes de safena, em pessoas idosas e com risco de vida. Que sobreviviam. O dele jovem e forte

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    era dos mais comuns. Isto tudo ele ouvira, tentando desesperadamente acreditar, sentindo um friozinho no estmago.

    Pensara seriamente que morreria, na hora de se decidir diante do impasse que vivera diante das palavras do mdico: Se no fizer a cirurgia urgentemente, pode morrer. E ser uma morte intil e inglria, pois seu caso tem soluo. E ele completara em pensamento: se fizer, pode morrer tambm! Tipo se ficar o bicho come, se correr o bicho pega....

    A seguir, a conversa sria com seu pai e Cludio, o grande amigo de ambos. O que fazer? E se morresse? Os filhos, como ficariam? Foi tranqilizado de todas as maneiras. O pai disse que nem pensava numa coisa dessas, mas, se acontecesse, os netos e a me deles jamais ficariam abandonados, era evidente. Ele estava ali e os avs maternos tambm. Mas que era inconcebvel se pensar numa coisa impossvel de acontecer a um moo forte. Um absurdo ficar falando em morte quando se est tentando melhorar a vida! Cludio no mentiria nem o outro mdico. Era simples a operao, ele tinha certeza.

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    Cludio reforou o que o pai havia dito, sobre a simplicidade da cirurgia, os bons resultados previsveis, a sade dele, ainda muito jovem, as vantagens de ter um corao funcionando perfeitamente, necessitando apenas uma correo.

    Depois, o hospital com seus corredores, quartos e lenis brancos, os mdicos e enfermeiros delicados e prestativos, as paparicaes da famlia, o apoio dos amigos, a presena constante de Cludio, os preparativos para a cirurgia denominada simples, o sono sem sonhos da anestesia. Nenhuma dor ou desconforto na hora.

    Agora, o resultado, alguns dias depois: na cama, ainda no hospital, todo dolorido, peito aberto e costurado, sentindo como se tivesse sido atropelado por uma jamanta! Felizmente no morrera, o que j era alguma coisa.

    Havia alguma compensao, alm da maravilha de ainda estar vivo: o hospital era realmente timo, calmo, bonito, os mdicos atenciosos e cuidadosos, os enfermeiros prestimosos. Uma nica coisa o aborrecia: por que Cludio, cirurgio e

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    amigo de infncia de seu pai, querido por toda a famlia, resolvera viajar logo aps a operao? E, ainda por cima, sem se despedir dele, sem esperar que ele acordasse da anestesia? No seria uma falta de considerao? verdade que o motivo apresentado em apressado recado era grave doena sria em famlia mas sentia-se ainda magoado e abandonado pelo companheiro numa hora difcil. O cirurgio assistente de Cludio, Dr. Alberto, era excelente, estava atendendo-o muito bem. Alberto tambm afirmara que Cludio ficara muito preocupado, mas no podia deixar de atender ao chamado do irmo gravemente enfermo.

    Ele e Alberto estavam ficando amigos, conversavam muito, tinham interesses comuns, passavam horas juntos. Preocupara-se com o fato de estar incomodando muito, mas o amigo informou que fora responsabilizado pela recuperao dele e tinha que estar a postos sempre. Ele achou interessante aquilo. Disse que nunca tinha visto um hospital onde o mdico tinha que acompanhar o doente constantemente, assumindo a recuperao dele. Soube

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    ento que ali onde estava o regulamento era diferente e a experincia estava valendo, pois obtinham total recuperao dos doentes. Fantstico! Aquilo era uma promessa formal e real de cura, afastando totalmente a idia de morte! Aquela clnica deveria estar fazendo uma verdadeira revoluo na Medicina, pois dava garantia de cura! Como no soubera disso antes? Que beno! Que beleza! pensou o doente aliviado.

    O fato de estar sozinho no CTI era normal, pois as cirurgias cardacas demandam muito cuidado para o doente no adquirir uma infeco hospitalar e seu estado de sade se complicar. Tivera at muita sorte, pois, como o CTI estava lotado, foi improvisado um quarto para ele, esterilizado, onde s podiam entrar as pessoas autorizadas. A famlia o acompanhava ao lado de fora e s poderia entrar quando ele estivesse realmente isento do perigo de apresentar qualquer complicao. Constantemente, ele mandava e recebia recados e bilhetes dos entes queridos, graas s enfermeiras Dalva e Jaciara, que se encarregavam disso. Alm da conversa encorajadora e

  • 33

    amiga que mantinham com ele, das papinhas deliciosas que serviam, dos remdios nas horas certas e das recomendaes de ficar tranqilo, pois tudo estava correndo como anteriormente previsto e na santa paz de Deus. E o estado de esprito tranqilo acrescentavam provoca uma recuperao super rpida.

    Chegou ento a uma concluso: relaxar. Era a nica coisa que podia fazer. Quanto mais colaborasse, mais depressa ficaria bom e deixaria o leito. Poderia voltar logo a uma vida normal, a seus afazeres, sua famlia. E como gostava da famlia!

    Esticou braos e pernas o mais que pde, espreguiando-se. Fechou os olhos. Recebera a recomendao de descansar e no pensar em mais nada. Era isto mesmo que faria, que precisava fazer a muito tempo. Descansar. No adiantaria nada ficar ali pensando nisto e naquilo, matutando. Havia uma verdade: no poderia levantar-se hoje nem amanh e a recuperao exigiria cuidados especiais,

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    talvez at fisioterapia. Portanto, colaborar! O tempo faria o resto.

    Depois de tudo resolvido, novamente com sade, era imperativo mudar de vida, valoriz-la mais. Agora, que quase a perdera, entendia bem isso. E quantos planos para o futuro! A correria de advogado de vrias empresas, para l e para c, talvez tivesse sido mesmo a responsvel pela doena prematura, o cansao, o stress. Mas, prometia a si mesmo: tudo mudaria, coisas que nunca tiveram tanto valor passariam a ter muito, ao contrrio de outras, que seriam relegadas a um segundo plano. E outras tantas seriam simplesmente abandonadas e esquecidas. Reviso de valores j comeava a acontecer em sua mente. Quando pudesse, poria em prtica tudo aquilo que idealizara, no amadurecimento que a doena provocara.

    E os projetos comearam ali mesmo, naquela hora: passaria a trabalhar com o pai, num escritrio s de ambos, com menos clientes, mais selecionados. Reservaria tempo para a famlia, passear com os filhos, procurar ouvi-los com

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    ateno, estar ao lado de Marlia na educao das crianas, participar da vida domstica, frias sagradas todos juntos e agora que conhecia o lado da doena e da dor prometia solenemente a si mesmo ajudar aos que estivessem sofrendo em camas de hospitais. Conversaria com Alberto sobre como poderia colaborar na casa de sade.

    Com um sorriso tranqilo, olhou atravs da janela, que ficava bem na frente sua cama, altura de seus olhos: havia florezinhas azuis no parapeito. Mais, adiante, o jardim estava bonito, as rvores floridas e coloridas, leve brisa balanando as folhas, a temperatura tima. Uma enfermeira passava longe, numa alameda, andando rpido.

    O som de pssaros cantando chegava a seus ouvidos, como doce melodia. Em algum lugar ali perto de sua janela deveria haver gua correndo, pois dava para escutar um doce murmrio de gua mansa.

    Fechou novamente os olhos. Um calor gostoso e morno percorreu o seu corpo. Estava em paz. Pensava em paz.

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    Espalharia paz quando sasse dali. Seria um apstolo da paz.

    E Danilo adormeceu sorrindo.

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    TAMBORES

    Augusto parou de repente, segurando Pedro fortemente pelo brao. Falando baixinho, explicou a necessidade de terem prudncia, pois no sabiam o que estava acontecendo. E, num lugar como aquele, qualquer coisa era possvel. Portanto, importante se aproximarem devagar, observarem primeiro, escondidos, antes de se manifestarem. No sabiam quem ou o qu encontrariam, o que os esperava mais adiante. E se fossem marginais? A situao ficaria pior do que j estava.

    Tem jeito de ficar pior? perguntou um abobalhado Pedro.

    Sempre tem, sempre tem... Os sons estavam cada vez mais altos,

    pertinho deles. Tambores ritmados, acompanhados de um canto compassado e triste. Parecia haver vrias pessoas.

