a mediaÇÃo da danÇa do ventre

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    Psicol. Argum. 2008 abr./jun., 26(53), 117-125

    A MEDIAO DA DANA DO VENTRENA CONSTITUIO DO SUJEITO

    The mediation of the dance in the constitution of subjectivity

    Alice Casanova dos Reisa, Andra Vieira Zanellab

    a Doutoranda em Psicologia Social na Universidade de So Paulo, So Paulo, SP - Brasil, e-mail: [email protected] Prof. do Departamento de Psicologia e do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina,

    Bolsista em produtividade do CNPq, Santa Catarina, SC - Brasil, e-mail: [email protected]

    Resumo

    Este texto relata uma pesquisa em que o danar se constituiu como objeto de reflexo e prtica paracompreender o processo de constituio do sujeito. Investigaram-se os sentidos de si e de outros(re)produzidos por aprendizes de dana do ventre a partir do seu danar, destacando-se o contextorelacional nesse processo. Foram sujeitos da pesquisa 14 meninas, entre 7 e 12 anos, alunas de dana doventre, ministrada pela autora principal, em uma instituio formal de ensino. A coleta de dados procedeu-se por meio de questionrio, respondido pelos sujeitos, portflio, produzido por cada aluna aps umaapresentao pblica do grupo e depoimento filmado. Analisou-se a interdiscursividade (Bakhtin, 2003)entre os enunciados dos sujeitos, das pesquisadoras e de tericos da Psicologia Histrico-Cultural e daDana. Como resultados, constatou-se que o ensino da dana oriental nos espaos escolares pode se

    constituir como educao tico-esttica comprometida com a potencializao do sujeito e seureconhecimento como devir polissmico.

    Palavras-chave: Constituio do sujeito; Dana do ventre; Relaes estticas.

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    Abstract

    The thematic subjectivity was focus of this research, that had for objective to investigate the

    directions of itself and others produced by learned of Bellydance pupils. The importance of therelationship context in this process was distinguished it. 14 girls had been citizens of the research,between 7 and 12 years, pupils of Bellydance given for the main author in a regular school. Thedata had been collected through a questionnaire, answered for the pupils and an album, producedfor each pupil after a public presentation of the group. It was analyzed interdiscursivity (Bakhtin,2003) enters the statements of the citizens, the researchers and theoreticians of Historical-CulturalPsychology and Dance. As result, one evidenced that the education of Eastern Dance in schoolscan consist as engaged ethical-aesthetic education with the effort of the life and its recognition inthe multiple possibilities.

    Keywords: Subjectivity; Bellydance; Aesthetic relations.

    INTRODUO

    O presente trabalho relata uma pesquisaque teve por objetivo investigar os sentidos de sie de outros (re)produzidos por aprendizes dedana do ventre a partir do seu danar, refletindosobre a mediao dessa atividade na constituiodos sujeitos. A pesquisa desenvolveu-se junto auma escola de uma cidade de mdio porte do Suldo Brasil, durante o ano letivo de 2005, com umgrupo de alunas participantes da atividadeextracurricular de dana do ventre, ministradapela autora principal. O grupo era formado por14 meninas, alunas regulares do ensinofundamental naquela escola.

    Procurou-se, por meio das atividadesdesenvolvidas nas aulas de dana, desenvolver aexpressividade artstica e a criatividade das alunas,proporcionando-lhes espaos em que puderamexperimentar novas possibilidades de objetivaoe subjetivao na relao consigo mesmas e com

    os outros que lhes eram significativos.Buscamos destacar o papel fundamentaldo contexto relacional em que o danar sedesenvolveu, tendo como aporte terico-epistemolgico o materialismo histrico e dial-tico. A partir dessa perspectiva, o ser humano um sujeito histrico e social, que se constituienquanto tal a partir de sua relao com osoutros, sendo essa relao semioticamente media-

    da (Vygotsky, 2000). A qualidade dessas relaes,por sua vez, condio para se auferir as relaesque o sujeito estabelece consigo mesmo, e adana se apresenta nesse processo como mediaoque possibilita o estabelecimento de relaesestticas1. Enfocaremos aqui os lugares ocupadospelas aprendizes nessas relaes estticas e assignificaes a produzidas, por elas e pelos outroscom os quais convivem.

