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A MEMÓRIA COMO CORPO ANIMAL EM “OS QUE BEBEM COMO OS CÃESRIBEIRO, Luiz Antonio. 229 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p.229-243 A MEMÓRIA COMO CORPO ANIMAL EM OS QUE BEBEM COMO OS CÃESRIBEIRO, Luiz Antonio Estudante de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Memória Social da UNIRIO [email protected] RESUMO Este presente trabalho tem como objetivo a análise da obra Os que bebem como os cães, do escritor brasileiro Assis Brasil, levando em conta aspectos relativos à memória e, principalmente, aos conceitos de memória dentro da memória social. A partir de referências pré-estabelecidas sobre o que seria memória, resgate, manutenção e perda especificamente nas questões relativas à excessos, restos e sobras de memórias foi escolhida como proposta uma abordagem teórica que tentasse desmontar essas ambiguidades e engendrar uma ambivalência em que memória é vista como uma espécie de corpo animal. Dentro das violências que passa a personagem do livro de Assis Brasil, tentamos pensar como, em alguns casos, o ato de lembrar é um gesto em direção à morte, um devir-morte dentro da existência, enquanto que o esquecimento pode levar a diversas pulsões do que seria a chamada vida uma possibilidade de sobrevivência dentro do espaço. Palavras chave: memória, violência, corpo ABSTRACT This article intend to analyse brazilian writer Assis Brasil’s book “Os que bebem como os cães” (“The ones that drink like dogs”, in a literal transcription), considering aspects related to memory and, mostly, to the concepts of memory in the field of social memory. Based in pre-established references of what is memory, rescue, maintainence and loss, this paper is an atempt to dissamble these ambiguities and engender an ambivalence in which memory is perceived as some kind of visceral composition. Within all types of violences that Assis Brasil’s character goes through, we try to think of how, in some cases, remembering is a gesture towards death, while forgeting can lead us to all kinds os pulses of what we call life. Key-words: memory, violence, corpus

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ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p.229-243

A MEMÓRIA COMO CORPO ANIMAL EM “OS QUE BEBEM COMO

OS CÃES”

RIBEIRO, Luiz Antonio

Estudante de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Memória Social da UNIRIO

[email protected]

RESUMO

Este presente trabalho tem como objetivo a análise da obra Os que bebem como os cães, do escritor

brasileiro Assis Brasil, levando em conta aspectos relativos à memória e, principalmente, aos

conceitos de memória dentro da memória social. A partir de referências pré-estabelecidas sobre o que

seria memória, resgate, manutenção e perda – especificamente nas questões relativas à excessos, restos

e sobras de memórias – foi escolhida como proposta uma abordagem teórica que tentasse desmontar

essas ambiguidades e engendrar uma ambivalência em que memória é vista como uma espécie de

corpo animal. Dentro das violências que passa a personagem do livro de Assis Brasil, tentamos pensar

como, em alguns casos, o ato de lembrar é um gesto em direção à morte, um devir-morte dentro da

existência, enquanto que o esquecimento pode levar a diversas pulsões do que seria a chamada vida –

uma possibilidade de sobrevivência dentro do espaço.

Palavras chave: memória, violência, corpo

ABSTRACT

This article intend to analyse brazilian writer Assis Brasil’s book “Os que bebem como os cães” (“The

ones that drink like dogs”, in a literal transcription), considering aspects related to memory and,

mostly, to the concepts of memory in the field of social memory. Based in pre-established references

of what is memory, rescue, maintainence and loss, this paper is an atempt to dissamble these

ambiguities and engender an ambivalence in which memory is perceived as some kind of visceral

composition. Within all types of violences that Assis Brasil’s character goes through, we try to think

of how, in some cases, remembering is a gesture towards death, while forgeting can lead us to all

kinds os pulses of what we call life.

Key-words: memory, violence, corpus

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“O grito das gerações mortas,

A aguda elegia dos séculos desaparecidos”.

Flávio de Carvalho

1- INTRODUÇÃO

Toda discussão que permeia a relação entre história, memória e literatura ainda é

baseada em conceitos que precisam, a priori, serem descontruídos para a composição de uma

teia de significações que consigam transdisciplinarmente dar conta de todo um universo

teórico. A história ainda é vista por muito com toques de “verdade” e de “representação da

realidade”, já a memória permanece sendo vista em uma zona indistinta entre a reconstrução

do passado pela subjetividade do sujeito e a realidade palpável da memória oficial. Ao lado,

está a literatura como uma mera produção de ficção, de narrativas do imaginário e da mente

de um artista.

