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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
– URI/CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
A MATERIALIDADE DO SILÊNCIO NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
EM LA PIEL QUE HABITO, DE PEDRO ALMODÓVAR
ADEJANE PIRES DA SILVA
Frederico Westphalen, fevereiro de 2016.
Adejane Pires da Silva
A MATERIALIDADE DO SILÊNCIO NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
EM LA PIEL QUE HABITO, DE PEDRO ALMODÓVAR
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Letras – área de Literatura Comparada, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, como requisito parcial e último para a obtenção do título de Mestre em Letras – Literatura Comparada.
Orientadora: Profª Drª Maria Thereza Veloso
Frederico Westphalen, fevereiro de 2016.
UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
– CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação
A MATERIALIDADE DO SILÊNCIO NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
EM LA PIEL QUE HABITO, DE PEDRO ALMODÓVAR
elaborada por
ADEJANE PIRES DA SILVA
como requisito parcial e último para a obtenção do título de
Mestre em Letras - Área de Literatura Comparada
COMISSÃO EXAMINADORA
Profa. Dra. Maria Thereza Veloso Orientadora
Prof. Dra. Luciana lost Vinhas (FURG) 1ª arguidora
Profa. Dra. Rosângela Fachel de Medeiros (URI) 2ª arguidora
Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian (URI) Suplente
Ao Enio, Artur e Emanuele Vitória
que sempre estiveram presente
nos momentos mais significativos
de minha vida.
.
Amo muito vocês.
Simples assim, como o amor.
Agradecimentos
Ao Enio , Artur e a Emanuele Vitória, por cuidarem de mim e estarem sempre ao
meu lado.
À Ely, minha mãe, que acompanhou de perto minhas aflições, e sempre foi minha
estimuladora a não desistir.
Ao Algemiro, Cleber e Douglas, outras pessoas importantes de minha vida, por
compreenderem minha falta durante esse trabalho.
Aos meus queridos sobrinhos e cunhadas pelas demonstrações de afeto, mesmo
quando a titia estava ausente.
À minha amiga Claudia Bizello, pela amizade, carinho e disposição.
Ao meu amigo Sandro Botene pelas valiosas dicas
À Maria Thereza Veloso, minha orientadora, pela disponibilidade, pelas nossas
longas conversas e pelos ensinamentos que vão muito além do que eu posso
expressar nestas linhas.
A todos os meus professores do Mestrado em Letras, que me oportunizaram
dialogar com várias áreas do conhecimento, leituras que contribuíram muito com a
minha formação acadêmica e pessoal.
Às professoras Rosangela Fachel de Medeiros e Luciana lost Vinhas, membros da
banca avaliadora, pelas contribuições apresentadas.
RESUMO
Este estudo tem como objetivo estudar o sentido discursivo do silêncio mediante uma reflexão sobre o silêncio fundador e a política do silêncio, conceitos desenvolvidos por Eni Orlandi. A atenção, neste trabalho, está voltada para as condições de produção em que esse discurso é produzido e/ou silenciado, observando-se atentamente às questões ideológicas, históricas e culturais do discurso. O corpus é composto por recortes discursivos fílmico-imagéticos do filme La piel que habito, de Pedro Almodóvar (2011), ambientado na cidade de Toledo, Espanha. Trata-se de uma Formação Discursiva (FD) atrelada ao interdiscurso religioso ao qual se observa, pelo corpus analítico, que as formações discursivas representadas no discurso fílmico estão marcadas pela heterogeneidade discursiva da cidade de Toledo e, pela análise, crê-se ser ainda uma formação discursiva com princípios conservadores . A análise está pautada nos pressupostos teóricos vindos da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, criada por Michel Pêcheux e expandida no Brasil por Eni Puccinelli Orlandi. Neste trabalho, a AD dialoga com a Literatura Comparada pela contribuição desta, com Henry H.H. Remak, George Steiner e Tânia Franco Carvalhal; e com a cinematografia, mediada por Marcel Martin, Ismail Xavier, Fernando Mascarello e Sergei Einsenstein. A proposta é relevante pela possibilidade de tomar o silêncio como objeto de reflexão a partir da observação do já-lá que vaza dos discursos, atribuindo-lhes uma multiplicidade de sentidos que perpassam o tecido social mediante formações discursivas específicas.
Palavras-chave: Análise do discurso. Silêncio. Sentido. Formação discursiva. Narrativa fílmica.
RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo estudiar el sentido discursivo del silencio mediante una reflexión acerca del silencio fundador y la política del silencio, conceptos desarrollados por Eni Puccinelli Orlandi. La atención, en este trabajo, está direccionada para las condiciones de producción en las que el discurso es producido y/o silenciado, observándose atentamente a las cuestiones ideológicas, históricas y culturales de ese discurso. El corpus está compuesto por recortes discursivo fílmicos de la película La piel que habito, de Pedro Almodóvar (2011) ambientado en la ciudad de Toledo, España. Tratase de una Formación Discursiva (FD) vinculada al interdiscurso religioso, en que se observa, por el corpus analítico, que las formaciones discursivas representadas en el discurso fílmico están marcadas por la heterogeneidad discursiva de la ciudad de Toledo que por el análisis aún se cree ser una formación discursiva con principios conservadores. El análisis está embazado en los presupuestos teóricos del Análisis del Discurso (AD) de línea francesa, creada por Michel Pêcheux y expandida en Brasil por Eni Puccinelli Orlandi. En este trabajo, el AD dialoga con la Literatura Comparada por la contribución de Henry H.H. Remak, George Steiner y Tânia Franco Carvalhal y con la cinematografía, mediada por Marcel Martin, Ismail Xavier, Fernando Mascarello y Sergei Einsenstein. La propuesta es relevante por la posibilidad de coger el silencio como objeto de reflexión a partir de la observación del Ja-allá que vacía de los discursos, atribuyéndoles una multiplicidad de sentidos que atraviesan el tejido social mediante formaciones discursivas específicas.
Palabras clave: Análisis del discurso. Silencio. Sentido. Formación discursiva. Narrativa fílmica.
LISTA DE ABREVIAÇÕES
AD – Análise do Discurso
AIE – Aparelho Ideológico de Estado
ARE – Aparelho Repressivo de Estado
FD – Formação Discursiva
FI – Formação Ideológica
FLASHBACK – Retorno à cena anterior
PG ou GPG – Plano Geral, ou Grande Plano Geral
PLONGÉE – câmera alta, enquadrando o objeto de cima para baixo
PP – Primeiro plano
PPP – Primeiríssimo plano ou close-up
PD – Plano detalhe
PS – Posição-sujeito
RDF-I – Recorte Discursivo Fílmico-Imagético
TRAVELLING – Movimento da câmera pelo cenário
ZOOM – Movimento de aproximação e/ou distanciamento da cena, mediante ajuste
no olho da câmera
ÍNDICE DOS RECORTES DISCURSIVOS FÍLMICO–IMAGÉTICOS (RDF-Is)
RDF-I 1 Sobre o título ............................................................................................
RDF-I 2 A câmera apresenta a identificação El cigarral.........................................
RDF-I 3 Marília prepara o desjejum de Vera..........................................................
RDF-I 4 Vera olha o desenho da famme maison...................................................
RDF-I 5 A câmera flagra a foice e machadinha na parede do galpão...................
RDF-I 6 Mãe chega à Comisaría (Delegacia de Polícia).......................................
RDF-I 7 Robert Ledgard nomeia Vicente como Vera............................................
RDF-I 8 Vicente retorna ao quarto e vê roupas femininas.....................................
RDF-I 9 Robert Ledgard fala da pele transgênica..................................................
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SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS............................................................................
1.2 (RE)SIGNIFICANDO COM ALMODÓVAR.....................................................
1.2.1 Uma mirada para a obra cinematográfica La piel que habito......................
2 SILÊNCIO: O ENTREMEIO DO DISCURSO......................................................
2.1 UMA BREVE INCURSÃO PELA TEORIA DE MICHEL PÊCHEUX...............
2.1.1 Discurso, Interdiscurso, Intradiscurso...........................................................
2.1.2 Formações Discursivas: uma relação entre história e memória...................
2.2 O SUJEITO DISCURSIVO...............................................................................
2.2.1 O discurso e o sujeito: uma relação de poder...............................................
2.3 A MATERIALIDADE DO SILÊNCIO................................................................
2.4 UMA LEITURA SILENCIOSA..........................................................................
3 SILÊNCIO E SENTIDO NA TRAMA DISCURSIVA DE LA PIEL QUE
HABITO.................................................................................................................
3.1 O SILÊNCIO QUE MOVIMENTA O SENTIDO................................................
3.1.1 Compreendendo o silêncio .........................................................................
3.2 TOLEDO: UMA FORMAÇÃO DISCURSIVA SILENCIADORA ......................
3.3 UM EU SILENCIADO versus UM EU SILENCIADOR....................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................
REFERÊNCIAS......................................................................................................
FILMOGRAFIA.......................................................................................................
ANEXO................................................................................................................... Anexo A: CD-ROM contendo os RDF-Is analisados............................................. Anexo B: Imagens dos RDF-Is do capítulo 3 ........................................................
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Tendo como fundamento teórico a Análise do Discurso (doravante AD) de
linha francesa, este estudo analisa o discurso produzido pelo silêncio na obra fílmica
La piel que habito, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. A obra se constitui em
uma importante ferramenta de análise porque apresenta uma trama discursiva que
se entrelaça com vários discursos que se interligam e que se desenvolve sob duas
linhas (vertical e horizontal). A primeira é constituída pelas memórias, os pré-
construídos que compõem o Interdiscurso, e a segunda pelas condições de
produção marcadas pelo acontecimento histórico. Unidas, produzem os dizeres
formadores do discurso.
O discurso é visto pela AD como uma prática discursiva que se realiza na
linguagem em sua relação com as formações imaginárias como formadoras do
sentido e que está em constante movimento. É pelo discurso que o sujeito se
expressa, reforça ou perpetua ideias, manipula ou é manipulado por outro(s)
sujeito(s). Assim o discurso é concebido como o lugar de onde emerge a
significação e em que são produzidos os sentidos. Sob esse enfoque, e com a
intenção de compreender como se articula o dito e o não-dito do discurso nas
relações comunicativas entre os sujeitos, visto que em várias situações da vida
cotidiana, o sujeito silencia-se ou é silenciado por outras vozes de autoridade, com o
intuito de legitimação de um sentido único para o discurso, este trabalho apresenta
uma abordagem sobre o silêncio e o silenciamento.
Considerando-se que, para a AD, o discurso é atravessado por outros
discursos que se diluem na Formação Discursiva1, daqui em diante FD, e que estes
são articulados pelo linguístico e pelo sócio-histórico, é importante para a
compreensão do discurso que se o articule com situações concretas, embasadas na
exterioridade. O arcabouço teórico da AD considera o sujeito na sua relação com a
história e com os processos de produção. Os vários discursos, portanto, têm caráter
heterogêneo.
Portanto, foi de pensar sobre o silêncio na perspectiva da AD, a partir da
leitura de Orlandi em As Formas do Silêncio no Movimento dos sentidos (2007),
1 Manifestação de uma Formação Ideológica no discurso, constituindo-se em matriz de sentidos que
regula o que sujeito pode ou não dizer, na explicação de Ferreira (2005, p. 15).
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que a possibilidade de pesquisa aplicada ao estudo do sentido do silêncio no
discurso fílmico-imagético foi se materializando e realmente ganhando forma.
Pensar o silêncio é pensar no sentido, ou seja, é pensar em discurso. Orlandi
pensa o silêncio no discurso sob três formas: uma delas é o silêncio fundador, que
fundamenta o sentido para as palavras, ou seja, dá-lhes condições para
significarem; outra é a política do silêncio, que se divide em silêncio constitutivo,
que implica o apagamento de outros sentidos, e silêncio local, que se caracteriza
pelo que não pode ser dito em determinadas circunstâncias.
Considerando o exposto, ou seja, “que as palavras simples do nosso
cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se
constituíram e que, no entanto, significam em nós e para nós” (ORLANDI, 2003, p.
20), proponho uma pesquisa sobre o Silêncio e o Silenciamento como sequências
discursivas que significam. Não tomo o silêncio na sua concepção antropológica
nem religiosa, que estudam o silêncio em oposição ao ruído, ao som, como algo
que falta.
Minha atenção com vistas ao silêncio está em compreender como ele se
apresenta no discurso, para significá-lo. Interessa, especialmente, a partir dos
pressupostos teóricos da AD, analisar a materialidade que dará sentido ao silêncio,
pois, de acordo com Orlandi (2007, p.112), “o silêncio que é feito sobre uma certa
região de sentidos, é carregado de palavras a não serem ditas. É por isso mesmo
que elas significam. Socialmente.”. Eis a importância de observar as condições de
produção desse discurso silencioso ou silenciado a fim de compreender o processo
de significação que envolve o dizível e o não dizível no entremeio do discurso.
O processo analítico se dá neste trabalho pela análise de recortes discursivos
fílmicos imagéticos (RDF-Is), sendo que estes não seguem a linearidade
apresentada por Almodóvar. A sequência e a escolha dos mesmos estão de acordo
com os objetivos propostos para este estudo. A análise registrada nas próximas
páginas procura responder à seguinte questão: Como o silêncio se relaciona com o
sentido, constituindo-se em discursos significantes e silenciadores?
Para responder a essa questão não me detive no discurso de uma
personagem específica da trama. Optei, para tanto, por analisar alguns discursos
intertextuais que Almodóvar traz para a sua trama discursiva, a fim de verificar como
o silêncio significa nesses discursos externos presentes na narrativa fílmica.
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Para dar conta das três formas do silêncio propostas por Orlandi, selecionei alguns
acontecimentos discursivos que se relacionam com a memória discursiva do sujeito
espanhol.
Ressalvo que este trabalho não tem a pretensão de analisar a materialidade
do silêncio na construção do sentido, e sim de sentido, visto que a primeira
alternativa amplia muito o campo de análise. A alternativa de focar a materialidade
do silêncio na construção de sentido permite pensar o sentido do silêncio
restringindo-o aos recortes fílmicos imagéticos selecionados, considerando que a
expressão do sentido pressupõe analisar a construção do todo do sentido contido na
obra fílmica, mesmo que ilusoriamente. O objetivo desejado não é trabalhar a obra
cinematográfica na sua especificidade estética ou seu processo de produção. A
abordagem da linguagem cinematográfica, quando necessária, será para amparar,
unicamente, o sentido do discurso do sujeito.
O presente trabalho está dividido em três seções. Primeiramente faço uma
reflexão teórica sobre alguns conceitos da Análise do Discurso de linha francesa,
criada pelo filósofo francês Michel Pêcheux. Na sequência, apresento: a cidade de
Toledo, por ser o campo discursivo do filme; a escritura transgressora de Almodóvar;
uma breve leitura do filme La piel que habito como um importante veículo discursivo-
social; e por fim uma reflexão sobre a leitura feita pela analista. O terceiro capítulo
consta da descrição interpretativa dos recortes discursivos fílmico-imagéticos (RDF-
Is), fundamentados na AD e nos conceitos tomados à cinematografia, tendo como
referência o silêncio e sua relação com o sentido, enquanto real do discurso.
Para abrir cada capítulo desta Dissertação, optei pela pausa, simbolicamente
marcada pela ausência da fala, do discurso, mediado aqui pela escrita. Assim, a
página introdutória de cada capítulo apresenta-se parcialmente em branco. Contém
apenas o título do referido capítulo e uma epígrafe, representando o silêncio, ou
seja, o respiro necessário para significar a análise dos discursos deste estudo, pois,
como define Orlandi, o silêncio é o “fôlego da significação, um lugar de recuo
necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido” (2007,
p.13). Em outras palavras, é necessário o silêncio entre palavras para que, na
pausa, a melodia da significação possa ser executada.
A delimitação do corpus deste trabalho surgiu inicialmente pelo meu interesse
pelos filmes do cineasta Pedro Almodóvar. Não posso ser considerada uma cinéfila,
mas acompanho a sua obra desde longa data. A escolha pelo filme La piel que
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habito me foi atraente porque, até o início deste trabalho, tratava-se de seu último
filme, além de me parecer sugestivo para a análise do silêncio a que me propunha.
Pedro Almodóvar se considera um contador de histórias. Atrás das câmeras, com a
função de narrador, ele criou um estilo, uma linguagem e uma estética próprios,
autoral, que dialogam com o universo ao seu redor. É considerado um cineasta
transgressor porque desnuda a sociedade e traz para as telas as mazelas humanas.
1.2 (RE)SIGNIFICANDO COM ALMODÓVAR
Almodóvar surge no cinema espanhol após o término da ditadura de Franco,
no início da década de 80, justamente no período em que o país estava em
transição e o povo ansiava por mudanças, após 40 anos de repressão e de censura
política. Como em todo período pós-ditatorial, ocorreu na Espanha uma avalanche
cultural nas artes, na música, na moda e no cinema, denominada de Movida
madrileña, que, apesar do nome, não se restringiu aos limites da capital, Madri. Foi
um período da criação artística, mas, também, de liberação; tempo de roupas e
maquiagens extravagantes, jaquetas de couro, cabelos coloridos, incitação à
liberalidade sexual, uso de drogas e bebidas.
Nesse período, muitos cineastas espanhóis, como Juan Antonio Bardem, Luis
García Berlanga, entre outros, trabalhavam para reavivar a memória nacional,
ofuscada no período franquista, através de um retorno histórico. Mas,
diferentemente de seus colegas, Almodóvar, membro fundador da Movida2,
trabalhou e continua trabalhando a atualidade como a matéria-prima de sua
produção fílmica.
Não seria preciso afirmar que sob Franco a repressão e a censura foram terríveis. Particularmente no que diz respeito ao cinema, estavam proibidas qualquer alusão à prostituição, às “perversões sexuais” (a homossexualidade, obviamente), ao adultério, às relações sexuais “ilícitas”, ao aborto, etc. (SILVA, 1996, p. 63.)
Essa realidade austera é o que impulsiona o ainda jovem e inexperiente
manchego3 a criar seus primeiros filmes independentes. No final dos anos 70,
quando iniciou suas atividades cinematográficas, a Espanha vivia uma metamorfose
2 Movimento contracultural inspirado na cultura pop e funk, pós-ditatorial.
3 Adjetivo para quem nasce ou vive na Comunidad de la Mancha – Espanha.
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gerada pelas transformações econômicas, sociais e culturais, desencadeada desde
os anos 60, com a revolução civil, ditadura e com a consolidação nos período de
transição. A sociedade espanhola dos anos 40, latifundiária e católica, transformara-
se em uma sociedade urbana e em parte laica. Foi nesse contexto e com um olhar
apurado de um grande cronista que Almodóvar reinventou e modernizou o cinema
espanhol. Com uma câmera Super-8 nas mãos e muita sensibilidade, o iniciante e
autodidata imerge no novo universo cultural de Madri e de forma brilhante rompe
com as tradições anteriores de fazer filme, inclusive com o modelo estético do
Movimento Super-8, do qual fazia parte. “No início dos anos 80, participar de um
filme de Almodóvar era fazer parte de um movimento de contracultura na Espanha,
um grito de rebeldia e libertação ao fim da sufocante era franquista”. (STURM, 2011,
p. 31.)
A família, a política e a igreja católica, que sempre tiveram muita influência no
país e, consequentemente, os problemas sociais que afetam a sociedade espanhola
e seus antigos tabus, servem de inspiração para Almodóvar construir suas
narrativas. E, em um tom (auto)biográfico, o cineasta traz para os seus filmes as
questões sociais, desde o seus primeiros trabalhos. Arrisco-me em afirmar que, ao
compor situações baseadas no cotidiano das pessoas, trazendo personagens
humorísticas estereotipadas que nos confrontam com elementos culturais
diversificados, próprios da sociedade de consumo, o cineasta chama a atenção da
sociedade para o seu papel enquanto constituída por sujeitos atuantes e
pertencentes a uma determinada cultura.
Os filmes de Almodóvar, apesar de retratarem a realidade da Espanha, são
universais. Abordam temas como a pedofilia, incesto, estupro, homicídio passional,
tortura, violência contra a mulher, etc. A forma como ele subverte os papéis sociais e
cria um jogo de identidade nas personagens é o resultado de uma herança
repressiva patriarcal que ele transfere a suas personagens e que representa os
espaços interdiscursivos em que se confrontam as formações discursivas que
permeiam no Intradiscurso local. Por exemplo, na cultura patriarcal, o pai é aquele
que deve cuidar, zelar pela família. No entanto, em La piel que habito a figura
paterna é aniquilada quando a mesma é subvertida no agressor/estuprador, no
delírio da filha. Percebe-se aqui a subversão do discurso simbólico culturalmente
criado e aceito socialmente.