    As reflexes aqui apresentadas partiramdas falas das aprendizes, buscando analisar ossentidos a expressos, a partir dos aportes tericosda Psicologia Histrico-Cultural (Vygotsky, 1990,1999, 2000) e da dana (Dantas, 1999). Nessaperspectiva, o sujeito um ser social, da e nahistria. A singularidade humana resulta daapropriao pelo sujeito dos sentidos que mediamas relaes sociais das quais ativamente participa.Como nos aponta Molon (1999, p. 69):

    Neste universo de discusso centralizado naconcepo semitica do sujeito, ele constitui-se pelo outro e pela linguagem por meio deprocessos de significao e dos processosdialgicos, rompendo com a dicotomia entresujeito e social, entre eu e o outro.

    A compreenso do papel fundamental dalinguagem no processo de constituio do sujeitoaponta para a necessidade de entendermos o sujeito

    1 Por relaes estticas compreendemos as relaes em que se destaca a mediao do sensvel, da criatividade e a abertura desentidos, constituindo-se o sujeito nessa situao como criador ou contemplador de um objeto reconhecido como esttico

    (Vzquez, 1999).

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    no seu contexto, este entendido enquanto texto com,ou seja, co-produo de sentidos por sujeitos emrelao. Ao nos perguntarmos sobre os sentidos

    produzidos pelas aprendizes a partir do seu danar,estaremos destacando essa dimenso constitutiva erelacional da linguagem. Nesse sentido, a fala dooutro constituinte do eu, pois, como sublinhaBakhtin (2003, p. 402): ...essas palavras-alheiasso reelaboradas dialogicamente em minhas-alheias-palavras [...] e em seguida [nas] minhas palavras.

    Contextos formais de ensinar e aprender,enquanto espaos privilegiados de educao emnossa sociedade, tm uma importnciafundamental nesse processo. Primeiro porque nelesa criana colocada em contato com uma

    determinada cultura cientfica, social e historica-mente produzida pela humanidade e reconhecidacomo seu legado s novas geraes. Segundoporque, no processo de apropriao dessa cultura,a criana participa ativamente na produo dassignificaes que mediam as relaes sociais atravadas, sendo ao mesmo tempo produzida porelas: Contextos de ensinar e aprender so, portan-to, contextos de produo de significaes em queos sujeitos em relao ativamente produzem aosoutros como a si mesmos (Zanella, Da Ros, Reis,Frana, 2004, p. 96).

    As relaes interpessoais em contextos deescolarizao formal trazem, no modo como seconfiguram, a especificidade de seu objetivo principale que diz respeito funo socialmente reconhecidada escola: o ensino e a aprendizagem de conheci-mentos cientficos. Em razo disso, a dimensocognitiva ganha maior visibilidade e maisvalorizada, apesar de reconhecermos que a totalidadedo sujeito est implicada no processo de ensinar eaprender. Isso significa reconhecer que, mais doque conhecimentos cientficos, as salas de aula so

    espaos onde circulam e so (re)produzidos(in)tensamente vontades, desejos, emoes,costumes, valores, modos de ser, corpos, pessoas.

    Essas pontuaes se fazem necessrias paraentendermos o lugar da atividade artstica na escola,e a especificidade das relaes por ela mediadas.Consideramos o fazer artstico como uma atividadeonde os sentimentos se destacam, pois ... a arte uma tcnica social do sentimento, um instrumento

    da sociedade atravs do qual incorpora ao ciclo davida social os aspectos mais ntimos e pessoais donosso ser (Vygotsky, 1999, p. 315).

