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A medicina a serviço do império: a luta contra a doença do sono nas colônias portuguesas nas primeiras três décadas do século XX Ewerton Luiz Figueiredo Moura da Silva A disputa por espaços coloniais na África conduziu ao agravamento das tensões entre as potências europeias e, neste contexto, o governo do recém unificado império alemão convocou uma conferência para o mês de novembro de 1884 com representantes dos países interessados nos assuntos africanos. De acordo com Leila Hernandez, a Conferência de Berlim (1884-1885) marcou a intensificação do processo de roedura da África pelos europeus. Este processo, iniciado pelos portugueses no século XV, foi mantido nos séculos seguintes com a entrada em cena de ingleses, franceses, dinamarqueses, suecos e espanhóis que também começaram a contar com feitorias espalhadas pelos litorais africanos onde mantinham contatos comerciais com as sociedades africanas. Todavia, o controle político direto de extensos territórios pela mão europeia foi reduzido, até a década de 1880 1 . Ao contrário de impor a partilha do continente pura e simplesmente entre os europeus, a Conferência de Berlim buscou estabelecer as regras gerais para uma ocupação futura e minimizar os riscos de conflitos bélicos envolvendo as potências imperialistas, ou seja, procurou regulamentar o scramble for Africa (a corrida para a África). Seus quatros pontos essenciais foram: a total liberdade de navegação pelos rios Congo e Níger importantes vias fluviais para o escoamento de mercadorias do interior para os portos marítimos , a total liberdade de ação para as missões religiosas cristãs em seu trabalho de evangelização dos nativos africanos, o comprometimento no combate à escravidão inclusive este ponto foi utilizado como justificativa para manter a “proteção” europeia em algumas regiões africanas , e a consagração do princípio de ocupação efetiva para a reivindicação de territórios coloniais este último ponto constituiu uma derrota para a diplomacia portuguesa empenhada na defesa dos chamados “direitos históricos” de Portugal 2 . Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo, doutorando pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e bolsista Capes. 1 HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à história contemporânea. 2.ed. São Paulo: Selo negro, 2008.p.43-52. 2 PINTO, Alberto Oliveira. História de Angola. Da pré-história ao início do século XXI. 2.ed. Lisboa: Mercado de letras, 2017.p.578-581.

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A medicina a serviço do império: a luta contra a doença do sono nas

colônias portuguesas nas primeiras três décadas do século XX

Ewerton Luiz Figueiredo Moura da Silva

A disputa por espaços coloniais na África conduziu ao agravamento das tensões

entre as potências europeias e, neste contexto, o governo do recém unificado império

alemão convocou uma conferência para o mês de novembro de 1884 com representantes

dos países interessados nos assuntos africanos. De acordo com Leila Hernandez, a

Conferência de Berlim (1884-1885) marcou a intensificação do processo de roedura da

África pelos europeus. Este processo, iniciado pelos portugueses no século XV, foi

mantido nos séculos seguintes com a entrada em cena de ingleses, franceses,

dinamarqueses, suecos e espanhóis que também começaram a contar com feitorias

espalhadas pelos litorais africanos onde mantinham contatos comerciais com as

sociedades africanas. Todavia, o controle político direto de extensos territórios pela mão

europeia foi reduzido, até a década de 18801.

Ao contrário de impor a partilha do continente pura e simplesmente entre os

europeus, a Conferência de Berlim buscou estabelecer as regras gerais para uma ocupação

futura e minimizar os riscos de conflitos bélicos envolvendo as potências imperialistas,

ou seja, procurou regulamentar o scramble for Africa (a corrida para a África). Seus

quatros pontos essenciais foram: a total liberdade de navegação pelos rios Congo e Níger

– importantes vias fluviais para o escoamento de mercadorias do interior para os portos

marítimos – , a total liberdade de ação para as missões religiosas cristãs em seu trabalho

de evangelização dos nativos africanos, o comprometimento no combate à escravidão –

inclusive este ponto foi utilizado como justificativa para manter a “proteção” europeia em

algumas regiões africanas – , e a consagração do princípio de ocupação efetiva para a

reivindicação de territórios coloniais – este último ponto constituiu uma derrota para a

diplomacia portuguesa empenhada na defesa dos chamados “direitos históricos” de

Portugal2.

Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo, doutorando pelo Departamento de Medicina

Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e bolsista Capes. 1 HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à história contemporânea. 2.ed. São Paulo:

Selo negro, 2008.p.43-52. 2 PINTO, Alberto Oliveira. História de Angola. Da pré-história ao início do século XXI. 2.ed. Lisboa:

Mercado de letras, 2017.p.578-581.

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Embora o foro econômico tenha assumido um papel central para a construção dos

impérios europeus na África, na Ásia e nas ilhas do Pacífico, houve também uma certa

sedução quanto ao status de potência conferido ao país colonizador, que naquela altura

significava ter a sua bandeira tremulando em alguma praia bordada de palmeiras ou ainda

em áreas cobertas de arbustos secos3. Em outras palavras, para pertencer ao seleto grupo

das grandes potências a aquisição de colônias era imprescindível. Assim, os ingleses e os

franceses – com as maiores fatias – e os alemães, os belgas, os italianos, os espanhóis e

os portugueses buscaram fincar suas bandeiras e “civilizar” os “atrasados” povos que

encontravam nas exuberantes paisagens africanas.

Em 1870, o domínio europeu concentrava-se essencialmente em regiões litorâneas

e ainda havia um extenso território ligado ao império otomano, estado majoritariamente

muçulmano. Em 1914, 44 anos depois e às vésperas da Grande Guerra, a África esteve

quase que inteiramente repartida entre sete países ocidentais europeus – à exceção da

Libéria, da Etiópia e da União Sul-Africana, porém esta última manteve-se ligada ao

Reino Unido com elevado grau de autonomia – e suas fronteiras limitavam-se a linhas

retas, sinal claro de partilha, impostas e totalmente artificiais ante às divisões territoriais

das sociedades africanas.

A questão do status representado pela posse colonial foi importante para o caso

português, mas as vantagens econômicas e comerciais de manter um império também

devem ser salientadas. Se por um lado Portugal estava longe de ser uma grande potência

industrial-capitalista, mantendo-se como um país pobre dependente de uma fraca

agricultura e de uma emigração crônica para o Brasil, as tarifas protecionistas, em especial

a partir de 1892, garantiam as exportações de têxteis e de vinhos portugueses para as

colônias, bem como a reexportação de produtos coloniais (borracha, café, cacau e

algodão) que representavam uma vital fonte de divisas para o país4.

A partir da década de 1870, a questão colonial tornou-se cada vez mais importante

para os círculos políticos e intelectuais portugueses, desenvolveu-se um nacionalismo

imperial que buscou reafirmar o projeto do Portugal ultramarino como reação à crise de

3 HOBSBAWN, Eric J. A Era dos impérios, 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campos e Yolanda

Steidel de Toledo. 8.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p.102. 4 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil novas Áfricas. Portugal e o império (1808-1975). Porto:

Afrontamentos, 2000.p.141-444.

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identidade sofrida pelo país em fins do Oitocentos, quando a perspectiva de união ibérica

parecia surgir no horizonte lusitano, em um contexto de transformação do concerto

europeu com as unificações italiana e alemã5. Para muitos, a existência de um Portugal

soberano apartado de suas colônias era inviável e, neste caso, o país seria facilmente

absorvido pela Espanha.

Em 1875 foi fundada, com atraso em comparação às grandes potências europeias,

a Sociedade de Geografia de Lisboa – que buscou promover expedições científicas à

África e mobilizar a opinião pública em defesa do império6. A pressão internacional para

a ocupação efetiva dos territórios esteve na origem das campanhas militares alcunhadas

de “pacificação”, que consistiam em um conjunto de combates para submeter os sobas

africanos ao controle de Lisboa. Foram guerras travadas nas últimas décadas do século

XIX e nos primeiros anos do século XX, localizadas regionalmente, devido à pluralidade

política das sociedades africanas e aos diferentes níveis de pressão exercidos pelas áreas

já controladas pelos portugueses.