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Há também uma inversão na ordem tradicionalmente aceita quanto à
importância na narrativa das personagens nas películas de Almodóvar. Nelas o
marginalizado – travesti, prostituta, homossexual e drogado - atua no centro do
enredo como protagonista. Com essa inversão, as obras de Almodóvar se
aproximam de conceitos vindos de Mikhail Bakhtin, em sua teoria da
“carnavalização”4, já que toda a obra do cineasta é marcada por um conjunto de
manifestações da cultura popular marginalizada socialmente. De acordo com
Bakhtin, a carnavalização ocorre quando se privilegiam as camadas populares,
ocorrendo essa inversão entre transferir o locus do centro para as regiões
periféricas, subvertendo o cânone vigente. Assim, os polêmicos personagens
almodovarianos, com posturas tresloucadas e os recursos cenográficos com tons
fortes e vibrantes, com toque passional, permitem caracterizar sua produção como
narrativas da espetacularização. Essa estratégia, alegórica, vinculada ao humor
negro, ironia, contradição, está voltada para a corrosão de alguns mitos da
sociedade moderna.
Num momento privilegiado de questionamento das relações entre saber e poder, entre universidade e sociedade, emerge um novo intelectual engajado definido não só pelas questões de nação e classe, mas também de etnia e gênero. Politicamente, a questão é como sair de um lugar específico e dialogar com o conjunto da sociedade. Teoricamente, inserir os estudos gays, lésbicos e transgêneros nos debates centrais desta virada de século [...]. (MASCARELLO, 2006, p. 380.)
Almodóvar pontua seu discurso em discursos anteriores, que afetam o
discurso do presente relativo às minorias. Ele transpõe para a linguagem
cinematográfica as relações discursivas opressivas e silenciadoras do período
franquista que estão ligadas, entre outros, à moral católica, mas que ainda perduram
num contexto global apesar dos vários movimentos de contracultura mundiais dos
anos 60 a 80, como a própria Movida espanhola e o movimento hippie, os quais se
relacionam com os direitos civis e propiciam ao espectador possibilidades de criar
novos significados.
A intenção de Almodóvar, inicialmente, era romper com a ideologia vigente,
de pressão militar, opressão e silenciamento de alguns segmentos da sociedade.
Seu discurso focaliza os temas sociais voltados ao direito e à liberdade dos sujeitos,
4O termo Carnavalização aparece nas obras A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais; e Problemas da Poética de Dostoiévsk.
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principalmente para os grupos marginalizados pelo conservadorismo social.
Almodóvar traz da periferia alguns temas e os coloca no centro das discussões e,
quiçá, por influências de suas películas, suas ideias influenciaram algumas
transformações sociais importantes ocorridas em seu país. Em 2005, sob o
comando de José Luis Rodrigues Zapattero, a Espanha legaliza o casamento gay
mesmo com a pressão contrária da Igreja Católica. Almodóvar desconstrói o
conceito de família culturalmente aceito pela sociedade cristã e propõe uma nova
reorganização familiar, com um novo significado de família e de valores.
Nessa perspectiva, Almodóvar foi um militante e, talvez, um dos responsáveis
pela mudança de conduta de uma considerável parte da população espanhola.
Durante aproximadamente trinta anos, o cineasta manchego está lapidando as suas
ideias e seus valores nas suas produções cinematográficas direcionadas ao público
espanhol, mas não só a ele. Sabe-se que valores morais estão relacionados aos
aspectos culturais de uma sociedade, mas que podem ser modificados. Os valores
são o combustível que move os sentimentos e os propósitos das ações humanas,
suas lutas e seus ideais. Essas transformações culturais que ocorreram,
principalmente na sociedade espanhola, estão representadas nos filmes de
Almodóvar. A Espanha, nesses últimos trinta anos, passou por modificações
políticas, sociais e culturais intensas. De um governo fascista, sem liberdades
política e social, com a supressão de direitos, passou à democracia. Transformou-
se em um país com ideologia liberal que defende que as pessoas devem ter os
mesmos direitos independentes de raça, gênero e classe social.
1.2.1 Uma mirada para a obra cinematográfica La piel que habito
O filme La piel que habito, de Pedro Almodóvar, estreado em 2011, é uma
livre adaptação da novela Tarântula, do escritor Thierry Jonquet5, publicada na
França em 1984, com o título Mygale. Esta obra chegou ao Brasil também em 2011,
pela editora Record, vinte e sete anos após seu lançamento, com o slogan ‘romance
que deu origem ao filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar’. Mesmo que
Jonquet seja um escritor amplamente reconhecido no circuito literário francês do
5 Thierry Jonquet (1954-2009) é considerado um dos principais escritores contemporâneos da França.
Escreveu novelas, contos, crônicas e novelas infantis. Estudou filosofia e, concomitante com a atividade de escritor, trabalhou como ergoterapeuta no centro geriátrico Dupuytren de Draveil (França), e como professor.
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gênero negro6 e tenha suas obras traduzidas em vários países, no Brasil sua obra
chegou pela influência fílmica.
Almodóvar transfere o cenário francês de Tarântula para a histórica cidade de
Toledo, na Espanha, especificamente no ano de 2012 e nos apresenta uma
atmosfera entre o medieval e o moderno. Mesmo que os personagens principais e o
núcleo temático do filme estabeleçam uma intertextualidade com a obra de Jonquet,
fica evidente que o longa-metragem não é uma paródia nem uma releitura do
romance, mas uma nova história com particularidades próprias de Almodóvar.
O filme começa com um grande plano geral (GPG)7 sobre a cidade e, em
seguida, com um plano detalhe (PD)8 sobre El cigarral, residência e clínica secreta
onde o cirurgião Robert Ledgard (Antonio Banderas) atendia clandestinamente a
uma clientela especial, e local em que realiza suas experiências com Vera Cruz
(Elena Anaya). A primeira parte se desenvolve com Vera, uma linda mulher, presa
em um dos dormitórios da casa de Robert sob as ordens deste e de Marília (Marisa
Paredes), governanta da casa. O primeiro conflito ocorre quando o filho brasileiro de
Marília, fugitivo da polícia, fantasiado de tigre - pois o país estava comemorando o
Carnaval - implora à mãe para se refugiar na casa por alguns dias. Dentro da
residência, descobre Vera e a confunde com Gal, a falecida mulher de Robert, sua
antiga amante. Ele a estupra e por isso é morto por Robert. Após o ocorrido, Vera
ganha a liberdade para conviver livremente na casa em que esteve presa por seis
anos.
A digressão ou a ruptura com o presente se dá com três flashbacks. O
primeiro, quando Marília e Vera estão queimando as roupas ensanguentadas de
Zeca (o tigre). Marília reconstrói o passado e confidencia que Zeca (Roberto Álamo)
e Robert são irmãos, o primogênito é filho de um empregado, e o segundo é filho do
senhor Ledgard. O segundo e o terceiro se dão pelo sonho de Robert e Vera na sua
primeira noite juntos. Nessa sequência, o filme narra a festa de casamento em que
Norma conhece Vicente e é estuprada por ele e, logo após, o rapto, as torturas e o
6 O cinema negro ou cinema ‘noir’ (negro em francês) se classifica pela sua estética visual,
ambientado nas cores preto e branco e suas variantes, usando as sombras, jogos de luzes para marcar a expressividade da cena. 7 O Grande Plano Geral (GPG) é um plano mais abrangente e tem a função de descrever o local em
que se passa o relato; geralmente as imagens são aéreas para situar o espaço geográfico onde acontece a ação. 8 Plano Detalhe (PD) é o enquadramento de uma parte do corpo da personagem como mãos, pés,
olho, etc, ou de algum objeto em cena.
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procedimento cirúrgico e a transformação de Vicente (Jan Cornet), em Vera. Essa
sequência de flashbacks explica todos os fatos ocorridos na primeira parte e
apresenta-nos algumas personagens secundárias, como Norma, a mãe de Vicente,
e a sua funcionária Cristina.
O filme foi classificado entre o drama e o terror psicológico, pois narra a
história de um obcecado cirurgião que perde a esposa e tem a filha violada quando
esta ainda está em tratamento após o choque de ter visto o suicídio da mãe. Ao ser
socorrida pelo pai, a menina o vê como “o violador”, enlouquece, e no centro
psiquiátrico em que está em tratamento, mata-se. Tal como a mãe o fizera, joga-se
pela janela. Esses acontecimentos revoltam a Robert que, a partir de então,
arquiteta um plano de vingança contra aquele que lhe tirou sua filha. Porém, com o
discurso de melhorar a Medicina e criar uma pele mais resistente a queimaduras,
picadas de mosquito como o da malária, Robert usa Vicente/Vera como cobaia
humana e faz com ele/ela todos os tipos de experimentos.
A linguagem singular, própria do cinema de Almodóvar e já mencionada
antes, é facilmente percebida na adaptação fílmica. A mulher, a maternidade,
sexualidade, homossexualidade, transsexualidade, violência psicológica, entre
outros – todos esses itens estão no filme. A presença materna, muito marcada em
outros longas do cineasta, aparece aqui vivida pela personagem Marília e pela mãe
de Vicente. No discurso de Marília, Robert é um bom homem, um marido
apaixonado e um pai zeloso, que enlouqueceu por não aguentar a infidelidade e o
acidente da esposa, o transtorno psicológico da filha ao ver a mãe se jogar pela
janela e, mais tarde, o seu estupro, que desencadeou o mesmo fim da mãe. Marília
não o culpa e, ao dizer que “a culpa é minha, levo a loucura em minhas entranhas”,
transfere para si a responsabilidade da loucura dos filhos. Na mãe de Vicente,
vemos uma mãe obstinada que não desiste de reencontrar o filho desaparecido há
seis anos. Essa personagem, mãe de Vicente, não tem nome, o que sugere à
analista pensar que ela representa todas as mães que tiveram seus filhos
desaparecidos.
A Espanha tem uma triste história ligada ao desaparecimento de pessoas
durante a Guerra Civil e o governo franquista. Estimam-se em 114.226 os adultos
desaparecidos e 30.960 as crianças roubadas, números fornecidos pelo Comitê
contra os Desaparecimentos Forçados. Almodóvar traduziu o discurso que estava se
propagando na Espanha em 2010, ano em que entrara em vigor o tratado
19
internacional que dizia que os países deveriam investigar os crimes cometidos nos
regimes ditatoriais. E a Espanha ainda luta para revogar uma lei de anistia, assinada
em 1977, para que possa haver a punição para os responsáveis pelos crimes de
lesa-humanidade, ocorridos durante a ditadura militar.
Entretanto, muitos desaparecimentos continuam ocorrendo na Espanha e a
filmografia de Almodóvar acaba por chamar a atenção à fragilidade do Estado para
resolver tais questões, visto que “não existe nenhuma disposição constitucional,
penal nem administrativa, na norma jurídica espanhola que proíba expressamente o
desaparecimento forçado” (CUÑABATE n. 10, p. 06, em tradução minha)9. Há, no
longa-metragem, portanto, a incorporação de um elemento já construído e presente
na memória discursiva dos seus interlocutores.
A transsexualização na obra La piel que habito dá-se somente após a cirurgia,
visto que a perturbação de identidade de gênero ocorre somente após a
transgenitalização. Nesse caso, há uma transsexualização forçada, após uma
intervenção cirúrgica castradora. A personagem sente um desconforto com o novo
sexo, pois ainda se identifica com o seu sexo natural. O jogo imposto
unilateralmente pelo cirurgião está entre a tortura física e a psicológica.
Algumas cenas do filme remetem o espectador aos ambientes de tortura,
principalmente dos períodos da ditadura. Trata-se de um local fechado, escuro, com
proteção acústica, em que a vítima pode se esvair em gritos e pedidos de socorro,
mas que de nada lhe adiantarão, além da utilização de vários instrumentos de
tortura para destruir os valores e criar uma desorganização da identidade do sujeito
para se adequar aos valores do torturador. A fome e a sede, seguidas de tortura,
geram uma sensação avassaladora de medo e insegurança. Inicialmente, ele
sequestra a vítima, deixando-a presa, amarrada, nua, sem comida, sem bebida, sem
local adequado para suas necessidades fisiológicas, para deixá-la fraca, fragilizada
e confusa. De certa forma, a tortura física e a psicológica estão interligadas,
considerando as marcas emocionais que ficarão gravadas na memória do torturado
pela vida inteira. Quando Robert obriga Vicente a violar a si próprio com dilatadores
de vários tamanhos, após a vaginoplastia, por vários meses, não deixa de ser um
estupro psicológico que o cirurgião impõe ao outro como uma forma de vingança.
Vicente/Vera deve passar pelas mesmas torturas que Norma. Robert lhe oferece
9 “no existe ninguna disposición constitucional, penal ni administrativa en el ordenamiento jurídico español que
prohíba expresamente la desaparición forzada” (CUÑABATE, n. 10, p. 06).
20
roupas femininas, sapatos de salto alto, maquiagens e o obriga a se drogar para
aceitar sua nova condição, à qual Vicente/Vera resiste até o limite do que lhe é
possível pela condição subalterna em que se encontra.
O filme faz referência ao discurso da evolução da Medicina, do transplante de
face, cirurgia de ressignificação sexual, evolução das próteses, alteração do genoma
humano e do limite ético nas intervenções cirúrgicas estéticas e reparadoras. O
doutor Ledgard extrapola esse limite e, a partir dos seus conhecimentos científicos,
torna-se uma espécie de Frankenstein: brinca de criador e criatura, criando um jogo
entre a fronteira da aparência e da realidade. Robert Ledgard se envolve em seu
próprio jogo e se confunde com a estética visual e o discurso apresentado por sua
criatura, sucumbe ao desejo e ao poder de sua própria criação, uma vez que
Vicente/Vera incorpora a feminilidade e a manipula para fugir do seu cativeiro. Outro
tema recorrente nas obras de Almodóvar, a homossexualidade, está representado
no filme pela personagem Bárbara, funcionária da loja da mãe de Vicente, e uma
possível companheira para Vera/Vicente, como sugere a atmosfera final da película.
La piel que habito trata de todas as temáticas preferidas de Almodóvar, porém
vai além das questões de gênero e sexualidade e das figuras marginais presente em
seus filmes. A temática central do filme é a identidade, problema proveniente do
sistema racional e sistemático originário do mundo moderno, conforme Adorno e
Horkheimer (1985). O sujeito se adaptou à sociedade e ao domínio social de forma
espontânea, ou seja, a subjetividade do sujeito é moldada pelas práticas sociais. A
identidade discursiva das personagens projeta o lugar social que elas
imaginariamente ocupam na trama discursiva. Entretanto, há um conflito sobre essa
posição, pois todas as personagens vivem uma dualidade identitária – um respeitado
cirurgião ou psicopata, governanta ou mãe, homem ou mulher, ou ainda homem ou
animal, no caso de Zeca. Todas as personagens estão presas, encarceradas em
uma máscara social, ambiguidade determinada pela FD a que pertencem.
.
2 SILÊNCIO: O ENTREMEIO DO DISCURSO
Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história.
É o silêncio significante. Vale aliás a pena redizer, nesta introdução,
o que será dito em muitas partes dessa reflexão: o fato de que a relação silêncio/linguagem é complexa,
sem deixar de sublinhar ainda uma vez que, no entanto, em nossa reflexão,
o silêncio não é mero complemento de linguagem. Ele tem significância.
(ORLANDI, 2007, p. 23
22
2.1 UMA BREVE INCURSÃO PELA TEORIA DE MICHEL PÊCHEUX
Falante de uma língua, inserido em uma sociedade, interagindo com o outro,
enquanto ser social, o homem está fadado à comunicação. A partir dessa
constatação, torna-se imprescindível estudar os processos de significação dos seus
enunciados, visto que é um sujeito-discursivo e, sendo assim, necessita da língua
para se posicionar enquanto sujeito de seu dizer. Em virtude dessa relevância,
Michel Pêcheux10 trilhou um novo caminho em relação aos estudos da linguagem,
dialogando com a Linguística, com a Ideologia e com a Psicanálise, resultando
desse diálogo a base fundamental para uma nova teoria, a AD.
A AD é uma corrente filosófica disseminada inicialmente na França, na
década de 70. Naquele período estava no auge o Estruturalismo, movimento da
Linguística Moderna que se caracterizava pelo formalismo linguístico. Michel
Pêcheux propõe, então, uma ruptura com o Estruturalismo saussuriano, que se
dedicava à análise do conteúdo, metodologia usada, naquele momento, pelas
ciências sociais para análise de textos. A nova teoria toma como objeto de análise o
“discurso”, definido por seu criador como “efeito de sentido entre locutores”. Essa
nova proposta epistemológica de Pêcheux, em articular Ciências Sociais (História,
Sociologia e Filosofia), Linguística, Teoria do Discurso e Psicanálise, deu início a um
novo período de reflexão sobre os estudos da linguagem. Segundo ele, era
inadequado o estudo reducionista da língua, remetido à análise do conteúdo entre
os seus interlocutores. Entretanto, é importante frisar que o Estruturalismo linguístico
e seu método de análise da língua serviu como horizonte para Pêcheux criar a sua
teoria de análise do discurso, visto que ele se serve de vários conceitos propostos
por essa ciência, como o conceito de signo e a noção do funcionamento da língua.
O criador da AD de linha francesa discorda do posicionamento da Linguística,
que tratava da Semântica da mesma forma que tratava da Fonética, ao afirmar que
“[...] os semanticistas se utilizam de bom grado, como veremos, de classificações
dicotômicas, do tipo abstrato/concreto, animado/não animado, humano/não
humano.” (PÊCHEUX, 1995, p. 30), resultando, pois, o estudo como uma afirmação
do óbvio (1997). A Linguística tentava explicar o sentido das palavras da mesma
10
Michel Pêcheux (1938-1983) foi um estudioso nas áreas da filosofia e da linguagem e é considerado o fundador da Análise do Discurso da linha francesa. Foi esse estudioso que introduziu, na teoria da linguagem, a preocupação com o político e com o ideológico.
23
forma que procedia com a Fonologia, aproximando ou diferenciando os termos
conforme traços característicos da sua estrutura sêmica que os diferenciassem,
resultando em um aparato de classificação da língua entre significante e significado
proposta por Saussure11. Os estudos lógicos sistêmicos praticados pela Linguística
com relação à Semântica são, de fato, o objeto da crítica de Pêcheux.
A preocupação do autor com o fato de não haver uma correspondência entre
a teoria estudada pela Linguística e o estudo das particularidades da língua em “uso”
causou-lhe grande inquietação por criar uma teoria materialista da língua. Ao se
opor à análise do conteúdo, Pêcheux propõe introduzir o conceito de história
associado ao estudo da língua. A partir daí, inicia-se o esboço do quadro teórico da
AD, que visa a valorizar a língua, não enquanto um objeto técnico/formal, mas como
portadora de significado, com um funcionamento próprio.
Independente de existir ou não ciência, independentemente de existir ou não filosofias, idealistas ou materialistas, os homens falam, as línguas existem, seu estudo objetivo (científico) é possível, e, aliás, parcialmente realizado hoje em dia – declaração pela qual o leitor atesta, de maneira implícita, o caráter espontaneamente materialista da Linguística como prática científica nos limites de seu domínio [...]. (PÊCHEUX, 1997, p. 87.)
Quando Pêcheux valoriza a dicotomia língua/discurso e renuncia à concepção
idealista da Linguística, retoma a ideologia althusseriana12 e traz para o seu aparato
teórico o materialismo para revelar as verdades de cada formação discursiva pelas
lentes do histórico, do social, do cultural e do ideológico. A AD desloca o sentido do
léxico para as práticas discursivas e trabalha com as condições histórico-sociais dos
processos de produção do discurso construído com e pelo sujeito, pois, para o
pensador, “o elo que liga as significações de um texto às suas condições sócio-
históricas, não é secundário, mas constitutivo das próprias significações”
(PÊCHEUX, 1971, p.147). Conforme o fundador da AD (1997), o sistema linguístico
é o mesmo para todos os falantes de uma língua. Entretanto, esta se apresenta
através de discursos diferenciados, o que reforça a materialidade nela presente. Dito
11
Para Saussure “[...] não há a significação e um signo correspondente. Há formas e significações possíveis (nunca correspondentes); há, apenas, em realidade, diferenças de formas e diferenças de significações; por outro lado, cada uma dessas ordens de diferenças (por conseguinte, de coisas já negativas em si mesmas) só existe como diferenças graças à união com a outra” (SAUSSURE, 1996, p. 79).. 12
Louis Althusser debruçou-se sobre a teoria do Estado marxista e o papel da estrutura ideológica no
modo de produção capitalista. Segundo o autor, cada Aparelho Ideológico do Estado transmite a ideologia da classe dominante.