    Agachados, quase se arrastando, os dois tentaram chegar mais perto. Estava mais fcil esconder, pois, sem que eles houvessem notado, o mato ficara alto e cerrado, as pedras enormes. O cenrio mudara bastante, sem que eles

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    percebessem, preocupados como estavam em correr o mais rpido possvel em direo nica manifestao de vida no local: aqueles sons estranhos. Ofegantes e curiosos, deitaram-se entre as plantas, de bruos, tentando normalizar a respirao. E olharam, abrindo com muito cuidado espao entre os galhos, para no serem notados.

    Cerca de uma dzia de lindas pessoas morenas danava ritmadamente, num compasso sensual, batendo os ps, perto de um fio dgua, ao som de dois grandes tambores ovais, tocados por homens descalos, com peitos nus e largas faixas vermelhas na cintura. Estavam em crculo e, no meio, aparecia uma comprida toalha vermelha. Em cima dela, grandes potes de barro aparentavam conter farinhas e folhas, muitas folhas. O maior, central, enfeitado com penas negras e compridas hastes de ferro. Bem encostado nele, um buqu de rosas vermelhas, preso por um lao de fita tambm vermelha. Havia enfeites entre os potes. Estranhos enfeites: espadas, punhais, facas, estiletes, garrafas. E velas, muitas velas

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    coloridas, presas em gargalos de garrafas que pareciam de champagne. Um homem, com longo cabelo negro e descalo, peito nu e cheio de colares, andava de um lado a outro, espalhando uma fumaa cheirosa em cima dos potes e acendendo as velas com uma espcie de archote.

    As roupas de todos eram diferentes, de cores fortes e enfeitadas. As saias das mulheres, longas e cheias de rendas, eram fartas e pareciam bordadas com fios que brilhavam. As pulseiras das mulheres tilintavam e os cabelos longos balanavam ao ritmo da dana.

    No dava para entender em que lngua eles cantavam, mas, decididamente, portugus que no era. Parecia um dialeto rouco e sincopado.

    Em tempos alternados, os bailarinos paravam, curvavam-se, batiam palmas, erguiam-se novamente, abriam os braos para o alto e gritavam uma espcie de saudao. E recomeavam, cada vez com mais intensidade. Os homens dos tambores suavam, caprichando no toque cada vez mais acelerado.

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    A msica era bonita e triste e, em certas horas, parecia um lamento cada vez mais alto, quase gritado. Os rodopios das mulheres aumentavam gradativamente, as saias subindo e descendo, esvoaantes.

    Num crescendo louco, frentico, comearam a suar e a se contorcer, os colares balanando e volteando no ar, os turbantes desenrolando das cabeas, soltando pontas que tambm volteavam. Dois homens que haviam se mantido em p ao lado dos tambores, caram de joelhos, se contorcendo como cobras e gritando.

    O que era aquilo eles no sabiam, mas algo dizia no ntimo dos boquiabertos maltrapilhos que eles no deveriam interferir. Que no seriam bem vindos ou teriam mais problemas caso se manifestassem. Afinal, o rosto do que parecia ser o chefe era srio e dava para notar que no admitiria interrupes. Qualquer atitude em relao a ele teria um preo. E nunca se sabe das coisas desconhecidas.

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    Depois de muitas danas, cantos e estertores, o estranho grupo se retirou, danando de marcha r, a frente voltada para os potes. De vez em quando paravam, davam dois passos de dana para frente e quatro para trs e assim iam, sempre danando, at que sumiram de vista, atrs de grandes rochedos. O silncio reinou novamente.

    Os dois estupefatos observadores ficaram escondidos mais um pouco, com medo de que algum voltasse. Falando baixinho, combinaram que tentariam chegar mais perto, para verem melhor o que era aquilo que haviam deixado armado em cima da toalha vermelha, o que havia nos potes.

    Passado um tempo, comearam a se arrastar cuidadosamente para frente, sempre protegidos pela mataria densa. Mas, antes que Augusto e Pedro se aproximassem dos potes de barro, ouviu-se um barulho forte como um galope, um estrondo, e imenso grupo cercou o local.

    Os dois observadores pensaram estar sonhando e passaram as mos nos olhos, escondendo-se o mais rpido possvel. Era

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    a mais bizarra cena que j haviam visto. Homenzarres e anes, mulheres bonitas e feias, muitos com mutilaes, roupas coloridas e capas longas, botas imensas nos ps de alguns, chapus e capas extravagantes, avanaram todos ao mesmo tempo sobre os potes, que, pelo visto, pareciam conter comida. Uns gritavam e empurravam os outros. Saram tapas e disputa a murros. Os potes se esvaziaram em pouco tempo e a turba saiu com o mesmo alarido, as mesmas brigas e sopapos, os mesmos gritos.

    Decididamente no este o lugar onde devemos descansar um pouco. Viu que coisa mais esquisita? falou Pedro, esticando as pernas e assentando-se no cho.

    Agora que me atrapalhei todo e no sei mesmo onde estamos... Parece outro pas, outros costumes... As roupas, a lngua... No sei no... Mas acho, ou melhor, tenho certeza de que no devemos seguir o mesmo caminho que eles. Temos que continuar procurando, nem sei mesmo o qu. Estou

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    impressionado. No estou me sentindo bem. E voc?

    Se quer mesmo saber, estou pssimo.

    Levantar, andar, quase correr na direo oposta foi coisa de minutos. O que no impediu que, logo, logo, esbarrassem nos limites da cidade. Cidade?! No dava bem para entender, muito menos explicar. Era uma nica e longa rua, poeirenta e deserta, cercada de casas tortas empoleiradas umas nas outras, sobrados sombrios que desafiavam a lei da gravidade. Tudo velho, caindo aos pedaos, antigo, cheio de p e mofo, sem cor nem vida. Parecia um lugar fantasma, um cenrio desabado e abandonado de filme de horror.

    Cautelosos, comearam a atravessar, andando no meio da rua, olhando para todos os lados, em guarda.

    De uma casa irrompeu um grupo na maior algazarra, uns empurrando os outros, todos vestindo roupas diferentes e coloridas, capas longas, parecendo atores mal comportados em direo ao palco para representar uma pea macabra. Os

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    dois encostaram as costas um no outro, protegendo-se, prontos para a briga que, acreditavam, fatalmente viria. Mas surpresa! ningum lhes deu a mnima ateno. Nem sequer um olhar. E olha que passaram raspando na dupla assustada.

    Recomearam a andar. Uma fora vinda no se sabe de onde, impelia-os, olhares firmes para frente, a no parar em hiptese alguma, andar sempre no mesmo ritmo, seguir adiante, atravessando assim a cidadezinha, encontrando outros grupos bizarros, uns barulhentos, outros no, chegando novamente a campo aberto e, a seguir, mata adentro, com a maior rapidez possvel.

    Felizmente, embora o mato fosse denso e sombrio, no havia mais neblina nem lama. Ao contrrio, agora era p que no acabava mais. Muita cinza espalhada pelo cho, dando a tudo e a todos um colorido igual. As plantas eram as mais inimaginveis possveis. Muito feias, pareciam artificiais, paradas, sem vida. Tinham galhos grossos e retorcidos, folhas secas que estalavam ao toque, cores escuras, espinhos longos e pontiagudos.

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    Havia muito cactus seco, morto. Cicuta queimada espalhava-se entre as razes imensas e mortas de grandes rvores, parecendo sobreviventes macabras de um grande incndio na floresta. O cho, rachado e seco, apresentava, em certos locais, fendas to grandes e fundas que um homem poderia muito bem se esconder dentro delas. De vez em quando, caveiras descarnadas de animais desconhecidos. Augusto aproximou-se de uma, para tentar reconhec-la, mas, a um simples toque seu, ela transformou-se em p. Um p fino e negro que escorreu para longe de suas mos como se tivesse sido soprado por algum desconhecido.

    Julgando-se mais protegidos, os dois sentaram-se no cho para descansar, tentar compreender e, se possvel, se refazerem dos sustos das ltimas horas. Pedro comeou a chorar copiosamente, como uma criana indefesa e abandonada. Augusto observava mudo, mas compreendendo o desespero do outro. Estavam comeando a sentir-se loucos ou ento participantes de um pesadelo interminvel e cada vez mais terrvel.