Neste contexto histórico, o governo em Lisboa buscou concretizar um projeto de

um novo império africano, talvez bastante pretencioso para as reais condições do país, o

de criar uma colônia de costa a costa, do Atlântico ao Índico, ao unir os territórios de

Angola à contra costa, ou seja, a Moçambique. Para atingir tal intento, a diplomacia

portuguesa buscou se distanciar das amarras que a ligavam à Grã-Bretanha – esta

interessada em construir um império de norte a sul na África, do Cairo à Cidade do Cabo,

e, portanto, conflitivo à proposta portuguesa – e iniciar uma aproximação com os

governos francês e alemão. A proposta apresentada pelo governo português vinha

acompanhada por um mapa onde as pretensões imperiais lusitanas estavam destacadas

em um tom róseo. Tratou-se do célebre Mapa Cor-de-Rosa de 1886, apresentado pela

Sociedade de Geografia de Lisboa.

Os esforços lusitanos para a ocupação militar dos territórios compreendidos entre

Angola e Moçambique foram frustrados em janeiro de 1890 pelo ultimato britânico que

exigiu a pronta retirada das forças portugueses dos territórios em disputa com a Grã-

5 ALEXANDRE, Valentim. O império africano (séculos XIX-XX) as linhas gerais. In: ALEXANDRE,

Valentim (Org.). O império africano, séculos XIX e XX. Lisboa: edições Colibri, 2013.p.17. 6 GARCIA, José Luis Lima. A sociedade de geografia de Lisboa e a propaganda colonial em Portugal

no final do século XIX. Guarda: ESEG Publicações, 2004.

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Bretanha e ainda em 1898 e 1913 as colônias portuguesas estiveram na mesa de

negociação das diplomacias britânica e alemã e um plano conjunto de partilha do ultramar

português foi negociado.

A ameaça da partilha que pairava sobre as colônias portuguesas era consequência

do flagrante contraste entre o tamanho e a importância do ultramar lusitano e as limitadas

capacidades demográficas, militares e financeiras de Portugal. A situação sanitária das

colônias era ainda bastante precária e doenças como a malária, a ancilostomíase, a

esquistossomose, a oncocercose e a doença do sono ameaçavam não apenas a viabilidade

do império português, mas também dos outros impérios europeus na África. No final do

século XIX e nos primeiros anos do século XX, a medicina tropical, em consonância com

os interesses da agenda imperialista europeia, desenvolveu-se com os trabalhos de Patrick

Manson a propósito da filariose (1877), de Charles Laveran (1884), Ronald Ross (1898)

e Giovanni Grassi (1899) em torno do paludismo e de Carlos Juan Finlay (1881) e Walter

Reed (1900) com a febre amarela. Tais pesquisas científicas destacaram a ação de

artrópodes sugadores de sangue como vetores para a disseminação destas enfermidades.

No entanto, a etiologia da doença do sono ainda permanecia uma incógnita e seus estragos

em regiões consideradas estratégicas, como a bacia do Congo e Uganda, preocupavam os

poderes europeus.

Diante deste quadro, o país que conseguisse determinar sua origem e seus

mecanismos de transmissão se destacaria entre seus pares colonizadores. Assim, o

governo português decidiu enviar para a África uma missão constituída por alguns de

seus cientistas com o intuito de estudar in loco a etiologia da doença do sono em 1901. A

missão era composta por, entre outros: Annibal Bettencourt, diretor do Instituto

Bacteriológico e chefe da missão; Annibal Celestino Corrêa Mendes, médico do quadro

de saúde de Angola e Ayres Kopke, diretor do laboratório microbiológico do Hospital da

Marinha. Depois de aproximadamente três meses de pesquisas em Angola e na ilha do

Príncipe a missão apresentou sua conclusão: a doença do sono era uma meningoencefalite

de natureza bacteriana7.