24
de outro modo, Pêcheux retoma a teoria de Althusser sobre a formação ideológica
marxista, a interpelação do sujeito e os aparelhos ideológicos de Estado13, e a
Psicanálise lacaniana. A partir deles, cria a base teórica da AD de linha francesa.
O materialismo histórico, até então ignorado pelos estudiosos da língua,
passa a ser o centro da trajetória da análise discursiva. Considerar as relações
sociais, as lutas de classes, o sujeito enquanto produto constituído e interpelado
pela língua, através de processos ideológicos, torna-se relevante para a
compreensão do dizer ou do não dizer de um determinado sujeito em uma
determinada configuração social.
[...] os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) por formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhe são correspondentes. Especificamos também que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se realiza pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina. (PÊCHEUX, 1997, p. 214.)
A partir de seu trabalho o filósofo demonstra que a identidade da FD está
relacionada à exterioridade da língua e às práticas político-científicas e que o
ideológico e o inconsciente devem ser pensados como elementos constituintes do
sujeito. Reitera-se que para Pêcheux “as ideologias não são feitas de ideias, mas de
práticas” (1997, p. 144) e, conforme Althusser (1985) possuem existência material,
visto que são elas, através das vivências cotidianas, que “interpelam” o indivíduo
em sujeito.
Essa concepção teórica mudou os procedimentos metodológicos da análise
textual, inserindo nesse processo a investigação da materialidade e da historicidade
dos enunciados, atrelados à característica subjetivista, originada pela Psicanálise,
que interroga o sujeito enquanto único formador de seu discurso. Enfim, a AD se
constitui numa alternativa para o analista compreender os mecanismos de produção
de sentido entre os interlocutores do discurso, avaliando o contexto, os aspectos
históricos e sociais dos sujeitos envolvidos na interação discursiva.
13
O Estado é, antes de mais nada, o que os clássicos do marxismo chamaram de o aparelho de Estado. Este termo compreende não somente o aparelho especializado (no sentido estrito), cuja existência e necessidade reconhecemos pelas exigências da prática jurídica, a saber: a política – os tribunais – e as prisões; mas também o exército, que intervém diretamente como força repressiva [...] (Althusser, 1985, p. 65). Louis Althusser, através de sua obra “Aparelhos Ideológicos de Estado”, propõe discutir a relação de produção através dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado, sendo que é através desses aparelhos que a elite burguesa reproduz a lógica da dominação.
25
A interpretação, para a AD, deve ser pautada nos processos de significação
relacionados à incompletude da língua. A AD é um campo do conhecimento que se
consolidou como uma disciplina de entremeio nos estudos da linguagem, em um
método de análise que vê na interdisciplinaridade uma possibilidade para a sua
prática, sem, contudo, desviar-se do foco no outro, considerando que é na relação
linguagem, sujeito, exterioridade que são constituídos os processos sociais a partir
das condições de produção do discurso/texto. Orlandi afirma que não há sentido
sem interpretação. Por isso, a AD procura combater a tendência de interpretação do
conteúdo do texto como se a linguagem não fosse opaca e, sim, transparente e o
sentido permanecesse sempre o mesmo.
2.1.1 Discurso, Interdiscurso, Intradiscurso
A língua permite a comunicação e a não-comunicação. (PÊCHEUX, 1997, p. 93)
A citação em epígrafe refere-se a uma oposição de Pêcheux à afirmação de
Marx e Engels, no texto a Ideologia Alemã, de que a língua é um meio de
comunicação entre os homens. Segundo seu pensamento, a língua, enquanto
sistema linguístico de uma comunidade, ela mesma servirá certamente como um
objeto de “não-comunicação” perante outras comunidades linguísticas. Sabe-se,
também, que a língua pode ser um entrave comunicativo em uma comunidade com
o mesmo código linguístico, sendo possível lembrar, por exemplo, os estados
brasileiros e suas múltiplas variantes linguísticas, fato que confirma a proposição de
Pêcheux na citação acima.
A língua, para a AD, não é apenas uma ferramenta de comunicação ou objeto
de expressão do sujeito individualizado, mas um instrumento de luta entre as
diferentes classes sociais. Ela é vista como um código, um sistema simbólico de
estruturas formais, remetendo à ideia de funcionamento (sujeito e condições de
produção). É através desse sistema heterogêneo e instável que se dá o discurso,
pois não há discurso sem língua e interlocutores, o que atesta a língua como uma
instância social. Se na Linguística a língua tem uma relação direta com a fala14, para
14
Ferdinand de Saussure (1996) afirma que a língua é um sistema constituído de signos linguísticos
arbitrários que são atualizados via atos de fala.
26
a AD a relação dicotômica se dá pelo par língua e discurso. Enfim, língua é a
materialização do discurso, mas o que é discurso?
Etimologicamente, a palavra discurso deriva da palavra latina discurrere, dis
(fora) e currere (correr), e traz a noção de curso, de movimento. O discurso é a
palavra em movimento, o uso da linguagem pelo sujeito nas relações sociais.
Conforme Orlandi, no livro Princípios e Procedimentos (2003), essa palavra é muito
presente no cotidiano; emprega-se geralmente para as falas de professores, de pais,
de políticos, de filósofos, etc. Entretanto, para a AD, discurso remete a uma
conotação mais complexa – é constituído pelas manifestações portadoras de sentido
que ocorrem em um sistema linguístico, através da relação de sentido entre o social-
histórico construído pelos sujeitos e que perpassa as diversas esferas da sociedade,
cabendo a esta compreender e descrever os processos de materialização da língua.
O sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso. (PÊCHEUX, 1997, p. 91.)
Convém relembrar que Pêcheux defende a teoria materialista do discurso e é
sobre essa base linguística que se desenvolvem o discurso e suas instabilidades.
Todo discurso é subjetivo e carregado de formações ideológicas de classes de
caráter contraditório. “As palavras não significam em si. Elas significam porque têm
textualidade” (ORLANDI, 2005, p. 86) e são constituídas por diferentes formações
discursivas. Em outras palavras, todo discurso é construído por outros discursos e a
compreensão das condições de produção dessas formações discursivas dará
sentido ao discurso. Pêcheux (1997) diz que não há discursos neutros, tendo em
vista a tomada de posição dos sujeitos em relação a determinadas formações
discursivas:
se uma mesma palavra, uma mesma expressão e uma mesma proposição podem receber sentidos diferentes – todos igualmente “evidentes” – conforme se refiram a esta ou aquela formação discursiva, é porque – vamos repetir – uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria “próprio”, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva. De modo correlato, se se admite que as mesmas palavras, expressões e proposições mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva a uma outra,é
27
necessário também admitir que palavras, expressões e proposições literalmente diferentes podem, no interior de uma formação discursiva dada, “ter o mesmo sentido” (...). (PÊCHEUX, 1997, p. 161.)
Orlandi alerta para a questão da incompletude da linguagem, visto que o
sentido pode vir a ser outro dependendo da Formação Discursiva a que pertence o
sujeito do discurso. No momento em que se pensa o discurso operando sobre outros
discursos, vê-se a importância de pensar o Interdiscurso como “algo que fala sempre
antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a dominação do complexo
das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1997, p.162). É importante ressaltar que, na
teoria de Pêcheux, a ideologia dominante manifesta-se no Interdiscurso, pois todas
as formações discursivas estão relacionadas a ele.
Para Orlandi, o Interdiscurso tem uma relação direta com a memória15.
Conforme a autora, “o interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já
esquecidas que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2003, p. 33). É algo que já
foi dito por outras pessoas em algum momento, mas o sujeito não o percebe devido
ao esquecimento. Esse esquecimento de que fala Orlandi, para Pêcheux (1997)
denomina-se pré-construído, termo que remete a um outro16 ausente-desconhecido
que fala sempre antes, exterior, mas que está presente no discurso atual. Essa ideia
de um “já-lá”, de que o discurso se constrói a partir de outros discursos anteriores, é
o que determina o Interdiscurso na concepção da AD.
Portanto, a palavra, por si só, não terá significado se não houver uma relação
entre ela e a memória discursiva do sujeito. É no Interdiscurso que o dizer passa a
ter sentido entre os interlocutores. Essas diferentes formulações a que estamos
expostos em nossa Formação Discursiva estão relacionadas com o Intradiscurso,
espaço onde permeia o texto. Devemos entender texto como “um conjunto de
formulações, entre outras possíveis, movimento do dizer face ao silêncio tomado
aqui como horizonte discursivo” (ORLANDI, 2005, p.111). O Intradiscurso é o local
onde se dá a formulação do discurso.
15
Deve-se entender, aqui, como memória social, aquela que dará sentido aos dizeres que levam a sociedade a compreender-se. 16
A visão do “outro” para Pêcheux estava relacionada a uma representação imaginária,relacionada com o contexto histórico-social de produção.
28
2.1.2 Formações Discursivas: uma relação entre história e memória
Os sujeitos percebem-se agentes construtores de significados de uma FD,
quando, na verdade, são efeitos. Ou seja, considerar que as palavras são
reformuladas e ganham um novo sentido de acordo com as necessidades
comunicativas do falante, que a partir daí as toma como suas, leva esse falante a
pensar que os discursos se originam nele. O que há, entretanto, é a retomada de
discursos anteriores presentes no Interdiscurso desse sujeito.
Eni Orlandi, em Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos,
lembra ser a FD “aquilo que numa formação ideológica17 dada – ou seja, a partir de
uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode
e deve ser dito.” (ORLANDI, 2005, p. 43). Em outras palavras, as práticas
discursivas devem ser analisadas pelas condições sociais e históricas desse
processo. Pêcheux assim se refere à FD:
Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.). (PÊCHEUX, 1997, p. 160, grifo do autor.)
Uma das grandes preocupações de Pêcheux foi construir um aporte teórico
sobre a FD propondo uma teoria materialista do discurso com base epistemológica
proposta por Althusser sobre ideologia e a luta de classes. O autor entende que o
sentido se materializa no interior de uma FD, visto que sua heterogeneidade se
constitui no discurso e que o sujeito ocupa lugares enunciativos na rede discursiva.
Essa reflexão é fundamentada numa relação ideológica de classe, que marca a
característica desigual de determinadas condições de produção; o sujeito é
interpelado pela ideologia, que o classifica em posição diferente na FD e,
dependendo da posição social que ocupa o sujeito não tem liberdade de falar o que
deseja.
17
Entendem-se formações ideológicas como modo de agir e de pensar de determinado grupo dentro da sociedade, constituindo “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem individuais nem universais”. (Haroche et al., 1971 apud BRANDÃO,1993, p. 38.)
29
Como conceito determinante da formação do discurso e do sujeito, Pêcheux
faz uma releitura da tese dos “Aparelhos Ideológicos de Estado”18 e do
“assujeitamento” proposto por Althusser e, a partir de então, pensa a ideologia como
interpelação do indivíduo em sujeito, que ao ser interpelado é afetado pelo pré-
construído e, portanto, não é dono do seu dizer.
Althusser (1997) defende três teses sobre o funcionamento da ideologia: “a
ideologia tem existência material” (p. 88), “a ideologia interpela os indivíduos
enquanto sujeitos” (p. 93) e “a ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária
dos indivíduos com suas condições reais de existência” (p. 85). Esses conceitos
estão refletidos na teoria pecheutiana, quando a mesma afirma que “o processo
discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes” (p. 93); quando retoma a
questão do assujeitamento do indivíduo nas relações de produção; e quando
reformula a noção de esquecimento que dá origem ao Interdiscurso como um
“sistema pré-consciente-consciente”: Esquecimento 2, e o “sistema inconsciente”:
Esquecimento 1, sendo o último, indiferente ao sentido e, portanto, ideológico.
[...] que dá conta do fato que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina, Nesse sentido, o esquecimento n. 1 remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que – como vimos – esse exterior determina a formação discursiva em questão (PÊCHEUX,1997, p. 173).
O esquecimento ideológico é constitutivo de subjetividade e se liga aos
processos de enunciação pelo inconsciente do sujeito. Daí a sensação que o sujeito
tem de ser o responsável pelo seu discurso, não o relacionando ao seu exterior. Já o
esquecimento número 2 é o da ordem da enunciação, em que “se corrige para
explicitar a si próprio o que disse, para aprofundar ‘o que pensa’ e formulá-lo mais
adequadamente” (PÊCHEUX,1997b, p. 177) sendo que, para a AD, os sentidos
estão implícitos nas redes discursivas, entre o dito e o não-dito, reconstruindo-se no
movimento constante do simbólico.
O conceito de ideologia está atrelado a todo quadro teórico da AD: formações
discursivas, formações ideológicas, posição-sujeito, esquecimentos, para sustentar
as análises ancoradas nas condições histórico-sociais dos processos discursivos. A
existência da ideologia se dá na materialização das formações discursivas, ou seja,
18
Louis Althusser propõe uma teoria da ideologia em geral no mesmo sentido da proposição apresentada por Freud (uma teoria do inconsciente).
30
nos movimentos dos dizeres. Significa dizer que a linguagem não é transparente,
nem neutra. Ela é carregada de sentidos e, na medida em que há sentido, há
possibilidades de interpretação, “assim considerada, a ideologia não é ocultação,
mas função da relação necessária entre linguagem e mundo” (ORLANDI, 2003, p.
47).
Michel Pêcheux afirma que o conceito de formação discursiva com o qual
trabalha é emprestado de Foucault, apesar desse pensador não trabalhar com as
questões de luta de classes e ideologia na perspectiva marxista. Pêcheux se
distancia de Foucault quando insere em seus estudos a noção da história nas
condições de produção, já que na perspectiva foucaultiana o discurso “é o espaço
em que saber e poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de
um direito reconhecido institucionalmente” (BRANDÃO, 1993, p. 31), não
apresentando relação com a historicidade.
Na AD, a história não está relacionada à cronologia, à marcação do tempo,
mas à realidade social e culturalmente construída e, aos sentidos constantemente
retomados e reconfigurados em novas FDs.
2.2 O SUJEITO DISCURSIVO
O conceito de sujeito não é unívoco. Muitos pensadores, como Descartes,
Freud, Lacan, entre outros, ocuparam-se em compreender e definir a noção de
sujeito e chegaram a conceitos diferentes sobre ele. Minha intenção com este
estudo não é analisar em todas as suas particularidades a definição de sujeito.
Interessa aqui o sujeito discursivo teorizado por Michel Pêcheux.
No domínio da Linguística, o sujeito é visto de forma vazia, só adquire
significação quando atribuímos a ele algum predicado, como na constatação: Robert
Ledgard (protagonista do filme La piel que habito) é um notável cirurgião plástico.
Portanto, o substantivo Robert Ledgard isoladamente apenas nos informa que é uma
pessoa do sexo masculino, mas cabe à predicação atribuir uma significação mais
ampla ao sujeito, nesse caso, “notável cirurgião plástico”. Para a Linguística, o
predicado tem a função de atribuir uma significação ao sujeito, sendo este uma
pessoa, outro ser vivente ou um objeto.
Na Psicanálise, a noção de sujeito, diferentemente da Linguística, serve para
designar uma pessoa ou um indivíduo. Por isso, tem uma relação com o “eu”. Lacan,
31
baseado na teoria de Saussure, sobre significante e significado, articula a noção de
sujeito à noção de significante. Afirma que a formação do sujeito está atrelada a
outro, é aquilo que um significante representa para outro19 significante, haja vista
que para Lacan “o significante produzindo-se no campo do Outro faz surgir o sujeito
de sua significação” (SEMINÁRIO 11, p. 197). A significação do sujeito para Lacan
está na definição do sentido que um significante tem para o outro significante, a
partir da linguagem e na linguagem. A ideia é que o sujeito é formado do
inconsciente instituído pelo discurso articulado a uma estrutura simbólica em uma
cadeia de significantes20.
A AD trouxe, da teoria de Lacan, o sujeito atravessado pela linguagem de
outros e a identificação com a FD que o cerca e o interpela em sujeito de seu
discurso. O sujeito, na perspectiva de interpelação, deixa de ser a fonte e o centro
do sentido atribuído outrora pelo idealismo, e a ideologia assume a função de
transmitir o sentido do discurso do sujeito, em razão de sua visão materialista do
discurso. A tese da AD trabalha conceitualmente o fato de que o materialismo e a
ideologia estão materialmente ligados pela língua. Por isso, o sujeito, enquanto
constituído pela língua, não é a causa ou a origem de si mesmo, mas o processo,
visto que o sujeito é prisioneiro de uma rede de significantes que o antecedem.
Se acrescentarmos, de um lado, que esse sujeito, com S maiúsculo — sujeito absoluto e universal —, é precisamente o que J. Lacan designa como o Outro (Autre, com A maiúsculo), e, de outro lado, que, sempre de acordo com a formulação de Lacan, “o inconsciente é o discurso do Outro”, podemos discernir de que modo o recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que se poderia designar como o processo do Significante na interpelação e na identificação, processo pelo qual se realiza o que chamamos as condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção. (PÊCHEUX, 1997, p.133-134. Grifos acrescentados.)
Enfim, não é o discurso que mostra a ideologia, mas é a ideologia que
construirá o discurso. Esse estatuto da AD entre ideologia e inconsciente é o que
nos interessa no estudo da constituição do sujeito. Na obra Semântica e Discurso,
19
“O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. E eu disse – é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão.” (Seminário 11, p. 193-194) 20
Para aprofundar o estudo da relação do simbólico entre sujeito e linguagem é recomendável a
leitura de: LACAN, Jacques. O Simbólico, o Imaginário e o Real. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
32
Pêcheux se ampara no pensamento de Althusser para construir sua tese da
materialidade das ideologias, no que se refere ao funcionamento das instituições e o
sujeito interpelado.
[...] L. Althusser que, em Aparelhos Ideológicos de Estado, apresentou os fundamentos reais de um teoria não-subjetivista do sujeito, como teoria das condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção: a relação entre inconsciente (no sentido freudiano) e ideologia (no sentido marxista), que inevitavelmente ficaria misteriosa na pseudo-solução estruturalista do texto de Herbert, começa, assim, a ser esclarecida, como vamos ver, pela tese fundamental segundo a qual a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos. (PÊCHEUX, 1997, p.133, grifo do autor.)
Pêcheux usa os termos “reprodução/transformação das relações de
produção” para indicar que a interpelação do sujeito se dá em vários níveis sociais,
pois “toda a formação social para existir [...] deve reproduzir as condições de sua
produção” (ALTHUSSER,1985, p. 54). A ideologia se constitui, manifesta-se e se
reproduz nos aparelhos ideológicos do Estado em uma relação de desigualdade e
subordinação à classe dominante, resultando na luta ideológica de classes.
Como se pode perceber da relação ideologia/inconsciente, ocorre o
assujeitamento com a identificação e interpelação do sujeito a sua FD. Orlandi frisa
que “não há nem sentido nem sujeito se não houver assujeitamento à língua” (2005,
p. 100). Então, o sujeito deve ser concebido como o resultado de sua constituição na
linguagem, afetado pelo simbólico, pelo significante. O sujeito interpelado não se
percebe ligado a uma rede discursiva, pensa ser o dono de seu dizer. No entanto,
quando o sujeito pronuncia “eu”, já se mostra assujeitado na máscara que
ideologicamente o identifica na FD a que pertence. Em outras palavras, é a condição
que o indivíduo se impõe, a partir do lugar que lhe é determinado na escala social,
que irá influenciar a formulação do seu discurso e dos sentidos. Reiterando, o “eu”
corresponderá ao que ideologicamente o indivíduo representa na sociedade e,
consequentemente, a si próprio. O que se tem aqui, como já afirmei, é o efeito da
ideologia sobre o indivíduo. Pêcheux diz que as estruturas ‘ideologia’ e ‘inconsciente’
estão interligadas e que “é no interior desse processo ‘natural humano’ da história
que ‘a ideologia é eterna’”(1997, p.152).
O mecanismo em que o indivíduo tem a sensação de ter a posse do sentido,
em que ele se reconhece e interpreta seu papel na sociedade, Pêcheux (1997)
chama de teatro da consciência, “onde se pode captar o que se fala do sujeito, que
33
se fala ao sujeito, antes que o sujeito possa dizer: Eu falo” (p.154). Assim, por meio
do efeito de evidência, o indivíduo é afetado pela “evidência do sujeito como único,
insubstituível e idêntico a si mesmo” (1997, p.155), efeito constituído pela linguagem
e na linguagem.
2.2.1 O discurso e o sujeito: uma relação de poder
Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo? (FOUCAULT, 1996, p. 08.)
