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1 A MEMÓRIA DO IMPÉRIO NO BRASIL E A CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO NA ÁFRICA: CONTINUIDADES E RUPTURAS. ANA LÚCIA LANA NEMI/UNIFESP O século XIX é normalmente apontado como o século da desorientação na Península Ibérica, aquele momento no qual Portugal e Espanha teriam que construir o edifício de um Novo Regime sob os escombros das ondas revolucionárias e dos impérios que se perdiam e, ainda, frente ao enorme poderio econômico e político que as nações vizinhas haviam construído ao longo da primeira época moderna. Esse é o século de consecução da política imperialista que, se ganhou contornos institucionais com as Conferências de Berlim entre 1884 e 1885 1 , vinha já se formatando por meio de uma ação política que articulava nacionalismo, cientificismo e desenvolvimento industrial e tecnológico especialmente na Inglaterra, na França e na Alemanha, embora este último país tenha definido seus conteúdos e práticas imperialistas com maior clareza após a unificação em 1871. No âmbito da pesquisa em curso destaquei as disputas entre Portugal e a Inglaterra pelas terras do Moçambique, nas quais era forte o poder africano do líder Gungunhana 2 . Tal recorte permite abordar oposições caras à historiografia que trabalha com a construção da memória dos impérios ibéricos: a existência de povos sem História e povos com História, de povos modernos e povos arcaicos ou “atrasados”. Imperialismo, nação e História no século XIX europeu. As expedições científicas da primeira metade do século XIX formaram um corpo de especialistas, funcionários e militares que reconfiguraram a concepção civilizatória de cruzada cristã que caracterizou boa parte da ação colonizadora da primeira modernidade. Desenvolveu-se um trabalho de conhecimento, de levantamento de dados acerca da vida das diferentes populações não européias e ditas “arcaicas”, assim como de mapeamento geográfico e social das áreas desconhecidas que, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, ganhou forte influxo social-darwinista. As pesquisas sobre homens, 1 Hannah Arendt. Os totalitarismos. S. P.: Cia das Letras, 1989. 2 A escritura desse pequeno texto deve muito às sugestões das professoras de História da África, Marina de Mello e Souza e Maria Cristina Wissenbach, que ouviram com atenção e carinho a primeira apresentação e me indicaram leituras que ajudaram a compreender melhor o Moçambique e as relações de Eça de Queiroz com o continente africano. Os resultados, claro está, são apenas caminhos meus...

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A MEMÓRIA DO IMPÉRIO NO BRASIL E A CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO NA ÁFRICA: CONTINUIDADES E RUPTURAS.

ANA LÚCIA LANA NEMI/UNIFESP

O século XIX é normalmente apontado como o século da desorientação na

Península Ibérica, aquele momento no qual Portugal e Espanha teriam que construir o

edifício de um Novo Regime sob os escombros das ondas revolucionárias e dos impérios

que se perdiam e, ainda, frente ao enorme poderio econômico e político que as nações

vizinhas haviam construído ao longo da primeira época moderna. Esse é o século de

consecução da política imperialista que, se ganhou contornos institucionais com as

Conferências de Berlim entre 1884 e 18851, vinha já se formatando por meio de uma ação

política que articulava nacionalismo, cientificismo e desenvolvimento industrial e

tecnológico especialmente na Inglaterra, na França e na Alemanha, embora este último país

tenha definido seus conteúdos e práticas imperialistas com maior clareza após a unificação

em 1871. No âmbito da pesquisa em curso destaquei as disputas entre Portugal e a

Inglaterra pelas terras do Moçambique, nas quais era forte o poder africano do líder

Gungunhana2. Tal recorte permite abordar oposições caras à historiografia que trabalha

com a construção da memória dos impérios ibéricos: a existência de povos sem História e

povos com História, de povos modernos e povos arcaicos ou “atrasados”.

Imperialismo, nação e História no século XIX europeu.

As expedições científicas da primeira metade do século XIX formaram um corpo de

especialistas, funcionários e militares que reconfiguraram a concepção civilizatória de

cruzada cristã que caracterizou boa parte da ação colonizadora da primeira modernidade.

Desenvolveu-se um trabalho de conhecimento, de levantamento de dados acerca da vida

das diferentes populações não européias e ditas “arcaicas”, assim como de mapeamento

geográfico e social das áreas desconhecidas que, especialmente a partir da segunda metade

do século XIX, ganhou forte influxo social-darwinista. As pesquisas sobre homens, 1 Hannah Arendt. Os totalitarismos. S. P.: Cia das Letras, 1989. 2 A escritura desse pequeno texto deve muito às sugestões das professoras de História da África, Marina de Mello e Souza e Maria Cristina Wissenbach, que ouviram com atenção e carinho a primeira apresentação e me indicaram leituras que ajudaram a compreender melhor o Moçambique e as relações de Eça de Queiroz com o continente africano. Os resultados, claro está, são apenas caminhos meus...

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riquezas e costumes, além de ampliar as possibilidades de exploração econômica

disponíveis entre as nações de capitalismo mais avançado sobre os tais povos arcaicos,

indicavam, também, novos conteúdos para o nacionalismo no âmbito da Europa ocidental.3

Após 1870 os movimentos nacionalistas europeus tendiam a subsumir as diferenças sociais

de classe em um único todo orgânico e a apontar a decadência como única possibilidade

diante da urgente expansão nacional. A divulgada idéia de pertencimento natural a uma

comunidade de língua, sangue e espírito trazia consigo, também, a noção de um dever

comum a ser cumprido, tanto no que dizia respeito aos ditos povos arcaicos quanto em

relação às nações vizinhas que também pretendiam a expansão à decadência.

A conjuntura das unificações italiana e alemã em 1871 contribuiu para avivar

sentimentos de patriotismo que se manifestavam em muitos espaços da vida pública. A

organização de escolas públicas, serviço militar, justiça e polícia para manutenção da

ordem, indicavam uma ação dos poderes públicos no sentido de uniformizar modos de vida

e tomar providências frente à ação política das “multidões”. A História teve, nesse

contexto, importância fundamental na elaboração de uma narrativa da vivência coletiva que

legitimasse aquela noção de pertencimento natural e indicasse os caminhos do

fortalecimento nacional. Ernest Renan, em texto clássico de 18824, afirmava a nação como

vontade coletiva de realização a partir de uma cultura partilhada cujo fundamento

encontrava-se na História. Há aqui um forte argumento acerca da singularidade nacional

que estaria no oposto das teses universalizantes que, em meio às revoluções, diziam serem

todos os homens livres e iguais em direitos. No mesmo sentido, o partido político saído das

tertúlias e das barricadas, aos poucos incorporava muitos adeptos e ganhava estilo de

organização diferenciado: alguns passariam a conduzir muitos deixando os velhos debates

para traz e anunciando o “movimento” que viria a caracterizar o século XX e que, segundo

Richard Sennett, indicaria o “declínio do homem público”.5

Mas os ecos da república de caráter universal ainda pautavam a ação de socialistas e

anarquistas, uma dissonância que incomodava aos mais nacionalistas, especialmente

3 Ernest Gelner. Nacionalismo e democracia. Brasília: Editora Unb, 1981. Eric Hobsbawm. A questão nacional – nações e nacionalismo desde 1870. Lisboa: Terramar, 1998. Cecília Azevedo, “Identidades compartilhadas: a identidade nacional em questão”, In: M. Abreu e R. Sohiet. Ensino de História – conceitos, temáticas e metodologia. R. J.: Casa da Palavra, 2003. Benedict Anderson. Nação e consciência nacional. S. P.: Ática, 1989. 4 Ernest Renan, Qu´est-ce qu´ une nation?. Angleterre: Pocket, 1992. 5 Richard Sennett. O declínio do homem público—As tiranias da intimidade. S. P.: Cia das Letras, 1988.