Embora os membros da missão fossem recebidos como heróis no regresso para

Lisboa, os resultados da missão foram questionados por pesquisadores da Universidade

7 A DOENÇA do somno. A Medicina Contemporânea. Lisboa, ano 19, n.40, 6 out. 1901.

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de Coimbra que argumentaram ter identificado o mesmo microrganismo em experimentos

anteriores e por cientistas britânicos que foram enviados à Uganda pela Royal Society of

London em 1902. Uma controvérsia científica internacional envolvendo pesquisadores a

serviço de Portugal e da Grã-Bretanha transcorreu entre 1902 e 1903 e os resultados foram

desfavoráveis para os portugueses com o descrédito da explicação bacteriana para a

doença do sono após os pesquisadores britânicos demonstrarem a ação de um protozoário,

denominado de Trypanosoma gambiense, para os sintomas da doença8.

A partir de 1903 a doença do sono tornou-se uma tripanossomíase humana e seus

sintomas eram associados à ação do tripanosoma sobre o corpo humano. A primeira fase

da doença era caracterizada por febres e o aumento dos gânglios linfáticos na região do

pescoço, isto enquanto o parasito estivesse presente na corrente sanguínea, em uma

segunda fase, o tripanosoma invadia o líquido cefalorraquidiano provocando uma grande,

e invencível, sonolência durante o dia. A doença terminava com a morte do indivíduo e

não tinha cura9.

O vetor da temida doença eram as moscas tsé-tsé, cuja espécie principal era a

Glossina palpalis, tais dípteros, hematófagos de hábitos diurnos, habitavam as florestas

úmidas e de vegetação perene da África subsaariana.

Os europeus recorreram ao trabalho forçado de homens e mulheres nativos para a

extração de riquezas como a borracha, o ouro, o marfim e o café na África, desviando a

população nativa de suas atividades agrícolas tradicionais. A exaustão provocada pelo

árduo trabalho e pela baixa nutrição contribuíram para a diminuição da resistência dos

corpos dos habitantes locais e estes tornaram-se mais suscetíveis às doenças. E para

completar, muitos homens foram obrigados a percorrer longas distâncias no seio das

florestas tropicais, em contato direto com as moscas tsé-tsé10. Os desequilíbrios

ecológicos provocados pela ação do colonialismo europeu potencializaram os efeitos de

doenças endêmicas, como a doença do sono.

8 AMARAL, Isabel. Bactéria ou parasita? A controvérsia sobre a etiologia da doença do sono e a

participação portuguesa, 1898-1904. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol.19,

nº4, 2012-b,p.1275-1300. 9 VELHO, Luís Baptista da Assunção. A doença do sono como entidade mórbida. Revista Médica de

Angola, Luanda, n.2, 1921. p.31-33. 10 LYONS, Maryinez. The colonial disease: a social history of sleeping sickness in northen Zaire, 1900-

1940. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.p.32-51.

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Durante os anos da controvérsia científica com os ingleses sobre a etiologia da

doença do sono, a medicina tropical foi institucionalizada em Portugal com a criação da

Escola da Medicina Tropical de Lisboa em abril de 1902, que começou a funcionar no

antigo edifício da Cordoaria Nacional em conjunto com o Hospital Colonial para onde

foram enviados os enfermos portugueses recém-regressados do ultramar. O objetivo da

Escola era promover o ensino da medicina tropical aos facultativos lusitanos que se

destinassem ao ultramar do país e seus custos seriam patrocinados pelas câmaras

municipais das colônias11.