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    Toda a sensao de segurana havia abandonado a dupla. Augusto no mais pensava que resolveria tudo o que aparecesse pela frente. Se no sabiam o mais elementar onde estavam, em que pas estavam e porque estavam ali no havia condies de armar qualquer plano de fuga. Fugir de qu, de onde e para onde? Andar indefinidamente, at encontrar algo mais plausvel era a nica e terrvel alternativa, pois cada vez encontravam coisas menos compreensveis.

    Augusto levantou-se com dificuldade e recomeou a caminhada em silncio, num passo cansado, Pedro seguindo-o de perto, para estacarem novamente bem adiante, frente a um novo obstculo, desta vez com aparncia de intransponvel. Imenso paredo rochoso, lodoso e liso, no mostrava frestas ou condies de subida. Nem mesmo parecia ter fim, indicando que o caminho terminava ali. Do nada haviam chegado ao nada.

    A vegetao tornara-se oleosa e rasteira, no havia neblina nem p, mas

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    no havia tambm nem sol nem lua, dando a impresso de um vazio total, sem identidade. Lembrava um fim de tarde depois de uma tempestade violenta. S que uma tempestade de leo negro. Pois era leo negro e pegajoso que cobria tudo.

    No dava mesmo para enxergar o final do paredo e as pedras sumiam ao longe, se perdendo da vista. Augusto pensou e nem ousou comentar com Pedro que aquele local era totalmente inexplicvel, pois mudava constantemente de paisagem, sendo cada vez para um visual pior do que o anterior.

    Estavam encurralados, abobados, cansados, sem condies de pensar numa soluo, numa sada, parados, olhando para a imensido das pedras.

    Foi quando um relmpago cortou o ar anunciando chuva grossa. Parecia que, desta vez, cairia gua mesmo. Um trovo ribombou altssimo, fazendo o cho tremer. S faltava um terremoto, pensou Augusto. Mas foi uma tempestade que desabou violenta. E era gua. Mas uma gua pesada, salgada, suja.

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    Encolhidos num pequeno vo das rochas, os dois comearam a chorar.

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    A EXPEDIO

    Foram muitas as providncias tomadas no dia anterior e havia mais a fazer, agora em relao s emoes. Principalmente manter a mente clara e livre de receios, em sintonia com a base. Qualquer vacilo de um dos membros abriria brechas no campo vibracional do grupo e as conseqncias seriam imprevisveis. Por isso, no era qualquer um que podia se candidatar a voluntrio para as incurses nas furnas. As provas eram difceis e o autocontrole testado ao mximo at que o aspirante recebesse autorizao para participar da primeira viagem-teste. Caso se sasse bem, seria ento considerado apto.

    Os membros da expedio j estavam recrutados e se organizando. Antes da sada, algumas coisas tinham que ser feitas pessoalmente por Francisco e Clara, como a verificao do estado mental de todos. Isto era feito atravs de um cristal hexagonal cor de rosa, incrustado num bloco de mrmore alvo. Era necessrio que o paciente colocasse as

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    duas mos abertas em cima do cristal, fechasse os olhos e liberasse os pensamentos. Caso a pedra se mantivesse na mesma cor, tudo bem. Se escurecesse, era sinal de problemas. Este aparelho de verificao ficava no gabinete de Francisco, onde todos deveriam passar antes de se dirigirem ao local de partida. Francisco verificava um a um e depois saia com eles.

    Os ajudantes j haviam testado as mentes e comeavam a preparar as redes magnticas, lanternas possantes, pistolas paralisantes, padiolas dobrveis com controle de peso e todo o material necessrio para socorro. Tudo estava sendo colocado em grandes mochilas com sustentao area, para que no pesassem muito nas costas de quem as carregava.

    Enquanto Clara observava o mapa do roteiro e conversava com os experientes batedores, Francisco perdia-se em divagaes, assentando em cima de um rolo de cordas, cofiando as barbas brancas.

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    Era importante pensar em tudo, para que o resultado fosse um sucesso e estivessem de volta o mais rpido possvel. Desceriam em profundidades inspitas e a reao sobre seus organismos se faria notar em poucas horas, conseqncia do ar pesado, das emanaes vulcnicas e outros problemas de regies onde predominam grutas e abismos. Teriam pouco tempo para o resgate, pois ficariam cansados muito depressa e, quando isso acontecesse, a volta se faria imperiosa. Todos os passos deveriam ser cronometrados, as faltas e imprevistos contornados com sabedoria e presteza.

    Francisco j no se assustava mais e nem temia as surpresas de tais caminhadas em regies praticamente desconhecidas. Esta no era a primeira e nem seria a ltima vez que desceria, procurando salvar pessoas. H anos fazia isto! No entanto, cada uma era uma experincia nova e aconteciam fatos inesperados. Lembrava-se de um grupo de senhores idosos encontrado quando procuravam uma moa. Nem sequer vira a moa. De outra, chegara a incorporar

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    sua uma outra expedio que precisava de ajuda, visto ter acontecido com eles um acidente inesperado: um dos membros, menos experiente, deixara-se impressionar pelo ambiente, desequilibrando a mente e atrapalhando os outros. J acontecera tambm de ele prprio precisar de auxlio, quando, ao descer sozinho em regio muito escura e profunda, ficou preso l, precisando usar toda sua fora teleptica para se comunicar com a central de operaes. Mas, felizmente, em todas as vezes obteve resultados positivos, coroados de sucesso.

    Hoje, desceriam junto com ele e Clara os experientes Felipe, Daniel e Vera, alm de quatro enfermeiros acostumados a todos os tipos de resgate. Os batedores tinham profundos conhecimentos da regio, pois outrora haviam vivido nela. Em duas reunies preparatrias, o programa fora exposto nos mnimos detalhes e todos tiveram oportunidade de esclarecer as dvidas. Agora, era a vez da ao.

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    Vera aproximou-se, avisando que estavam prontos. Ainda no amanhecera, era a melhor hora para sarem. Ele enlaou a moa to querida pelos ombros e, abraados, foram ao encontro do resto do pessoal que, pronto, aguardava a ordem de partida. Teriam que carregar todo o equipamento, pois a regio que visitariam no comportava os carrinhos magnticos. Portanto, todos portavam as grandes mochilas que haviam preparado, bem presas s costas.

    Atravessaram o grande jardim, passaram pelo porto isolante e pela passagem imantada e se embrenharam na mata que, curiosamente, na medida em que se afastavam do ponto de partida, ia ficando mais densa e menos bela. Sempre em silncio, em ordem, com passos cadenciados, sem olhar para os lados, sem parar ou falar.

    Em poucos minutos, uma escura pedreira coberta de musgos mostrou que estavam chegando ao local da descida. Dava para ver de longe o imenso buraco, que mais parecia uma boca aberta, pronta a engolir quem entrasse nela. Era a

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    entrada. Andaram mais rpido e passaram a uns cinco metros do local, conservando as posies. Francisco olhou para trs conferindo a ordem e, parecendo satisfeito, fez um sinal levantando a mo direita.

    Silenciosos e em fila indiana, Francisco e Clara frente logo atrs os batedores Felipe e Vera Daniel atrs de todos, dando cobertura retaguarda, entraram na caverna, um pequeno grupo iluminado pela luz das lanternas e pela brancura imaculada das roupas, que brilhavam no escuro, espalhando uma aura fluorescente em torno de cada um.

    Apesar das pedras pontiagudas e dos morcegos que voavam baixo e assustados, ningum falou, parou ou mudou o ritmo dos passos. Avanavam com a segurana de quem conhecia o caminho, muitas vezes antes percorrido. Para eles, no havia perigo. Mentes vibrando juntas e em paz, rostos tranqilos, olhar firme, passo seguro, descendo sempre, embrenhando-se em longos corredores de pedra, rampas em caracol, quase verticais, em direo ao fundo.

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    No fim da descida, grandes galerias apareceram frente, mostrando muitas entradas e poucas sadas. Ouviam-se estranhos rudos, estalos intermitentes e dava para notar que um rio corria em cima, pelo barulho da gua batendo violentamente nas margens.

    Escolheram a mais estreita das galerias, um imenso corredor apertado e escuro, com gotas de gua quente pingando do teto que, ao baterem no cho, formavam estalagmites com uma rapidez inimaginvel. De vez em quando tinham de se curvar para conseguir passar.