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aqueles para quem era preciso ordem interna para efetivar a expansão externa. Diagnósticos

de higienistas e humanistas, no entanto, deixavam evidente a questão social que precisava

ser enfrentada: a nação não seria sadia com “hordas irracionais de insatisfeitos”. Era preciso

reformar a vida social e política para garantir a propriedade privada e a ordem dentro da

nação, tal era a intenção das elites econômicas e políticas européias quando confrontadas

com os movimentos sociais. Assim, a extensão gradual do voto e do direito de associação e

a melhoria das condições de saúde e alimentação6 aumentaram a expectativa de vida de

muitos europeus, embora os salários permanecessem baixos e parte dos problemas sociais

fosse resolvida com a forte imigração de áreas mais pobres como o norte de Portugal, o sul

da Itália e o da Alemanha, além do deslocamento de mão-de-obra para as novas áreas

coloniais. A imigração oferecia boa solução para o problema denominado pelos ingleses de

“resíduo” e pelos franceses de “multidões” em cena.

É nesse contexto finisecular de reordenamento social e político, numa Europa que

fora convulsionada pelos movimentos revolucionários de 1830, 1848 e 1870, que a

Alemanha bismarckiana pretendeu arbitrar a paz armada européia ao mesmo tempo em que

investia pesadamente num processo de industrialização que incluía medidas de legislação

comercial, obras públicas, armamento e fortalecimento da moeda federal. Ações de política

econômica que, no mais das vezes e quando os níveis internos de acumulação permitiam,

também pautavam a ação das elites políticas e econômicas das outras nações européias.

Desenvolvimento industrial e tecnológico aliado aos efeitos da crise de 1873

reforçaram a tese de que a força da nação estava na sua capacidade de expansão. Alemanha,

França e Inglaterra reinventaram o protecionismo para garantir os fluxos dos seus produtos

e o abastecimento interno com os produtos vindos de suas áreas coloniais e de influência.

Dessa forma, a economia capitalista, submetida à lei da concentração caminhava para dar

mais um passo no sentido da unificação do mercado mundial. Os efeitos da revolução

tecnológica aceleraram os processos de produção e as possibilidades de comunicação e

comércio entre áreas distantes. Os novos empreendimentos exigiam investimentos de vulto

e os bancos tornaram-se os grandes aliados de Estados e empresas. A cartelização tornou-se

evidente assim como uma intensificação na exploração de recursos de áreas coloniais que

6 Conforme afirmava Jules Ferry diante da fundação da Terceira República francesa e após a experiência da Comuna de Paris, a Primeira República teria dado terra aos franceses, a Segunda teria oferecido o sufrágio e a Terceira, o saber.

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passaram a receber equipamentos, novas populações habitantes além de capital excedente.

As Companhias privadas, entre as quais destacaram-se as alemãs e britânicas, tiveram papel

relevante: eram empresas que abriam caminho para a nação imperialista gozando de

privilégios junto ao seu Estado de origem. Elas podam organizar a exploração por meio de

plantações e mineração e por meio do recrutamento da mão-de-obra autóctone, formavam e

controlavam entrepostos comerciais e organizavam o investimento e a construção de

grandes obras. Os conflitos seriam inevitáveis. Ao Estado-nação cabia evitar que a

concorrência internacional prejudicasse as energias nacionais e aqui se delineavam duas de

suas precípuas tarefas: legitimar vias de escoamento conquistadas pelas companhias de

comércio privadas para a produção que aumentava cada vez mais, e aumentar aquilo que os

discursos oficiais denominavam de áreas de influência humanitária e civilizatória. E é nessa

lógica dita civilizatória que a noção de raça foi definitivamente incorporada aos

nacionalismos do século XIX: ela legitimava narrativas de História pátria que apontavam

tanto a superioridade da raça, em nações em franco desenvolvimento imperialista como

tipifica a ação de Cecil Rhodes no centro-sul do continente africano, quanto a decadência,

em nações que se viam atropeladas pelo furacão imperialista como tipifica o discurso de

Antero de Quental7 sobre a decadência dos povos peninsulares em 1871. As diferenças

raciais, nessa lógica, explicariam os processos civilizatórios vencedores e aqueles falhados.

Nas Conferências de Berlim, das quais participaram 14 Estados, os debates

concentraram-se exatamente nos conteúdos de legitimação das conquistas na África: a

liberdade de navegação nos rios africanos, determinação que facilitaria o acesso a áreas

ainda livres de influência européia, garantiria a ocupação efetiva dos territórios. Tal debate

indica que a comunidade internacional já não reconhecia aquilo que os portugueses

consideravam seus “direitos históricos”, o principal critério para França, Inglaterra e

Alemanha era o da “ocupação efetiva” e neste os fatores que se observavam eram as

influências militar, comercial e cultural ao contrário da antiguidade da presença nas áreas

em litígio. Portugal foi, assim, apanhado no turbilhão da expansão imperialista, no

7 Antero de Quental. Causas da decadência dos povos peninsulares, Lisboa: Ulmeiro, 1987. Em suas palavras: “Logo na época romana aparecem os caracteres essenciais da raça peninsular: espírito de independência local, e originalidade do génio inventivo. (...) Foi uma onda que, levantada aqui, cresceu até ir rebentar nas praias do Novo mundo. (...) Nunca povo algum absorveu tantos tesouros, ficando ao mesmo tampo tão pobre! (...) Portugueses e Espanhóis, que destinos demos às prodigiosas riquezas extorquidas aos povos estrangeiros? Respondam a nossa indústria perdida, o comércio arruinado, a população diminuída, a agricultura decadente (...).” (pp. 14, 19, 24 e 56).

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momento mesmo em que discutia a viabilidade de um novo Brasil na África como caminho

para a regeneração nacional. 8 A memória do que fora o Império no Brasil, marcada pelo

controle da circulação de produtos coloniais no mercado mundial e pelo uso de moeda

metropolitana nas transações comerciais, seria argumento central na execução das novas

políticas que o Império português formataria para enfrentar-se com as nações imperialistas.9

Portugal e as possibilidades do Império na África. As províncias Ultramarinas, como eram chamadas as áreas africanas nas quais

Portugal mantinha feitorias e uma fraca ocupação militar e comercial, eram onerosas para a

fazenda pública. Os capitais disponíveis para investimento público e privado eram escassos.