Entretanto, desde o final do século XIX todos esses conceitos, ao mesmo tempo em

que iam se afirmando como campos autônomos, sofriam diversos entrecruzamentos e

começavam a se relacionar entre si. Por exemplo, o pensamento de Halbawchs (2004) em que

a memória é uma mediação entre o que é coletivo, ou seja, a realidade compartilhada, e a

recomposição do passado pelo sujeito. A história, por sua vez, é também relativizada

enquanto verdade e vista como a construção de narrativas que tem como função exercer um

determinado poder de consolidação, afirmação ou, até, segmentação de uma estrutura.

Na perspectiva da modernidade em que a reprodução acaba por produzir uma grande

quantidade de lixos, restos e sobras, a grande questão do homem deixa de ser pensar na

totalidade das questões, mas sim na proposição do mundo enquanto fragmentos. O excessos

produzidos pela reprodução, nos coloca diante do reproduzível e do reproduzido, do útil e do

não-útil – da sobra e da sombra. Os corpos dos sujeitos não vão escapar dessa lógica.

A pergunta moderna em relação aos corpos que sobram pode nos levar diretamente

àquilo que Nietzsche (1987) vai chamar de “pulsão de morte”, ou seja, de que a vida enquanto

impulso nos leva diretamente ao nosso fim, enquanto que, ainda nessa chave, Freud (1996)

vai pensar nas multipossibilidades da ideia de origem que seria nada mais do que uma vida

ainda sem memória ou uma pré-vida. Neste sentido, o que está sendo levantado é que o

pensamento moderno se volta para a memória daquilo que está nas duas extremidades do

processo narrativo do homem – a origem, o início e o fim, o perecimento.

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Walter Benjamin (2000) vai afirmar que toda ideia de progresso ou, enfim, o projeto

moderno, se torna um projeto de barbárie que se dá por sobre as experiências dos sujeitos que

perecem frente à impossibilidade da construção de uma narrativa una. Essas narrativas mudas,

silenciadas, encarnadas na figura do anjo da história – este ser de costas para o progresso

sendo empurrado para frente por ele – nada mais são que a produção de escombros de corpos

e subjetividades que são massacradas por essa ordem. Em relação aos corpos, a pergunta que

se pode fazer, pensando na modernidade, na perspectiva de que somos também objetos da

fragmentação e da reprodução, deixa de ser “o que fazer com a morte?”, mas sim “o que fazer

com o morto?”. A morte, nesse caso, tem a noção abstrata e não corporificada da perda da

vida, ao contrário do morto que é resto, dejeto de ser encarnada em uma carcaça. Encarar o

morto está, então, na pergunta “o que fazer com ele?”.

Creio que podemos avançar nesse questionamento e coloca-lo também em relação ao

texto (nesse sentido, chamo de texto o que seria a prosa, a poesia, enfim, a arte escrita): “O

que fazer com o texto?” A pergunta parece fazer sentido quando se pensa em uma estrutura

social montada no viés econômico da acumulação, do lucro e da proposição da

desindividuação em prol da expansão da virtualidade de uma imagem, ou seja, uma maneira

de tornar o corpo enquanto forma de resistência, impulso erótico e capacidade de intervenção

social em algo asséptico, higiênico, padronizado, mecanizado, incapaz de produzir sentidos

que não sejam os veiculados pelas fontes de informação e poder.

Justamente por isso, “O que fazer com o texto?”, espécie de espectro, sombra dentro

da sociedade e de sua época - na perspectiva de Agamben (2009) quando afirma que o

contemporâneo é uma sombra no presente, - se torna talvez a pergunta mais importante feita

na pós-modernidade, principalmente no pós-guerra, quando se pensava se “ainda era possível

fazer poesia”, questão adorniana (ADORNO, 1995). O texto é, então, esse corpo que resiste à

morte, mas é também corpo morto porque o morto é, de alguma maneira, aquele que resiste à

morte. E essa resistência não tem a ver com algo engrandecedor de magnitude, como proporia

o mercado e a publicidade, o morto resiste, mas é também escombro, cinza, resto. Aquilo que

existe, mas que deixa o vivo sem saber o que fazer, como lidar, como utilizar, como

manipular. A manipulação do corpo do morto é tal como manipular o morto: dar a si a

dimensão dele, do outro e nessa fricção, sem que haja simbiose, seja composta uma nova

forma de se compor textualidades.