Althusser (1985) afirma que o homem que é racional é livre para aceitar
livremente sua submissão. Essa argumentação denota uma liberdade forjada por
meio da linguagem, um poderoso instrumento de manipulação e, por conseguinte,
de implantação e conservação de ideologias. O discurso tem como pano de fundo a
ideologia, que se constrói numa conjugação de forças sociais, políticas, econômicas,
ideológicas, e é capaz de persuadir os sujeitos a determinadas atitudes, de modificar
ou cristalizar comportamentos entre os homens, dentro de um dado contexto
histórico-social.
A palavra persuadir, originada do termo em latim persuadere, é uma
estratégia da comunicação que consiste em convencer, aconselhar, levar o seu
interlocutor à aceitação de um determinado pensamento. O discurso persuasivo tem
uma relação ideológica e sua articulação se dá pelos aparelhos ideológicos de
Estado, instituições que o indivíduo frequenta no decorrer de sua formação/vivência.
Segundo Althusser, é através dos aparelhos ideológicos de Estado que a elite
burguesa produz sua lógica de dominação excludente e desigual.
Althusser diferencia aparelhos ideológicos de Estado (AIE), formados pelas
instituições sociais, como a escola, a igreja, a família, a cultura, os sindicatos, a
política, entre outros, dos aparelhos repressivos de Estado (ARE), como o Governo,
o Exército e a Polícia. Entretanto, conforme o filósofo, apesar de os ARE agirem sob
a repressão, os dois aparelhos atuam através da ideologia. Os ARE e os AIE são os
responsáveis pela disseminação da ideologia dominante, principalmente na escola e
na igreja, pois esses locais se constituem em aparelhos que “moldam por métodos
34
próprios de sanções, exclusões, seleção, etc... não apenas seus funcionários, mas
também suas ovelhas” (ALTHUSSER, 1985, p. 70).
Na teoria de Althusser, a sociedade capitalista está dividida em duas classes,
a burguesa e a proletária. A primeira detém os meios de produção e a segunda a
força de trabalho, que precisa ser vendida para manter o seu sustento. Essa relação
se dá pela exploração da força de trabalho através da compra e venda da mão de
obra operária e da reprodução da força de trabalho que exige, além da sua
qualificação, a submissão à ideologia burguesa dominante.
Diante dessas considerações, faz-se possível observar na literatura21 as
cicatrizes deixadas pelas divergências de ideias ocorridas nas sociedades
contemporâneas a partir da divergência de ideologias. A força argumentativa
movimentou grandes massas em prol de interesses econômicos, políticos e
ideológicos das classes dominantes. O argumento é o que sustenta o discurso de
manipulação nas formações discursivas entre os indivíduos, em cada época e em
cada grupo social.
Revendo a atualidade da tese do filósofo Louis Althusser, vemos um
importante AIE em ação no Oriente Médio – o discurso religioso, que através de uma
ideologia religiosa extremista radical, em uma relação de autoridade e crença,
promove, a partir da manipulação de massas, o medo, a violência e o terror. O
homem, aqui, usa o convencimento para a submissão dos adeptos e a violência
para a rendição das classes à sua ideologia. Entretanto, não é a primeira vez que
extremistas tentam explorar e dominar as massas, provocando revoluções e guerras
entre potências, na virada de um século a outro.
Mas, o AIE mais efetivo disseminador de ideologias é a indústria da mídia,
principal agente de produção e transmissão de informações da sociedade
contemporânea. Ela atinge simultaneamente uma vasta audiência, em territórios
geograficamente distintos, com a disseminação da informação em redes de forma
cada vez mais rápida e eficaz. A imprensa, com o argumento da neutralidade e o
compromisso com a verdade, direciona seus discursos de acordo com seus critérios
ideológicos e seus interesses econômicos, pois não pode ser esquecido o caráter
comercial desse veículo de informação. A indústria midiática informa, diverte,
21
O termo Literatura deve ser compreendido como todo o conjunto de textos escritos disponíveis a
respeito de um tema, classificados como ficcionais ou não.
35
difunde culturas, educa, sempre pelo viés da ideologia que determina a seu critério a
produção de sentido, elemento fundamental na construção da opinião pública.
Retomando a epígrafe que abre este subcapítulo, “mas, o que há, enfim, de
tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem
indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” (FOUCAULT, 1996, p. 08). Entendo
que há uma relação de poder entre as diferentes classes sociais, políticas e
ideológicas, e o discurso, sendo opaco, é a ferramenta da coerção ideológica para
manter a classe dominante no poder, pois, de acordo com o mesmo autor, os
discursos em circulação na sociedade são controlados, selecionados e organizados.
2.3 A MATERIALIDADE DO SILÊNCIO
Afirmei aqui diversas vezes que o sujeito se assujeita conforme a posição
social que ocupa. É sabido, também, que um indivíduo em suas relações discursivas
cotidianas passa por diversas situações e que seu discurso materializa a ideologia
dominante. É pela língua que o indivíduo se subjetiva na sua relação com o
simbólico e, interpelado em sujeito, formula o seu discurso. É na formação discursiva
que o sujeito efetua a sua autoridade e a sua submissão. Por isso, o ato de silenciar
também está relacionado com a função que o sujeito exerce nas suas atividades
sociais, sempre numa relação de superioridade e inferioridade. Nesse processo, o
indivíduo tem sua voz coberta por convenções sociais historicamente construídas.
Entretanto, discurso também é o que se deixa de dizer, o que se silencia. Essas
questões, entre outras, relacionadas à materialidade do silêncio, são o foco do meu
interesse e servirão de base para o teor do terceiro capítulo.
Vivemos no século da comunicação, da valorização da fala e da escrita. A
evolução e o aprimoramento dos meios de comunicação de massa, principalmente a
Internet, espaço em que se disseminam todos os tipos de informações e
entretenimento, mudaram a forma como o indivíduo se relaciona com o outro e
consigo mesmo. As pessoas estão constantemente conectadas, interligadas com o
mundo. A geração atual tem necessidade de novos conhecimentos, de informação
e, também, de exposição, pois tudo se mostra, tudo se fala. Há um verdadeiro
movimento em prol da tagarelice, em que se fala muito, mas com pouco sentido, do
que resultam múltiplos silêncios. Nessa conjuntura, em que as vozes se multiplicam
e os discursos tornam-se desnorteantes, o grande desafio é compreendê-los e, para
36
isso, é preciso resgatar o sentido, uma vez que, conforme Orlandi (2007), há
palavras que silenciam e silêncios que falam, significam.
Quando proponho uma reflexão sobre o silêncio e seus possíveis sentidos,
adentro em um terreno complexo, já que o silêncio possui interpretações distintas
em determinadas culturas. Para além da definição universal como ausência de som,
o silêncio, para uns, é algo atordoante, sinônimo de falta; para outros, entretanto, é
uma dimensão sagrada relacionada ao aprendizado, conhecimento e sabedoria,
principalmente na cultura oriental, em que há uma tradição milenar de culto ao
silêncio. Para a AD, o silêncio não é o nada, vazio de significação, nem negação de
algo, mas “essência” significativa de discurso. No silêncio nos significamos,
significamos as palavras e, também, comunicamos.
A intenção com este trabalho é analisar o silêncio e seus possíveis sentidos
discursivos e suas diferentes formas. Do ponto de vista da AD, como já mencionado
aqui, o discurso está relacionado com a significação, com a relação de sentido22 na
comunicação entre seus interlocutores. Não podemos confundi-lo com a fala,
abstração individual da língua. O silêncio, na perspectiva discursiva, é o lugar que
permite à linguagem significar. Para Orlandi, “o silêncio não é vazio, ou sem-sentido;
ao contrário, ele é o indício de uma instância significativa” (2007, p. 68). Mesmo que
não seja possível vê-lo, é possível significá-lo no discurso. A pesquisadora afirma
que o silêncio “não é mero complemento da linguagem”. Para ela, “ele tem
significância própria” (2007, p. 23). O silêncio triste, o silêncio alegre, o silêncio
constrangedor, transmitem, através do não dito, muitas vozes, só perceptíveis a
sensibilidades mais atentas.
[...] a incompletude é fundamental no dizer. É a incompletude que produz a possibilidade do múltiplo, base da polissemia. E é o silêncio que preside essa possibilidade. A linguagem empurra o que ela não é para o “nada”. Mas o silêncio significa esse “nada” se multiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais silêncio se instala, mais possibilidade de sentidos se apresenta. (ORLANDI, 2007, p. 49.)
O objetivo neste trabalho não é tomar o silêncio como algo positivo ou
negativo, mas como “a própria condição da produção de sentido”. Ele é o espaço
que “permite a linguagem significar” (2007, p. 68), visto que está representado em
22
Compreender o que é efeito de sentidos é compreender que o sentido não está (alocado) em lugar
nenhum, mas se produz nas relações: dos sujeitos, dos sentidos, e isso só é possível, já que o sujeito e sentido se constituem mutuamente, pela sua inscrição no jogo das múltiplas formações discursivas." (ORLANDI, 2004, p. 20.)
37
qualquer enunciação. O silêncio, ao não dizer, diz, significa com a ausência da
palavra na pausa, nas reticências, nos equívocos da linguagem, pois, como já
mencionado, a linguagem não é transparente e atua no imaginário humano. O
silêncio, entretanto, não pode ser visto como um complemento da linguagem ou
como algo implícito sugerido pelo interlocutor, pois o implícito, algo que não foi dito,
precisa da palavra para significar, enquanto o silêncio apenas significa. O silêncio é
uma dimensão interna da fala e do sentido e esses se relacionam para significar
algo em que estão mutuamente implicados. Nas palavras de Orlandi,
O implícito é um subproduto desse trabalho do silêncio, um efeito particular dessa relação mais de fundo e constitutiva. O implícito é o resto visível dessa relação. É um resíduo, um epifenômeno. O silêncio, tal como o concebemos, não remete ao dito; ele se mantém como tal, permanece silêncio. (ORLANDI, 2007, p. 45.)
Em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, a mesma autora traz
dois conceitos de silêncio: o fundante ou fundador e a política do silêncio ou
silenciamento. No primeiro, a autora ressalta que se trata da “matéria significante por
excelência, um continuum significante” (2007, p. 29, grifo da autora), ou seja, o
silêncio fundamenta o sentido das palavras ou indica que o sentido pode ser outro;
nas diversas linhas significantes que possibilitam diversos sentidos, ele está sempre
em movimento porque tem uma relação com o imaginário e com o simbólico, ou
ainda, que o mais importante nem sempre é dito. Na proposta de Orlandi (2007), o
silêncio não fala, ele é, significa; no silêncio o sentido é.
Na política do silêncio, ela o divide em dois - constitutivo e local. O constitutivo
é o que nos indica que, para dizer, é preciso não dizer. Orlandi (2007) afirma que “as
palavras transpiram silêncio”, assim como Clarice Lispector, em Um Sopro de Vida,
afirma que “as palavras que digo escondem outras”. É perceptível nessas citações
que a relação do dito e do não-dito indica que o locutor pode dizer algo para silenciar
outro em determinada conjuntura, já que uma palavra apaga necessariamente as
outras. Essa relação do poder dizer e apagar determinados sentidos pode ser
observada, em La piel que habito, no discurso da personagem Vera, quando articula
a sua libertação. As palavras não pronunciadas não deixam de existir, continuam lá
no subconsciente, mas são silenciadas pela escolha inconsciente do indivíduo. Já o
silêncio local refere-se à censura entre o que se pode e o que não se pode dizer, ao
proibido, ao silêncio imposto que faz calar em determinada situação.
38
De certa forma, em todas as culturas, o ser humano convive com alguma
forma de censura de ordem moral, religiosa, política, filosófica, atrelada a um
movimento ideológico que norteia os interesses repressores. A literatura, enquanto
experiência cultural constituída em um conjunto de textos ficcionais ou não, mostra
que as feridas deixadas pelas ditaduras, a repressão contra as minorias, ainda não
cicatrizaram. O descaso com o ser humano que ainda convive com os sintomas da
censura, com práticas autoritárias e violentas, é perceptível nos discursos que se
sustentam através do mecanismo ideológico que, de uma forma ou de outra, altera o
comportamento do sujeito, enquadrando-o em certas posições discursivas, visando
ao controle do sentido.
As reflexões teóricas que Eni Orlandi faz sobre o silêncio servem como base
para a análise apresentada no Capítulo três, em que o foco é o silêncio na sua
materialidade linguística e histórica. Por isso, o estudo do silêncio e suas formas
devem estar atrelados à censura, à ideologia e às condições de produção do
indivíduo para, assim, levar a compreender a posição tomada por esse sujeito no
processo discursivo. É importante considerar como as práticas de silenciamento, ou
de autossilenciar-se, constituídas historicamente, conseguem instituir um sentido
discursivo. Por outro lado, Orlandi (2007) deixa claro que, para compreender a
linguagem, deve-se ir além do silenciamento, da sua dimensão política, para assim
entender o silêncio como constitutivo de significação. Mas, para entendê-lo e
visualizá-lo, é necessário buscar subsídios na historicidade, um quebra-cabeças que
se deve montar através das indicações: observar pelas marcas da linguagem, uma
vez que não se pode ignorar essa relação dicotômica. Silêncio e linguagem se
intercalam a serviço da significação. Dito de outra forma, é o texto que estabelece a
relação de sentido, pois, conforme Orlandi (2007), bé ele que torna visível a
historicidade que dará sentido às palavras, enfim aos discursos. O texto na AD é o
lugar em que se apresenta a materialidade, ou seja, o local onde se trabalha com os
sentidos, tanto da linguagem verbal como a do silêncio.
2.4 UMA LEITURA SILENCIOSA
Para refletir sobre o exposto acima, trago uma citação de Orlandi: “O mesmo
leitor não lê o mesmo texto da mesma maneira em diferentes momentos e em
condições distintas de produção de leitura, e o mesmo texto é lido de maneiras
39
diferentes em diferentes épocas, por diferentes leitores” (2001, p. 62). Segundo o
pensamento da pesquisadora, são as condições de produção do discurso que
determinam a leitura de um texto23, pois é a leitura que vai dar sentido a um objeto
simbólico, tendo em vista a interação entre o discurso do texto com o discurso que
constitui o sujeito leitor.
É importante destacar que, quando me refiro ao ato de ler, não estou
abordando as estratégias de leitura, mas uma reflexão acerca de como perceber os
fatores que norteiam o sentido do discurso para uma abordagem discursiva, “a
leitura aparece não mais como simples decodificação mas como a construção de um
dispositivo24 teórico” (ORLANDI, 2005, p. 21). Sob esta ótica, o leitor analista
assume a função de interlocutor desta relação discursiva. Deve-se estudar os
fenômenos linguísticos com embasamento no contexto sócio histórico do objeto de
estudo para compreender o sentido do dito e do não-dito. O sentido advém da
interpretação, diz Orlandi (2005).
O princípio dessas práticas de leitura consistiria em levar em conta a relação do que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de um modo e o que é dito de outro, procurando “escutar” a presença do não-dito no que é dito: presença produzida por uma ausência necessária. Como só uma parte do dizível é acessível ao sujeito – as diferentes posições dos sujeitos resultam de sua inscrição em diferentes regiões de sentidos ( diferentes formações discursivas) – com esta escuta o analista poderá ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras. ( ORLANDI, 2005, p. 60.)
Neste trabalho, a Análise do Discurso, Literatura Comparada e tradução se
aproximam, apesar de cada ciência ter seu campo teórico específico, todas
compartilham o texto e a leitura como ferramenta de análise. As três ciências
adentram seu estudo nos saberes interdisciplinares. O comparatista e professor
George Steiner (2001) diz que a prática comparativa é um ato de recepção em
linguagem; em arte e música, é um ato comparativo e, em seguida, conclui que o
23
Entende-se texto como a unidade de análise. No entanto, se vemos o texto a contrapartida do
discurso – efeito de sentido entre locutores – o texto não mais será uma unidade fechada nela mesma. Ele vai-se abrir, enquanto objeto simbólico, para as diferentes possibilidades de leituras [...] (ORLANDI, 2005, p. 64.) 24
O dispositivo, para Orlandi, são os mecanismos que presidem a textualização da discursividade. “Há necessidade, na análise de discurso, de uma passagem da noção de “função” à de “funcionamento”(sendo que esta nos permite encontrar as regularidades) e da construção de um dispositivo analítico baseado na noção de efeito metafórico (conforme Pêcheux, é o fenômeno semântico) (ORLANDI, 2005, p. 23.). A partir dessas considerações, Orlandi propõe dois dispositivos: um teórico e um analítico.
40
processo semântico é um processo de comparação. Ler é comparar e realiza-se
pela fronteira entre textos e sentidos pressupostos nestes e na cultura. Para George
Steiner, a LC
é, na melhor das hipóteses, uma arte de ler rigorosa e exigente, um estilo de ouvir ou ler atos de linguagem que privilegiam certos componentes desse ato. Esses componentes não são negligenciados em qualquer modo de estudo literário, porém na literatura comparada eles são privilegiados. (STEINER, 2001, p. 158.)
Nas palavras de Steiner, o oficio do comparatista não está necessariamente
no ato de comparar objetos, mas nos procedimentos que vão indicar a
inteligibilidade na articulação entre saberes. Quanto ao método, Tania Carvalhal
também afirma que “aos poucos torna-se mais claro que literatura comparada não
pode ser entendida apenas como sinônimo de "comparação" (1986. p. 05). Lembre-
se que o ato de comparar, conforme Steiner (2001), é um trabalho de leitura, pois
“ler é comparar” e esse procedimento, como assinala Carvalhal, “faz parte da
estrutura do pensamento do homem e da organização da cultura” (2006, p. 06). A
leitura intertextual é importante, porque revigora e amplia o sentido do texto
analisado, eis que a LC vai além do confronto entre os textos e seus autores. Ela
propicia ao leitor ler os intertextos presentes em um texto e captar, por meio dele, os
contrastes e nuances presentes na sociedade. Neste sentido, a leitura, na
orientação de Tania Franco Carvalhal, deve ser:
Tomada num sentido largo, a intertextualidade nos permite entender que ler um texto é lançá-lo num espaço interdiscursivo e na relação de vários códigos, que são constituídos pelo “diálogo entre textos e leitura”. Por isso a intertextualidade é igualmente entendida como um dado da percepção textual. (CARVALHAL, 2006b, p.129.)
Desde suas origens à situação atual, a LC foi ampliando seu campo de
atuação, ramificando-se entre os extratos culturais de uma mesma FD ou não,
portando-se de forma crítica e histórica diante de seus fenômenos, não se
restringindo, apenas, à análise de fonte e influências como praticara no início a
escola de linha francesa. As correntes atuais do comparatismo valorizam os
aspectos formais e os elementos contextuais, possibilitando um diálogo entre as
várias áreas do conhecimento e teorias. Tânia Carvalhal (2006, p. 47) afirma que
“nesse sentido, a literatura comparada torna-se duplamente comparativa, atuando
41
simultaneamente em mais de uma área”, e não necessariamente em mais de uma
obra. Tais características demonstram o impulso dado à interdisciplinaridade, pois
produzir LC é perceber a relação entre os textos e seus intertextos.
Os termos intertexto e intertextualidade foram criados por Julia Kristeva em
1966, no seminário de Barthes, em Paris, para relatar a teoria dialógica de Mikhail
Bakhtin (COMPAGNON, 1999). A intertextualidade, segundo essa autora, está “nas
relações que um texto tem com outro texto” e, ainda para ela, “todo texto se constrói
como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro
texto.” (KRISTEVA, in COMPAGNON, 1999, p.111.)
Essa reflexão sobre o texto como mosaico se dá pela reutilização de textos
presentes no Interdiscurso do sujeito discursivo, sendo que esses textos são
reformulados conforme o contexto, transformando-se em outros textos. Nessa
perspectiva, pode-se considerar um filme como uma rede dialógica conectada a
outros textos. Mas, de acordo com a mesma autora, ocorre a intertextualidade
quando o leitor reconhece os intertextos presentes no texto. Se o leitor não
conseguir inferir o sentido, a compreensão do texto será prejudicada. Resgatando a
teoria da AD, o mosaico discursivo, criado por Kristeva, carrega em sua essência as
noções de memória e esquecimento, em que o sujeito é afetado e que lhe dá a
ilusão de ser o criador do seu texto/discurso.
Da relação possível entre a Análise do Discurso e a Literatura Comparada
como categorias de análise, destaco a intertextualidade. Entretanto, para
compreender o sentido dos intertextos presentes no texto (no caso, o filme), deve-se
buscar a materialidade discursiva, observando o contexto de produção e a posição
do sujeito discursivo, específicos do campo de análise da AD.