Além disso, o vetor religioso, fundamental no processo de ocupação africana no século

XIX, encontrava-se enfraquecido em Portugal em função do forte componente anti-clerical

das rebeliões liberais. Diante dessas dificuldades internas, Portugal buscava um caminho

diplomático na Europa e, ao mesmo tempo, negociava com os povos africanos para garantir

a soberania efetiva sobre as áreas que considerava historicamente pertencentes ao Ultramar

português. As disputas entre as grandes potências, assim como o interesse de algumas

lideranças africanas em manter o domínio sobre suas populações, poderia indicar um

caminho para a permanência portuguesa no continente africano. Foi assim em 1886 quando,

após as Conferências de Berlim, uma Convenção Luso-franco-alemã deu origem ao “Mapa

cor-de-rosa” que unia Angola e Moçambique tornando fronteiras oficiais o caminho da

Expedição que Serpa Pinto realizara entre 1877 e 1879. A Alemanha unia-se, assim, a

Portugal com a intenção clara de evitar o avanço inglês sobre o referido território.

8 Na abertura do seu Portugal Contemporâneo, em 1894, indagava-se Oliveira Martins: “Por outro lado também, já hoje a África Ocidental, com seu rápido desenvolvimento econômico, entra por muito na ponderação da balança portuguesa. Se não fossem as exportações africanas, já agora estas linhas, que vou traçando com amargura, seriam talvez o eco da anarquia desaçaimada. Salvar-nos-á, no século XIX, Angola, como nos salvou o Brasil no século XVIII? Caber-nos-á a fortuna a tempo de prevenirmos o esfacelamento da fome? Virá antes que nos assaltem complicações graves de ordem externa?” Cf. OLIVEIRA MARTINS, Portugal Contemporâneo, Porto: Lello & Irmão Editores, 1981, vol I, p. 14. 9 Não cabe, no escopo desse texto, aprofundar os significados e conteúdos que o termo “Império” pode guardar. Esclareço, no entanto, que o termo Império aqui se refere ao conjunto formado por um centro que formula políticas de exploração econômica para áreas de controle direto ou influência indireta, mesmo quando tais políticas implicam em negociações e transformações recíprocas entre centro e periferias. Imperialismo, por sua vez, é usado conforme sugestão dos estudos de Hannah Arendt e reporta-se à política econômica desenvolvida ao longo do século XIX quando os novos Impérios tinham seus núcleos centrais nos Estados-nação que, então, formavam-se, fortaleciam-se e expandiam-se.

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Fundador de uma Companhia de Comércio na década de 80 do século XIX, o inglês

Cecil Rhodes recebera uma carta de privilégio Real para ocupar e governar parte das áreas

entre Angola e Moçambique que viriam a ser as duas Rodésias e pretendia, dessa forma,

neutralizar as influências alemã e portuguesa na África do centro para o sul. Sua ação

política, militar e comercial na região facilitaria a execução do projeto inglês de construir

uma grande área de soberania inglesa na África unindo o Cairo ao Cabo.

No caminho desenhado por Serpa Pinto, e seguido por outras expedições lusas ao

longo dos anos 80, os conflitos com as populações autóctones e com outras potências

européias interessadas nas áreas, especialmente a Inglaterra, eram grandes. Os portugueses

entraram em confronto direto com populações locais que os ingleses consideravam suas

aliadas e esse fato deu margem para que a Inglaterra remetesse a Portugal o Ultimatum

inglês de 1890:

“O Governo de Sua Majestade Britânica não pode dar como satisfatórias ou suficientes as seguranças dadas pelo Governo Português ... O que o Governo de Sua Majestade deseja e em que mais insiste é no seguinte: que se enviem ao Governador de Moçambique instruções telegráficas imediatas para que todas e quaisquer forças militares portuguesas no Chire e no País dos Macalolos e Machonas se retirem. O Governo de Sua majestade entende que sem isto todas as seguranças dadas pelo Governo Português são ilusórias.

Mr. Petre ver-se-á obrigado á vista das suas instruções a deixar imediatamente Lisboa com todos os membros de sua legação se uma resposta satisfatória à precedente intimação não for por ele recebida esta tarde; e o navio de Sua Majestade Enchantress está em Vigo esperando as suas ordens.” (Legação britânica, 11 de Janeiro de 1890)10

Segundo Valentim Alexandre11, o Ultimatum inglês acirrou um movimento

nacionalista radical que já vinha se manifestando desde as ações de Andrade Corvo como

ministro do Ultramar quase duas décadas antes. A interpretação deste ministro para as

possibilidades de um novo Brasil na África era frontalmente oposta aos conteúdos do

nacionalismo capitaneado pelo nascente e crescente movimento republicano português. A

maior preocupação de Andrade Corvo era manter os vínculos com a Inglaterra diante da

10 Citado por Nuno Severiano Teixeira. O Ultimatum inglês – Política externa e política interna no Portugal de 1890. Lisboa: Alfa, 1990, p. 60-61. 11 Valentim Alexandre. Velho Brasil, novas Áfricas – Portugal e o Império (1808-1975). Porto: Afrontamento, 2000.

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evidente expansão do poderio alemão após as guerras de 1870. Conforme afirmava em

1870:

“As tradições da nossa política e os importantes e valiosos interesses que nos unem à Inglaterra são poderosas razões para que não deixemos afrouxar os vínculos de aliança que nos unem àquela grande potência. (...) Continua a guerra. Os exércitos alemães preparam-se para arrasar Paris, ou para entregar aos horrores da fome a sua imensa população. (...) Da guerra que destruiu um império, sairá armado, forte, vitorioso outro império. As forças da Europa sofreram uma enorme deslocação. O que até hoje se considerava, ou antes, se chamava equilíbrio, desapareceu. Passado o grande cataclismo, a Europa tomará uma nova forma: mas, se não se apoiar sobre princípios justos, sobre um verdadeiro direito internacional, será o novo equilíbrio tão instável e tão efêmero, como todos os que o precederam. Ao formar-se, o império alemão levantará a grave e perigosa questão das raças. A doutrina traduzir-se-á em fato: e daí poderá vir ao mundo civilizado uma profunda transformação.” 12

A ascensão do Império alemão e o seu evidente avanço sobre a África após as guerras de

unificação colocavam para Portugal a urgente questão da redefinição dos caminhos do

colonialismo português. Andrade Corvo sabia da insuficiência dos capitais disponíveis em

Portugal, mesmo com o fim do tráfico que, em tese, liberaria capitais e energias para outras

atividades. Era preciso abrir rotas de comércio no interior das áreas coloniais africanas e

reconverter atividades escravistas em atividades produtivas e, para isso, eram necessários

capitais e gentes. Os capitais mostravam-se insuficientes e as gentes de Portugal preferiam

imigrar para o Brasil à África. Por conta dessas insuficiências que, como ministro do