    Desse modo, a atividade artsticapossibilita a produo de sentidos mediada pelaafetividade, abrindo espao, na relao consigomesmo e com o outro, para a expresso de sensibili-dades, inaugurando relaes estticas2. Essasrelaes caracterizam-se por uma perceposensvel em que o sujeito pe em jogo tudo que como ser que sente, pensa e padece (Vzquez,1999, p. 146).

    Definimos essa percepo sensvel quecaracteriza a relao esttica como olhar esttico(Reis, Zanella, Frana, Da Ros, 2004, p. 51), um

    olhar que, para alm do ato fisiolgico dapercepo, no apreende a realidade como dado,mas a reconhece como multifacetada e polissmica,ampliando suas possibilidades significativas.

    A partir da, destaca-se a importncia dainsero da atividade artstica nos contextosescolares, pois por meio dela o sujeito pode vivenciar novas possibilidades de expresso e(re)significao de si, na dialtica entre subjeti-vao e objetivao mediada pela criao artstica(Zanella, Res, Camargo, Maheirie, Frana &DaRos 2005). No caso da dana, arte especficaque nesta pesquisa enfocamos, essa expressoacontece por meio do corpo, pois no corpo quea criao se objetiva e este uma dimenso funda-mental atravs do qual o sujeito se constitui: ... ocorpo o homem que se exterioriza, o que me ligaaos outros e ao mundo, aquilo por meio de queeu me expresso e tomo conscincia de mim mesmo(Garaudy, 1980, p. 181).

    O corpo, portanto, enquanto realidadebiopsicossocial, fundamento e expresso de umsujeito que corpo criado e constantemente

    recriado nas vivncias cotidianas, nas prticassociais das quais o sujeito ativamente participa,sejam estas deliberadas ou no, conscientes ouinconscientes, efmeras ou duradouras. Nessasprticas, os sujeitos (re)inventam criativamenteseus modos de ser, de viver e de estar com outros.Assim, partindo de uma concepo no inatistasobre a criatividade (Zanella, Da Ros, Reis,Frana, 2003, 2004), destaca-se a importncia da

    2 Importante esclarecer que as relaes estticas no se estabelecem somente via arte, porm a partir do recorte artstico que aqui

    as enfocamos. Sobre esttica, vide Vzquez (1999).

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    insero nos espaos escolares de prticaspsicossociais que possibilitam o desenvolvimentode atividades criadoras.

    Segundo Vygostky (1990), a criatividadeexiste enquanto ao criadora que envolve areelaborao de fragmentos da realidade, ou seja,a recombinao de aspectos variados atravs daimaginao, em um processo que envolvecognio, vontade e afetos, gerando um produtoque, ao se objetivar, traz consigo algo novo,transformando a realidade da qual partiu e aomesmo tempo o seu criador.

    Na dana, a realidade da qual se parte o corpo, na sua interseco entre o biolgico e ocultural, o qual ganha outras formas na medida

    em se trans-forma pelo movimento: A dana possibilidade de arte inscrita no corpo metforado pensamento e realidade desse mesmo corpo.Realidade do corpo, pois nele que a dana seestrutura. [...] A dana o corpo transfigurando-se em formas (Dantas, 1999, p. 24-25).

    Na dana, diferentemente das artesplsticas ou da literatura, a matria a ser trabalhada,a ser transformada em obra, no algo externo aosujeito, mas ele prprio, o seu corpo, que, todavia,no um corpo simplesmente, mas um corpo quefoi esculpido com os diversos sentidos que(con)formam o sujeito. O corpo aqui compreendidoa partir de Espinosa (1989), filsofo cujo monismoentre corpo e alma ressoa na obra vygotskyana3, ouseja, como organicidade simblica, considerando-se razo e emoo como indissociveis.

    sobre este corpo, afetivo-simblico, quea dana, enquanto tcnica do movimento, inseresuas marcas, reconfigurando-o, conforme explicaDantas (1999, p. 28): quem dana transforma oseu prprio corpo, se molda e se remodela, sereconfigura. A dana, portanto, pode a partir dessatransformao do corpo engendrar mudanas nasubjetividade daquele que dana.