Parto do pressuposto de que a leitura e o texto são fenômenos discursivos
porque estão interligados a uma condição de produção e estão condicionados a uma
multiplicidade de sentidos determinados pelos fatores histórico-ideológicos dos
envolvidos (texto e leitor). O sentido está com aquele que interpreta a partir do lugar
em que se coloca para ler, o qual, conforme Pêcheux (1997), é definido pela
ideologia, pois para o referido autor a ideologia não é abstrata, um conjunto de
ideias , mas sim formada por ações concretas praticadas no meio social, mesmo que
às vezes de forma inconsciente. Desse modo, o sujeito analista deve se colocar na
relação com o simbólico, pois, conforme Orlandi, se o sujeito “não sofrer os efeitos
42
do simbólico, ou seja, se ele não se submeter à língua e à história, ele não se
constitui, ele não fala, ele não produz sentidos”. ( 2003, p. 49.)
Seguindo essa linha, para dar conta da análise me remeto a vários campos,
como os linguísticos, sociais, filosóficos e políticos, a fim de abordar o silêncio
discursivo. Parto da concepção de que o texto, como um organismo que possui
materialidade, propõe a leitura que deve ser feita.
3 SILÊNCIO E SENTIDO NA TRAMA DISCURSIVA DE LA PIEL QUE HABITO
O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais. Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas, p.37)
44
3.1 O SILÊNCIO QUE MOVIMENTA O SENTIDO
Até o presente momento, preocupei-me em desenvolver um traço teórico para
orientar a minha pesquisa, visto que a teoria da AD nos possibilita caminhar por
vários campos do conhecimento e, principalmente, orienta-nos para um olhar mais
atento às questões culturais do objeto de análise sob um viés histórico/ ideológico. O
sujeito é, pensa, age e discursa influenciado pela ideologia que o cerca. Não somos
alheios ao contexto em que estamos inseridos. É com esse olhar que desenvolvi
este objeto de estudo, para perceber quais implicações envolvem os silêncios que
atravessam nossos discursos.
É sob essa ótica que busco, na trama de La Piel que habito, uma forma de
representar essa diversidade de práticas sociais, valores culturais e experiências
subjetivas que constituem o sujeito do discurso. Considerando o contexto social
contemporâneo do filme, é possível estudar quais são as heranças histórico-
ideológicas que interferem nos discursos, eis que as palavras estão em curso, em
constante movimento através da prática da linguagem do sujeito falante. Essa
abordagem é relevante, pois um filme é uma linguagem, uma abordagem social com
intenção de comunicar e, dessa forma, carregado de sentidos compartilhados pela
sociedade.
Atentando para o movimento das palavras e do silêncio na produção dos
sentidos, chamo a atenção para o título como um recorte discursivo fílmico imagético
(RDF-I 1). O título A pele que habito exemplifica a incompletude da linguagem e os
possíveis equívocos provocados por ela.
Em uma primeira leitura, antes de conhecer a referida obra, podemos inferir
que há um problema de identidade, uma interrogação como quem sou eu? - um
conflito interno de um indivíduo que ainda não descobriu seu espaço. Mas, depois
de apreciar a obra, outros sentidos aparecem para o título “A pele que habito”, pois
carrega um “eu” silenciado que vai se desvendando no desenrolar da trama.
Vicente/Vera, depois de sucessivas operações, recebe uma nova pele, transgênica,
mais resistente. Ela passa a habitar essa nova pele, como faz referência o título.
Entretanto, um novo sentido relacionado à identidade surge. Vera habita um novo
corpo, em que não se reconhece. Nesse caso, houve uma transformação externa,
pois Vera recebeu uma nova pele, um novo rosto, um novo corpo, novos órgãos
sexuais femininos, mas, internamente, as cirurgias não interferiram. Vera/Vicente
45
luta durante todo o filme para não perder sua identidade e a reafirma ao final,
quando se identifica para sua mãe dizendo-lhe “soy Vicente”.
Ao pronunciar “soy Vicente”, ele evidencia quem é: “eu”, Vicente. Sua mãe, a
funcionária da loja, o espaço, as lembranças, ajudam no processo de interpelação-
identificação com quem ele ideologicamente se reconhece: Vicente. Há uma relação
entre língua, sujeito e sentido, como constata Orlandi – “ideologia e inconsciente
estão materialmente ligados pela língua” (2003, p. 47).
A palavra habitar, nessa perspectiva, tem o sentido de ocupar, viver em; o
indivíduo ocupa um corpo para habitar, uma máscara para efeitos sociais. Na trama,
os três personagens centrais estão numa constante crise do seu eu. O doutor Robert
Ledgard ora usa a máscara de um conceituado cirurgião, um pai preocupado, ora de
um perverso e inescrupuloso indivíduo; e Marília, empregada, ou mãe, como ela
mesma afirma, “llevo la locura en mis entrañas”. A pele que habito faz referência ao
efeito camaleão que o sujeito incorpora nas ações sociais e no território nebuloso da
identidade.
Numa observação mais atenta do título, é possível verificar o jogo entre
silêncio e palavras significando e produzindo efeitos de sentidos. Aqui o silêncio
atravessa a palavra e me possibilita acessar, como analista, a uma multiplicidade de
sentidos, lembrando que, de acordo com Orlandi, “o silêncio fundamenta o
movimento da interpretação. Ele é o ponto de apoio do giro interpretativo” (2007,
p.156). O silêncio é importante para compreender o sentido da afirmação (A pele
que habito). Mesmo com a incompletude da linguagem, ele me auxilia a
compreender o que, ao não dizer, ele diz.
3.1.1 Compreendendo o Silêncio
Nesta parte do trabalho, proponho-me, embasada teoricamente na AD, de
linha francesa, analisar alguns Recortes Discursivos Fílmico-Imagéticos,
identificados a partir daqui como RDF–I, sob a perspectiva de análise dos elementos
discursivos presentes nas imagens para verificar como o silêncio fundamenta o
sentido da interpretação ou do discurso. O cineasta Pedro Almodóvar Caballero
apresenta-nos outros recortes discursivos, inclusive de outras FDs e os insere na
sua narrativa fílmica. Proponho, inicialmente, pela textualização das imagens,
pensar na materialidade discursiva de alguns elementos simbólicos presentes na
46
narrativa fílmica para compreender o deslocamento de sentido entre o dito e o não-
dito no processo de significação do discurso. De acordo com Orlandi,
A metáfora que pode nos fazer compreender esse processo é a do silêncio como “dobra”: é ele o ponto de inversão possível (todo sentido é efeito de uma refração, todo discurso se funda no equívoco), onde o discurso se desdobra em “outras” palavras. Ele funciona assim como um “ponto de fuga”, para onde vão os sentidos, ao se multiplicarem: sentidos se abrem em sentidos, que se abrem em sentidos... No silêncio. Uma vez disposto em discurso, um objeto simbólico significa indefinidamente. (2007, p. 155. Aspas da autora.)
Os sentidos nem sempre serão os mesmos ou estão prontos e acabados,
eles estão sempre se construindo. Fica claro que o caráter de incompletude do
discurso possibilita a pluralidade de sentidos que, de acordo com Orlandi, está no
“silêncio necessário, ou seja, o que é preciso não dizer para dizer” (2005, p. 166).
Nessa perspectiva de não dizer e comunicar, Almodóvar construiu seu mosaico
discursivo, promovido por outros discursos, carregados de sentidos outros que,
incorporados à narrativa fílmica, ampliaram os sentidos e possibilitaram novos
discursos. Quero dizer que a construção do sentido se dá na busca de preencher
com a interpretação as lacunas deixadas pela incompletude.
Para exemplificar a polissemia do discurso, selecionei três RDF-Is em que
podem ser observados “os modos de construção do imaginário25 necessário na
produção de sentidos”. (ORLANDI, 2007, p. 18.)
***
O seguinte RDF-I 2 remete à cena inicial do filme, que inicia com a câmera
voltada, em um primeiríssimo plano26, para a indicação visual El cigarral, localizada
ao lado do portão de entrada da residência do doutor Robert Ledgard. Em seguida,
há uma panorâmica que direciona a visão do espectador para a entrada da
propriedade, focalizando as grades do portão. Na sequência, há um corte27 e o
espectador se depara em uma das janelas da residência. Nesta janela, observa-se
primeiramente, a imagem de uma grade semelhante ao do portão e, conforme a
câmera aproxima a imagem, o espectador percebe um vulto que está protegido atrás
25
Não se trata de pensar a língua na sua forma abstrata, mas na sua materialidade. (ORLANDI, 2007,
p.19.) 26
Primeiríssimo Plano (PPP), ou Close-up, é um plano mais expressivo e tem o enquadramento
mais fechado que o primeiro plano; mostra o rosto da personagem para captar suas emoções. 27
Passagem instantânea entre dois planos.
47
das grades e de vidraças foscas que não lhe permitem uma visão clara da pessoa
que está naquele cômodo.
Logo, na sequência a câmera enquadra, em um plano em close-up28, um olho
de câmera fixado na parede e, num movimento de zoom-out29 a imagem vai se
distanciando do olho, abrindo o foco num plano geral (PG)30 para mostrar o interior
do ambiente e capturar-lhe os detalhes. Nesta primeira cena não é possível
perceber que se trata de um quarto. O espectador vê um sofá e uma jovem mulher
fazendo exercícios de yoga sobre ele. Há uma metanarrativa aqui. O olho da câmera
flagra outro olho, o da câmera de vigilância instalada no aposento, e, ao aproximar a
imagem, olho a olho, fornece ao espectador um sentido de alerta.
Marcel Martin diz que “o olho da câmera torna-se móvel como o olho humano,
como o olho do espectador [...] e. a partir de então, a filmadora é uma criatura
móvel, ativa, uma personagem do drama. [...]” (MARTIN, 2005, p. 38). Ela
suavemente conduz o olho do espectador com um movimento panorâmico sobre o
corpo da jovem, assimilando seus movimentos e descrevendo sua expressão.
Percebe-se não existir uma atmosfera de medo ou de felicidade, apenas de
contemplação.
Neste recorte, como nos demais, podemos evidenciar os implícitos trazidos
pelas imagens. As grades de ferro trazem o sentido de privação. O sujeito ou está
privado do mundo externo às grades, ou o mundo está privado do interno a elas.
Esse sentido de privação sugerido pelas imagens das grades na primeira cena do
filme será desenvolvido no decorrer de todo o filme. Outro elemento sugestivo é o
olho, qual seja, o olho que vigia, que controla, que cuida, que zela. Tais imagens
apresentam uma materialidade comunicativa que vai além dos aspectos figurativos
do cenário. Elas fazem parte do domínio da significação. Conforme Tania Souza, “o
trabalho de interpretação e o efeito de sentido se institui entre a imagem e o olhar”
(2008, p. 04) do espectador/analista.
Tanto as grades como o olho da câmera fazem parte do cotidiano urbano de
muitas cidades, sejam elas cidadezinhas ou metrópoles, como instrumentos de
proteção, vigilância e controle. A sociedade do século XXI está vigiada pelo olhar
28
Close-up - enquadramento de câmera mais fechado. 29
Movimento que distancia a imagem que está perto para longe. 30
Plano Geral (PG) tem a função de mostrar mais amplamente o ambiente, o local específico em que
ocorre a ação.
48
panóptico31, de acordo com Foucault (1999), como em uma panorâmica32 em ângulo
plongeé33. Tudo se vê e a todos se veem. É um gigantesco Big Brother a serviço do
poder, da manipulação e do controle da liberdade, como já anunciara o romance de
George Orwell, publicado 1948. A sociedade do século XXI modernizou e ampliou,
de forma velada, os modos de controle, monitoramento e vigilância social. As
pessoas são rastreadas em qualquer lugar, não há mais esconderijos, pois as
informações de cada pessoa estão conectadas a uma rede informatizada e
armazenada nos bancos de dados do Governo e das instituições bancárias. Nesse
novo tempo, o sujeito, gradativamente, é estimulado a aderir às redes sociais, aos
serviços on-line de compra e venda de produtos, aplicativos de GPS nos celulares e
automóveis, enfim, todo um aparato digital passível de monitoramento. E ainda, o
crescente número de câmeras nos espaços públicos e privados, que vigiam
constantemente os passos de qualquer indivíduo, anulam qualquer tipo de
privacidade. Ou seja, o privado pode torna-se público.
Retomando o RDF-I 2, a câmera apresenta ao espectador o rosto da jovem
mulher, parcialmente, pois o rosto, capturado em primeiríssimo plano, não está
totalmente visível. Parte da face da jovem recebe um feixe de luz que adentra pela
janela, escurecendo o outro ângulo do rosto. Este contraste entre o claro e o escuro,
entre o que está visível e o que não está visível, está relacionado com o dito e o
não-dito. O visível trata-se, em princípio, do sujeito feminino que está sendo
apresentado para o espectador nesta primeira cena; já o não visível, o camuflado
pela sombra, trata-se do sujeito masculino, revelado na segunda parte da película.
Artimanhas de Almodóvar que vão significando-se com a narrativa. A iluminação,
conforme Martin (2005), apresenta uma carga semântica muito significativa e
intervém na dramatização das cenas. A sombra criada pela utilização da iluminação
dramática se constitui em possibilidades de sentidos, os quais possibilitam evocar o
discurso da sombra como algo obscuro e misterioso.
A cena deste RDF-I adquire um ritmo orquestrado por insólitas notas
combinadas entre o som do violino e do piano. Alberto Iglesias, compositor da trilha
31
O conceito de olhar panóptico, em Foucault, está relacionado a um dispositivo de visibilidade e
controle social que caracteriza a sociedade disciplinar. O panoptismo corresponde à vigilância total, o sujeito é vigiado durante todo o tempo. 32
Panorâmica (PAN) consiste numa rotação da câmera em redor do seu eixo vertical ou horizontal (transversal), sem deslocamento do aparelho. (MARTIN, p. 65.) 33
Refere-se aos ângulos da câmera: plongeé (em francês, mergulho) é a imagem captada de cima para baixo e a contre-plongeé, apresenta a imagem em ângulo inverso, de baixo para cima.
49
sonora do filme, classificada de extra-diegética, porque somente o espectador pode
ouvi-la, constrói uma partitura harmonicamente desorganizada. Os acordes
musicais, ora tocados em ritmo acelerado, ora suave, alternam-se; e ora se
sobrepõem na mesma cena.
O áudio, elemento valioso de montagem na realização de um filme, atua na
composição da catarse do espectador e complementa o sentido das imagens. Um
filme não deixa de ser um conjunto de ritmos, sendo o som um deles, visto que é um
dos elementos que dinamiza o ritmo visual, pois é um dos responsáveis em construir
a emoção da cena. A marcação do ritmo musical, bem como sua sincronia e
velocidade, associada à imagem, atua como mediadora do sentido. Neste RDF-2 as
imagens são dinamizadas com a trilha sonora, pois conforme as imagens vão
surgindo na tela, como por exemplo, as grades e o olho na parede, o som que as
acompanha e as significam são acelerados e quando a câmera narra os movimentos
da mulher o som se alterna em notas mais suaves. Mas, quando a câmera registra a
sua imagem de frente, contrastando com o efeito da iluminação citado acima, o ritmo
oscila intensificando o sentido de desajuste da personagem.
A partitura de ordem caótica e desorganizada (porque mistura os ritmos
oscilando entre notas suaves e graves), como já mencionei, é uma manobra para
marcar a sensação de insegurança que há no ambiente em que se desenvolve o
enredo. A trilha sonora, por vezes alternando o som do violino, ora exagerado ora
mais harmonioso, cria uma atmosfera melancólica e, ao mesmo tempo, dá um tom
refinado ao espaço. O tema que acompanha Ledgard e Vera/Vicente realça os
momentos de conflitos entre as personagens, contrastando a desordem aparente do
roteiro musical com a desordem aparente do enredo, sendo assim apresenta-se
totalmente coerente ao roteiro fílmico.
Esta cena está composta por imagem e música. Não há falas, nem ruídos,
componentes que compõe os planos sonoros. Mas há muito silêncios presentes nas
imagens e no som porque ambos, especificamente nesta cena, possibilitam muitas
possibilidades de sentidos. O silêncio a que me refiro é o silencio significante, que
nos permite entender os sinais presentes no discurso. Nas palavras de Eni Orlandi,
é o “silêncio fundante”.
O homem está condenado a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à “interpretação”: tudo tem de fazer sentido
50
(qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico. (ORLANDI, 2005, p. 3.)
Desse modo não há sentido sem o silêncio. E a única possibilidade que tenho
para falar da semântica da imagem e do som, que juntos formam pelo processo de
significação, o discurso da cena, é pelo silêncio fundante. A imagem, o som e a
ausência de som, nesta perspectiva são a forma, e a matéria significante que
possibilita o plural da significação é o silêncio fundante. A cena se desenvolve
aproximadamente em cinquenta segundos, mas neste percurso o diretor e o
roteirista deixam algumas pistas para e espectador atento, visto que as imagens,
assim como a língua, não são transparentes e a inclusão de alguns elementos
simbólicos na cena sugere ao espectador um conflito que não condiz com a imagem
que se desenvolve na tela. As grades e o olho da câmera instalado na parede,
servem, neste caso, como símbolo do enclausuramento de Vera e com o
desenvolvimento das cenas este sentido fica mais evidente. A personagem Vera,
realmente vive em uma prisão domiciliar, assim como Vicente, vive enclausurado
dentro de um corpo que não é o seu.
Não adentrando muito nas questões formais e técnicas das imagens
proponho analisar outro RDF-I para pensar na relação intertextual que Almodóvar
faz com outros discursos que ele incorpora em algumas cenas. Estes discursos
trazidos de fora se resignificam e produzem outros sentidos para o filme. Para
compreendê-los o espectador se apoia na materialidade desses elementos
simbólicos, carregados de silêncios e de discursos que unidos formam outro
discurso.
***
O RDF-I 3 consta da cena posterior ao RDF-I 2. Ele está dividido em três
planos34. No primeiro a câmera apresenta a imagem em um plano fechado
mostrando alguns remédios e comprimidos sobre uma mesa e rapidamente a
câmera aproxima em um plano detalhe para um copo de suco provavelmente de
34
O Plano é um fragmento de imagem capturado pela câmera de vídeo, articulado no processo de
montagem para formar a narrativa visual que nos é apresentada no cinema e na televisão. De acordo com Xavier, “o plano corresponde a cada tomada de cena, ou seja, à extensão de filme compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que o plano é um segmento contínuo da imagem” (2005, p. 27). Os planos são classificados de acordo com a posição que a câmera assume em relação ao que está sendo filmado, ou seja, aos diferentes tipos de enquadramentos que servem para evidenciar o que se quer transmitir e têm a importante função de apresentar uma narrativa visual coerente.
51
laranja, em que uma pessoa dissolve o conteúdo de uma cápsula de comprimido
nele. O segundo abre também com um plano detalhe no livro com o nome de Luise
Borgeois na capa e num movimento panorâmico vai mostrando algumas esculturas
e uma coleção de bonecos apenas com o rosto e parte do dorso, feitos de argila e
restos de pano, semelhante aos bonecos de Borgeois, até chegar a uma pessoa que
está confeccionando um dos bonecos com pedaços de tecido rasgados com uma
lixa. A câmera não mostra a pessoa de frente, mas pela malha cor da pele que veste
todo o seu corpo, inclusive as mãos, o espectador sabe que se trata da mulher da
cena anterior. E o terceiro plano a imagem volta para dar sequência ao primeiro
plano dessa cena. Uma senhora está terminando de organizar uma bandeja com o
suco mostrado antes, água e outros alimentos. Enquanto ela anda com a bandeja
nas mãos, a câmera direciona a imagem em plano detalhe para um livro com o título
de Alice Munro - Escapada, que ela carrega embaixo de um dos braços junto com
algumas roupas.
O RDF-I 3 abarca outros discursos tomados da arte e da literatura, como é
possível identificar na cena descrita acima. Alice Munro e Lousie Bourgeois são
símbolos discursivos que Almodóvar traz à narrativa para enfatizar o seu discurso. A
escritora canadense Alice Munro, vencedora do Premio Nobel de 2013, aborda o
universo feminino em todas as suas obras. Seu livro, que aparece no filme com o
título de Escapadas, traduzido ao português como Fugitiva, é composto por oito
contos independentes, que narram relatos sobre a família, encontros, desencontros,
desejos, amor, solidão. Três dos oito contos do livro se relacionam apesar de
independentes - Ocasião, Daqui a pouco, e Silêncio narram a história de vida de
uma personagem chamada Juliet.