Ultramar, Andrade Corvo buscou acordos com a Inglaterra. Sua idéia central era uma

política de abertura do império ao exterior associando Portugal às demais nações da Europa

na tarefa de “civilizar” a África. Para isso, no seu entender, e de acordo com as idéias

liberais e iluministas das quais proclamava-se herdeiro, urgia diminuir barreiras

alfandegárias protecionistas que impediam o acesso ao mercado colonial e recorrer aos

capitais estrangeiros que poderiam fomentar a produção. Daqui os três pontos articuladores

do seu projeto para as províncias do Ultramar: expansionismo moderado por meio de uma

aliança com as populações indígenas que colocasse termo às formas de opressão como o

12 João de Andrade Corvo. Perigos – Portugal na Europa e no mundo. Porto: Fronteiras do Caos, 2005, pp. 217, 219 e 220.

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tráfico de escravos, a escravidão e qualquer outra forma de trabalho compulsório; a busca

de uma vida democrática moderna nas áreas coloniais aproveitando-se as instituições locais

tradicionais; e, por fim, a construção de ferrovias como elementos de catalisação de

atividades produtivas a serem implementadas por meio de “expedições de obras públicas”.

O ministro inverteu, assim, a lógica imperialista das últimas décadas do século XIX que

sugeria o protecionismo dos mercados internos e dos mercados coloniais de acordo com os

interesses nacionais.

A ação política de Andrade Corvo efetivou o fim do trabalho servil no Ultramar a

partir de 1875 e deu início às negociações do Tratado de Lourenço Marques a partir de

1879. Com esse Tratado o ministro pretendia dar início à construção de uma ferrovia entre

o porto de Lourenço Marques, na costa sul do Índico africano, e o Transvaal, território da

República Bôer, mediante concessão à Inglaterra de vantagens de ordem mercantil e

militar. As tropas poderiam combater com maior sucesso os grupos Zulus irredentos e as

facilidades mercantis garantiriam os acordos econômicos entre Portugal e a Inglaterra na

exploração dos recursos coloniais. O Tratado, porém, nunca foi ratificado pelas cortes

portuguesas que o acusavam de disponibilizar recursos portugueses do Ultramar para a

Inglaterra. A charge de Rafael Bordalo Pinheiro publicada em O António Maria de 6 de

Março de 188113 bem indica os ânimos portugueses frente ao projeto de Andrade Corvo

para as províncias do Ultramar: o ministro é retratado como um corvo e o Tratado como

uma forca na qual se imolam os portugueses...

13 A charge encontra-se digitalizada no Museu Bordalo Pinheiro de Lisboa, Portugal. O António Maria foi um semanário editado por Bordalo juntamente com Ramalho Ortigão após a volta do caricaturista do Brasil. O semanário teve duas épocas: 1879-1885 e 1891-1898. Com José do Patrocínio, vale lembrar, na corte brasílica, Bordalo editou um semanário anti-escravista entre os anos de 1878 e 1879...

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A reação à proposta do Tratado de Lourenço Marques, evidente em vários setores

sociais e não apenas entre as elites políticas diretamente envolvidas no debate trazido às

cortes, trazia consigo forte ressentimento face ao que se escrevia sobre Portugal na

imprensa estrangeira da Europa e do centro-sul da África14. As Companhias de Comércio

européias que atuavam na região, fossem inglesas, alemãs ou bôeres, destacavam com

freqüência o protecionismo tradicional de Portugal na administração das colônias, sua

leniência com o tráfico de escravos mesmo após o fim do trabalho servil por lei, além da

sua incapacidade para assegurar o desenvolvimento do comércio e da colonização da

África. “Os jornais do Cabo e a imprensa inglesa, que era invariavelmente apresentada

para consumo interno como manipulada por Cecil Rhodes, chegavam a escrever que

Portugal era uma vergonha para a raça branca, incapaz de se impor perante os poderes

africanos, donde se concluía que os seus territórios tinham de ser administrados por quem

soubesse o que fazia”15. Frente às ameaças estrangeiras sobre as áreas africanas

consideradas historicamente pertencentes a Portugal, a corrente nacionalista que

movimentava a opinião pública de Lisboa e do Porto contra a aprovação do Tratado de

Lourenço Marques fundamentava sua defesa da legitimidade das pretensões portuguesas na

África no próprio liberalismo que se desenvolveu na Península Ibérica: é um liberalismo

que implicava mutuamente Tradição e modernidade, mesmo quando, na voz dos

intelectuais da chamada geração de 1870 como Antero de Quental, defendia uma República

social alinhada com os interesses dos trabalhadores. O termo revolução tinha, neste sentido,

e desde o vintismo – e mesmo na reação espanhola a Napoleão ou na República que a

Espanha fundou em 1870, se quisermos estender o argumento – um conteúdo de resgate do

passado que acabou por sacralizar a memória do Império16 no debate das elites intelectuais

ibéricas e das populações urbanas que acompanharam as discussões e atenderam aos apelos

nacionalistas.

Essa noção de que há uma “sacralização” do Império na memória e no imaginário

urbano e das elites intelectuais e políticas provoca forte debate historiográfico sobre os

14 António José Telo. Lourenço Marques na política externa portuguesa. Cosmos: Lisboa, 1992. 15 António José Telo. Moçambique 1895 – A campanha de todos os heróis. Lisboa: Tribuna, 2004, p. 04. 16 Valentim Alexandre. “A política colonial em finais do Oitocentos: Portugal e a sacralização do império”, In: Velho Brasil Novas Áfricas – Portugal e o Império (1808-1975). Porto: Afrontamento, 2000, pp. 147-162.

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sentidos do Império colonial português na África do século XIX. R. J. Hammond17

estabeleceu um padrão de interpretação que filiava o colonialismo português não a razões

econômicas, mas a um comportamento nostálgico e sentimental que viveria de lembranças

do passado, como se fora um colonialismo de prestígio, um imperialismo basicamente

político e ideológico. Clarence-Smith18, por sua vez, privilegia a análise econômica e

advoga que a força motriz do Terceiro Império português foi a procura de mercados, que o

autor denomina de “novo mercantilismo”, impulsionado por uma classe média a procura de

fortuna no Ultramar e por capitalistas em busca de negócios rentáveis.

Estudando registros de entrada de produtos coloniais em Portugal e sua

reexportação, como a urzela, o marfim e a cera, Pedro Lains19 afirma que as colônias

constituíam-se em argumento do liberalismo para a Regeneração nacional porque poderiam

promover o desenvolvimento português. Foi neste sentido que, segundo o autor, a

diplomacia portuguesa negociou com a Inglaterra o fim do tráfico de escravos em troca da

soberania portuguesa em determinados territórios. No mesmo sentido, Portugal negociava o

livre acesso inglês aos territórios coloniais portugueses usando a disputa entre a Inglaterra,

a Alemanha e as Repúblicas Bôeres para conseguir o reconhecimento europeu oficial aos

seus territórios.