    Foi a, quando a passagem se tornou quase impossvel, que o ar comeou a pesar e um cheiro forte de enxofre predominou. Algumas pedras, de to quentes, estavam incandescentes, mostrando a cor vermelha da brasa. O calor, muito forte, comeou a dificultar a respirao de alguns deles.

    No entanto, todos caminhavam tranqilos, sem o menor susto ou o menor interesse pelo ambiente em volta.

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    No grande salo que encontraram aps as galerias, um lago de guas borbulhantes, muito quentes, apareceu em frente. Atravessaram de pedra em pedra, imersos no vapor que exalava da fervura. Suas roupas protegiam-nos de todas as variaes, no se molhavam e ningum dava sinais de cansao, susto ou desequilbrio. Os que estavam com a respirao ofegante, concentraram-se e reequilibraram-na.

    Entraram na ltima galeria, que tinha degraus escavados na rocha como uma escada em caracol, que descia a perder de vista, em direo a um mundo sem fim.

    Uma ltima etapa, outro salo cheio de estalactites e estalagmites e um longo corredor menos sombrio e mais largo apareceu. Aproximava-se a sada do lado de l.

    Demoraram a atravessar pelo interior e s muito tempo depois saram do outro lado, para enfrentar a garoa fina e fria do exterior. No havia sol nem claridade, fazia um frio de cortar, s escurido, piados de aves noturnas e a sensao da

  • 57

    existncia de rpteis que no os tocavam embora passassem por perto.

    frente, longa trilha de pedras e areia. Se eram vultos humanos ou animais que se esgueiravam, ningum se preocupava em olhar ou conferir. Todos sabiam exatamente o que faziam, aonde iam e o que fariam. Comeavam a sentir ligeiro cansao, pois o ar ficava cada vez mais pesado, seco e glido. A sensao de aperto, como se carregassem um pesado fardo, estava com todos. Mas ningum falava, parava ou fazia qualquer sinal. Apenas andavam, os batedores mantendo uma certa distncia de Francisco, que puxava a fila. O mal-estar que sentiam j era previsto, pois acometia a todos os que se aventuravam naquelas regies.

    O local escuro dava idia de vazio. De vez em quando, pequena cratera se abria no cho e uma lngua de fogo varria o ar, lambendo as rochas, gerando sombras imensas dos passantes.

    A certa altura, Francisco parou, pois os batedores haviam sinalizado adiante.

    aqui a primeira parada. Preparem-se.

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    Colocados os fardos no cho, todos se dispersaram, procurando com lanternas, parecendo saber muito bem o qu e onde procurar. At que Daniel fez um sinal, mostrando algo. Acorreram, uma padiola foi estendida e um senhor idoso, de longas barbas brancas, desmaiado, foi resgatado de dentro de imenso buraco de onde, em tempos sincopados, chamas ardentes brotavam do interior, como bolas de fogo atiradas ao ar.

    Sem uma palavra de susto, medo, pena do homem ou pavor diante de sua situao terrvel queimaduras e bolhas por todo o corpo , a expedio continuou, desfalcada de dois enfermeiros, que, visto a gravidade do doente, voltaram pelo mesmo caminho, levando-o na padiola, tudo tranqilamente como se previamente combinado. Seguiram novamente em fila indiana, sempre com Francisco seguido por Clara.

    A escurido j no era to intensa e as possantes lanternas foram desligadas. A expedio continuava por um caminho mais largo e com mato alto em volta.

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    Mesmo assim, no seria fcil dizer se era dia ou noite, madrugada ou tarde chuvosa. Uma nuvem cinza impedia a viso do cu e de possveis estrelas, sol ou lua. O ar parado e viciado, o mato rgido e ressecado, em alguns locais com pouca ou nenhuma folha verde, de um verde morto. Quem ficasse ali perderia fatalmente a noo de tempo. Ou enlouqueceria.

    No meio do caminho, um grupo de pessoas estranhas, umas muito altas e outras muito baixas, todas portando roupas multicoloridas e exticas, apareceu frente, fechando a passagem. Diante dos olhares firmes dos batedores o confuso grupo abriu-se para dar passagem ao outro, o de branco. Uns riam, outros olhavam srios e um alto e tremendamente parecido com uma raposa, mais atrevido, perguntou se procuravam algum. Nenhuma resposta. A branca fila indiana passou calada. Nos lbios de Francisco, um sorriso, o olhar firme e fixo em todos que lhe abriam caminho.

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    Respiravam arfando, quando pararam no alto de um rochedo. Olharam para baixo, mirando o fundo com as lanternas. Foi Vera, com sua viso de guia, quem viu primeiro: dois homens assustados, feridos e sujos, de ccoras num vo de rocha, tinham as cabeas entre as mos e pareciam chorar.

    Constataram que seria impossvel descer para ajud-los, pois gastariam muita energia. A ordem era no passar do limite pr-determinado pela engenharia de apoio, que traava as rotas previamente e marcava os possveis obstculos que poderiam oferecer maior dificuldade ou risco de perda de recursos mentais. Descer mais do que j haviam descido oferecia perigo. Cada expedio de resgate tinha um limite de profundidade e ningum o quebrava.

    Imediatamente, Felipe comeou a desenrolar as redes, que foram atiradas como escadas. Os dois homens teriam que subir. Daniel, de posse de um megafone, gritou que subissem e se segurassem bem.

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    Os dois, apalermados, olhando para cima, no sabiam se subiam ou se ficavam onde estavam, pois a visibilidade no era boa e a certeza de estarem sendo salvos no ocupava suas mentes.

    E foi a que aconteceu. De todos os lados, apareceram pessoas, como tribos perdidas, maltrapilhas, sujas e animalizadas, vestindo tangas e usando nas cabeas adereos que lembravam cocares, avanando para as redes, brandindo cajados e gritando frases e palavras ininteligveis.

    Augusto s teve tempo de puxar pela camisa o apalermado Pedro, e correr em direo rede prxima. Os dois comearam a subida, sentindo que mos lhes puxavam os calcanhares e escorregavam, no conseguindo se segurar neles ou nas improvisadas escadas. Uma pedra voou das mos de algum e atingiu Augusto no ombro esquerdo, causando dor e dormncia no brao. Mesmo assim, ele segurava firme a rede com uma das mos e com a outra ajudava Pedro a se sustentar, numa escalada difcil, onde os ps ajudavam as

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    mos, pois, para cada avano, ele tinha que enrolar a perna na corda para se firmar, poder soltar uma das mos e puxar o companheiro. A subida no estava fcil, o leo das rochas se transferia s cordas, tornando-as escorregadias, as mos sangravam, o corpo escorregava, os ps lutavam para se firmar.

    Embaixo, uns atacavam os outros, tentando subir tambm, como que pensando que o vizinho de tentativa era o responsvel pela impossibilidade de escalar o escorregadio piso de pedra.

    Pedro parecia no estar bem, ensaiando um desmaio. Augusto falava firme com ele, mandando que segurasse, pois, se casse, era certo que no haveria volta. Poderia ser massacrado pela turba de baixo.

    Foi quando uma mo forte e firme, mas to machucada quanto a de Augusto, ajudou a aparar Pedro pelo outro lado. Era um homem na mesma situao e com a mesma determinao que os dois.

    Os trs galgavam com dificuldade, Pedro no meio, escorregando e chorando de desespero. O topo ficava cada vez mais

  • 63

    perto e j dava para distinguir os vultos que os estimulavam a subir, subir...

    Sentir o final da subida e as mos firmes dos batedores puxando-os foi o paraso. Os trs, exaustos, caram no cho, olhando para os tranqilos salvadores. Francisco providenciava algo numa moringa e os outros amparavam as cabeas dos recm-chegados, dando-lhes a gua da bilha, que parecia conter algum remdio, pois o cansao passou de imediato.

    Augusto e o desconhecido puseram-se de p. Pedro foi colocado numa padiola e dois enfermeiros o acomodaram o melhor que puderam. Parecia desmaiado. Clara cobriu-o com uma manta, mandou que ele descansasse e todos ficassem calmos.