A trilogia apresenta três etapas da vida da protagonista Juliet: a experiência
de um relacionamento amoroso, o julgamento de seus pais feito por ela e, no
terceiro, a trajetória do ciclo se completa. Ela também é abandonada e julgada por
sua filha. O relato de Vicente, proposto por Almodóvar, parece estar relacionado
com o ciclo proposto por Munro, qual seja, a vida dá voltas e retorna ao mesmo
lugar. Vicente/Vera completa um ciclo quando retorna para casa e se identifica como
Vicente. Entretanto, esse Vicente não é mais o mesmo internamente. Conforme as
características atribuídas por Munro às suas personagens, ele também passou pelo
processo de metamorfose, movimento causado entre a subjetividade e a
objetividade relacionadas aos fatos vividos.
52
Ledgard, ao oferecer esse novo material discursivo para Vera, não percebe
que a está instrumentalizando, pois, a partir das leituras de Alice Munro e de Louise
Bourgeois, Vera (re)significa sua condição de prisioneira e muda seu
comportamento, como explica a professora de Yoga em um dos vídeos que Ledgard
a permite ver em seu quarto: “...tienes que saber que hay un lugar en que puede si
refugiar, un lugar que está en su interior, un lugar en que nadie más tiene acceso, un
lugar que nadie puede destrozar, que nadie puede destruir...”.
O conjunto dessas obras, de certa forma, permite-lhe resgatar sua identidade
perdida em decorrência das modificações provocadas externamente. As esculturas
de Louise Bourgeois trazem o discurso da resistência e da ansiedade por ela vivida.
Como ela mesma afirma todas as suas obras “são uma determinação de sobreviver,
no nível trágico que consigam alcançar” (BOURGEOIS, 2000, p.128) e, da mesma
forma, elas serviram para Vera também esculpir seus traumas. De acordo com
Louise (2000), a sua relação com a infância é uma fator determinante para a sua
arte e a sua condição de mulher, em uma formação discursiva em que se valorizava
a figura masculina, influenciou no seu processo de criação. A identificação de
Vicente/Vera com a arte de Bourgeois denuncia o mutilamento da sua identidade
pelo mutilamento do seu corpo.
Os bonecos com rostos distorcidos feitos pela personagem é um indício de
conflito de identidade. Para Lacan a identificação surge no imaginário, na fase do
estádio do espelho. No texto35 de Lacan o espelho ilustra a relação do eu com a
identificação do corpo. A imagem é fundamental para a constituição da identidade,
pois a relação que o sujeito tem consigo mesmo é mediada pelo imaginário em uma
relação simbólica de imagens e significantes. Esse discurso psicanalítico da
problemática do eu e do corpo, formulado por Lacan, ajuda a compreender a crise
de identidade da personagem na narrativa visual, ao passo que Vera constrói os
bonecos sem rostos definidos e assexuados como muitos dos bonecos de
Bourgeois. Pode-se compreender que a arte produzida por Vicente/Vera se
assemelha a si próprio como um espelho que reflete a sua imagem deformada de
sua condição homem/mulher.
No RDF- I 4 percebe-se que há uma correlação entre as obras de Bourgeois,
a violência vivida por ele/ela e seus desenhos na parede do dormitório. Um dos
35
O estádio de espelho como formador da função do eu. In: Inscritos. 2008, p. 96 – 103.
53
desenhos feitos por Vera é a Femme-maison ou Mulher-casa, de Louise Bourgeois.
Essa imagem, criada nos anos 40, traz consigo toda uma história de repressões e
submissão da mulher diante da sociedade, principalmente do poder masculino. Por
muito tempo a mulher teve a função da procriação, da educação dos filhos e do
desempenho de tarefas do lar. A mulher-casa não deixa de ser uma manifestação
feminista de protesto contra sua condição social histórica. Louise Bourgeois tenta
desconstruir o imaginário de uma cultura machista e patriarcal com sua arte
subversiva. O corpo de uma mulher nua choca. Ou melhor, a nudez, se desprovida
de sensualidade, choca. Ao despir a mulher, a artista expõe a fragilidade feminina no
seu âmbito familiar. A casa deve ser um espaço de aconchego, proteção,
recordações, mas pode representar também o universo autoritário, de domínio
masculino.
Esse sentido foi transposto para a película. A casa é o cenário em que Vera
passa pelas mais terríveis violências físicas e psicológicas, além de ser uma espécie
de tumba, que a abriga, mas não a deixa sair. A mulher-casa, por representar a
mulher-mãe, trabalha com os valores da sexualidade feminina. Há neste contexto
uma crise de identidade, a mulher-mãe não se permite ou a ela não é permitido
explorar sua sexualidade, o que a leva a sentir-se sufocada, insatisfeita e receosa de
uma possível aniquilação como indivíduo, singular, autônomo, possuidor de desejos
e necessidades. Esse aniquilamento de identidade é uma experiência vivida por
Vera e, por isso, ela não se permite explorar a sexualidade do seu novo corpo. Há
uma resistência. Ela recusa todos os adereços femininos oferecidos para estimular
sua nova sexualidade. Assim com a mulher-casa de Bourgeois, Vera é prisioneira do
seu próprio corpo.
Este RDF-I 4 refere-se à segunda cena no retorno dos flashbacks. É o
momento em que Vera retorna ao seu quarto depois do homicídio de Zeca e de ter
ganhado liberdade para se locomover nos domínios da residência. Ao entrar no
quarto com a intenção de pegar a bandeja, que está no elevador, com o café da
manhã que preparara para Robert, ela observa a parede, local em que ela/ele
expressara toda sua subjetividade durante os quatro anos de cativeiro. A câmera em
um movimento zoom-in36 enquadra em PPP a cabeça de Vera/Vicente. O
36
Movimento que aproxima a imagem para mais próximo da plateia.
54
movimento de câmera trabalha em sincronia com o som extradiegético37, pois
conforme a imagem vai crescendo na tela o som vai aumentando. O conjunto
provoca uma catarse de suspense à cena.
Entretanto, Vera não se sente livre. Ela olha perturbada para o olho
imponente da câmera que está localizado no centro da parede do quarto. Alguns
sinais na expressão do seu rosto, como as pupilas dilatadas, as sobrancelhas
levemente levantadas, algumas rugas verticais na testa, acima do nariz indicam que
a musculatura do seu rosto não está relaxada, evidenciando medo.
Neste RDF-I 4 há duas imagens que se relacionam à Vera: Femme-maison e
um outro desenho semelhante ao de Bourgeois, o corpo de uma mulher com a
cabeça trancada dentro de um grande portão fechado que representa a sua
clausura. Mas uma leve iluminação focalizada sobre o desenho específico da
mulher-portão neste plano induz a um primeiro sentido relacionado à liberdade.
Entretanto a imagem do portão vai muito além dessa primeira significação, pois
assim como a mulher-casa de Bourgeois, Vera não consegue se libertar da
armadura que a aprisiona.
Pedro Almodóvar, nos agradecimentos incluídos na ficha técnica, agradece
ao responsável por ter salvado a personagem Vera, quando diz: “Obrigado a Louise
Bourgeois, cuja obra não apenas me emocionou, mas também serviu de salvação
para a personagem Vera”, pois, para não enlouquecer, a personagem se dedica à
leitura, ao desenho, à yoga e à criação de pequenas esculturas, produzidas com
pedaços rasgados das roupas que compunham seu novo roupeiro. Essas atividades
ajudaram Vera a fortalecer sua identidade como “Vicente” e a montar um plano
estratégico de resistência e fuga.
Louise Bourgeois (1911-2010) tem uma arte que impressiona e que violenta,
tal qual as imagens apresentadas por Almodóvar. Muitos dos trabalhos dessa artista
são andróginos, característica de seu discurso pela igualdade de gênero em um
tempo em que somente os homens podiam ser reconhecidos. É possível que
Almodóvar tenha construído sua personagem baseada na força de Bourgeois, que
traduziu muitos discursos silenciados sobre os traumas femininos e patriarcais e,
através da sua arte, conseguiu trabalhar com as suas subjetividades da mesma
forma que o cineasta o fizera com Vera/Vicente.
37
Som que não faz parte da cena, pois os personagens não a ouvem. É o som dirigido para o público.
55
Como afirmo ao longo do texto, o silêncio é a condição central para a
significação da pluralidade discursiva proposta por Almodóvar, neste filme. Os
elementos discursivos, trazidos de fora para a película, são carregados de ideologias
marcadas por desejos, anseios provindos de formações discursivas diferentes.
Entretanto, Almodóvar insere esses discursos em uma nova formação discursiva, a
espanhola representada pelo microcosmo da cidade de Toledo, ambiente da
narrativa fílmica em estudo.
Para estabelecer a relação de sentido entre o espectador e as obras citadas,
o cineasta apresenta tais obras e autoras para Vera, como se estivesse
apresentando também para o espectador que nunca teve contato com o discurso de
Bourgeois e de Alice Munro. Há um contraste entre o posicionamento ideológico
dessas mulheres, principalmente de Bourgeois que esteve ligada a FD Francesa38,
berço dos movimentos feministas, com os discursos que se movimentam na forma
de pré-construídos originários da FD local, pois não se pode ignorar a historiografia
da cidade de Toledo e seu cânone religioso que, somado à politica repressora da
ditadura franquista, retardou a independência da mulher espanhola. Assim que,
como um texto não significa da mesma forma para diferentes pessoas, cabe a quem
lê encontrar a significação para os referidos discursos.
Almodóvar consegue estabelecer o sentido, pois, mesmo que os referidos
RDF-Is analisados até o presente momento não possuam diálogos, os discursos se
apresentam verbalizados pela escrita e pela imagem. A incompletude das imagens
discursivas já comentadas é preenchida no e pelo silêncio. Mas não se deve
esquecer que a incompletude é necessária para a significação, visto que não há
uma significação completa. A equação entre incompletude mais silêncio resulta em
mais sentidos. Seguindo esse pensamento, numa equação inversa teríamos
completude menos silêncio (ou ausência de silêncio), que resultaria em menos
sentidos. Portanto, é na polissemia que o silêncio tem a sua morada.
O silêncio fundante promove uma abertura para a interpretação do discurso
fílmico como um lugar em que o não-dito abre espaço indispensável para a
constituição dos sentidos da obra. Esses lugares vazios preenchidos por Vera
38
O movimento feminista surgiu na França no contexto da Revolução Francesa em 1789. Neste contexto é “que o feminismo adquire uma prática de ação política organizada. Reivindicando seus direitos de cidadania frente aos obstáculos que o contrariam, o movimento feminista, na França, assume um discurso próprio, que afirma a especificidade da luta da mulher” (ALVES; PITANGUY, 1991, p. 32).
56
ajudaram-na a ampliar sua percepção para a sua realidade e a desenvolver novas
possibilidades de convivência. Mas quero reafirmar com Orlandi que,
“evidentemente, não é do silêncio em sua qualidade física que falamos aqui, mas do
silêncio como sentido, como história (silêncio humano), como matéria significante. O
silêncio de que falamos instala o limiar do sentido”. (2007, p.68) A posição que tomo
é a do silêncio fundante que fundamenta o sentido de todo o discurso, sendo ele
verbal ou não.
3.2 TOLEDO: UMA FORMAÇÃO DISCURSIVA SILENCIADORA
Considerando o trabalho a que me propus, ou seja, estudar a materialidade
do silêncio com base no quadro teórico da AD de linha francesa, pensei ser
importante compreender a FD na sua relação com o Interdiscurso. Em um primeiro
momento, minha inquietação foi ler a multiplicidade heterogênea da FD apresentada
no filme para analisar as formas de assujeitamento do sujeito, responsáveis pelo seu
discurso. Para Maldidier, “o interdiscurso designa o espaço discursivo e ideológico
no qual se desdobram as formações discursivas em função de relações de
dominação, subordinação, contradição” (2003, p. 51). Para analisar tal relação
mencionada por Maldidier, inicialmente faço um breve relato histórico do campo
discursivo de referência do filme La piel que habito. A intenção com tal procedimento
e a de trilhar, pela análise histórico-social e linguística, a identidade discursiva do
sujeito espanhol, considerando o que diz Orlandi sobre o interdiscurso: “ é o saber,
a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer...”( 2006, p. 18).
A bela cidade medieval de Toledo possui características específicas que a
diferencia das demais cidades espanholas e quiçá do mundo. Conhecida
mundialmente como a “cidade das três culturas”, porque apesar de ser o berço do
catolicismo espanhol, abrigou durante a Idade Média três culturas baseadas em três
grandes religiões, a cristã, a judaica e a muçulmana, cujo legado ainda é percebido
na arquitetura da cidade. Do ponto de vista político e cultural, Toledo passou por
vários episódios na sua trajetória histórica que enriqueceram as tradições da cidade.
Durante os séculos XVI aos XX, Toledo alcançou períodos de esplendor e
decadência econômica e demográfica, até 1982, quando se tornou a capital da
Comunidad Autónoma de Castilla la Mancha e, em 1986, quando recebeu o título de
Patrimônio Histórico da Humanidade, pela UNESCO.
57
O núcleo urbano de Toledo, devido a sua riqueza histórico-cultural, reúne um
conjunto arquitetônico riquíssimo e bem conservado, nos estilos árabe, gótico e
renascentista, que pode ser apreciado por seus habitantes e turistas. Os castelos
medievais, catedrais, monastérios, mesquitas, conventos, entre outras construções
da arquitetura medieval, representam a relação simbólica que os toledanos mantêm
com os episódios do passado e, diferente de outras regiões da Espanha,
principalmente de Madrid, a Toledo do século XX, inexpressiva na atividade
industrial, buscou alternativas para se desenvolver no setor terciário, no turismo e
nos setores militares, associando a imagem da cidade ao exercito nacional. A atitude
da população de Toledo estava associada às instâncias conservadoras locais
ligadas ao discurso eclesiástico e militar. Por muito tempo, resistiu ao progresso
como algo negativo para a cidade. Atualmente, o governo de Toledo aposta no
patrimônio artístico, religioso e cultural local como o mais importante instrumento
para o progresso social e econômico da cidade.
A ideia de cidade de convivência pacífica entre as três culturas religiosas, de
tolerância e convivência harmônica, diverge dos fatos apresentados pela
materialidade histórica, que narra a luta de uma comunidade sobre a outra, com
sucessivos episódios de violência, pois houve períodos de convivência e outros de
acentuada intolerância39. Toledo tem na sua essência a supremacia de discurso
religioso, que se dá pelas relações entre o poder do Estado e o simbolismo religioso.
Em síntese, posso dizer que a superestrutura (base ideológica marcada pela
dominação dos sistemas sociais) estava representada na Espanha pela política e
pela religião, no caso da Toledo medieval, ora muçulmana ora cristã. Somados a
todos os acontecimentos citados, o regime franquista, iniciado em 1939, também
propunha um Estado católico, em que a moral religiosa e o conceito católico de
pecado ordenariam as atuações jurídicas da Espanha franquista. Neste sentido, e de
39
Em 589, quando o rei Recaredo adotou o catolicismo romano, a legislação clerical corrente foi
imposta também na Espanha. A posse de escravos, os casamentos mistos, a conversão ao judaísmo, foram proibidos sob penas rigorosíssimas. Os judeus foram excluídos de posições de confiança ou de autoridade no Estado. Soberanos seguintes mostraram maior tolerância. Mas a partir de 616, quando o rei Sisebuto subiu ao trono, a escuridão desceu completa. Durante quase um século, a prática aberta do judaísmo foi absolutamente proibida. Sucessivos concílios da Igreja, realizados em Toledo, sob a presidência do próprio rei, enunciaram minuciosas prescrições segundo as quais antigos judeus e seus descendentes deviam ser afastados de sua fé ancestral. Suas crianças eram-lhes arrancadas e levadas para longe, a fim de receberem educação em casas de catolicismo ortodoxo. (ROTH, 1963, p. 18)
58
acordo com Althusser (1985), a Igreja atua a serviço da dominação, servindo como
uma importante ferramenta ideológica trabalhando para os interesses do governo.
Não adentrando em uma análise mais aprofundada, o território que
compreende hoje a Espanha, desde sua origem, foi alicerçado sob ideologias
religiosas até se firmar como uma nação confessional de domínio cristão, exaltado
no governo franquista do século XX, que compara a guerra civil a uma Cruzada e
aos cristãos como “o povo de Deus”, com a intenção de reforçar a sociedade
espanhola a dualidade entre nacionalismo e catolicismo. O ordenamento jurídico
estava relacionado, também, ao conceito de pecado propagado pela Igreja Católica,
justificando a prisão de todos os indivíduos que não se enquadrassem no
comportamento prescrito pelo Estado. Essas ações se mantiveram até o final do
governo franquista, quando houve o remodelamento da Constituição do país, em
1979.
Para tanto, foi relevante abordar o acontecimento histórico e discursivo a
partir do qual foi possível falar do panorama político-religioso da Espanha e,
especificamente, da cidade de Toledo, como discurso fundador, modelador da
referida FD. Por muito tempo, o Interdiscurso do sujeito discursivo espanhol estava
alicerçado na base discursiva religiosa, na qual incluo o manchego Pedro Almodóvar
Caballero, conterrâneo de Dom Quixote de la Mancha, que cresceu também em uma
família de tradicionais valores católicos, além de haver estudado em um colégio
salesiano.
Essa materialidade na orientação da AD não pode ser ignorada, pois o
sentido que está na constituição do discurso e o sentido do dito e do não-dito
dependem da posição em que são empregados nas FDs. Entretanto, para
compreender tais sentidos não se deve buscar o que está oculto no texto, pois os
sentidos estão sempre em movimento. Não há uma cristalização dos sentidos. Para
compreender os dizeres e os não-dizeres, faz-se necessário relacioná-los com o
simbólico. Por isso, é importante percorrer esse caminho pelo viés do discurso
histórico de que se originaram as FDs da Espanha, e principalmente, da cidade de
Toledo, para estabelecer as relações do sentido entre o dito e o não-dito. Essa
mobilidade de sentido entre o falado antes, em outro tempo, e o falado agora, está,
conforme a trajetória mostrada neste texto, condicionado à história e à memória.
Neste diálogo com a história há um jogo constante entre o esquecido e o
lembrado que se processa na memória discursiva daqueles que falam e que ouvem.
59
Entretanto, de acordo com Courtine, a “memória que nos interessa aqui é a memória
social, coletiva, em sua relação com a linguagem e a história” ( 2006, p. 02), que vai
ao encontro da posição de Pêcheux (apud ACHARD, 2007), quando este orienta a
respeito do estudo da linguagem, que deve ser conduzido pelos “sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscritas em práticas, e da
memória construída pelo historiador” (p. 50). No entanto, a questão da memória em
Pêcheux deve ser observada sob dois enfoques:
Para tratar do memorizável é preciso entender o acontecimento inscrito no espaço da memória sob dupla forma-limite: (1) o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever; (2) o acontecimento que é absorvido na memória como se não tivesse acontecido. (PÊCHEUX apud ACHARD, 2007, p. 50.)
Pêcheux reforça para o papel da memória nas reflexões e nas relações de
interpretação. Neste sentido, a materialidade linguística se configura como um
espaço de memória pela relação entre língua, memória e efeitos de sentido na sua
articulação com a discursividade. Nessa perspectiva, há particularidades presentes
na narrativa fílmica que se utilizam da memória para retomar alguns acontecimentos,
permitindo ao expectador dialogar com o tempo, pelo deslocamento e pela retomada
de discursos que permanecem muito presentes no imaginário em distintas
formações discursivas, ampliando, pelo resgate da memória, uma revisão dos
valores sociais. Ademais, para Michel Pêcheux (apud ACHARD, 2007, p. 56), a
memória “é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de
desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra discursos”.
Levando em consideração a noção de acontecimento discursivo proposto por
Pêcheux, como o espaço em que se “restabelece os “implícitos” (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.)”( apud ACHARD, 2007, p. 52. Aspas do autor), constata-se que o
funcionamento do discurso se dá pelo processo de textualização de algumas
situações relacionadas aos aspectos pertinentes com o real-histórico, mas que se
desenvolve pelo dispositivo da memória.
60
3.3 UM EU SILENCIADO versos UM EU SILENCIADOR
Partindo dessa concepção de memória (social), como fator de estruturação
da materialidade discursiva complexa que se estende dialeticamente com o
acontecimento histórico, interessa-me, mais do que o acontecimento, ver os sentidos
que se constroem no limite entre o dito e o não-dito e os silenciados, pois se o que é
dito é mediado pela ideologia o que não é dito também o é. Por isso, penso ser
pertinente destacar pelo RDF-I 5 alguns discursos implícitos, não-ditos e ou
apresentam marcas de silenciamento.
Almodóvar nos apresenta uma nuance de discursos que simbolizam o período
ditatorial, enunciando em suas relações parafrásticas o processo histórico-político
silenciador e que se caracteriza na falta de liberdade (vivida pelo) do sujeito. As
imagens também funcionam como operadoras da memória social e, por elas,
Almodóvar faz uma retomada do já-lá pelo uso de alguns significantes
historicamente construídos, principalmente nas cenas que Vicente está preso,
amarrado a uma parede num porão. Para a AD, essas imagens funcionam como
dispositivo discursivo, sendo consideradas opacas, pois provocam vários percursos
de leitura.