A Escola de Medicina Tropical de Lisboa existiu até 1935 – ano em que deu

origem ao Instituto de Medicina Tropical – entre 1902 e 1935 instruiu pouco mais de 700

médicos12. A instituição manteve um periódico– os Arquivos de Higiene e Patologia

Exóticas – publicado de maneira irregular entre 1905 e 1926, sendo que seus exemplares

foram impressos nos anos de: 1905, 1906, 1907, 1909, 1910, 1912 e 1913, e depois em

intervalos maiores, 1915, 1918 e 1926. Esta revista científica publicava não apenas as

pesquisas desenvolvidas na Escola, mas também relatórios de médicos do ultramar e

extratos de artigos estrangeiros. Havia ainda a intenção de utilizar o periódico para a

divulgação de medidas profiláticas para o combate das principais doenças que acometiam

as colônias portuguesas: doença do sono, ancilostomíase, filariose, impaludismo e

esquistossomose.

Como os portugueses fracassaram na controvérsia etiológica em torno da doença

do sono, a escola buscou se destacar em pesquisas voltadas para a terapêutica da doença

e, neste quesito, Ayres Kopke, participante da missão de 1901 e professor da Escola de

Medicina Tropical, tornou-se a maior referência da medicina tropical portuguesa no início

do século XX. Em abril de 1906, durante o XV Congresso Internacional de Medicina,

ocorrido em Lisboa, Kopke apresentou os resultados do uso do Atoxyl (anilida meta-

arsênica) no tratamento da doença do sono. Este composto orgânico arsenical, fruto da

11 PINA, Luís. Investigadores portugueses sobre medicina tropical. Anais do Instituto de Medicina

Tropical, Lisboa, v.15, 1958. p.470-474. 12 FRAGA AZEVEDO, João. Cinquenta anos de atividade de instituto de medicina tropical. Lisboa,

1952.p.97-110.

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indústria química alemã, foi empregado pelo cientista português em doentes do sono

através de injeções hipodérmicas em doses máximas de 15 centímetros cúbicos desta

substância diluída em solução aquosa de 10% de oito em oito dias, durante 1 a 2 meses.

Segundo o pesquisador as doses precisavam ser elevadas para evitar a resistência dos

tripanosomas ao uso do Atoxyl, o método de Kopke proporcionava vantagens apenas nos

estágios iniciais da doença:

Em seguida ao tratamento os doentes melhoram, alguns consideravelmente,

desaparecendo os tripanossomas do sangue e do suco linfático facto este

comprovado pela inoculação em animais.

Persistem, porém, os tripanosomas no líquido cefalo-raquidiano, facto que

demonstra serem o tratamento hipodérmico e intravenoso insuficientes para

obter a cura nos doentes em que já se tenha dado a invasão sub-meningea pelos

flagelos13.

O Atoxyl poderia ser eficiente para matar os tripanosomas que se encontrassem

na corrente sanguínea, mas, a partir do momento em que o Trypanosoma gambiense

atingisse o líquido cefalorraquidiano, os efeitos da droga tornavam-se inócuos para

impedir o avanço mortal da doença.

A lógica empregada nestes tratamentos consistia em utilizar compostos químicos

de ação tripanocida, porém estes mesmos compostos também eram potencialmente

danosos ao corpo humano: as doses de Atoxyl provocavam sintomas de intoxicação com

dores no Epigastro, vômitos e, o pior, o aparecimento de graves lesões oculares que

poderiam levar à cegueira14. O medicamento era aplicado também como medida

profilática: ao injetar a droga no organismo de um indivíduo, os tripanosomas

desapareciam da corrente sanguínea o que impossibilitava o contato dos parasitos com a

mosca tsé-tsé no momento da picada.

O uso frequente do Atoxyl começou a deixar claro suas contraindicações e no

início da década de 1910 sua utilização, embora continuasse vigente, passou a ser

seriamente questionada: “toda a gente está actualmente d’accordo em que a cegueira

apparecida no decorrer da doença do somno deve ser atribuída, quasi exclusivamente, à

13 KOPKE, Ayres. Estudo da doença do sôno. Memória premiada no concurso da Sociedade de Geografia

de Lisboa. Lisboa: Tipografia da Cooperativa Militar, 1915. p.113. 14 REBÊLO, Frederico Leopoldino. O Atoxyl no tratamento da doença do sono. 56f. Tese de

Doutoramento, Faculdade de Medicina do Porto, 1921.p.43.