O fato é que, do ponto de vista econômico, e nisto autores como Valentim

Alexandre, Pedro Lains e João Pedro Marques20 parecem concordar, a abolição do tráfico

de escravos, resultado de fortes negociações externas e internas de Andrade Corvo

enquanto ministro do Ultramar, impôs sérios problemas a Portugal. O País não dispunha de

mercados para novos produtos vindos da África que pudessem substituir a exploração do

tráfico nas áreas coloniais. Também não dispunha de capitais e tecnologia – os barcos

ingleses a vapor cobriam com maior agilidade todo o território colonial – que pudessem ser

investidos em atividades produtivas que substituíssem o tráfico21. Por isso o comércio

legítimo não pôde ser alternativa factível aos ganhos com o infame comércio, e o comércio

17 R. J. Hammond. Portugal and África, 1815-1910 – A study inuneconomic imperialism. Stanford (Ca): Stanford University Press, 1966. 18 Gervase Clarence-Smith. O III Império português (1825-1975). Lisboa: Teorema, 1985. 19 Pedro Lains. Os progressos do atraso. Lisboa: ICS, 2003. 20 João Pedro Marques. Os sons do silêncio: o Portugal do oitocentos e a Abolição do tráfico de escravos. Lisboa: ICS, 1999. 21 Pedro Lains. Os progressos... p. 219.

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colonial, pelo menos até as pautas de 1892, ocupava parte reduzida do comércio externo

português. Aos olhos dos intelectuais coevos que buscavam construir narrativas históricas

de Portugal, no entanto, o Império africano era uma missão histórica como fora o Brasil.

Diante da inequívoca presença do Império na memória e no imaginário das populações

urbanas e das elites intelectuais e políticas e, também, de uma secular sensação de que a

Inglaterra espoliava Portugal enquanto se mantinha como aliada, a reação ao Ultmatum não

poderia ser de pouca monta. Os periódicos e os discursos das tribunas parlamentares e

universitárias “insistiam na oposição entre um passado glorioso a recordar e um presente

decadente a corrigir e mais uma vez a palavra suprema era regeneração: a nação haveria

de ressurgir pela retificação de sua vida política, intelectual e moral, no momento mesmo

em que chegava ao extremo da desagregação e da humilhação.”22 Os testemunhos de

Basílio Teles e Eça de Queiroz são elucidativos do clima que envolveu a reação popular ao

Ultimatum inglês:

“Foi assim, pois, em plena quietude pública e marasmo partidário, que abriu o ano de 1890, o nosso année terrible. No decurso de agosto precedente tinha se dado enfim a colisão inevitável, e prevista, entre Portugal e a Inglaterra em territórios que o primeiro reivindicava desde muito, baseando-se no seu direito histórico e na sua influência secular, e a segunda reclamava para si, apelando para a doutrina recente da ocupação efectiva. (...) Usando dos aludidos títulos da novíssima jurisprudência de Berlim, a Inglaterra declara que os Macalolos estão sob seu protectorado; (...) À tempestade que se formara e crescia imprevistamente para os lados de Lisboa respondiam, naturalmente, o terror e a confusão no Paço das Necessidades. (...) O Finis Monarchiae parecia ter chegado, enfim, depois de duzentos e cinquenta dolorosos anos de beatérios, devassidões, (...) em que se resumia a história do governo dos Braganças.”23

“(...) de todo um povo que acorda, se levanta, e ainda trôpego do seu extenso sono, afirma claramente que pensa e afirma fortemente o que quer. (...) A forte, sólida e tenaz unanimidade, porém, com que a nação inteira, que tão pobre é, acode a abrir a sua bolsa para um alto objectivo nacional, prova que este movimento, tendo raízes na razão e na consciência do país, não somente na sua imaginação móbil, constitui uma força duradoura e viva que convém dirigir para onde ela possa fecundar

22 Maria Aparecida Rezende Mota. Brasil e Portugal – Imagens de nação na Geração de 70 do século XIX. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, 1998, p. 278. 23 Basílio Teles. Do Ultimatum ao 31 de janeiro – Esboço de História política. Lisboa: Portugália Editora, 1968, pp. 85 e 87.

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e criar. E indicar a sua direcção é concorrer para a sua fecundidade – porque decerto aqueles que tão ardentemente querem preparar a defesa exterior, não se mostrarão menos prontos a trabalhar na ordem interior. De pouco serviria ter muralhas novas por fora e só velhas ruínas por dentro. A peito doente nada vale couraça de bronze.”24

No primeiro texto, Basílio Teles, expoente do movimento republicano português,

informa em detalhe a movimentação pública de reação ao Ultimatum até a tentativa

fracassada de proclamação da República em 31 de janeiro de 1891, último grande respiro

da reação popular ao Ultimatum inglês. No trecho em destaque o autor opõe a experiência

da imposição inglesa à presença histórica de Portugal na África. Eça, no segundo texto, em

artigo escrito para o Distrito de Évora logo na segunda semana seguinte à publicação do

Ultimatum, aponta o descompasso entre pretender arrumar o Ultramar resistindo à pressão

inglesa, e manter a desorganização interna portuguesa... Para Basílio Teles 1890 é problema

político e cultural que exigia, de um lado, o fim da monarquia como condição da

regeneração nacional, e, de outro lado, a garantia da manutenção dos direitos históricos de

Portugal cujo fundamento era, neste sentido, cultural e não econômico. Eça, no entanto,

sugere algum desajuste na reação ao Ultimatum em relação às possibilidades reais das

colônias no que tange à regeneração nacional, “não era um patriota se por tal se entender

alguém que tem uma visão imperial de Portugal”, mas era-o se pensarmos no seu

comprometimento com os problemas sociais, ele “não tinha saudades da última nau que

partira, não esperava por auroras ansiosas. Como o burguês que dizia ser, preocupava-o o

atraso da pátria.”25 O Império é, para o primeiro, memória e solução, mas para o segundo,

é apenas memória...

Mas o que cabe ajuizar, no âmbito desse texto, são os resultados efetivos da política

inglesa expressa no Ultimatum de 1890 em relação aos interesses portugueses no Ultramar.

As negociações entre os dois governos levaram à assinatura do tratado de 11 de Junho de

1891 segundo o qual Portugal abandonava qualquer pretensão de construir um Império que

fosse de costa a contracosta, conforme havia projetado com o mapa cor-de-rosa, unindo

Angola a Moçambique. Ficaram-lhe, porém, vastíssimos territórios em muitos dos quais

nunca exercera qualquer soberania e quase todos por ocupar. A reação negativa junto à

24 Eça de Queiroz. “O Ultimatum”, In: Obras III. Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1978, pp 321- 338. 25 Maria Filomena Mônica. Eça – O regresso impossível. Lisboa: ICS, 2001, pp. 84-85.