    Augusto olhou para baixo, aonde ecos de improprios iam se esvaindo no ar, voltando a reinar o silncio. Instintivamente, comeou a ajudar a recolher a rede, ajudado pelo outro, de quem nem sequer o nome sabia.

    Recolhido o material, Francisco se dirigiu aos recm chegados:

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    No se preocupem, vocs esto bem e a salvo. Tero a explicao de tudo mais tarde. Agora, urge voltar, sair deste local. Vamos, meus filhos.

    Nova fila indiana se formou, desta vez com os sobreviventes logo atrs de Francisco. Clara postou-se bem atrs da padiola. Daniel novamente na retaguarda, protegendo os amigos. Receberam ordem de manter silncio. Perplexos, eles obedeceram. Cada um recebeu uma lanterna e, instintivamente, os dois pediram mochilas para carregar e aliviar os outros.

    E, voltando nos prprios passos, a caravana seguiu, entrando de novo na escurido, acendendo as lanternas, em direo caverna, onde a subida pelas galerias sombrias seria, com certeza, mais longa e exaustiva que a descida.

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    O HOSPITAL

    Augusto respirou aliviado, depois de passar a noite na caverna, superando obstculos e fazendo intervalos para descansar. Por duas vezes pararam, com a volta se tornando cada vez mais difcil, j cansados. Quando ficavam exaustos e sem flego, Francisco ordenava um crculo, mandava que se dessem as mos, fechassem os olhos e respirassem fundo. Mantinha-se um bom tempo como que hibernando e, quando recebiam ordem para abrir os olhos, sentiam-se refeitos. S no final da travessia aconteceu um obstculo intransponvel: o lago de guas quentes encheu a galeria e eles tiveram que aguardar a descida das guas. Durante toda a noite esperaram. De madrugada o lquido fervilhante sumiu como por encanto em alguma fenda das rochas e as pedras apareceram para que eles pudessem passar. Tudo superado, eles conseguiram sair ao ar livre.

    A caravana, no mais perfeito silncio e na maior ordem, entrou em terreno livre, gramado, parecendo aproximar-se

  • 66

    de local habitado. Amanhecia, sol morno e cu azul. Mas, na cabea do andarilho socorrido a pergunta persistia: onde estavam? Quanto ao terceiro companheiro, que caminhava firme e alegre logo atrs de Clara, ningum duvidava: estava calado, mas bem e, embora parecesse partilhar os pensamentos com Augusto, aparentava no se incomodar muito com isso. Familiarizara-se com Clara, ajudava-a carregando mochila e equipamentos, para que aquela moa bonita de idade indefinida tivesse mais liberdade de movimentos para abrir a manta e verificar, de vez em quando, como estava Pedro. Ele mesmo cuidava de olhar se o paciente adormecido ainda respirava. Enfim, comportava-se na maior naturalidade, prestando ateno ao redor e refletindo no rosto a impresso que sentia quando as paisagens variavam.

    Obedientes s instrues, no faziam perguntas. Apenas caminhavam e ajudavam a carregar os fardos. De vez em quando, Francisco olhava para trs e seu olhar cruzava com os dos recm-chegados. Um sorriso enigmtico e

  • 67

    bondoso aparecia mais no olhar que nos lbios do chefe da expedio.

    Entraram por uma porta linda, toda coberta de hera e invisvel distncia, incrustada numa rocha sem fim. Um grande e movimentado ptio apareceu. Pararam diante de imenso prdio, que parecia ser um hospital localizado em algum bairro de cidade grande, pois, embora cercado de verde e em regio rural, ambulncias e outros carros de marcas estrangeiras eles nunca tinham visto iguais entravam e saam, velozes, de um largo porto lateral. O entra-e-sai de enfermeiros e mdicos era intenso, todos vestidos de impecvel branco. Outras expedies chegavam e algumas partiam, quase todas a p.

    Aquele era um local amigvel. Nem um rosto conhecido. Augusto comeou a ficar intrigado. Pedro dormia profundamente na maca. Clara avisou que ia lev-lo para o quarto e que depois poderiam visit-lo. Seguiu acompanhando o doente, levado por dois novos enfermeiros que vieram busc-lo. Dispersaram-se todos para seus afazeres.

  • 68

    Francisco chamou Augusto e o outro, pelo nome:

    Augusto e Andr, venham comigo. Podero descansar e depois conversaremos. No temam. Esto em local seguro. Acabaram-se as suas aflies.

    Parece-me um hospital imenso arriscou Augusto.

    Acertou. o melhor lugar para o que vocs dois precisam: um grande descanso, nada mais. Felizmente, no esto machucados ou doentes, apenas cansados. E assustados completou Francisco com um grande sorriso.

    De fato murmurou Andr gostaramos de saber onde estamos, que lugar este... Meu Deus! Onde estamos? E nossas famlias? O que fazemos aqui se no estamos doentes? O que est acontecendo conosco? Quem so vocs?

    Haviam chegado a uma ala de quartos. Francisco indicou um a cada um e respondeu:

    Tudo na hora certa. Esto exaustos. Por ora, descanso e relaxamento, um bom sono. Depois, uma

  • 69

    longa conversa comigo. Voltarei logo. Descansem bastante, meus filhos.

    J dentro do quarto, Augusto correu para a janela, abrindo-a de par em par. Ficou espantado com o tamanho, a beleza e a calma do que viu. Prdios perdendo-se de vista, todos brancos. Entre eles, jardins, gente de branco andando para todos os lados, ambulncias, atividade de uma colmia de abelhas diligentes. Teve certeza de que aquilo era um complexo hospitalar maior que todos que j tivera oportunidade de conhecer.

    Num dos jardins, logo abaixo de sua janela, pessoas passeavam, em grupos, conversando calmamente. Uns se amparavam em muletas, outros em enfermeiros. J outros andavam devagar, como se tivessem sado de uma cirurgia e estivessem em plena convalescena. Havia tranqilidade em todos os rostos e grupinhos se formavam, assentados em bancos ou na grama, sombra de imensas rvores hospitaleiras.

    Logo adiante, um colossal repuxo jorrava gua para cima, atirando-a nas alturas, bem alto mesmo, e soltando-a no

  • 70

    ar em cascatas lindas. Pessoas paravam para olhar e molhar as mos, encantadas.

    Havia muitas flores, de todos os tamanhos e cores. Algumas formavam lindas trepadeiras, subindo pelas rvores e se atirando em outras, formando balouantes alas floridas e multicoloridas.

    Este sim era um hospital digno de se ver, de se considerar como tal. Convidava ao repouso, ao relaxamento, convalescena e cura completa, pensou o novo internado embevecido.

    Duas simpticas velhinhas, de braos dados, passaram logo abaixo de sua janela e acenaram para ele, sorridentes. Retribuiu sorrindo. Notou que era a primeira vez que sorria. Sentia-se muito bem.

    Respirou fundo e mergulhou o olhar na distncia. Muito longe, a perder-se de vista, havia silhuetas de mais prdios. Calculou que deveria haver uma cidade, bastante longe do hospital para garantir a tranqilidade e a qualidade do tratamento dos doentes.

    Nunca havia visto uma casa de sade to cercada de jardins. Parecia um

  • 71

    bosque, um osis de paz! Local ideal! Pena que no ficaria ali por muito tempo, pois, a julgar pelo que dissera o chefe da expedio, no estava doente nem muito machucado. Um bom banho, um sono reparador e uma excelente refeio resolveriam o seu problema. Depois, localizar-se, telefonar para casa, contar a sua aventura, saber ao certo o que houve, se Esther estava bem, notcias do cunhado operado. Enfim, voltar ao normal. No agentava mais tanta emoo.

    Teve medo de ter um choque nervoso, por causa do que havia passado nos dias anteriores. Resolveu: procuraria um psiquiatra, talvez naquele hospital mesmo. Precisava se cuidar e acreditava que, depois de tudo, teria uma crise, no sabia bem de qu. Talvez de stress no ltimo ponto. Afinal, os ltimos dias ou as ltimas horas? tinham sido terrveis e completamente fora dos parmetros normais de seqestro, rapto ou coisa que o valha. Jamais esqueceria o local por onde andou, o medo, o desespero, o cansao e o susto. A falta de norte. E o horror de no saber o que havia acontecido. Que loucura!