Ainda nessa chave, a reflexão sobre a memória encontra o mesmo lapso. O que fazer

com a memória ou as memórias? De que elas podem nos servir e como elas podem se tornar,

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ao mesmo tempo, objeto de monumentalização e normatização e, por outro lado, fonte de luta

de minorias que querem resgatar um passado que está sobre o escombro?

A memória do corpo-texto-morto está diametralmente do lado oposto de uma memória

institucional. Ela se coloca – como o morto e o texto – como uma espécie de espectro de

passagens de sujeitos e agentes históricos que, ao não serem capaz de monumentalizar as suas

narrativas, deixam esses rastros no decorrer da história para que sejam, quiçá, pensados e

atualizados por aqueles que possam ou façam alguma abordagem. Ao contrário do que diz

Halbwachs (2004), para quem a memória coletiva é uma mediação entre uma narrativa

individual com a realidade do sujeito que narra, em um corte temporal do presente do

depoimento, a memória como pulsão, como movimento de vida e morte, está naquilo que é

impassível de se concretizar como real.

O problema é que a memória do campo de lutas das minorias, muitas vezes, busca um

espaço justo de legitimação que se torna, entretanto, uma nova forma de monumentalização,

com a formação de universos de subculturas institucionalizadas a partir de diversas questões

provenientes do multiculturalismo. Neste presente trabalho, pretendo analisar um tipo de

memória que esteja à margem desses dois tipos de formação de memória: nem a oficial, nem a

sub-oficial, mas uma que esteja latente no corpo como memória, como pulsão de vida e que

enfrente o oficial e o sub-oficial numa completa inversão do estabelecido. Uma memória que

sendo memória de pulsão, memória de corpo, memória animal, seja impassível de ser

institucionalizada, ou seja, que não se permita enquanto tal se tornar monumento. Para isso,

foi escolhido o romance Os que bebem como os cães, do piauiense Assis Brasil, publicado e

premiado em 1975.

Já a epígrafe da obra, frase do escritor Ernesto Sábato, nos dá uma medida daquilo que

coloca a ficção, ou como dito acima, a morte, o texto e a memória, dentro de um parâmetro

que se descola na noção temporal tradicional: “A verdade histórica está mais na novelística do

que nos próprios relatos dos fatos que constituem a história reconhecível como tal.”

(BRASIL, 2010, p.7)

A epígrafe sugere, entre outras coisas, que há na escrita da ficção, ou seja, na produção de

um universo ficcional como reprodução mimética da realidade, mais estatuto de “verdade” do

que as próprias narrativas históricas. O que Sábato afirma, no fim das contas, é que tanto a

história como literatura são projetos de invenção, de produção de narrativas via imaginário e

criação – jogo de imagens e de linguagem – na medida em que funcionam como mediação

entre o que se ousa chamar de “real” e a outra ponta, a subjetividade dos indivíduos.

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2- OS QUE BEBEM COMO OS CÃES – VIOLÊNCIA DO CORPO, AUTORIDADE

E MEMÓRIA QUE ESCAPA

Os que bebem como os cães é uma obra que conta a história de um sujeito que é preso por

algum regime autoritário. Não se sabe qual, não se sabe o tempo, não se sabe a época, apenas

que ele acorda e se encontra diante de “uma escuridão ampla e envolvente” com um “silêncio

total” e apenas um “zumbido do próprio corpo”, cuja opressão do ambiente está no “corpo” e

“nos poros” (BRASIL, 2010, p.7). Não se sabe sequer se é dia ou noite, não se tem memória e

apenas se sabe que existe uma “espera” e um “lá fora”. No mais, a personagem que ali se

encontra e sente o cheio de terra úmida e de seu próprio sangue, não possui qualquer vestígio

de memória, nem de seu nome, nem de sua história: é apenas um ser lançado ao nada. Os

capítulos da obra são apenas três: a cela, o pátio e o grito, que se alternam quarenta e uma

vezes até o fim, contando um relato que se repete eternamente em que esta figura que está no

escuro é levada amordaçada a um pátio para se levar e ouve alguns gritos, jogados em

torneiras por breves segundos.

A repetição dos capítulos, no entanto, faz uma narrativa que absorve uma ideia

claustrofóbica das situações de cárcere, ao mesmo tempo em que produz uma composição de

que repetir se revela como diferença. Os sucessivos capítulos da cela em que o homem se vê

apenas diante de si, de seus excrementos, da terra úmida e de um alimento que lhe entorpece e

aparece por uma pequena fenda; do pátio que lhe coloca em fila ao lado de homens que,

amordaçados, se lavam e, nos instantes de liberdade clamam por ajuda, ou por força, nos

capítulos do grito, compõe uma repetição do mesmo, ou seja, uma memória do mesmo que,

aos poucos, se transforma em alteridade.