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sociedade civil que se havia manifestado nas ruas quando do Ultimatum foi grande, mas o

governo encontrava-se em um caminho para o qual não haveria volta: era preciso criar

mecanismos de controle efetivo sobre as áreas que restaram sob pena de perdê-las mais à

frente. Assim, em 1892, o governo elaborou uma nova Pauta Aduaneira colonial que

pretendia estreitar as relações entre Portugal e as Províncias do Ultramar.26 A nova Pauta

estabelecia que as receitas em divisas estrangeiras decorrentes das exportações das colônias

seriam retidas na metrópole enquanto Portugal faria os pagamentos em moeda nacional,

regra que garantiu uma balança comercial favorável a Portugal em relação às colônias.

Além disso, a canalização da produção colonial para alfândegas sob administração

portuguesa nos territórios do Ultramar também permitiu aumentar a arrecadação local e

garantir a fixação de recursos para que a governação local tivesse meios para intensificar o

controle das populações locais. O principal problema era o controle do trabalho, a mão-de-

obra que alimentaria as plantações e pagaria impostos, por isso em 1899, após as

“Campanhas de pacificação”, seria implantado um novo Código Laboral que reeditaria

formas de trabalho compulsório às expensas das intenções de Andrade Corvo quando

editou a Abolição do trabalho escravo em 1875.

As “Campanhas de pacificação” no Moçambique. O período que se seguiu à nova Pauta aduaneira foi marcado pelas chamadas

“Campanhas de pacificação” nas áreas de soberania portuguesa e foram, na verdade,

campanhas de conquista de áreas nas quais o controle de Portugal não era efetivo. A

campanha contra o Reino de Gaza do Rei Gungunhana, localizado em território dito

moçambicano à época, entre 1894 e 1895, foi o ponto culminante da “gesta imperial

africana” segundo os conteúdos da História oficial que eram, no entanto, partilhados por

expressivos setores da sociedade, destacando-se aqui os republicanos que, na esteira do

Ultimatum, conforme apontei acima, haviam tentado a fundação da República em Portugal

em janeiro de 1891.

Desde os anos 60 do século XIX Portugal, por meio de seus governadores do

Ultramar, limitados em sua presença ao litoral, negociavam com os Reis locais a soberania

portuguesa nas áreas do Moçambique. Nas Terras da Coroa espalhavam-se povos

26 O termo “Províncias do Ultramar” já aparecia nas fontes militares e políticas do período aqui estudado, seu uso mais corrente, no entanto, será obra do Estado Novo salazarista.

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“regulados” que pagavam impostos à Coroa e forneciam mão-de-obra ou guerreiros quando

necessário. Nas terras próximas encontravam-se outros poderes africanos que não agiam

como “régulos” da Coroa. Gungunhana era um desses líderes e comandava uma das mais

importantes sociedades guerreiras do centro-sul africano, localizados seus domínios ao

norte de Lourenço Marques: os vátuas, conforme os designavam os portugueses27. A

expansão européia dos anos 80 colocou esse povo liderado por Gungunhana entre

portugueses, Bôeres, alemães e ingleses. O poder vátua era um grande trunfo para o

domínio da zona do Moçambique já que não se aceitava na Europa os direitos históricos

que Portugal afirmava ter. A rebelião de parte dos régulos nas Terras da Coroa em 1894 foi

o pretexto tanto para Portugal garantir militarmente a ocupação das áreas que considerava

historicamente suas, quanto para a contestação da soberania portuguesa pelos vátuas e pelas

nações européias interessadas em substituir Portugal na região em litígio.

A rebelião repercutiu fortemente na imprensa internacional, principalmente nos

jornais do Cabo e da Rodésia, como exemplo da incompetência portuguesa para a

administração colonial e como prova cabal da necessidade de entregar Moçambique a quem

não envergonhasse a raça branca.28 O conflito permite observar temporalidades e interesses

sobrepostos e que se imbricavam nas disputas pelo Moçambique: Gungunhana sabia

negociar com os poderes europeus de maneira a garantir a sua soberania sobre os domínios

vátuas, por isso, também, mantinha relações com povos regulados da terras da Coroa

portuguesa que a ele se submetiam em troca de proteção contra eventuais excessos da

Coroa; os ingleses também se aproximavam dos regulados insatisfeitos nas Terras da Coroa

portuguesa e prometiam-lhes proteção frente aos avanços portugueses; a finalização da

estrada de ferro que ligava Lourenço Marques ao Transvaal Bôer indicava novos conflitos

já que a Alemanha, com a intenção de enfraquecer a Inglaterra, pretendia apoiar os

interesses bôeres sobre a área; a Coroa portuguesa, incentivada pelo Comissário Régio

27 O termo vátua, segundo o sentido pejorativo que lhe conferiu a “bibliografia portuguesa de formação colonialista”, remete para “africano selvagem”. Cf.: Gabriela Aparecida dos Santos. Reino de Gaza: o desafio português de ocupação do Sul de Moçambique (1821-1897). Relatório apresentado ao Programa de Pós-graduação em História Social da FFLCH para exame de qualificação em Mestrado, São Paulo, 2006, p. 142. 28 R. J. Hammond. Portugal and África...

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António Ennes29, nomeado para enfrentar o levante, avaliava a rebelião não como

problema, mas como oportunidade para expandir a soberania portuguesa no Moçambique;

os povos regulados também se movimentavam entre Gungunhana e as outras nações

européias em busca de melhores acordos de trabalho e pagamento de impostos. Assim, o

colonialismo português reformulava-se em meio à memória do que fora o Império no

Brasil, as demandas dos povos africanos e europeus e às muitas leituras de mundo

expressas nesse processo.

Com os recursos disponíveis após a aplicação das Pautas Aduaneiras de 1892,

Portugal pôde organizar uma campanha vitoriosa contra os régulos rebelados das Terras da

Coroa e preparar o seu avanço sobre os domínios vátuas de Gungunhana. Desse preparo fez

parte o aparelhamento dos portos nas Terras da Coroa, para garantir a ocupação e o

abastecimento, e a melhoria dos transportes terrestres e fluviais. O início da campanha

contra Gungunhana fez-se por meio de negociações nas quais exigia-se do líder africano

que parasse de negociar com os vizinhos bôeres e com os ingleses de Cecil Rhodes. Esses

últimos mantinham, por meio de sua poderosa Companhia inglesa de Comércio, atividades

mercantis na área vátua que incluíam a disponibilização de mão-de-obra africana. Ao

mesmo tempo, a governação portuguesa do Moçambique organizava expedições cujo

objetivo oficial era perseguir régulos rebeldes que haviam se refugiado nas terras vátuas, na

verdade já estava em curso a Campanha de pacificação que visava acabar com o poder

africano de Gungunhana nas terras do Moçambique.

Nas negociações que mantinha com os representantes da Coroa portuguesa antes do

início dos conflitos abertos, Gungunhana afirmava que aceitava a vassalagem dos régulos

rebeldes fugidos em seu território porque, caso contrário, eles a ofereceriam aos ingleses.