    MTODO

    Para desenvolver esta pesquisa, baseamo-nos em uma perspectiva dialgica, que reconhecea necessidade de se estudar o sujeito a partir dos

    enunciados4 que produz no contexto a serinvestigado, assim como a implicao dopesquisador na produo e interpretao desses

    enunciados (Bakhtin, 1999, 2003). Assim,procuramos neste estudo dar voz s alunas dedana do ventre, colhendo seus depoimentos sobreessa atividade atravs de trs instrumentos: umquestionrio (aplicado aps 6 meses do incio dasatividades), com perguntas que as alunasresponderam por escrito; um portflio, produzidopor elas aps a apresentao do grupo em umevento cultural do colgio, na semana do Dia dasCrianas; e o depoimento das alunas noencerramento da atividade, registrado em fita VHS.

    O questionrio constitua-se de perguntas

    abertas, que foram respondidas individualmente, esua aplicao ao grupo durou em mdia 30 minutos. As questes visavam a apreender os significadosapropriados pelas alunas sobre a dana que estavamaprendendo e os sentidos que atribuam a si mesmascomo sujeitos dessa atividade.

    O portflio teve como objetivo o registro,em forma plstica e textual, da experincia vividadurante a apresentao da dana para o pblico. Asua confeco foi proposta na aula seguinte apresentao e, para tanto, foram disponibilizadosmateriais variados, como papis A4, lpis de cor ecanetinhas. As alunas criaram um pequeno livreto,desenhando e colorindo na capa a sua represen-tao como bailarina e redigindo em seu interioruma narrativa pessoal sobre o acontecimento.Elas puderam elaborar seus portflios livremente,sendo que em mdia levaram uma hora para arealizao do registro. Na aula seguinte, cadaaluna apresentou seu livreto, mostrando o desenhoe lendo a narrativa para o grupo. Procedeu-se,dessa forma, reflexo coletiva sobre aapresentao de dana e as vivncias de cada uma,

    em especial sobre como se sentiram ao danar(muitas pela primeira vez) para o pblico.Os depoimentos foram filmados em fita

    VHS durante a confraternizao que marcou oencerramento anual das atividades, quando asalunas apresentaram duas coreografias para o p-blico, formado em sua maioria pelos pais. Depois

    3 Assim como em Espinosa (1989) encontramos uma ligao intrnseca entre idias e afeces, em Vygotsky (2000) encontramosuma base afetivo-volitiva para o pensamento.

    4 Bakhtin (1999) apresenta o conceito de enunciao para referir-se vinculao da fala do sujeito com outras falas, pois considera

    que h sempre algum interlocutor, presente ou ausente, que referncia para a fala do sujeito e tambm sua audincia.

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    de danarem, conversarem, comerem, brincarem,a professora props uma roda de despedida emque cada uma falasse o que as aulas de dana do

    ventre tinham proporcionado a elas.Dentre a totalidade do material coletadopor meio dos procedimentos descritos, foramselecionados os enunciados mais significativos paraos objetivos deste estudo. Essa seleo realizou-sea partir da leitura exaustiva das falas registradas,agrupando-se os enunciados, a partir do seucontedo, em eixos temticos de significao, apartir dos quais a anlise se desenvolveu. Estaprocurou realizar-se por meio da interdiscursividadeentre as falas dos sujeitos e das pesquisadoras,lembrando que Toda interpretao o

    correlacionamento de dado texto com outros(Bakhtin, 2003, p. 400). Nessa via metodolgica, opesquisador se constitui como parte integrante doevento pesquisado, pois se entende que ... ointerpretador parte do enunciado a ser interpretado,do texto (ou melhor, dos enunciados, do dilogoentre estes), entra nele como um novo participante(Bakhtin, 2003, p. 329).