Estar diante dessa repetição é, de alguma forma, produzir seu oposto, a diferença que se

dá diretamente na passagem de tempo sem memória daquela personagem, muito na medida

em que destaca Deleuze (1988) em “Diferença e Repetição”:

Qual é a essência da repetição – que não se reduz a uma diferença sem

conceito, que não se confunde com o caráter aparente dos objetos

representados sob um mesmo conceito, mas que, por sua vez dá testemunho

da singularidade da potência da ideia? O encontro de duas noções, diferença

e repetição, não pode ser suposto desde o início, mas deve aparecer graças a

interferências e cruzamentos entre estas duas linhas concernentes, uma, à

essência da repetição, a outra à ideia de diferença. (DELEUZE, 1988, p.61)

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A singularidade da potência da ideia, neste caso, reside no fato de que a personagem

de Assis Brasil se coloca diante de um mundo encarcerado, mas de extensa produção de uma

linguagem. Mesmo que quase não se fale e sua memória retorne de maneira lenta e

desconexa, aquilo que ela produz será, em certa medida uma violência contra si próprio, uma

vez que, no caso, lembrar é uma espécie de morte. A palavra, em uma escrita que marca a si

própria e que, ao repetir, se difere, se tornará no grande vilão da figura construída por Brasil,

ao mesmo tempo em que, a dimensão da memória animal, ou da memória do corpo,

constituição sua única possibilidade de sobrevivência.

Não se pode perder de vista que o contexto da obra era justamente um regime

totalitário de uma ditadura. Em 1975, vivíamos em um período de intensa violência

institucionalizada, principalmente após o AI-5 de 1969 em que o congresso era fechado e as

pessoas podiam ser presas sem prévio aviso e para investigação de qualquer coisa que pudesse

vir a ser uma ameaça. Uma característica essencial dos anos de chumbo da ditadura brasileira

era uma governabilidade amplamente tecnocrata, ou seja, e, que especialistas eram colocadas

para a composição da chamada “engenharia social” cujas respostas eram inquestionáveis:

Desse modo, a “tecnocracia” opera a partir de imperativos inquestionáveis,

tais como a necessidade de maior eficácia e de maior segurança social. A

tecnocracia” é o auge da era da “engenharia social” e que acaba expandindo

sua área de influência para além do complexo industrial e tenta orquestrar

todo o comportamento humano: “A política, a educação, o ócio, as

diversões, a cultura em seu conjunto, os impulsos inconscientes e, inclusive,

como veremos, o protesta contra a tecnocracia mesma, tudo se transforma

em objeto de exame puramente técnico e de manipulação puramente técnica”

(ROSZAK, 1984, p. 20)

A tecnocracia era, então, no fim das contas, mais um modelo de instrumentalização

dos meios de produção, da ideia de progresso e dos artefatos tecnológicos e os corpos que se

colocavam diante deste modus operandi estavam diante de uma espécie de “máquina de

guerra” como no caso do conto “A Colônia Penal”, de Franz Kafka:

Eis o leito, conforme já mostrei. Está completamente coberto por uma

camada de algodão em rama, descobrirá mais tarde para o que serve. Neste

algodão o condenado é estendido de bruços e, evidentemente, nu; aqui estão

as correias para as mãos, estas para os pés e esta para o pescoço, e assim

estará firmemente amarrado. Esta peça é a cabeceira do leito, e estando o

condenado estendido de bruços, esta mordaça de feltro poderá ser

introduzida em sua boca sem dificuldade. Serve para evitar que grite ou

morda a língua. É claro que o homem tem que se resignar a ficar com ela,

pois de outra forma poderá quebrar o pescoço devido à correia. (KAFKA,

1978, p.102)

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A máquina da Colônia Penal diferencia-se de outras máquinas de guerra e tortura pelo

fato de que escreve no corpo do preso sua sentença com diversas agulhas até que este seja

lançado à própria morte. Pode-se observar, tanto no modelo tecnocrático ditatorial, quanto no

modelo kafkiano, uma imensa preocupação com a palavra. É ela, em certa medida, que é

responsável por grande parte tanto da violência institucionalizada por eles, pelo estatuto das

regras e das leis, como pela possibilidade de um ato violento diametralmente oposto, proposto

pela fuga via linguagem do próprio estatuto que ela inscreve. É nessa perspectiva que se

coloca o regime ditatorial do Brasil: da tentativa violenta de se impedir que se tenha voz, que

se possa tornar linguagem uma manifestação do que é um mundo subjetivo. A tecnocracia só

permite que se fale aquilo que é oficial ou oficioso.