Sua argumentação indica claramente dois registros: de um lado, ele poderia também

oferecer vassalagem à Inglaterra e, de outro lado, o oferecimento e a aceitação de

vassalagem parecem ser conteúdos de legitimidade da realeza africana que, nesse contexto,

aparecem sob o signo de resistência frente aos avanços europeus. Gungunhana era

seguramente, e ao contrário do que fazia conhecer ao público as histórias contadas pelas

fontes militares oficiais, um dos líderes africanos que conhecia os sentidos da exploração

29 António Ennes. A Guerra em África em 1895. Lisboa: Edições Gama, 1945. Para um estudo mais pormenorizado da História de Moçambique ver Malyn Newitt. História de Moçambique, Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1997.

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européia e suas lutas intestinas. Por isso procurava negociar a sobrevivência do seu reino e

da soberania do seu poder usando essa realidade em seu favor. Dentro do seu Império, no

entanto, vassalos seus também compreendiam essa realidade e também negociavam com os

europeus e outros povos africanos, fato que o enfraquecia ou fortalecia dependendo da

correlação de forças entre os grupos envolvidos.30 Na Campanha portuguesa de 1895

Gungunhana perdeu muitos vassalos atraídos pela governação portuguesa e isso, sem

dúvida, facilitou a ação militar que atacava as cidades ribeirinhas com lanchas canhoneiras

e, em seguida, desembarcava para queimar moradias e plantações, as defesas vátuas foram

se desfazendo ao longo do conflito. Em 28 de Dezembro Gungunhana se rendeu em

Chaimite. Em Gaza foi criado um Distrito Militar e Gungunhana foi entregue em Lourenço

Marques ao Governador interino Joaquim Lança. Exposto em uma gaiola junto com as

esposas e os filhos em frente à sede do governo, Gungunhana foi levado depois a Lisboa

com sete esposas e um filho, onde desfilou em praça pública depois de colocado em um

carroça em meio à multidão.31

Os resultados da Campanha do Moçambique entre 1894 e 1895 mobilizaram o

imaginário popular e erudito da nação atormentada desde o Ultimatum de 1890. Divulgou-

se a idéia, em parte verdadeira, de que a existência das fronteiras do Moçambique moderno

era resultado da referida campanha assim como de que a efetivação do III Império

português teria sua origem na mesma época.32 A caricatura de Bordalo Pinheiro, de novo,

indica os conteúdos do debate que se travava em Portugal diante dos acontecimentos no

Moçambique:

30 Esse é um texto que busca contar a História da Campanha contra o Reino de Gungunhana do ponto de vista das possibilidades do imperialismo português no século XIX. Assim, um estudo mais cuidadoso das formas de resistência dos povos africanos, especialmente no que tange ao fenômeno do banditismo social que, após a derrota de Gungunhana cresceu no centro-sul da África, mereceria um outro texto e outras fontes com as quais não tenho trabalhado no âmbito dessa investigação. Essas fontes apontariam a sobrevivência de experiências tradicionais que informavam as maneiras dos povos africanos de enfrentar os processos de conquista. 31 Joaquim A. Mouzinho de Albuquerque. A Prisão de Gungunhana – Relatório apresentado ao Conselheiro Correia e Lança. Lourenço Marques, 1896, Arquivo Histórico Militar. 32 Valentim Alexandre. “A política colonial em finais de oitocentos...

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Também publicada em O António Maria, em 6 de fevereiro de 1896, a imagem

demonstra o quanto aos portugueses a Campanha havia significado uma redenção diante da

visão negativa que se tinha de Portugal como povo colonizador e civilizador na Europa.

Antes da Campanha do Moçambique Portugal era pequeno em relação aos poderes

europeus representados pela Alemanha, França e Inglaterra, após a Campanha Portugal é

grande e carrega Gungunhana ofuscado na arma. No Museu Bordalo Pinheiro33 em Lisboa

é possível encontrar as “Garrafas Gungunhana” saídas da Faiança que Bordalo fundou em

Caldas da Rainha. Há o modelo “Gungunhana antes”, cabeça levantada e manifestando

riso, com um cajado em uma mão e uma garrafa de vinho na outra mão; e o modelo

“Gungunhana depois”, cabeça abaixada, corpo corcovado e acorrentado. Em ambos os

modelos a rolha da garrafa é formada pelo barrete de Gungunhana. A caricatura e as

garrafas descritas expressam bem o sentimento da nação que pretendia participar do

concerto imperialista europeu, mas via-se em condições econômicas adversas em função do

seu evidente atraso. Como ajuizara Andrade Corvo, havia que ter gentes e capitais

disponíveis, e não apenas intenções colonizadoras...

Quanto à Campanha do Moçambique, não há dúvida de que a violência acabou por

homogeneizar temporalidades e visões de mundo distintas em um processo dialético que

envolveu desenraizamento, leituras, construções e reconstruções de narrativas, além de

processos de integração possíveis ou impossíveis. Mesmo entre os povos ditos

colonizadores e civilizadores as visões de mundo não eram as mesmas, os lugares a partir

dos quais se projetavam os Impérios também não eram os mesmos e compunham

experiências sociais bastante diferenciadas. Talvez a literatura possa mostrar o caminho

para inventariar diferenças.

Eça de Queiroz e Joseph Conrad: os Impérios entre o ocidente e o não-ocidente.

33 Talvez caiba aqui uma pequena observação sobre Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905). Entre 1876 e 1879 Bordalo residiu no Rio de Janeiro para onde se mudou, até onde pude documentar, atendendo a um convite do periódico O Mosquito e, sem dúvida, atendendo a um atrativo que a visão do Brasil exercia sobre os intelectuais portugueses do grupo de 1870 com o qual Bordalo esteve desde o periódico A Berlinda. Na corte brasílica editou, junto com José do Patrocínio, o periódico O Besouro e participou dos debates em torno da questão abolicionista e da seca de 1878-79. Estranha convivência para um caricaturista, considerado por muitos como o precursor da “banda desenhada”, que, nas imagens aqui destacadas, considerava a importância da ação colonialista portuguesa... Mas esse é um vetor dessa pesquisa que ainda está em andamento.

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Eça de Queiroz, escritor e diplomata foi um autor comprometido com a geração de

70 portuguesa, a noção de “decadência” marcou a sua produção literária assim como a sua

vivência intelectual e diplomática. Os problemas ideológicos e econômicos ganharam tintas

mais fortes nos seus textos à medida que crescia o imperialismo de nações como a

Inglaterra, a França e a Alemanha. A Ilustre casa de Ramires é um clássico escrito nos três

últimos anos do século XIX e publicado em 1900. O personagem central, Gonçalo Mendes