    RESULTADOS

    Nas falas das pequenas bailarinas,encontramos mltiplos sentidos, sentidos produzidospor elas a partir da sua prpria vivncia da dana esentidos por elas apropriados a partir da interaodialgica com os outros que as assistiram danar.Nesta anlise apresentamos trs eixos temticos emtorno dos quais se desenvolveu essa produo desentidos de si e dos outros, mediada pela dana.

    O sentido corporal de si

    Agrupamos neste eixo temtico as falasem que a produo de sentidos pelas alunasremeteu a um referencial interno, da sua prpriasensibilidade ao danar. Assim, nestes enunciados,o danar foi significado pelas alunas como umaatividade mobilizadora de diversas sensaescorporais, constitutivas de sua subjetividade.

    a partir de um sentido cinestsico,referente s sensaes corporais durante aexecuo dos movimentos, que uma das alunasfalou de sua experincia com a dana do ventre:

    Para mim uma dana que faz o nosso corpo se soltar(Maria5). Se a dana faz o corpo se soltar, entoantes ele estaria preso? Mas a qu? No relato da

    apresentao, Maria afirma: No comeo eu estavadura, no conseguia danar, mas depois eu me soltei.Podemos pensar que talvez a dana tenhapossibilitado a Maria uma forma diferente de serelacionar com o prprio corpo no espao escolar,mais livre em sua expresso. Isso porque a danaacontecia depois de encerrado o turno de aulas,de modo que o corpo, que havia permanecidohoras sentado e relativamente silenciado, estavaento liberado para se soltar.

    Tambm podemos pensar que a danalibera o corpo dos condicionamentos que balizam e

    ao mesmo tempo restringem os movimentos dosujeito no seu cotidiano, seja ele de trabalho ouestudo. Isso porque nela o foco de ateno est noprprio corpo, onde o movimento no automtico,dado ou imposto, mas criado ativamente pelosujeito como movimento expressivo em quereintegra harmoniosamente o fazer e o sentir. Essareintegrao possvel com o auxlio dapropriocepo, a qual como revirar o corpo, como v-lo e ouvi-lo inteiramente. como degustaro sabor do movimento (Dantas, 1999, p. 111).

    Para as participantes desta pesquisa, qualfoi o sabor dos movimentos aprendidos e danados?Para Cristina, foi o seguinte: Eu me senti leve comouma pluma, fiquei vontade. A leveza uma dasqualidades plstico-cinestsicas dos movimentosna dana do ventre, especialmente movimentosondulatrios e giros, atravs dos quais a bailarinaexperimenta seu corpo numa nova relao com otempo e o espao, liberando-o dos vnculos usuaiscom a gravidade e a inrcia muscular. Essa relao regida, entre outros fatores, pelo ritmo, aspectoa partir do qual Patrcia significou a atividade

    investigada: Para mim a dana do ventre uma danaque tem que ter ritmo.Segundo Dantas (1999, p. 19), ... o

    ritmo organiza o fluxo de energia do movimentoatravs do tempo e do espao. Contudo, nadana, a finalidade dessa organizao estdesvinculada da demanda cotidiana do trabalhoe/ou estudo, no qual o corpo solicitado ao,tendo em vista um fim exterior a ela, ou seja, aao liberada de uma finalidade prtico-utilitriae experimentada como um fim em si mesma.

    5 Os nomes que aparecem neste trabalho so todos fictcios, para que a identidade das alunas seja preservada.

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    Libertado da exigncia de produo, o sujeitopode movimentar-se na dana pelo prprio prazerdo movimento, estabelecendo com seu corpo

    uma relao esttica, de fruio.

    O sentido emocional de si

    Na relao esttica mediada pela dana,o corpo se constitui como centro irradiador econvergente de mltiplos sentidos. Esses sentidosenraizados no corpo ensejam diferentes estadosemocionais, positivos ou negativos, que chegam conscincia dos sujeitos, sendo por elesapreendidos significativamente como sentimentos de felicidade, orgulho, vergonha. Em suas

    narrativas, as alunas destacaram diferentesemoes e sentimentos:

    A apresentao da dana do ventre foi muito emocionante,o resultado da dana foi positivo, mas no final eu errei,mas fingi que nem percebi. O grupo colaborou e a dana

    ficou tima, no comeo fiquei envergonhada, mas no meiofiquei ansiosa (Patrcia).