O filme apresenta três cenas de Vicente preso numa espécie de porão,
localizado na residência do doutor Ledgard. O RDF-I 5 trata especificamente do
segundo e terceiro planos da segunda cena, que apresenta quatro planos ( A – B –
C e D) desencadeando-se nesta sequência: no primeiro, a câmera focaliza a
imagem de uma porta grande, de duas folhas, já danificada pelas marcas do tempo;
no segundo e terceiro planos, mostra imagens de várias foices e machadinhas, de
distintos tamanhos e espessuras, presas na parede por enormes pregos; e, no
último plano, com um leve zoom-in mostra Vicente acorrentado pelos braços e
pernas, preso à parede e ajoelhado sob uma bacia com água, da qual bebe como
um animal sedento.
Os planos B e C apresentam imagens muito significativas que compõem o
sentido da cena e estão carregados de uma tensão que perpassa desde o cenário, a
iluminação, e a sonorização, pois, enquanto as imagens aparecem na tela, o
espectador ouve, como som de fundo, o tilintar dos grilhões. Tais imagens possuem
uma dimensão simbólica e polissêmica. A foice, combinada com o martelo,
representa o famoso preceito de Lênin sobre a união do proletariado industrial e o
61
trabalhador do campo40, representando também o comunismo e o socialismo,
disseminado principalmente por personalidades como Karl Marx, Friedrich Engels e
Vladimir Lênin. Porém, a foice sozinha representa em várias religiões a morte, como
se costuma ver na ficção e em desenhos representativos da mesma, no Ocidente,
pela caveira e a “foice”. Pensar na morte faz parte da inquietação humana, é uma
questão existencial. Por isso, ao longo do tempo, a morte aguça o imaginário que se
reflete nas ideologias, nos discursos e na posição do sujeito em relação a ela.
Entretanto, a combinação da foice e da machadinha trazem outros sentidos
ainda muito presentes na FD espanhola e na história da cidade de Toledo: a tortura,
praticada pela Inquisição e pela Ditadura41. A machadinha era um instrumento de
tortura usada para a mutilação e compõe o acervo do Museu de Tortura de Toledo.
Avançando na associação entre os instrumentos citados com suas respectivas
simbologias e relacionando-os com a personagem, pode-se concluir que a foice
representa a morte do corpo/imagem de Vicente, enquanto a machadinha
representa a mutilação do seu corpo durante todo o processo que se dará com a
personagem. As imagens adquiriram consistência imaginária por sentidos que
transitam no Intradiscurso, de dizeres outros que remetem a sentidos historicamente
construídos. O discurso implícito pelas imagens se significa no não-dito.
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de
dezembro de 1948, aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em
seu artigo 5º dispõe que ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou
castigo cruel, desumano ou degradante. Entretanto, a tortura historicamente
legitimada pelos aparelhos repressores de Estado, ainda é muito praticada, inclusive
por países que se dizem democráticos, os quais deveriam proteger a liberdade
humana e os direitos fundamentais individuais do cidadão e, contudo, de forma
hipócrita, tolera-se ações criminosas pelos órgãos de segurança do Estado.
Conforme denúncia da Anistia Internacional, muitos países da América, incluindo o
Brasil, usam a prática da tortura como castigo, métodos de conseguir uma resposta
e em enfrentamentos diretos com manifestantes.
40
O martelo representa a força e a produção, enquanto que a foice é um emblema da agricultura. A
foice e o martelo eram o emblema da antiga União Soviética e simbolizava uma produção frutífera, a união dos trabalhadores urbanos e rurais. 41
A cidade preserva a memória dos acontecimentos que marcaram a sua história como patrimônio
histórico-cultural conservando documentos, fotos e os instrumentos de tortura em uma exposição permanente na sala de Exposições Alfonso XII em Toledo.
62
Na Espanha também há um desacordo com o tratado assinado pelo país em
1985, na Convenção contra a tortura. Sabe-se, por denuncias da própria Anistia
Internacional e de pessoas torturadas, que em Espanha seguem-se os tratos cruéis
e desumanos por parte das instituições estatais. Em 2010, período de filmagem do
filme de Almodóvar, a Anistia (Informe 2010) relatava que “o relatório anual da
Fiscalía General del Estado (ministério público) afirmava que, durante o ano, foram
registradas mais de 230 denúncias de tortura e de outros maus-tratos cometidos por
agentes policiais” (p. 135) problema este que, conforme o Informe 2014/2015 da
referida Anistia Internacional, continua. A ineficiência do Estado no que se refere à
proteção ao indivíduo, é reafirmada por Almodóvar, no filme La piel que habito,
quando a polícia não consegue proteger Vicente da violência a que foi submetido.
Na cena (RDF-I 6) em que a mãe de Vicente vai à Delegacia de Polícia para
pedir informações sobre o seu filho, o espectador vê uma placa, acima da porta da
entrada da Delegacia com a inscrição “ Todo por la Patria”. Buscando o sentido da
palavra Pátria no dicionário Michaelis e no Dicionário Houaiss (Língua Portuguesa)
encontram-se as definições “país em que se nasceu e ou qual se pertence como
cidadão”, no primeiro, e, a outra, associada à ideia de “pátria (país de origem),
linhagem, raça, descendência, família, tribo”. Ampliando a significação da frase Todo
por la Pátria, poder-se-ia ir além da significação territorial, Estado/Nação, para a
significação de família, ou seja, proteção para todos que a ela pertencem, à família
espanhola. Mas, ironicamente, aquele que cabe assegurá-la, quando não é o
agressor, é ineficiente na proteção. Eis, abaixo, um recorte em que é possível notar
tal ineficiência:
Policial: - Hemos encontrado la moto totalmente destrozada en la cantidad de Finisterre. Mãe de Vicente: - ¿Y el cuerpo? Policial: – Nada. Las olas lo han arrastrado mar a dentro. Mãe de Vicente: – Mi hijo está vivo. Policial: – Ya hemos dicho. Mãe de Vicente:
63
- Sí, que han encontrado la moto, ¿y mi hijo? Pueden haberle secuestrado. Hasta que no aparezca el cuerpo, debemos seguir buscándole, por favor. Policial: – Ya hemos hablado de eso, señora. No insista.
Lembrando que a Espanha é um dos Estados-membros das Nações Unidas
e, entre tantos acordos firmados, pode-se citar o da Declaração sobre a proteção de
todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados, aprovada na Assembleia
Geral das Nações Unidas com a Resolução 47/133, de 18 de dezembro de 1992.
Mesmo assim, o Estado falha. Ele não consegue assegurar um direito humano
fundamental, o da liberdade, quando encerra as investigações. Os direitos humanos,
firmados em tratados internacionais, são conquistas históricas que visam a garantir
os direitos constitucionais do indivíduo, e quando este tem seus direitos violados,
como no RDF-I 5, citado acima, na maioria dos casos a família luta sozinha, sem o
amparo constitucional do Estado, como fizera a mãe de Vicente ao continuar
procurando seu filho.
É pertinente o discurso trazido por Almodóvar, que remete o espectador a
épocas passadas e o faz relacionar a memória com acontecimentos anteriores que
interferem nos acontecimentos atuais, pois se as medidas necessárias para corrigir
a situação de impunidade, quais sejam civis ou militares, não forem tomadas, os
problemas de violência podem proliferar. No que se refere à violência militar, mesmo
com as inúmeras denúncias de fundações ligadas aos Direitos humanos,
constataram-se na Internet, no ano de 2015, muitos vídeos que denunciam casos
de tortura em atuações policiais. O fragmento “[...]y mi hijo? [...] Hasta que no
aparezca el cuerpo, debemos seguir buscándole, por favor,” revela que, apesar da
gama de direitos essenciais à vida humana serem assegurados pelo Estado e por
Órgãos Internacionais, o século XXI herdou do século passado o vasto cenário de
violência, como sequestro, terrorismo, tortura, abandono, manipulação, como bem
apresentados no filme de Almodóvar. Mas, quando o agente diz “No insista,” ele
silencia a mãe de forma que prevaleça o seu dito: “Las olas lo han arrastrado mar a
dentro ”; em outras palavras, o seu filho está morto e, a partir daí instaura-se um
novo sentido na formação discursiva. O discurso da mãe foi interditado, silenciado e
apagado pela censura do Estado na representação de seu agente, porém o discurso
censurado permanece significando em sua memória do dizer, não pode ser dito,
entretanto, também não esquecido.
64
No discurso do agente há uma construção que silencia a categoria do Direito.
Dizer para uma mãe não procurar o seu filho fere os princípios básicos de família,
quais sejam, o afeto, a união, a proteção integral dos filhos e o principio da
maternidade e paternidade. Ademais, ressalta-se que, na Constituição Espanhola,
capítulo terceiro, artigo 39.1, “os poderes públicos asseguram a proteção social,
econômica e Jurídica da família”42(tradução minha). Assim, uma vez que se
assegura a proteção, tanto no âmbito social e jurídica, o Estado espanhol tem a
obrigação de salvaguardar esses direitos. A Constituição espanhola não especifica
em seus artigos um formato específico de família, por isso amplia o sentido de
família (mais adequado) à realidade social vigente, mas subentende-se que proteção
social e jurídica, independente do formato da família, significa desenvolver políticas
públicas que melhorem a qualidade de vida e assegurem autonomia e segurança,
enfim, apoiar e proteger a família. Na categoria do Direito, implica reconhecer que
uma mãe tem o direito de reclamar pela vida de seu filho e de tentar localizá-lo,
ainda que o encontre sem vida. O funcionamento desse discurso silenciador ocorre
pelo funcionamento ideológico discursivo autoritário do poder repressivo do Estado.
Entretanto, o sentido silenciado resiste e continua a significar de outra forma. Em
síntese, percebe-se que o funcionamento discursivo do RDF-I 5 está relacionado
com a formação do discurso colonialista que habita a região do Interdiscurso a partir
do qual se materializa no discurso.
A morte simbólica do sujeito Vicente ocorre duas vezes na trama narrativa de
Almodóvar: a primeira instituída pelo agente do Estado e, a segunda, por Ledgard
como se pode verificar no RDF-I 7. Esta cena, ambientada no Laboratório da
residência de Robert Ledgard, inicia-se com um travelling para frente, colocando-se
na perspectiva do espectador em direção a porta do Quirófano. Quando essa
câmera adentra à sala, registra em close-up o rosto de Vicente. Ele está deitado,
com o rosto inclinado diagonalmente em direção à câmera, que permanece fixa,
assim como Vicente, enquanto Robert corta e retira a máscara do rosto de Vicente.
A câmera acompanha com uma leve panorâmica para cima o movimento da retirada
da máscara até flagrar o rosto de Robert em PP e, numa sequência de dois cortes,
mostra o rosto de Vicente e Robert. Neste momento Robert diz:
42
Los poderes públicos aseguran la protección social, económica y jurídica de la familia.
65
Robert:
- Yo no puedo seguir te llamando Vicente.
A câmera volta em PP plano em Vicente, para mostrar a sua reação de
desolamento e, logo em seguida, retorna para Robert para dar sequência ao
discurso.
Robert:
- A partir de hoy te llamarás Vera.
Quando Robert nomeia Vera, ideologicamente ele está impondo sobre o
Vicente, pela nomeação, uma nova identidade que lhe exigirá uma nova postura,
pois, ao entrar na linguagem, o sujeito se vê submetido ao funcionamento de uma
estrutura linguística que tem um funcionamento discursivo com sentidos construídos,
como já referidos neste texto, pela história e pela memória. O nome carrega um
discurso que antecede a quem está sendo nomeado, é uma marca determinada pelo
imaginário daquele que o nomeou. Vera, nome usado culturamente para identificar
indivíduos do gênero feminino, de origem no Latim Verum, significava verdadeiro. A
escolha desse nome sugere a imposição de Robert Quanto à verdadeira identidade,
simbolicamente construída por ele. Neste momento ocorre a morte simbólica de
Vicente e o nascimento de Vera.
Do ponto de vista da psicanálise lacaniana, é do efeito do significante que o
sujeito dessa maneira emerge (1996). O nome próprio designa num primeiro
momento a identificação que expressa um sujeito. E, para pensando em significante
no processo identificatório, Lacan aborda a noção de traço unário como uma marca
distintiva do sujeito, uma marca que vai denotar uma diferença entre os indivíduos.
Desse modo, o nome próprio, por ser uma marca singular, distinguirá os
significantes de um sujeito a outro. O nome próprio não se traduz de uma língua
para outra, por isso, de acordo com Lacan (2003, p.92), carrega toda a
particularidade da existência de um sujeito. Ao pensar o traço unário como uma
marca identificatória, então, Vera, identifica o sujeito que conforme Robert “tem a
melhor pele do mundo” e esse é o seu traço característico, o que a individualiza.
De certa forma, pode-se fazer uma alusão ao ato simbólico da nomeação de
Vera, num nível laico, com o batismo cristão, pois o sacramento do batismo cristão
66
representa a morte de Cristo e, por meio desta, a purificação dos pecados para uma
nova vida. Com o ato de nomear, Robert fez um novo registro que possibilitou a
morte de Vicente para ressuscitar em uma nova vida. A paráfrase do batismo para a
nomeação marca o testemunho da mudança simbólica do sujeito Vicente/Vera.
Evidencia-se aí que a violência acontece não apenas pela violência física,
mas também, pelo fazer calar, de forma que seja interditado certo sentido. O colocar
em silêncio está relacionado com o silenciamento, com a censura. A ação de
silenciar, então, está condicionada ao funcionamento do Interdiscurso, local em que
ocorre a sustentação, manutenção, ruptura ou deslocamento de significantes que
formam o sentido tecidos pela ideologia. Nesse processo de reelaboração, alguns
sentidos são esquecidos, silenciados ou censurados. Conforme Orlandi (2007), o
silenciamento originado pela censura proíbe o sujeito de ocupar certos lugares na
enunciação e de se inscrever em outros discursos como sujeito discursivo, afetando
sua identidade. A autora afirma que
Compreender a censura além da ideia de interdição redutora, ou seja, aquela que só vê a censura na relação com o implícito (que não deve ser dito) quando na realidade a censura é um processo que não trabalha apenas a divisão entre dizer e não-dizer mas aquela que impede o sujeito de trabalhar o movimento de sua identidade e elaborar a sua história de sentidos; a censura é então entendida como o processo pelo qual se procura não deixar o sentido ser elaborado historicamente para ele não adquirir força identitária, realidade social etc. (2007, p.168, grifos acrescentados)
Assim, considerando as afirmações da autora, o silenciamento em Vicente vai
além do não deixar dizer, do calar. A ele é imposto outro sentido onde subjaz que
ele deve apagar da memória todo o sentido construído historicamente, que define a
sua identidade, para reconstruir outro sentido, outra identidade. Vicente deve deixar
de ser Vicente e se transformar em Vera. Os sentidos que identificam Vicente ficam
então censurados. Para prosseguir na reflexão trago outro RDF-I que se desenvolve
na sequência do RDF-I 7.
Esta cena (RDF-I 8) narra a primeira reação de Vicente ao ser nomeado como
Vera quando retorna ao quarto e vê roupas femininas dispostas em cima da cama.
A câmera em PM está diante da personagem Vera/Vicente e permite ao espectador
observar a expressão de raiva em seu rosto. Durante a narrativa câmera se alterna
em vários enquadramentos e ângulos para expressar o conteúdo dramático da cena.
Vera/Vicente, logo que vê as roupas, num impulso de indignação, raiva, pânico,
67
começa rasgá-las furiosamente, em pequenos pedaços, e as aspira com o aspirador
de pó. Ele/ela recusa as roupas e os utensílios femininos recebidos.
A imagem dessa cena possui materialidade e está carregada de sentidos. As
imagens mostram que não houve identificação de Vicente com o que seria esse
novo sujeito. Considerando que, de acordo com Orlandi (2007, p. 89) a “identidade
resulta de um processo de identificação”, e, com Pêcheux, que
os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) por formações discursivas que representam na ‘linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”. Especificamos também que “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se realiza pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina. (PÊCHEUX, 1997, p. 214. Aspas colocadas pelo autor.)
Considerando-se o quadro teórico da AD sobre a noção de sujeito que está
atrelado à noção de FD, noção essa concebida pela da ideologia, que regula o que
pode ou não ser dito, e que a identificação com essa formação discursiva ocorre
pela forma-sujeito (id, ibid, p.167), a partir de uma tomada de posição43 (id, ibid,
p.171), entende-se que, a partir dessas considerações, Vicente/Vera se
desidentifica, nas palavras de Pêcheux, com a nova FD e não se subjetiva. Ele
desloca a sua identificação para a FD anterior em que se reconhece.
A censura trabalha com o que Vicente pode ou não dizer, impondo-lhe, de
alguma forma, um certo silenciamento. Entretanto, há de se considerar que existe
uma diferença entre ser silenciado e estar no silêncio. Apesar de ser silenciado,
Vicente está no silêncio. Significa no silêncio. No conceito lacaniano (1998), a
identificação surge no registro do imaginário sob o efeito do significante. Sob esse
ponto de vista e considerando que o sujeito é atravessado por vários discursos, foi
no silêncio que Vicente conseguiu trabalhar os limites do seu dizer e permanecer no
sentido. Cabe aqui pensar que a censura em Vicente ocorre na esfera pública e
privada, pois não lhe é permitido conversar com ninguém. Suas únicas e limitadas
conversas, cuidadosamente pensadas e controladas, acontecem com Marília, pelo
43
Pêcheux separa a tomada de posição em três modalidades. A primeira modalidade consiste numa superposição...de modo que a “tomada de posição” do sujeito realiza seu assujeitamento sob a forma do “livremente consentido”: essa superposição caracteriza o discurso do bom sujeito. A segunda modalidade caracteriza o discurso do “mau sujeito”, discurso em que o sujeito da enunciação “se volta” contra o sujeito universal por meio de uma “tomada de posição” que consiste, dessa vez, em uma separação (distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta...). A terceira modalidade toma a forma de uma desidentificação, isto é, de uma tomada de posição não-subjetiva. Na realidade, o funcionamento dessa “terceira modalidade” constitui um trabalho (transformação-deslocamento) da forma-sujeito e não sua pura e simples anulação.
68
interfone e com fins utilitários, e com Ledgard. O espaço privado compreende o mais
íntimo, que está na relação com a sua identidade. Arrisco-me em afirmar que, da
mesma forma, conforme Almodóvar, as obras de Borgeois ajudaram a salvar a sua
personagem Vera. O silêncio salvou Vicente, pois foi no silêncio que ele significou.
De acordo com Orlandi, “em suma, é o silencio fundador que produz um estado
significativo para que o sujeito se inscreva no processo de significação, mesmo na
censura, fazendo do significar, por outros jogos de linguagem, o “y” que lhe foi
proibido” (2007, p. 86).
Na análise dos RDF-Is comentados antes, observa-se como a materialidade
linguística é marcada pelo histórico e pelo ideológico. Nos recortes discursivos
quatro e cinco há um contraponto entre a memória do passado, do período
repressivo, ditatorial, que se atualiza nos discursos repressivos atuais, como
exemplificados no recorte discursivo cinco, praticado pelo poder repressor – o
Estado. Aqui há um deslizamento de sentido, pois a censura se relaciona com a
ditadura militar, com a falta de democracia e de liberdade. Isso implica dizer que os
valores do passado são ressignificados no discurso do presente, de forma que há
um deslocamento no sentido da palavra liberdade que caracteriza as sociedades
democráticas, enquanto que nos recortes discursivos seis e sete a censura aparece
de forma diferente, para além da interdição do dizer. É a censura que interdita a
identidade do sujeito e que faz dele um não sujeito, pois não lhe permite trabalhar o
movimento da sua identidade, uma vez que o sentido lhe falta. O não dizer, neste
caso,b assume duplo sentido, o de ser calado e o de se calar para resgatar o
sentido. Seguindo o raciocínio com Orlandi,
A censura joga com o poder-dizer impondo um certo silêncio. Entretanto, como o silêncio significa em si, à “retórica da opressão” – que se exerce pelo silenciamento de certos sentidos – responde a “retórica da resistência”, fazendo esse silêncio significar de outros modos. (2007, p. 85. Aspas colocadas pela autora.)
O silenciamento, entretanto, não se limita aos recortes discursivos
comentados até aqui. O filme trabalha o silenciamento que está “nos limites da
formação discursiva” (id, ibid, 74), que deixa falar alguns fatos silenciando outros.
Almodóvar estende suas lentes para vários discursos, entre os quais aparece o
discurso das biociências, que se materializa nos estudos da engenharia genética
sobre a clonagem.