  • 72

    Caiu pesadamente sobre a convidativa cama, larga, alva e macia. Antes de tudo, um sono. Estava exausto. De repente, desabava. Sim, talvez fosse o resultado de tantas aventuras inexplicveis.

    Quando acordou, ainda sonolento, no sabia dizer com certeza quanto tempo, dias ou horas dormiu. Mas aquele, sim, era um hospital modelo! Pois no que estava acordando limpo, arrumado, debaixo das colchas, sentindo-se alimentado e descansado? Incrvel! Por certo desmaiara de cansao, pois nem sentira quando os enfermeiros o arrumaram, lavaram, fizeram a barba olhe s, a barba tambm! e trocaram sua roupa.

    Espreguiou gostosamente e notou que havia um curativo na testa e outro na nuca. Mas no doam. E, se no doam, resolveu que esqueceria deles. Estava bom demais para pensar em machucados e curativos. De l de fora chegava a seus ouvidos o burburinho distante de enfermeiros, mdicos, ambulncias. Sentia mais do que ouvia. J as conversas

  • 73

    dos doentes no jardim, debaixo de sua janela, eram mais prximas e quase audveis. Concluiu que seu quarto deveria estar localizado no primeiro andar ou no trreo. Notou que no sentia dor, no sentia fome, no sentia incmodo algum. Sentia paz e um maravilhoso bem-estar. E o perfume das flores chegava s suas narinas como uma onda etrea.

    Pensou no vizinho. Como estaria o tal Andr que o ajudara no ltimo momento, no salvamento de Pedro? E Pedro? Ser que se sentia to bem quanto ele? Onde estaria o chefe da expedio, to simptico e de sorriso misterioso? Bom sujeito aquele! E curioso! quem teria avisado ao hospital que havia trs necessitados de socorro? Que loucos eram aqueles que avanaram nas redes? Tribo de ndios? Gozado: eles lembravam ndios, mas no eram ndios, tinha certeza. J vivera entre os ndios durante muito tempo, conhecia-os bem. O qu ou quem eram os estranhos seres de sexo indefinido que tentaram escalar com eles e no conseguiram? Decididamente, tinha muitas perguntas. Mas, antes de tudo, telefonar para Esther era imprescindvel.

  • 74

    Assentou-se na cama, pensando que a cabea ia rodar. Mas ela no rodou. Ao contrrio. Uma forte vontade de sair, conversar, olhar pela janela, se localizar, apossou-se de Augusto. Alm do mais, as nicas pessoas que conhecia eram Pedro e Andr. Urgia encontr-los, saber as impresses deles, se j haviam obtido alguma explicao.

    Uma enfermeira entrou, sorridente: Querendo levantar-se? J?! Estou me sentindo muito bem.

    Onde esto meus amigos? E o chefe da expedio? Que lugar este? H quanto tempo durmo? Que dia hoje? Algum pode me explicar o que est acontecendo comigo?

    Ela desatou em gostosa risada e completou:

    Bom dia! Calma! No o fim do mundo e no estamos em guerra, posso lhe garantir. Seus amigos esto em quartos exatamente iguais ao seu. Pedro ainda est um pouco tonto, mas ficar bem. Quanto a Andr, acabei de v-lo. Ele fez as mesmas perguntas, perguntou por voc. Est no quarto ao lado e podero se

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    visitar quando quiserem. Francisco, o chefe da expedio como voc diz, vir v-lo hoje ainda. E voc dormiu uma semana. Mais alguma pergunta?

    Ele passou as mos pela cabea, desconcertado. Colocou as pernas para fora da cama alta, balanando-as. Alisou os cabelos com as mos.

    Bom dia. Desculpe-me. Est tudo timo aqui, nunca vi local to bonito e nunca me senti to bem. Mas, voc compreende, no ? Como no estou doente e j me recuperei, preciso me localizar, tomar algumas providncias. J imaginou como deve estar a minha famlia? Pelo visto, estou sumido h tempos. No sei quanto vaguei, pois os bandidos me deixaram num local ermo, estranho e desconhecido. S aqui no hospital, estou a uma semana. Nossa! Devem estar desesperados me procurando. E preciso ver como foi a operao de Danilo. O mdico nos disse que o estado dele era muito grave. Quando eu ca, estava justamente atravessando a rua em frente ao hospital. Oh, meu Deus!

  • 76

    Calma! O mundo no vai acabar. Relaxe! Sua famlia j foi avisada. S no puderam vir aqui. Este hospital tem um rgido regulamento e os doentes no podem ter acompanhantes, para que a recuperao seja perfeita, no aconteam infeces e coisas assim. Todos compreenderam e no vieram visitar voc. Mas posso transmitir a eles seus recados e desejos. Como notou, este um sanatrio modelo, com resultados satisfatrios, e, embora voc no esteja passando mal, ter que seguir o regimento interno risca, tudo bem?

    No passou pela cabea de Augusto perguntar como eles souberam de sua famlia. Nem se lembrou que foi encontrado sem documentos ou algo que o identificasse; portanto, como poderiam saber de seus familiares?

    A moa continuou sorridente: Quanto a Danilo, ele realmente

    passou mal, sofreu um choque durante a cirurgia e uma parada cardaca muito demorada. Teve que ser imediatamente transferido de hospital, justamente para c, onde h mais recursos. Encontra-se

  • 77

    neste momento no CTI, mas amanh ir para o quarto, quando ento podero se ver. Ser timo para os dois.

    Augusto exultou. At que enfim algo normal, uma conversa que ele entendia. Havia algum mais, seu conhecido, que se encontrava em tratamento. Que timo! Felizmente, estava tudo se esclarecendo e acabando bem.

    A moa ajudou-o a levantar-se e assentar-se numa cadeira perto da janela. Ficou surpreso com a agilidade com que andou, mas no disse nada. Atribuiu ao descanso fsico prolongado.

    Agora, que est bem informado e mais tranqilo, sugiro que no faa excessos ou poder realmente ficar doente, pois passou por muita emoo. Quanto ao psiquiatra, voc j est sendo medicado. E Francisco, o homem que salvou voc, vir v-lo a qualquer momento. Est mais calmo agora?

    Claro. Este hospital mesmo fantstico! Onde ele se situa? Fora da cidade? Como que voc soube que eu queria um psiquiatra?!

  • 78

    Ns aqui sempre sabemos de tudo que os doentes precisam. No se preocupe, voc no ficar estressado nem guardar recordaes ruins da poca em que esteve perdido. Com o tempo, s ter boas lembranas e esquecer as coisas ruins. Quanto ao local, sim, estamos no campo, numa regio sem poluio e muito calma. O ar que voc est respirando agora puro, mais puro do que pode imaginar. Caso contrrio, os tratamentos no seriam perfeitos. Doentes e convalescentes precisam de paz. Agora descanse. Espere com pacincia, pois o mdico responsvel pelos que acordaram hoje deve estar chegando. Depois, poder visitar seus amigos. Andr est ansioso para v-lo. Ele tambm dormiu muito e est calmo. J teve as mesmas informaes e est decidido a descansar e colaborar. No est ferido ou doente. Logo, estaro na ativa, garanto. Quanto a Pedro, talvez demore um pouquinho, mas no tem nada de grave. Apenas ficou em estado de choque durante muito tempo. Levou um grande susto, no foi? Pobre Pedro? Ele muito impressionvel!

  • 79

    Ele quase morreu de medo, isto sim. Nossa! Como ficava de olhos arregalados olhando para mim, abobalhado! Coitado!

    Os dois riram e ela saiu, deixando-o respirando o ar puro da manh, assentado perto da janela, observando o vai-e-vem de fora, a fonte de guas claras e borbulhantes, as flores e jardins, os doentes e convalescentes, sentindo-se em paz.

  • 80

    O DESPERTAR DE DANILO

    E ento? Vamos passar para o quarto? Chega de ficar deitado, isolado. Que tal acabar com esta preguia brava e sair por a dando bom dia vida?

    Jaciara falava e ia tirando as ltimas ataduras do peito de Danilo.

    Como ? Como ? Vamos levantar desta cama? Mexa-se, vamos! Um dia maravilhoso o espera l fora!

    O moo, abaixando o queixo com cuidado e olhando o peito, falou preocupado:

    Mas, e o ps-operatrio? J posso me mexer? corao, vlvula...