    Eu senti muita alegria, pois com essa dana podemos nosdivertir (Maria).

    Ns viemos ensaiando desde o incio do ano paraapresenta. O dia se aproxima, ele chega, antes daapresentao nos vestimos, maquiamos e vamos para aapresentao. Eu estava me sentindo feliz, na boa, masum pouco aguniada. Vamos para apresentar, tenteime concentrar, tentei achar minha me, no achei, meconcentrei e no errei, acabou. Fui para a sala para mevestir novamente, voltei para o ginsio, achei minha me,

    fiquei o resto das apresentaes l [...] Minha me achoumuito legal, a mais bonita de todas apresentaes e eumais ainda! (Lcia).

    Ao produzirem as narrativas acima trans-critas, as alunas objetivaram os vrios sentimentosque experimentaram ao danar. Pode-se analisarque estes foram sentimentos que naquele momentovivido mediaram a constituio da sua subjetividade,contribuindo para que ento se tornassem na referidaocasio: felizes, nervosas, ansiosas, envergonhadas,orgulhosas, alegres, angustiadas, concentradas,bonitas, admiradas pelo outro, reconhecidas.

    Percebe-se que s vezes foramcontraditrias as emoes experimentadas pelaspequenas bailarinas ao se apresentarem para o pblico(orgulho e vergonha em Patrcia, felicidade e angstia

    em Lcia). Apesar disso, na fala de Cristina parece

    que os sentimentos de um modo geral puderamencontrar uma via de expresso na dana: A dana doventre o modo de uma bailarina se expressar atravs de seus

    movimentos (Cristina).Pode-se analisar que, encontrando na

    prpria dana uma via para sua manifestao, talvezesses sentimentos, artisticamente objetivados,puderam desse modo ser transformados, produzindo-se como sntese a essa contradio um resultadopositivo, como afirmou Patrcia. Esse seria o processode catarse das emoes, proporcionado pela arte, noqual ... as emoes angustiantes e desagradveis sosubmetidas a certa descarga, sua destruio etransformao em contrrios... (Vygotsky, 1999, p.

    270). Nesse sentido, singular a descrio por meioda qual Ariane registrou no portflio sua primeiraexperincia de danar para o pblico:

    Na sexta-feira a dana do ventre apresentou, no comeoeu estava muito agitada. Quando comecei a danar euestava me achando muito concentrada, no fim eu comeceia chorar pois eu gostei muito e um menino estava meolhando e minha famlia. A minha famlia disse que aapresentao estava nota dez e que esta apresentao foimelhor do que o ano passado.

    As palavras de Ariane so representativasde uma (in)tensa vivncia afetiva, em que o prazerde danar e a alegria de mostrar o resultado produzidoao longo de muitos ensaios transbordaram em choro,ao constatar a presena e o reconhecimento depessoas queridas por ela. Pode-se a partir da cogitarque a dana abriu para as meninas investigadas umespao de contato, legitimao e apropriaosignificativa das prprias emoes, respeitando-secomo vlidas a expresso das diferentes tonalidadesemocionais que constituem a vida afetiva do sujeitona sua interao com os outros.

    Movimento dialgico dossentidos de si e de outros

    Neste eixo temtico reunimos osenunciados em que os sentidos expressos pelasalunas acerca da vivncia da dana apareciamvinculados aos outros, ou seja, aos espectadorese ao modo como interagiram dialogicamente comelas nessa atividade. Isso apareceu em diversasfalas, como nesta em que uma das alunas afirma:Foi muito legal na hora da apresentao, tinha um

    monte de gente nos olhando... (Viki). Qual o sentido

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    desse olhar? Pode-se analisar que a qualidade doolhar do outro pequena bailarina foi fundamentalna significao de sua experincia de danar.