Este ambiente especializado, tecnocrático, se aproxima do que Foucault chamou de

“sociedade disciplinar” que nada mais é do que a forma como transformamos a sociedade em

que homens legislam para a maioria e pela maioria compondo forças de lei que devem ser

seguidas, colocando à margem hábitos e costumes que chamamos de “crimes” e que, formam

“inimigos sociais” (FOUCAULT, 1996, P.81). O aprisionamento surge, então, como a forma

habitual de purgar as penas daqueles que cometeram o vício de cometer um dano social:

Se o crime é um dano social, se o criminoso é o inimigo da sociedade, como

a lei penal deve tratar esse criminoso ou deve reagir a esse crime? (...) A lei

penal deve apenas permitir a reparação da perturbação causada à sociedade.

(FOUCAULT, 1996, p.81)

Entretanto, essas leis que deveriam para manter a ordem, segundo o próprio Foucault,

vão se transformando em uma sociedade disciplinar, em que homens passam a ter a função de

controlar homens e, posteriormente, em uma biopolítica, em que a pena já está impressa no

corpo de todos nós, como na máquina de Kafka, que somos nossos próprios vigilantes e

purgadores de penas, nossas e de nossos semelhantes. No que tange o universo das ditaduras,

como é o caso do regime da personagem de Os que bebem como os cães, o que se implanta é

a força de lei, um a força da autoridade policial carcereira em que há “um tipo de poder que a

lei valida e que a justiça usa como sua arma preferida.” (FOUCAULT, 2009, P. 285)

A cela, a prisão, se torna, então, não um lugar de purgar uma culpa, mas de infringir

uma pena ao corpo do preso, mesmo que não se saiba qual crime havia sido cometido. Os

espaços prisionais dessa sociedade disciplinar são:

(...) a tecnologia disciplinar promove a distribuição dos indivíduos no

espaço, utilizando diversos procedimentos: o enclaustramento (baseado no

modelo conventual); o quadriculamento celular e individualizante ("cada

indivíduo no seu lugar; e, em cada lugar, um indivíduo"); a regra das

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localizações funcionais (vigiando ao mesmo tempo em que cria um espaço

útil); a classificação e a serialização (individualizando os corpos ao distribui-

los e fazendo-os circular numa rede de relações), assim, essa tecnologia,

organizando celas, lugares, fileiras, cria espaços altamente complexos,

incidindo nos planos arquitetônico, funcional e hierárquico. (BENELLI,

2004, p. 238)

Dentro da prisão, o corpo se torna então “sua sinalização de poder individual.”

Aparece, então, neste sujeito individual, via memória, a lembrança do que seria um “outro”.

Assim, podemos nos aproximar da personagem de Assis Brasil pois, este outro vai, aos

poucos, retornar à sua memória. Primeiro, sua história volta como palavras, como instâncias

turvas do passado, depois em gritos internos, inclusive na possibilidade de um Deus, talvez

em uma tentativa de se manter são em um ambiente absolutamente violento e inóspito, a

memória lhe faz retornar aquilo que é senso comum, que é manifesto, conhecido ou, de

alguma forma, institucionalizado:

Oh Deus – repetia (...) O meu amor por Ti é novo, pois não Te conhecera

antes (...). Minha mãe, os entes que amei, ficaram na escuridão do mundo,

perdidos, e eu Te achei na claridade desta cela. Peço que me equilibres os

gestos e os pensamentos, assim como os gritos dos homens atormentados

receberam a harmonia da tua presença. (...) Perdoa este teu servo rebelde e

perdido. (BRASIL, 2010, p.46, 47)

Entretanto, a memória de Deus que ele chega, aos poucos, se traduz em algum que não

é, como se podia crer, tradicional, de uma memória do cotidiano ou do óbvio. Pelo contrário,

é no encontro com sua situação limite que ele encontra aquele Deus que buscava Clarice

Lispector em grande parte de suas obras, uma espécie de Deus ex machina interior, uma voz

que lhe salta de dentro para seu corpo e lhe resgata. Este Deus é a fome, o apetite, é o grito do

corpo. Um Deus, talvez, de origem animal, como vai ressaltar Flávio de Carvalho:

É no aparelho digestivo onde nascem os deuses do mundo. O nascimento, a

vida, a morte e a ressurreição do alimento conduzem ao espasmo religioso.