    E da? Quer ficar morando num CTI? Aposto com voc que nem cicatriz tem mais... Viu s que recuperao a sua? Eu no lhe disse que podia confiar na equipe do hospital?

    Engraado, eu pensava que sair do CTI era uma operao delicada, com o doente inconsciente, sentindo-se mal, mscara de oxignio no rosto, soro no brao e coisas assim...

  • 81

    E . Em certos casos. Muito poucos, felizmente. No entanto, posso atend-lo. Se quiser, pode ficar de olhos bem fechados, gemendo e fingindo-se de tonto e eu vou empurrando a maca pelos corredores...

    Os dois riram e Jaciara explicou: Acontece que est num hospital

    onde tcnicas novas e avanadas so usadas e quase todos os remdios empregados de maneira diferente da que conhece. Posso at dizer que nem os remdios que usamos so seus conhecidos... Temos tratamentos to sofisticados que voc no acreditaria. Basta dizer que usamos os elementos da natureza, gua, ar, terra, minerais, tudo combinado sutilmente com energia pura. Nossos equipamentos so de primeira linha e os mtodos de cura totalmente diversos dos convencionais.

    ?! Medicina Alternativa? Homeopatia? Terapia chinesa? Massagens?

    . Pode dar o nome que quiser. Mas no bem isso. Sua operao foi realizada com tcnica pioneira em cardiologia. Prova que voc j est bem.

  • 82

    Prepare-se. Muitas surpresas o esperam ainda. Primeiro, na recuperao, no ficar recluso nem far exames constantemente. Muito menos usar medicao; parou com ela hoje. Alis, duvido que voc volte algum dia a um hospital. Logo, logo, poder andar, respirar ar puro nos jardins, conviver com os outros. E outras coisas mais. Muitas outras coisas mais, fique sabendo.

    Estou maravilhado! Marlia est me esperando no quarto?

    H, h... Ter algumas decepes tambm, explicveis, pequenas e sanveis, por sinal. E no se preocupe com elas; so mnimas e suportveis em vista das alegrias e do progresso que ter. No poder entrar em contato com a famlia ou qualquer pessoa de fora. Sabe como , no ? Voc foi tratado por um mtodo especial, como todos os enfermos daqui. Alis, o hospital especial. Nada pode comprometer sua recuperao, entendeu? Qualquer deslize poder prejudic-lo mais do que pode imaginar. E isto ns no queremos que acontea, no mesmo?

  • 83

    Est bem, est bem. Estou conformado, impressionado com suas explicaes e aberto a todas as recomendaes, contanto que eu sare. Mas com uma saudade imensa da famlia. Leva outro bilhete para eles?

    Claro. E vamos logo, deixe de preguia.

    Danilo passou para a cadeira de rodas com uma facilidade inacreditvel para um recm-operado do corao. No ficou tonto, nem indisposto. Decididamente, o tratamento era realmente maravilhoso! No entanto, abraou o prprio peito, assustado, acreditando que todo cuidado sempre pouco quando se trata de problema cardaco. Ser que se movimentara muito? E se a vlvula sasse do lugar? De repente, incomodava-o o fato de ter um objeto estranho dentro do corao. E logo dentro do corao, onde qualquer problema poderia acarretar a morte! Respirou fundo, fechou os olhos. Teria que aprender a conviver com a idia da vlvula. Sabia que no seria fcil, mas,

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    afinal, tudo estava dando certo. Cabia colaborar.

    A cadeira comeou a rodar mansamente pelos corredores. E Danilo a notar que aquele no era o hospital onde se internara. Olhou para Jaciara, confuso. Ela entendeu e foi logo explicando:

    Alberto contar os detalhes. Ele est esperando no quarto. Logo aps a operao, voc comeou a passar mal de verdade. Ficou inconsciente algumas horas. Cludio comunicou-se com Alberto e acharam melhor transferi-lo para c, onde havia mais recursos.

    E por que no me contaram isto antes?

    Estou contando agora. E as coisas devem ser contadas nas horas certas, para que no provoquem reaes desnecessrias ou desequilibrantes. Fique tranqilo: contaremos muitos detalhes mais sorriu. Voc ficar sabendo toda a histria da sua doena e da sua recuperao. Feliz com isso?

    Ele pareceu emburrado como uma criana de pirraa. Abraou-se mais ao prprio peito, falando baixinho:

  • 85

    Por favor, ande bem devagar e no deixe que a cadeira balance muito. Est vendo? Eu sabia! No era uma coisa to simples assim! Pobre papai! Ele tambm devia saber e no podia demonstrar, para me dar coragem! Oh, meu Deus! Eu quase morri! Era perigosssima a cirurgia! Ser que, durante o tempo em que fiquei inconsciente, eu respirei direito? um perigo faltar oxigenao no crebro! Que horror! Que medo horrvel eu sinto da morte! Voc nem pode imaginar. E agora? Quais as minhas chances? Ser que terei alguma recada? Responda com sinceridade, por favor: terei ou no recadas? Estou totalmente fora de perigo? Isto que eu tive repete? O meu corao est no lugar certo? Tem certeza?

    A moa no se agentava mais de vontade de rir do medroso e choro paciente:

    Calma l! Que eu saiba, seu corao nunca saiu do lugar, est bem, inteiro, e no ter recada, a no ser que desobedea s instrues do tratamento. Relaxe e solte logo estes braos. Olha, desculpe-me, mas est muito engraado.

  • 86

    ? porque no com voc. J encarou a morte alguma vez para saber? Oh, meu Deus do cu! lamuriava-se o apavorado doente, enquanto apertava o peito com as duas mos, cada vez com mais fora.

    Nem olhou mais para os largos e brancos corredores, cheios de plantas, agradveis sofs e gente sorridente indo e vindo, alguns olhando curiosos para ele, todo abraado e enrolado em si mesmo, encolhido. Nada ali se parecia com um hospital, mas ele no notou, os olhos apertados, fechados como se estivessem colados.

    De repente, Danilo pareceu se lembrar de algo. Deu um pulo, que fez a moa parar de rodar a cadeira e olhar assustada para ele. Tateou o pulso esquerdo, horrorizado. Procurou o pulso. No o encontrou. Deu um grito desesperado. A enfermeira acionou os freios da cadeira, para que ela se mantivesse firme e no girasse. Passou frente do paciente, segurando-o pelos ombros, assustada.

  • 87

    O meu pulso! Ele parou! No o encontro! Estou morrendo! Meu peito est doendo! gritava o doente inconformado e em pnico.

    Calma! No grite. Aquiete-se, seno voc morre mesmo falou com energia.

    Jaciara postou-se atrs dele e colocou as duas mos acima das suas orelhas, bem nas tmporas. Apertou levemente sua cabea e ficou imvel durante alguns minutos. Depois, voltou frente, segurou-o novamente pelos ombros e, falando com muita clareza, firme e pausadamente, explicou que o tratamento a que ele estava sendo submetido provocava esta sensao de ausncia de pulso, o que no queria dizer que o pulso estava parado mesmo. Imprescindvel era que, aps uma cirurgia pesada como a que ele fez, o doente permanecesse calmo, em repouso e em paz com a mente, seno poderia ter um abalo e passar muito mal. Com carinho e firmeza, disse que ele no deveria ter medo, pois o pior j havia passado. Que ele confiasse em quem o tratava e tudo daria certo. Ela queria um

  • 88

    crdito de confiana dele para o pessoal que o tratava.

    E assim se foram pelos corredores, Danilo ora acalmando-se um pouco, ora com os braos cruzados apertando o peito, parecendo um caramujo de to enrolado em si mesmo. Jaciara calou-se e fez que no notou.

    Na porta do quarto esperava-o Alberto, que perguntou enfermeira:

    O que est havendo com ele, todo encolhido, suado e de olhos fechados?

    Morto de medo respondeu ela rindo. Est segurando o corao, com medo de que ele saia pela boca completou, acariciando ternamente os cabelos do doente, que revidou, abrindo os olhos:

    Muito engraadinhos, vocs dois. Estou com medo mesmo, e da? Alis, morto de medo.