    Os sentidos produzidos pelos outrosque assistiram dana apresentada e percebidospelas crianas atravs de seus olhares, de seussorrisos, de seus gestos e palavras de aprovaoou, porventura, desaprovao, foram por elasapropriados, de modo que nesse movimentodialtico o sentido de si se produziu tambm apartir do sentido do outro. Com isso, destacamosa participao da alteridade na constituio dasubjetividade das alunas na dana.

    Na relao de ensino-aprendizagem dadana investigada essa participao do outro na

    constituio do eu aparece na fala de uma aluna:Na apresentao, me achei muito sorridente, neste anofoi o melhor de todos. O ano passado a prof. no era amesma, a desse ano muito mais exigente e tambmensina muitos passos e nos faz repeti-los. Tambm ela

    faz brincadeiras e ensaia conosco algumas coreografias.Nossa apresentao em comparao com as outras foium sucesso! (Maribel).

    Pode-se analisar a mediao pedaggicana constituio da subjetividade das alunas a partirdos aspectos trazidos por Maribel em seu

    depoimento. Assim, destacamos primeiramente que,no ensino-aprendizagem da dana, ... a construodo corpo no pode ser vista apenas como corpoindividual que eu construo, mas se trata de umcorpo que eu construo sob o olhar do outro e paraque ele possa ser olhado pelo outro (Santin, 1995,p. 41). Na dana, o corpo construdo socialmentea partir da apropriao da sua tcnica, umaprendizado que se faz sob o olhar de um outro (aprofessora) e cujo produto, a coreografia, criadopara ser olhado pelos muitos outros (o pblico).

    Pode-se interpretar na fala de Maribel as

    diferentes aes da professora (ensinar os passos,fazer as alunas os repetirem, ser exigente, fazerbrincadeiras e ensaiar coreografias) como algumasformas por meio das quais esse olhar do outroparticipou ativamente do processo em questo. Oolhar atento da professora mediou um aprendizadocorporal que, a partir da apresentao realizada,foi percebido como um sucessopor Maribel, resultadoda disciplina dos exerccios, mas tambm do carterldico que permeou as aulas de dana.

    No movimento dialgico entre ossentidos de si e de outros produzidos na atividade

    da dana, alm da relao com a professora,

    tambm se destacou nas falas das alunas a relaocom os espectadores, a qual aparece, por exemplo,no seguinte relato:

    Quando acabei de apresentar todo mundo aplaudiu equem veio assistir da minha famlia disse que todasdanaram bem e uma das melhores danas que seapresentou foi a gente. Eu gostei muito de danar equeria neste ano apresentar mais uma vez. Foi muitolegal! (Lila)

    Pode-se analisar que os aplausos do pblico,ou seja, o reconhecimento de si pelo outro na dana,intensificaram em Lila um sentido positivo de simesma naquela atividade, mobilizando-a a desejar

    apresentar-se novamente, ou seja, transformando adana em um projeto de futuro a partir do qual suasubjetividade presente se constituiu.

    Todas as alunas se remeteram nanarrativa da apresentao aos familiares que asassistiam, indicado-nos a importncia destasfiguras de referncia na constituio dasubjetividade mediada pela dana no contextoinvestigado, como se v no seguinte depoimento:

    A minha famlia adorou, minha v, meu v, minha mee meu pai e quem seja. Eu estava feliz, eu no olhei pro

    cho nem pro teto, eu acho que a nossa apresentao foia mais bonita, a nossa roupa brilhou sabe, porque as luzesforam at nossa roupa e a brilhou bastante (Mrcia).

    O sentido do belo aparece na fala deMrcia como um dos aspectos presentes na suaexperincia de danar. Mas no apenas as luzes eo brilho das roupas contriburam para que ela sesentisse feliz e significasse sua dana como amais bonita, pois tambm o olhar dos outros, aadmirao dos seus familiares, iluminaram apequena danarina. Segundo Bakhtin (2003,

    p.48), s em relao ao outro eu vivencioimediatamente a beleza do corpo humano. Assim, podemos analisar que foi a partir daapreciao esttica demonstrada pelos que aassistiam que Mrcia reconheceu em si e nascolegas a beleza da dana que o grupo apresentou.