A sensação de religião é gerada na sensação de fome. A satisfação religiosa.

é a satisfação da fome. (...) É pela fome que o homem entra em contato com

o mundo animal e vegetal que ele devora e o ato de devorar é a primeira

religião do homem. A memória do apetite é estereotipada antes de qualquer

outra. Apetite é religião. (CARVALHO, 1973, p.9)

É evidente que esse aspecto da fome da divindade, ressaltada por Carvalho, traz a tona

a questão antropofágica brasileira, em que metamorfosear-se no outro, à partir do contato

idílico dos corpos, resulta em uma possibilidade de potência:

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O ato de fé consiste na carícia bucal e intestinal. Este elementar contato e

modificação de energias, pela repetição, gera a Fé e cria o apetite, isto é, a

ânsia para ter Fé. Mastigando a natureza ele tem Fé e acredita nessa

natureza. É pelo intestino e pelo sexo que o homem entra em contato íntimo

com a natureza: devorando a natureza ele perpetua-se. Admitindo como

incontestável um animal inferior na ascendência do home, não parece haver

objeções plausíveis para admitir também uma origem animal idêntica ao

Deus que é em si um subproduto de suas necessidades anímicas e cerebrais

do homem. (CARVALHO, 1973, p. 11,12)

O que se extrai em Jeremias, à partir da colocação de Carvalho, é que, na medida em

que a fome aparece com sua significação mais bruta, ou seja, em que no gesto da personagem

de não se alimentar para evitar o entorpecimento, mas sim deixar seu alimento para que um

rato faça sua refeição, ele se coloca diretamente como aquilo que é seu espaço de

religiosidade animal. Será neste corpo que perece, dentro desta memória de Deus no corpo,

enquanto silêncio, violência, opressão e entorpecimento, no limite da sobrevivência, que ele

encontrará com essa quase morte uma parceria passível de organizar sua história não a partir

do passado, enquanto recordações, rememorações e lembranças, mas como peles de seres que

se reconhecem. Assim, Jeremias vai encontrar em um rato que habita sua cela e com quem

divide comida, alguém como ele, um ser em estado bruto de fome e espera:

Os ratos não eram simplesmente autômatos irracionais, programados para a

sobrevivência, para a procriação. Havia algo além da necessidade física de

um pequeno animal, de um grande animal – dois deles viviam ali na

semiescuridão de uma existindo sob o impulso primordial da sua natureza,

que não era apenas um feixe de células e nervos. (BRASIL, 2010, p.130)

O que faz Jeremias é, como Gregor Samsa de Kafka em A Metamorfose (1997),

metamorfosear-se em rato, assim como antropomorfizar no rato a sua figura, formando uma

comunidade afetiva de relação de parceria. A privação em que vive, lhe coloca diante de sua

dimensão animalesca e a-histórica:

Sentiu-se mais tranquilo com os últimos pensamentos – os ratinhos eram

seus companheiros: no ar que respiravam, num sentimento que acalentavam

– alguma coisa maior, além daquele prato fumengante. Além daquele prato –

e seus olhos estavam cravados nele, bem no meio da cela, envolvo no

mistério de sua aparição silenciosa. (BRASIL, 2010, p. 130-131)

Dentro dessa zona indistinta entre ainda homem e devir animal, a memória da

personagem, então, a memória daquele sujeito vai cada vez mais se focando no que lhe é

próprio do ambiente que lhe foi imposto. Ele é lançado em um ambiente onde não lhe

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permitem sequer lembrar e, talvez, esta seja sua única saída. Vejo nessa configuração de

impossibilidade de lembrar, ou seja, de um esquecimento absoluto, uma possibilidade de

potência de vida, de uma memória animal que recorda primeiro do próprio corpo sem a

mediação das lembranças. Este corpo e estas cicatrizes expostas por ele, durante um período

de Os que bebem como os cães se configura numa temporalidade que se coloca num entre:

entre o passado inexistente e o futuro desconhecido, uma zona de limbo, indistinta e opaca,

como alguns personagens de Beckett e Pirandello.