    E da completou Alberto que est se comportando tolamente. Olhe s: no CTI, na primeira e mais difcil fase da recuperao, voc estava leve, solto, feliz, conversando e brincando alegre. Agora, est parecendo um velho resmungo,

  • 89

    encolhido dentro de um desconfortvel ovo. Ora, ora! Vamos reagir, meu amigo! O perigo de morrer que voc teme j passou, se que houve perigo e se que morte existe do modo como voc pensa.

    Jaciara acariciou novamente os cabelos dourados de Danilo, dizendo que voltaria logo e o deixaria aos cuidados de Alberto.

    O mdico fez umas recomendaes enfermeira e, calma e pacientemente, foi ajudar Danilo a sair da cadeira e se deitar na cama, pois ele se negou a ficar assentado na poltrona, mesmo com o outro dizendo que tudo estava bem e no precisava mais ficar deitado. Repetia sem cessar que sabia que no estava bem, que a vlvula doa muito, repuxando o peito, que parecia ter febre, a boca estava seca e um grande enjo se apossava dele. E, para completar, no encontrava o prprio pulso, sinal de alarme.

    Alberto acomodou-o e sentou-se nos ps da cama, perto do alarmado doente, agora lvido e respirando com dificuldade:

    Sabe que voc o doente mais assustado que j vi? Portanto, vamos

  • 90

    comear logo a tranqiliz-lo e esclarecer algumas dvidas, seno, agora mesmo voc vai comear a passar muito mal mesmo, de verdade. Primeira: tire logo as mos do peito e pare de apert-lo. E respire! Voc no tem vlvula nenhuma!

    Danilo arregalou os olhos. Alberto continuou:

    No foi preciso coloc-la. Conseguimos recuperar a sua. E ento: a vlvula continua doendo?

    Desapontado, Danilo relaxou um pouco, permitindo que Alberto voltasse carga total:

    Viu s o que uma mente descontrolada e desgovernada, sem freios, capaz de fazer? Voc j estava at sentindo dor na vlvula... E sei que no mentiu. Sentia mesmo. No de hoje que se diz que a mente a dona da casa. Se todos se conscientizassem disso e procurassem melhorar os pensamentos, os desejos e sonhos ocultos, o mundo mental ficaria bem mais limpo e muitas doenas nem sequer aconteceriam. Alis, doena esperada e recomendada quase nunca, ou nunca, acontece. J reparou nisso? Alm

  • 91

    do mais, as coisas que colocamos na cabea e batemos e rebatemos dia e noite em cima delas, nem sempre so passveis de acontecer ou, o que pior, atramo-las pelo pensamento firme nelas e a a coisa fica sria... Homem: regula a tua mente, controla-a e a chave da felicidade j estar mais acessvel!

    Envergonhado, o rapaz replicou: A dor no era na vlvula. Era no

    corao... E por qu? Vocs o cortaram, ele est

    sensvel, inchando... Quem cortou seu corao? S se

    for alguma desiluso amorosa, porque bisturi mesmo...

    No?!... No... ?... . Alberto ria a mais no poder da

    situao do outro: Cortar o corao, ficar com ele

    inchado, dolorido, que loucura ps na cabea! No toa que estava todo

  • 92

    encolhido, bobo e medroso! D para assustar mesmo. Saiba que aqui no hospital e em lugar nenhum que eu saiba, onde se pratica a mesma medicina que praticamos em nossa rede de casas de sade necessidade de cortar o corao em pedaos e pedacinhos para reparar uma vlvula. Muito bem: resolvida esta parte, j sei o que vai dizer agora: que a cicatriz est doendo.

    ... E se ela j tiver sumido? Ou se

    nunca tiver existido? O medroso Danilo no se deixou

    vencer: Impossvel. Ela imensa. Sei que,

    para ter acesso ao corao, vocs tiveram que serrar as minhas costelas, o osso externo foi dividido ao meio e separado com um alicate prprio. Depois, foi todo preso com grampos de ao de calibre grosso... Alis, grampos que incomodam muito, atrapalham os meus movimentos e vo doer todas as vezes que mudar a lua. Principalmente na lua cheia. Minha me diz que muito freqente a lua influenciar neste tipo de dor. Posso ser medroso, mas

  • 93

    no sou burro nem analfabeto, no Alberto? Quando soube que estava doente, li tudo que chegou s minhas mos a respeito.

    Ai, meu Deus do cu... Por acaso voc escritor de fico tambm? Onde que tirou esta histria toda, de arrepiar? Por favor, olhe para o seu peito, para a cicatriz em especial.

    Danilo abriu a camisa do pijama com todo cuidado e baixou os olhos devagar; tentando no prejudicar a cirurgia. Os cabelos do peito j haviam crescido novamente, notou. Somente altura do mamilo esquerdo, depois de muito procurar e passar as mos, encontrou uma marca pequena, de cerca de um centmetro, que nem pontos tinha. Estava coberta com um esparadrapo transparente. Ele olhou para o mdico, com os olhos arregalados.

    Alberto se divertia: . Voc escutou, mas no quis

    ouvir. Jaciara contou muitas vezes para voc que neste hospital tudo diferente e avanado. As tcnicas cirrgicas mais ainda. Que que acha agora da sua

  • 94

    imensa cicatriz, costelas quebradas, ganchos de metal e no sei qu mais? Para no ficar muito envergonhado, posso at dizer que talvez eu disse talvez o seu peito estivesse um pouco comprido e dolorido, pois voc o apertava tanto e continha to desesperadamente a respirao quando chegou aqui, que dava a impresso de estar todo amarrado e apertado... Numa camisa de fora mental, digamos assim.

    Danilo era o prprio retrato do desaponto. Relaxou mais na cama. Agora, sentia-se o oposto: por que ficara no CTI, o que estava fazendo ali se nada era to grave?

    Ento, Alberto? Deixa-me ir embora, rapaz... Vamos l... O que que vou ficar fazendo aqui? Cuidando disto? e mostrava o pequeno ponto perto do mamilo.

    Cuidando disto, sim senhor! Ora bolas! Uma hora voc aumenta demais as coisas, outra hora acaba com a importncia delas. Calma l! Voc esteve doente esteve, ouviu? precisou realmente de um tratamento ainda

  • 95

    desconhecido para voc, seu organismo reagiu bem e pronto. Agora, vamos consolidar a cura.

    Mdico adora esta conversa de consolidar a cura. Vai me encher de remdios, fisioterapia, etc.

    Acertou em uma pequena parte... Como Jaciara explicou, temos regulamentos aqui. E ter de segui-los. Logo, logo, estar liberado, prometo. Cumprir um programa de restabelecimento que no ser nada desagradvel. No ter limitao alguma, ter companhia e se sentir bem. Um conselho meu: permita-se ser feliz e gostar de voc. Inclusive, tenho uma notcia boa: aqui perto, ao lado mesmo, est internado um amigo seu. Poder encontr-lo tarde e quantas vezes quiser. Ele tambm est se recuperando bem e vai receber as mesmas recomendaes que voc est recebendo.

    E quem ? Augusto. Augusto, o meu cunhado?! Meu

    Deus, o que houve com ele? Esther est com ele?

  • 96

    J disse: as regras valem para todos. Nada de visitas, familiares ou no. Nossos mtodos englobam recuperao total, fsica e psquica. Qualquer fator externo s poder atrapalhar. E agora, vamos fazer um rpido relaxamento, tudo bem? Tentaremos tirar as minhocas que colocou dentro da cabea. E, limpando seu campo mental, estaremos iniciando a segunda fase da sua cura. Vai aprender, de hoje em diante, a se dominar, a respirar, perder o medo e ganhar segurana. Vamos l! Estique-se na cama, abra braos e pernas e solte-os. Feche os olhos e s pense ou faa o que eu mandar voc pensar ou fazer. muito importante que me obedea.

    Danilo obedeceu. Alberto dirigiu-se a um interfone,

    falou algo baixinho. Msica suave de harpa e luz azul inundaram o quarto.

    O mdico postou-se de p, do lado esquerdo do doente. Comeou ento a falar, com voz pausada e firme, olhando-o fixamente:

    Sinta-se bem e em paz. Relaxe todos os msculos do corpo, no pense.

  • 97

    Esvazie seus pensamentos. Tente colocar em sua mente apenas paz, a msica que ouve e a minha voz.

    Danilo arrumou-se melhor na cama. Espalmou as mos e soltou melhor os membros, procurando relaxar.

    Isto mesmo. Ago