Ramires, é um nobre arruinado a quem resta sua Torre e que vive em situação econômica

bastante precária. Grande parte dos personagens do livro são proprietários que vivem dos

rendimentos das suas terras e que necessitam que as mesmas sejam administradas por

outrem. Ao mesmo tempo em que se dedica a contar a História da sua família, que se

mistura com os “grandes feitos portugueses”, Gonçalo aproxima-se da política propondo-se

deputado com a dupla intenção de sobreviver, de um lado, e de lançar um chamado à nação,

de outro lado, para que voltasse suas energias para a portentosa África, local a partir do

qual se poderia edificar um Portugal maior. O personagem segue para o Ultramar, onde

permanece por quatro anos sem resultados expressivos em seus investimentos econômicos

e políticos, e, quando retorna, encontra Portugal exatamente como deixara, tanto quanto ele

voltava sem alterar seus ânimos e sua percepção de Portugal... Eça parece saber do

interesse econômico que o Império despertava, mas acima de tudo ele compreendia as

dificuldades para a efetivação desse interesse em investimentos lucrativos. Assim, restavam

a sobrevivência do ideal e alguma possibilidade de exploração econômica com base nas

novas regras colocadas pelas Pautas Aduaneiras de 1892, mas era bem menos do que

sonhavam portugueses como o Gonçalo e do que desejavam as elites intelectuais

preocupadas em superar o evidente atraso de Portugal no concerto imperialista das nações

européias. Conforme afirma Eça no final do livro, Gonçalo é um emblema do Portugal

contemporâneo entre esperança e melancolia:

“Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. Padre Soeiro ... Os fogachos e entusiasmos que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua idéia ... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade? ... A imaginação que o leva sempre a enxergar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar .... A esperança

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constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades ... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo ... Um fundo de melancolia, apesar de tão paltrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa ... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos ... Até agora aquele arranque para a África ... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra? – Quem? – Portugal.”34

Nascido polonês, Joseph Conrad naturalizou-se britânico e viajou pelo Império

inglês como funcionário da marinha comercial, foi nessa condição que chegou ao Congo

em 1890. Entre 1898 e 1899 escreveu O coração da treva, texto que veio a público em

1900 e que foi inspirado naquela experiência. O narrador Marlow, parecendo indagar o

tempo todo sobre a veracidade do próprio texto narrado, conta suas histórias e experiências

em busca de Kurtz, o misterioso personagem que se embrenhara na floresta e parecia

subverter a lógica da dominação branca e européia na África. Marlow, indivíduo subsumido

nas entranhas do Império, quer agir ali como pedem as leis gerais do processo imperialista.

Mas das páginas do texto saltam elementos que tensionam o discurso iluminista e

civilizatório, que estaria no centro daquele processo, e permitem divisar o reconhecimento

da possível autonomia das trevas. É uma narrativa que pressupõe o contato com o “outro”

em uma via de mão dupla na qual os contatos entre os colonizadores e os “outros”

implicam em transformações recíprocas, mas o narrador destaca a transfiguração do

colonizador porque esta permite entrever a resistência no coração da treva.

“(...) cada entreposto deveria ser como um farol na rota do progresso, um centro de comércio, é claro, mas igualmente um difusor de humanismo, de progresso, de educação (...).

Subir o rio era como remontar aos primórdios do mundo, quando a vegetação exuberava sobre a terra e as árvores gigantes eram reais. Uma torrente deserta, um imenso silêncio, (...)

Penetrávamos, cada vez mais profundamente, no coração da treva. Reinava ali uma imensa calma. (...) Éramos errantes num mundo pré-histórico, um mundo com o aspecto de um planeta desconhecido. Podíamos nos imaginar como os primeiros homens a tomar posse de uma herança amaldiçoada que somente ao custo de profunda angústia e extrema fadiga poderia ser subjugada.”35

34 Eça de Queiroz. A Ilustre Casa de Ramires. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 284-285. 35 Joseph Conrad. O coração da treva. S.P.: Global, 1984.

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O mesmo entreposto que deveria “ser como um farol na rota do progresso” perde

eficiência em outros momentos da narrativa e, na ruptura da eficiência, contam-se muitas

histórias que apontam humanidades e civilidades imbricadas e transfiguradas. É uma

experiência de estranhamento total que o Gonçalo de Eça não pode viver na África e nem

com a própria cultura portuguesa da qual se distanciou para voltar com as mesmas tristezas

e entusiasmos e encontrar as mesmas intenções...

A experiência imperialista portuguesa na África não permitia o estranhamento total,

e, por conseguinte a transfiguração dos personagens, não apenas por conta dos séculos de

presença portuguesa no coração da treva, mas porque para Eça, Portugal também não era

inteiramente europeu. Ora buscando um aggiornamento com a Europa considerada

avançada – nos termos do Imperialismo, da industrialização, da educação pública e da

modernização dentro de preceitos considerados por ele modelares na vivência inglesa e

francesa --, ora aproximando-se do discurso do seu amigo Oliveira Martins que advogava a

singularidade da experiência portuguesa na primeira e na segunda modernidade, Eça, por

meio do seu personagem Gonçalo Mendes Ramires, refletia sobre as possibilidades do

Portugal contemporâneo e os resultados não se lhe afiguravam interessantes posto que a

nação parecia caminhar a passos muito lentos...

Eça, Conrad, Andrade Corvo, Gungunhana, Bordalo, em suas narrativas ou em suas

vivências, indicam, no âmbito desse texto, redes de Histórias interdependentes que

permitem desfazer as fronteiras criadas pelo imaginário do ocidente em seu momento de

expansão imperialista: as fronteiras entre os povos sem História e os povos com História, as

fronteiras entre povos modernos e povos arcaicos. Os povos sem História deveriam ser

apresentados a processos civilizatórios por nações européias efetivamente capazes de

cumprir tal tarefa, segundo o discurso oficial das nações imperialistas. Tais processos, no

entanto, implicavam em releituras recíprocas e reconstrução de narrativas e visões de

mundo. Portugal, decadente e atrasado, no entender dos conquistadores e exploradores

como Cecil Rhodes e de acordo com a imprensa holandesa do sul da África, não era uma

dessas nações. Não estariam corroborando Cecil Rhodes os historiadores que afirmam a

existência de um projeto arcaico no Portugal e no Brasil do século XIX? Nessa linha de

raciocínio, o arcaísmo português inviabilizaria os processos de modernização e indicaria os

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caminhos do atraso. Não seria mais interessante pensar essas redes de Histórias

interdependentes no âmbito de uma modernidade que se dissemina e que constrói

singularidades que, muitas vezes, utilizam-se de conteúdos ditos arcaicos? Senão vejamos.

Portugal conheceu, durante os governos da Regeneração do século XIX, uma expansão

lenta da produção industrial e agrícola ao mesmo tempo em que associava essa produção

aos interesses ingleses de exportação de manufaturas. No mesmo sentido, a escravidão do

século XIX no Brasil não significou a possibilidade de inserção do Brasil no contexto da

expansão do capitalismo? A modernidade, assim como os processos de modernização que

ela engendra nos muitos lugares singulares que vão sendo incorporados pelo avanço do

capitalismo, possuem muitas dimensões, na maior parte delas existem diferentes Histórias e

temporalidades sobrepostas que indicam muitas faces e sentidos plurais. Deslindar os

tempos sobrepostos em busca das possibilidades derrotadas e das violências que se

cometeram contra os povos ditos arcaicos parece ser bem mais interessante do que supor

arcaísmo em projetos de inserção na modernidade capitalista que, no limite, também

provocaram transfigurações do arcaico em moderno e dos projetos de modernização em

reconfigurações do arcaico.