É preciso pensar o que configuraria este entre que tentamos colocar e que está fora da

institucionalização e fora da resistência à institucionalização, um entre que não se produz nem

de monumentos nem de restos, mas de uma memória que se rejeita a tornar restos. Creio que

temos o que Henri Bergon chamou de “duração” em Memória e Vida (2006). A duração,

segundo ele, é o “progresso contínuo do passado que rói o porvir e incha a medida que

avança”. Neste passado que se acumula,

Não há registro, não há gaveta, não há aqui, propriamente falando, sequer

uma faculdade, pois uma faculdade se exerce de forma intermitente quando

quer ou quando pode, ao passo que a acumulação do passado sobre o

passado prossegue sem trégua.” (BERGSON, 2006, p.47)

Estamos diante, então, de uma memória que é duração, ou seja, uma memória que não

se dá pelo arrefecimento ou pela planarização das ideias e dos conceitos, mas de uma

acumulação incessante do passado como mesmo sem que possa ser traduzido em projetos,

dogmas, ou resoluções. Bergson afirma que somos o que somos enquanto vivemos e que

quando sonhamos (BERGSON, 2006), nosso eu se dispersa na acumulação de tempos. Vejo

em Assis Brasil justamente o procedimento de impedir a dispersão, impedir o sonho e, via

acumulação eterna do mesmo, produzir o que chamo aqui de memória animal, via palavras

que se veiculam por fora das narrativas políticas e, até, da própria vida do sujeito.

Digo isto, pois, conforme prossegue a obra, aos poucos, este ser começa a se lembrar

de algumas coisas, lembra, de início que se chama Jeremias. Este nome, até então

inexplorado, lhe coloca diante diretamente com uma relação entre nome-memória.

Automaticamente, somente a menção desta palavra na forma em que sua memória pode se

lembrar, lhe coloca ao lado da dimensão bibílica-animalesca do profeta Jeremias. O leitor,

então, como agente também desta escrita, como proporia Roland Barthes (1987) e como vê

Deleuze (1988) em “Diferença e Repetição”, se vê diante, ao lado da personagem da

dimensão violenta da palavra.

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Esta lembrança repentina, de certa forma, também lhe violenta, como ressalta

Fontinelles Filho, em seu artigo Além da Escrita e do Grito: Literatura e Violência em Os que

Bebem como os Cães:

Aos poucos, Jeremias vem se reconhecendo: lembra-se de seu nome e

profissão; que era casado com Dulce (criticando-o por se envolver em

questões políticas); que possuía uma filha, Cacilda (de longas tranças,

desejando a boneca da avó); de sua mãe, Matilde (com uma expressão

serena) e do pai (não nomeado, chamando-o de profeta em alusão à Bíblia).

Seu momento auge é quando o personagem diz: ‘Meu nome é Jeremias’.

(FONTINELLES, 2013, p.18)

A dimensão destas palavras que ressurgem como memória parece ser importante

justamente pelo fato de que Jeremias, essa personagem quase muda, em Os que bebem como

os cães ter sido ser inspirada neste profeta bíblico, como é comum em diversas obras de Assis

Brasil. Enquanto que este foi posto “neste dia sobre as nações, e sobre os reinos, para

arrancares, e para derrubares, e para destruíres, e para arruinares; e também para

edificares e para plantares (Jeremias 1:10)”, o outro para que não destrua e para que não

arruine, tal qual na Bíblia, não deve ou não deveria fazer uso da palavra. Para isso, Assis

Brasil derruba Jeremias do altar teológico e em mais um movimento de queda – após a prisão,

a impossibilidade de lembrar, do entorpecimento dos sentidos, das torturas e do

amordaçamento impedindo até que se diga Vivam, Homens! - lhe metamorfoseia em uma

dimensão animal, assim como também no som que esse sujeito emite para o mundo: um grito.

No entanto, este grito provém de quem opta por lembrar e, como vai ressaltar

Fontineles, lembrar para Jeremias, é morrer, pois “na medida em que recobrava sua sanidade e

sua consciência, após período de entorpecimento, aceitar aquela realidade se tornava algo

extremamente insuportável.” (FONTINELLES, 2013, p. 28)

A lembrança, de certa forma, traz de volta à Jeremias uma consciência do outro, uma

alteridade via lembranças que lhe dá consciência, porém uma consciência difícil de aguentar.

Os gritos, até então palavras desconexas ou mensagens de desespero, se tornam discursos

políticos, palavras de resistência. Tratam-se de gritos que nasce dos outros, também Jeremias,

e que se espalham por aqueles que no pátio tentam transitar na dimensão entre humano-

animal limpando-se num tanque.