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medicação atoxylica empregada para a combater15”. Ao longo das décadas de 1910 e

1920, outras drogas foram usadas para o tratamento da doença do sono como o Bayer-

205 e o Triparsamida, tidas como menos perigosas ao homem que o Atoxyl16.

A doença do sono ocupou um lugar de destaque na agenda científica da Escola de

Medicina Tropical de Lisboa, sendo que a maioria das missões apoiadas pela escola na

África destinou-se a estudar ou combater a tripanossomíase humana africana (Príncipe

1904, 1907 e 1911; Moçambique 1910 e 1928 e Guiné 193217). A primeira delas foi

enviada para a ilha do Príncipe na sequência de uma epidemia de beribéri e comandada

por Ayres Kopke que aproveitou a viagem para estudar os doentes do sono e colher

espécimes de glossinas em Angola e no Príncipe – visto que a escola encontrava grandes

dificuldades em conseguir o envio de doentes para Lisboa, bem como a remessa de

exemplares de moscas para compor seu acervo entomológico.

A presença de Kopke em África contribuiu para estreitar as relações com médicos

pertencentes ao quadro de saúde das colônias: Annibal Corrêa Mendes, membro da

missão de Bettencourt de 1901 e diretor do laboratório bacteriológico do Hospital Maria

Pia em Luanda, e Bernardo Bruto da Costa, diplomado pela Escola de Medicina Tropical

em 1905 e diretor do laboratório bacteriológico de São Tomé. Estes homens, em 1907,

protagonizaram a segunda missão enviada à ilha do Príncipe para combater a doença do

sono que causava grandes prejuízos materiais e humanos18.

A terceira missão de estudos foi comandada por José Firmino Sant’Ana,

diplomado no curso de medicina tropical pela escola em 1907, em Moçambique no ano

de 1910. A doença do sono na África oriental portuguesa possuía algumas

particularidades em relação às colônias voltadas para o Atlântico: seu agente etiológico

era o Trypanosoma rhodesiense e o vetor predominante era a Glossina morsitans.

15 PINTO, J. da Gama. As perturbações visuais na tripanossomíase. A Medicina Contemporânea, Lisboa,

ano 29, jan.1911. p.31. Procedeu-se na manutenção da grafia original. 16 PINTO, B.R Gomes. Resultados do tratamento de tripanossomados avançados com vírus gambiense por

triparsamida por via intra-carotideana. . A Medicina Contemporânea, Lisboa, ano 52, mar.1934. p.93-99. 17 AMARAL, Isabel. Emergence of tropical medicine in Portugal: the school of tropical medicine and the

colonial hospital of Lisbon. In: Dynamis, v.28, 2008. p.312-318. 18 CASTRO, Ricardo Motta Veiga Themudo. A escola de medicina tropical de Lisboa e a afirmação

do estado português nas colónias africanas (1902-1935).165f. Tese (Doutoramento) – História, Filosofia

e Património da Ciência e da Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, 2013.p.45-47.

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Em Moçambique a tripanossomíase humana africana não assumiu a mesma

dimensão epidemiológica de Angola ou da ilha do Príncipe, mas o relatório de Firmino

Sant’Ana chamou a atenção para a ameaça de invasão da África oriental portuguesa pela

doença através dos distritos de Tete e Quelimane – localizados na fronteira com as

colônias inglesas da Rodésia do Norte e da Niassalândia, ambas contaminadas pelo

Trypanosoma rhodesiense. Além disso, os temores eram justificados pela constatação da

existência de exemplares da Glossina morsitans pelo território moçambicano e pelo

constante tráfego de indígenas e mercadorias entre as colônias inglesas e a portuguesa.

Como medida preventiva, Sant’Ana prescrevia a derrubada de florestas, a eliminação da

caça, a atenção aos indígenas que retornassem da ilha do Príncipe e o controle dos

movimentos populacionais entre as áreas infectadas e as áreas indenes.