69
A pele transgênica de Vera/Vicente foi clonada pela transferência de
informação genética de uma célula de porco para uma célula humana, conforme
explica a personagem Robert Ledgard durante o Seminário Internacional de
Biomedicina, em sua apresentação, ainda que anuncie que a pesquisa foi feita em
ratos. Durante uma conversa informal com um dos pesquisadores presentes na
comunicação, ele foi severamente criticado no que se refere às questões de ética
sobre clonagem com seres humanos.
RDF-I 9
Colega:
- Está loco. ¡Usted sabe que la aplicación de terapia transgénica en seres humanos está absolutamente prohibida!
Robert Ledgard:
- Sí, yo sé. Y me parece con perdón, ¡el cúmulo de la paradoja! Intervenimos en todo lo que nos rodea. La carne, la ropa, los vegetales, la fruta, en todo. ¿Por qué no aprovechar los avanzos de la ciencia para mejorar nuestra especie? ¿Ya ha pensado en las cantidades de enfermedades que podríamos curar con la transgénesis? ¿O las malformaciones genéticas que se podrían evitar?
Colega:
- No siga. ¡Conozco la lista de memoria y no hay día que no pienso en ello! Pero eso no me impide prohibirle que continúe investigando sobre la piel. O me veré obligado a denunciar ante la comunidad científica. Más allá do que pensemos usted o yo, la bioética es absolutamente clara a este respecto. Robert: - No se preocupe, Gal ha sido una aventura personal. Lo hice en memoria de mi esposa y con el único fin de ampliar mis conocimientos.
O recorte discursivo acima aborda dois discursos contraditórios sobre a
clonagem em seres humanos, aquele que reforça os benefícios para melhorar a
saúde e a qualidade de vida dos seres humanos e o outro, que aborda as questões
morais e éticas que embasam a ilegalidade da clonagem humana. Considerando o
discurso das personagens desse recorte, percebe-se a diferença entre a Posição-
sujeito e o Lugar Discursivo de ambos em relação ao sentido, que estão vinculados
a diferentes FIs que resultam nas diversas FDs que constitui a heterogeneidade do
interdiscurso. O tema da clonagem humana é muito polémico porque envolve
questões de ordem religiosa, cultural, e legal44. A bioética45, citada pelo colega de
44
A Constituição Federal, em seu Artigo 1º, Inciso II, erigiu à categoria de fundamento do Estado Democrático de Direito o princípio da dignidade humana, que tem sua raiz na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948. A tutela
70
Robert, normatiza as relações humanas dentro dos princípios de moralidade e da
ética com o objetivo de analisar, expor e solucionar os conflitos referentes a algumas
ações humanas que possam afetar o bem estar dos seres vivos. O texto da
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005 (documento
normativo internacional que trata das questões éticas na medicina), expressa a
preocupação no sentido de valorização intrínseca à própria espécie humana e do
meio ambiente:
Reconhecendo que as questões éticas suscitadas pelos rápidos progressos da ciência e suas aplicações tecnológicas devem ser examinadas tendo o devido respeito pela dignidade da pessoa humana e o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais,
Convicta de que é necessário e oportuno que a comunidade internacional enuncie princípios universais com base nos quais a humanidade possa responder aos dilemas e controvérsias, cada vez mais numerosos, que a ciência e a tecnologia suscitam para a humanidade e para o meio ambiente,
O texto explora os princípios de dignidade num sentido amplo de igualdade,
liberdade e responsabilidade sobre a vida humana orientada pelo conceito ético.
Embora os conceitos de ética e moral possam ser considerados sinônimos, eles têm
sentidos diferentes. Para Adela Cortina, Ética e Moral “distinguem-se simplesmente
no sentido de que, enquanto a moral faz parte da vida cotidiana das sociedades e
dos indivíduos, e não foi inventada pelos filósofos, a ética é um saber filosófico”
(2003, p.14). Em outras palavras, a Moral está no território da prática, da ação
humana, embasado pelo padrão cultural que determinam as normas de convivência,
enquanto Ética é uma teoria universal que orienta o pensamento ideal para
encontrar o melhor modo de viver.
São esses os fundamentos que norteiam a legislação dos países sobre a
clonagem de células-tronco. O discurso - “Está loco. ¡Usted sabe que la aplicación
de terapia transgénica en seres humanos está absolutamente prohibida!” - destaca
a restrição dessa prática no país. Por outro lado, o discurso - ¿Ya ha pensado en las
cantidades de enfermedades que podríamos curar con la transgénesis? - mostra
que as duas formulação têm uma relação com o que se diz, com o quando se diz.
conferida não é destinada somente à vida biológica e sim à dimensão moral e social do ser humano como pessoa, no âmbito de sua liberdade e autonomia. (OLIVEIRA JUNIOR, 2011, p. 401-402) 45
A Bioética é uma prática ética que visa a trabalhar os conflitos morais e controversos das áreas das ciências médicas, relacionadas à vida e à saúde.
71
Entende-se que há uma discussão no nível intradiscursivo, de cunho ideológico,
sobre tais questões, determinadas pela relação de força e de sentidos. Tanto é
assim que, no mesmo ano de estreia do filme, em 2011, pela lei 14/2007, de 03 de
julho, referente à investigação biomédica, a Espanha permite o uso de embriões
para fins terapêuticos46. Entretanto, não permite a utilização para fins de pesquisa
como descrito no artigo 33:
1. Proíbe-se a constituição de pré-embriões e embriões humanos exclusivamente com fins de pesquisa. 2. Permite-se a utilização de qualquer técnica de obtenção de células tronco humanas com fins terapêuticos ou de investigação que não comporte a criação de um pré-embrião ou de um embrião exclusivamente com este fim, nos termos definidos nesta Lei, incluída a ativação de óvulos mediante transferência nuclear.
47 (Tradução minha)
Neste caso, de acordo com Oliveira Junior, o “padrão moral da comunidade
vem geralmente acompanhado de um preceito legal que regulamenta a tessitura da
vida social” (2011, p. 402), como se confirma com a alteração da lei, que ocorreu no
mesmo período.
É importante salientar que, na situação discursiva das personagens, qualquer
procedimento com células-tronco era proibido. No discurso do outro médico -
¡Conozco la lista de memoria y no hay día que no pienso en ello! – observa-se
implicitamente um desejo de trabalhar com esse material genético, mas que é
reprimido pelos preceitos morais que podem ser tanto de ordem ética ou religiosa.
Não se pode esquecer que o espaço discursivo é a cidade de Toledo, em que,
apesar de ter se modernizado, ainda há uma presença muito forte da cultura
religiosa cristã.
46
A clonagem pode ser terapêutica com o intuito de não reproduzir um ser humano e sim de criar
embriões com a finalidade de extrair deles as chamadas células-tronco para combater doenças degenerativas, como Mal de Alzheimer, Parkinson, diabetes e outras. Há inúmeras linhas de pesquisa voltadas para as hematopoéticas e com apresentação de resultados animadores. Discute-se, no entanto, a respeito da utilização das células-tronco embrionárias, discussão essa que atinge o próprio conceito de início da vida humana, que durante muito tempo ficou oscilando entre convicções médicas, religiosas, científicas, filosóficas, éticas e jurídicas. (OLIVEIRA JUNIOR, 2011, p. 403.) 47
1. Se prohíbe la constitución de preembriones y embriones humanos exclusivamente con fines de experimentación. 2. Se permite la utilización de cualquier técnica de obtención de células troncales humanas con fines terapéuticos o de investigación, que no comporte la creación de un preembrión o de un embrión exclusivamente con este fin, en los términos definidos en esta Ley, incluida la activación de ovocitos mediante transferencia nuclear.
72
Por esse motivo, Almodóvar deu outra nacionalidade a Ledgard. Em
entrevista concedida a Revista Veja São Paulo48, o cineasta confidencia que Robert
Ledgard tem ascendência brasileira, e sua escolha se deve ao fato de que ele não
gostaria que a personagem tivesse tido uma educação judaico-cristã, característica
da Espanha. Essa pode ser uma justificativa para a escolha do estado baiano como
referência de origem da personagem, ou seja, devido à diversidade religiosa e
cultural da Bahia. Almodóvar recorre a outras formações discursivas que não tem
inscrito em sua memória, nas palavras do cineasta, “uma lógica de culpa e castigo”,
pois, segundo ele, “trata-se de um clã muito feroz de origem africana” (VEJA SÃO
PAULO, 2011). Aqui, no meu entendimento, trabalha-se o silêncio. Ele possibilita
entender o sentido contraditório do choque entre as FDs, resultante dos discursos
mediados por diferentes culturas (política, religiosa, social, etc) que se instaura como
um contraponto do Intradiscurso anterior.
Remeto-me novamente ao diálogo para observar como o silenciamento se
materializa nesta cena. Após a reprovação verbal do presidente, Robert diz que Gal
(a pele transgênica) foi uma aventura pessoal com o intuito de ampliar seus
conhecimentos. Essa resposta foi dada para afastar, naquele momento, sentidos
não desejados, como, por exemplo, prosseguir com os estudos da pele
geneticamente modificada. Robert sustenta um novo discurso para que não haja
uma ruptura na relação do sentido imposto pelo colega. Entretanto, não se pode
dizer que aqui há um movimento do sentido e, sim, uma reconfiguração consciente
do sentido, pois nestas condições as palavras serviram para não dizer. Ele articula
um discurso para esconder outro, censurado, que no ponto de vista de Orlandi
(2007) tem a ver com a dimensão política do silêncio. Quando uma formulação é
materializada, outra é apagada, ou silenciada.
Nas palavras de Robert, fica evidente a relação do dito e do não-dito, de
modo que o dito – “Intervenimos en todo lo que nos rodea. La carne, la ropa, los
vegetales, la fruta, en todo. ¿Por qué no aprovechar los avanzos de la ciencia para
mejorar nuestra especie?” – é a sua posição ideológica, que defende que os
benefícios da biomedicina podem resolver os mais variados tipos de problemas da
saúde humana que até então não têm ou não tinham solução. No seu discurso, tudo
pode ser atingido pelos avanços da biotecnologia; e o não-dito, o ocultado, é o que
48
Entrevista concedida à Revista Veja, plataforma digital. Por: Bruno Machado em 24/10/2011, às 21h26min. Disponível em: <http://vejasp.abril.com.br/materia/entrevista-pedro-almodovar/>
73
foge à Ética, neste caso, a utilização de uma cobaia humana. Na materialidade
desse não-dito, percebe-se que os interesses científicos, ou a conveniência da
pesquisa, pode subverter o pensamento ético, influenciado em muitos casos pelos
interesses econômicos em jogo.
No discurso fílmico de La piel que habito, Almodóvar costura dois
acontecimentos divergentes, mas coerentes com a FD. Neste RDF-I 9 ele traz o
discurso da biomedicina que representa a Espanha moderna, integrada a tecnologia
e aos avanços da ciência com uma tecnologia que possibilita ao homem realizar
uma modalidade diferenciada de criação de vida. Entretanto ele coloca esse
discurso em território toledano que, como adiantado, é a cidade símbolo do
catolicismo espanhol e tudo o que ele representa. Esse universo significante nos
remete a não transparência da linguagem, principalmente pela multiplicidade de
sentidos que surgem no entroncamento de ideologias entre as duas instituições:
ciência e religião. Temos então dois ditos que dizem diferentes.
A Espanha, nos últimos quarenta anos, findada a ditadura, remodela seu
sistema estrutural político para a democracia e inicia um novo processo de
modernização do país, com avanços consideráveis na indústria, no turismo, e na
educação. Os estudos na área da biomedicina se integram ao Sistema Espanhol de
Ciência, Tecnologia e Inovação, regulamentado pela Lei 14/2011, financiados por
instituições públicas e privadas. Conforme dados da pesquisa de Situação da I+D+i
(Investigação, desenvolvimento e inovação)49, da Espanha, a produção científica do
país ocupou a quinta posição no marco da União Europeia, ficando atrás do Reino
Unido, Alemanha, França e Itália, o que demonstra estar a ciência provocando
grandes modificações culturais. No entremeio da fábula narrativa, em torno da
identidade, Almodóvar incorpora esses novos valores aos valores preexistentes
provindos de um período mais conservador, mas que ainda está na memória
discursiva.
49
Dados fornecidos pelo “INFORME la situación de la i+d+i en españa y su incidencia sobre la competitividad y el empleo – Consejo Económico y Social de España, 2015”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo aqui relatado partiu do pressuposto de que o silêncio não é o nada,
o sem sentido, o vazio. Em oposição a essa ideia, o silêncio possui uma
materialidade que não pode ser vista, mas pode ser sentida e compreendida. A partir
desse posicionamento, entende-se o silêncio como significante que produz sentidos
e que os fundamenta.
O interesse em estudar o silêncio surgiu durante as minhas reflexões sobre a
linguagem. Mas como relacionar silêncio e linguagem? Como entender o próprio
silêncio como uma linguagem? Estudar o silêncio é compreender que o sentido não
é qualquer um, que ele pode ser múltiplo e, principalmente, que ele é construído na
relação entre os sujeitos.
A Análise do Discurso entende o funcionamento da linguagem como um
processo de significantes, que se dá na constituição do sujeito e do sentido. Esse
sistema de significantes ocorre na exterioridade da língua mediada pelo discurso.
Dessa forma, considerando o discurso como um sistema que produz o sentido entre
os sujeitos, o silêncio, na sua condição de significar, também pode ser entendido
com linguagem, como discurso.
Neste trabalho procurei fazer uma reflexão sobre o silêncio como uma
linguagem singular, que diz respeito a um modo de organização subjetiva e, em
determinados casos, fazendo uma interlocução entre a teoria da Análise do Discurso
e a Psicanálise, pois ambas trabalham com o discurso, uma pelo viés do discurso e
a outra pelo inconsciente. A fundamentação teórica, como já dito na Introdução
deste trabalho, fundamenta-se na Análise do Discurso de linha francesa, por remeter
ao tripé formado pela linguística, o materialismo histórico e a ideologia, atravessados
pela psicanálise.
Fazer uma reflexão sobre o silêncio é algo complexo e se mostrou algumas
vezes um terreno arenoso, por que o sentido está nas fissuras, naquilo que não é
visível e, entretanto, movimenta o sentido do texto. Por isso, para torná-lo visível na
análise, recorri à materialidade histórica, seguindo o ponto de vista de Orlandi,
quando ela afirma que “ sem considerar a historicidade do texto, os processos de
construção de efeitos de sentidos, é impossível compreender o silêncio” (2007, p.
45).
75
O discurso cinematográfico, de acordo com Veloso, “combinando palavras e
imagens em movimento, produz situações que recriam, embora ilusoriamente, temas
e circunstâncias da vida cotidiana” (2012, p. 196), é um objeto por si mesmo
instigante sob o ponto de vista analítico-discursivo na perspectiva do silêncio e do
silenciamento como objetos significantes. Isso acontece porque, por meio do
discurso fílmico e dos discursos produzidos pelas personagens em situações
simuladores da realidade física, pode-se compreender a relação da incompletude
que produz a viabilidade do múltiplo, local em que se instala o silêncio.
Ademais, em La piel que habito, Almodóvar trabalha o universo psicológico
como estrutura do seu discurso narrativo. Para desenvolver essa urdidura, o diretor
aborda alguns temas muito característicos de sua linguagem: a troca de sexo, o
estupro, as drogas, os desaparecimentos de pessoas, investigação genética, temas
esses que sem dúvida desafiam uma sociedade conservadora como a espanhola.
Tais temas são colocados em discussão em La piel que habito e são sustentados
por acontecimentos históricos que fundamentam a estratégia discursiva.
Lançando um olhar retrospectivo sobre o trabalho aqui apresentado, percebo
Almodóvar como um enunciador testemunha dos acontecimentos discursivos de um
tempo que é o seu e também o nosso, determinante de uma forma-sujeito marcada
por uma nova textualidade, em que os discursos são ora censurados, ora
camuflados, ora evidenciados em sua FD. O discurso narrativo cinematográfico de
Almodóvar pode ser entendido como uma prática discursiva, porque traz fatos do
cotidiano e do passado, que se supunha cicatrizados e resolvidos, e os atualiza e
ressignifica, mediante uma nova forma de trabalhar com a câmera.
Assim sendo, para compreender como o silêncio (re)significa o discurso
fílmico da obra foram selecionados um RD e sete RDF-Is. Neles foram analisadas
as formas do silêncio e sua significação a partir do materialismo histórico. Nos
primeiros RDF–Is [1] [2] [3] [4] o espectador primeiramente se depara com a falta,
com a ausência e, depois, com o silêncio. Almodóvar trabalha com a imagem e com
o simbólico nesses recortes. A imagem também possui uma materialidade carregada
de sentidos dos quais o silêncio fundante é condição para significar.
No cinema a imagem, em geral, é explorada em toda a sua densidade como forma de linguagem e significa sem vir ancorada no verbal. É usada como imagem que é, como forma de linguagem e não como cenário. Portanto, tem aí uma textualidade diferente da que se vê nos outros meios de comunicação. Diferente da imagem na TV, a qual pode boa parte do tempo
76
ser apenas ouvida, a imagem no cinema compõe cada nó no tecido visual. (SOUZA, 2001, p. 06.)
Nos recortes seguintes [5], [6], [7] e [8] analiso a política do silêncio e sua
relação com a censura, as palavras que foram silenciadas, que ficaram em
suspenso, que não foram ditas, mas que permanecem no subconsciente do sujeito.
As estratégias de silenciamento do outro denunciam as relações de força, poder e
violência que podem funcionar nos processos de interdição do sentido.
Nesses recortes, evidencia-se o que já foi destacado neste trabalho, ou seja,
que o discurso é atravessado por outros discursos. Nota-se que Almodóvar utiliza a
memória discursiva como um recurso funcional para a narrativa e traz alguns
acontecimentos discursivos-chave do Interdiscurso que marcou o período repressivo
em seu país. Ademais, coloca em reflexão discursos do presente que estão no nível
intradiscursivo, produzindo formas e lugares outros para (se)significar esses
discursos.
O silêncio é o lugar onde o sentido brota, onde o sentido faz sentido. Ouvi-lo é
um meio eficiente de compreender seus efeitos e suas múltiplas possibilidades de
significação. Entretanto, conforme Orlandi (2005), sem se deixar iludir com o
conhecimento integral, um saber total, porque a língua é um sistema construído no
equivo, na falha
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FILMOGRAFIA
LA PIEL QUE HABITO. Argumento e Direção: Pedro Almodóvar, Produção: Agustín
Almodóvar. Espanha. El Deseo Produções, 2011 (120 min). DVD. Dolby digital.
Colorido(ficção)
84
Anexo A - Cópia dos Recortes Discursivos Imagéticos do filme, gravados em CD-
ROM e identificados pela ordem em que aparecem citados no texto principal.
85
Anexo B- As imagens dos RDF-Is do capítulo 3.
RDF-I 2
imagem 1 – frame 0:00:55 imagem 2 – frame 0:01:04
imagem 3 – frame 0:01: 09 imagem 4 – frame 0:01:11
imagem 5 – frame 0:01:24 imagem 6 – frame 0:01:38
imagem 7 – frame 0:01:41
86
RDF- I 3
imagem 8 – frame 0:01:44 imagem 9 – frame 0:01:51
imagem 10– frame 0:01:56 imagem 11 – frame 0:02:18
imagem 12 – frame 0:02:28
RDF- I 4
imagem 13– frame 1:37:04 imagem 14 – frame 1:37:10
87
imagem 15– frame 1:37:21 imagem 16 – frame 1:37:22
imagem 17– frame 1:37:24 imagem 18 – frame 1:37:33
imagem 19– frame 1:37:39 imagem 20 – frame 1:37:49
imagem 21 – frame 1:37:59
RDF – I 5
88
imagem 22 - frame 1:10:11 imagem 23 - frame 1:10:14
imagem 24 - frame 1:10:17 imagem 25 - frame 1:10:20
imagem 26 - frame 1:10:21 imagem 27 - frame 1:10:25
RDF – I 6
imagem 28 - frame 1:06:20 imagem 29 - frame 1:06:28
89
imagem 30 - frame 1:06:30 imagem 31 - frame 1:06:42
RDF- I 7
imagem 32 - frame 1:27:41 imagem 33 - frame 1:27:48
imagem 34 - frame 1:28:10 imagem 35 - frame 1:28:15
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90
imagem 38 - frame 1:28:30
RDF-I 8
imagem 39 - frame 1:28:39 imagem 40 - frame 1:28:41
imagem 41 - frame 1:29:35 imagem 42 - frame 1:29:43
imagem 43 - frame 1:30:06 imagem 44 - frame 1:30:14