Agamben (2004/2002) traça em algumas obras, como em O Estado de Exceção e

Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua, a imagem do Homo Sacer, que se trata de um

sujeito que em algumas civilizações após ser condenado é deixado para morrer, sem que

ninguém possa nem assassina-lo, nem alimentá-lo. Um sujeito que era largado e deixava de

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fazer parte da vista dos homens. O Homo Sacer atualiza, de certa forma, a imagem de

Jeremias como um Gregor Samsa, aquele que se metamorfoseia, mas que não deve ser visto,

pois é também um ser em estado de morte. Lembrar para Jeremias é isso: estar em estado de

morte. Lembrar é morrer, memória é a falência da vida. Jeremias é já um morto e todo seu

processo de vida é em direção a essa morte. Não por acaso, ao fim, Jeremias, assim como os

outros presos, vai esfregar seu pulsos em um muro e sangrar até sua vida se esvair. O sangue,

o rio que ainda corria, agora escorre em direção ao chão.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fez-se neste artigo a tentativa de se pensar uma memória que não esteja inserida dentro de

um contexto tradicional em que, mesmo que se trabalhe com grupos de minorias, na tentativa

de manter ou resgatar memórias silenciadas e/ou perdidas, elas sejam, de alguma forma

instrumentalizadas e tornadas espécies de monumentos conceituais que são apreendidos tanto

pelo mercado, quanto pela academia como programação de ideias que impeçam um

pensamento que seja movente ou circule por uma zona indistinta de percepção. Para isso, foi

escolhido o romance Os que bebem como os cães, do escritor piauiense Assis Brasil, cujo

contexto é a prisão, tortura e manutenção de um preso de nome Jeremias em uma cela durante

um período de ditadura. O esforço conceitual foi de pensar como, em certa medida, a ausência

de memória apresentada por Jeremias representa uma forma de potente capacidade de vida e

sobrevivência, a partir da ideia de que, em contato apenas com seu corpo como referência, o

mundo se organiza de forma a viver tudo aquilo que ele lhe pode proporcionar.

É preciso que se diga que não se quer com isso, de forma alguma, justificar ou aceitar

qualquer tipo de forma autoritária de controle de ideias ou de corpos. Toda abordagem foi

feita, levando-se em conta que estava se tratando de uma situação absolutamente limite

apenas como uma referência de como nossos corpos agem em sociedades de controle e

vigilância. Pode-se dizer, de certa forma, que todos nós somos um pouco como Jeremias, uma

vez que somos acossados pelo Estado, pelas empresas e pela militarização de toda forma de

tentativa de pacificação. Jeremias, no fundo, é o reflexo de um corpo da cidade moderna: tem

suas potências negadas, sua memória invadida, perseguida e roubada, deixando-lhe apenas a

capacidade de gestão do próprio corpo. Para inverter esta ideia de que lhe deixam um

“apenas”, busquei pensar nesta memória que seria apenas corpo, uma memória animal, ao

contrário do racionalismo tecnocrata ou das sucessivas e agressivas formatações de

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pensamentos que, em nome do bem ou da liberdade, propõe agressões às nossas escolhas e

individualidades.

Como ressalta Pollak (1989), uma grande dificuldade de se trazer memórias silenciadas à

forma é que:

Em face dessa lembrança traumatizante, o silêncio parece se impor a todos

aqueles que querem evitar culpar as vítimas. E algumas vítimas, que

compartilham essa mesma lembrança "comprometedora", preferem, elas

também, guardar silêncio. Em lugar de se arriscar a um mal-entendido sobre

uma questão tão grave, ou até mesmo de reforçar a consciência tranqüila e a

propensão ao esquecimento dos antigos carrascos, não seria melhor se abster

de falar? (POLLAK, 1989, p.4)

Então, para evitar que se deixe de falar, que se esqueça de falar ou que se aproprie de

falas dos outros, este presente artigo tentou anular essa ambiguidade entre silêncio e voz,

violência e opressão, ao tentar refletir que no corpo cicatrizado daquele que sofre violência há

potências de vida e na organização da sua forma de sobrevivência é que sua história se

estabelece, mais do que nos museus ou nos livros de história.

Se, como foi dito, no caso de Jeremias “lembrar é morrer”, podemos concluir que, em

todo caso, esquecer é viver. Isso não significa que devamos apagar a memória, com o

esquecimento, mas pensar em um universo que, enquanto projeto, ressalta o corpo que

lançado no mundo é a maior forma de fazer jus aos que morreram sem poder viver.

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