A acção dos médicos diz respeito não só à difusão da assistência médica, como

tambêm à pesquisa dos casos de infecção, ao estudo da distribuição das

glossinas e à execução imediata de todas as medidas de defesa que as

oportunidades reclamem, competindo a cada um, na respectiva área, a

inspecção dos emigrantes que devem passar a fronteira vindos das regiões

infectadas19.

Entre os anos de constituição de tais missões de estudo à África, Portugal sofreu

uma importante ruptura institucional: em 5 de outubro de 1910 o rei D. Manuel II foi

deposto e a República implantada no país. O historiador Ricardo Themudo de Castro

analisou como a mudança do regime político possibilitou a alteração do papel

institucional da Escola de Medicina Tropical de Lisboa.

Desde sua fundação até o fim da monarquia portuguesa (1902- 1910), a Escola de

Medicina Tropical constituiu-se como uma importante peça da administração colonial,

sujeita ao Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, a instituição conseguiu

legitimidade científica em Portugal e no exterior ao atuar como uma reguladora das

práticas médicas exercidas nas colônias e articuladora entre a política sanitária portuguesa

no império e os debates científicos internacionais. No entanto, o trabalho da Escola,

apoiado pelas autoridades políticas monárquicas, aproximou-se dos médicos coloniais

conferindo, desta forma, legitimidade aos mesmos – como Corrêa Mendes e Bruto da

19 SANT’ANA, Firmino. A Tripanosomíase humana da Rhodésia. Arquivos de Higiene e Patologia

Exóticas, Lisboa, v.4, 1913. p.42. Procedeu-se na manutenção da grafia original.

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Costa que chefiaram missões de estudo nas colônias – o que se traduziu em uma partilha

de autoridade entre a Escola e os quadros técnicos dos serviços de saúde nas colônias.

Este processo acabou por ser intensificado durante os primeiros anos da República

Portuguesa, já que a Constituição de 1911 sinalizou para uma maior descentralização na

administração colonial. As diretrizes republicanas para a Escola reforçaram seu caráter

como instituição de ensino em detrimento de seu papel como produtora de conhecimentos

médicos e afastaram aquela instituição da administração colonial, a Escola de Medicina

Tropical passou para a alçada do Ministério da Instrução Pública entre 1913-1918. A

queda do ritmo científico da Escola pôde ser avaliada pelas edições de seu periódico, os

Arquivos de Higiene e Patologia Exóticas: entre 1905 e 1913 foram publicados em

praticamente todos os anos; já no intervalo entre 1913 e 1926 foram impressos apenas em

quatro anos (1913, 1915, 1918 e 1926). A eclosão da Primeira Guerra Mundial também

contribuiu para o arrefecimento da produção científica dos docentes da Escola ao

dificultar o intercâmbio internacional.

Por outro lado, os médicos dos quadros de saúde das colônias, em contato direto

com as populações indígenas e as doenças, beneficiaram-se com a maior descentralização

administrativa em relação à Lisboa e, particularmente, em relação à Escola de Medicina

Tropical. Neste contexto, de valorização dos profissionais dos quadros de saúde coloniais,

deve-se compreender a publicação de uma norma em 1920 que garantia aos médicos

coloniais, diplomados com o curso de medicina tropical, o acesso aos concursos para os

cargos de docência na Escola em Lisboa20.

Referências

A DOENÇA do somno. A Medicina Contemporânea. Lisboa, ano 19, n.40, 6 out.

1901.p.327-328.

ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil novas Áfricas. Portugal e o império (1808-

1975). Porto: Afrontamentos, 2000.

20 CASTRO, Ricardo Motta Veiga Themudo. A escola de medicina tropical de Lisboa e a afirmação do

estado português nas colónias africanas (1902-1935).165f. Tese (Doutoramento) – História, Filosofia e

Património da Ciência e da Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, 2013.p.31-89.

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