    Na fala de outra aluna, o belo novamenteaparece como central na significao da danapara os sujeitos:

    Minha me disse bem assim: Parabns, filha, suadana foi a melhor, a mais bonita! Fiquei contente pelo

    elogio. Todas ficaram bonitas e fizemos muito sucesso no

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    colgio e todos assobiaram e bateram palmas, foi omelhor dia da minha vida, por isso adoro a dana doventre (Patrcia).

    Neste enunciado, percebe-se claramenteo movimento por meio do qual o sujeito fala de si,apropriando-se da fala do outro sobre si, pois Patrciafala que todas ficaram bonitas, aps citar o que lhedisse sua me, parabenizando-a por sua dana tersido a melhor e mais bonita. Para Patrcia, nomomento narrado por ela, os sentidos produzidospelo outro e objetivados em suas palmas, assobios,olhares, palavras foram importantes na construoda imagem de si e no fortalecimento de sua auto-estima, contribuindo para que ela conclusse: foi o

    melhor dia da minha vida, por isso adoro a dana doventre (Patrcia). Nesse movimento dialgico,percebemos, portanto, que a participao doespectador foi fundamental na produo de sentidosmediada pela dana e na constituio dasubjetividade dos sujeitos dessa atividade.

    CONSIDERAES FINAIS

    Na dana, o corpo se trans-forma, pois vivencia outras formas de se mover, ao mesmo

    tempo em que o sujeito nesse movimento experimentaoutras formas de ser. Para os sujeitos investigados,meninas que em sua maioria estavam iniciando seuaprendizado da dana do ventre, foi importantenesse processo a relao que estabeleceram, pormeio da dana, com outras pessoas.

    A partir da anlise realizada, compreen-demos que no processo de constituio das alunasmediado pela dana do ventre, as falas, os gestos,os olhares da professora, das colegas, do pblico(em especial dos familiares) fizeram parte de umainterao dialgica, verbal e no-verbal, entre ossujeitos. Nessa interao, a constituio da singu-laridade de cada uma das jovens bailarinas foiconstruda no individualmente, mas nacoletividade das relaes interpessoais e estticas,mediadas pela dana.

    Nessas relaes, conforme nos apontaramas falas dos sujeitos, os sentidos atribudos pelasmeninas a si mesmas enquanto bailarinas se fundarame se complementaram na leitura que o outro produziuacerca da dana, leitura que, desse modo, ao serapropriada por elas, reinventou as possibilidades de

    significao sobre o eu, pois eu vivo em um mundo

    de palavras do outro (Bakhtin, 2003, p. 379). Aanlise, portanto, leva compreenso de que, nocontexto investigado, a dana do ventre contribuiu

    para singelas transformaes nos sujeitos dessaatividade, a partir do contexto dialgico em quetiveram lugar o aprendizado e a apresentao dadana. Nesse contexto, a produo de sentidos corporais, emocionais, de si e de outros foi ummovimento coletivamente criado.

    Conclumos que a pesquisa realizadaabre um caminho para futuras reflexes queabordem com maior profundidade a questo doensino da dana nos espaos escolares. Com isso,poder ser confirmada e melhor desenvolvida apossibilidade que se nos apresentou com o

    presente estudo: inserir a dana na escola comouma proposta concreta de educao esttica.Educao que tambm tica, pois comprometidacom a potencializao do sujeito e seureconhecimento como devir polissmico.Educao (est)tica na qual o eu se (re)cria nas epelas relaes estticas com os outros.

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  • 8/8/2019 A MEDIAO DA DANA DO VENTRE

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    Recebido: 14/02/2008Received: 02/14/2008

    Aprovado: 03/03/2008Approved: 03/03/2008

    A mediao da dana do ventre na constituio do sujeito