a matematização da natureza

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FACULDADE CATÓLICA DE FORTALEZA Nelson Ferreira dos Santos A MATEMATIZAÇÃO DA NATUREZA: Uma abordagem filosófica da construção do pensamento matemático do movimento nos séculos XVII e XVIII Fortaleza 2013

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  • FACULDADE CATLICA DE FORTALEZA Nelson Ferreira dos Santos

    A MATEMATIZAO DA NATUREZA:

    Uma abordagem filosfica da construo do pensamento matemtico do movimento nos sculos XVII e XVIII

    Fortaleza

    2013

  • FACULDADE CATLICA DE FORTALEZA Nelson Ferreira dos Santos

    A MATEMATIZAO DA NATUREZA:

    Uma abordagem filosfica da construo do pensamento matemtico do movimento nos sculos XVII e XVIII

    Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade Catlica de Fortaleza, como requisito parcial para obteno do grau de Bacharel em Filosofia. Prof. Orientador: Me. Tiago Guimares Batista

    Fortaleza

    2013

  • FACULDADE CATLICA DE FORTALEZA

    Nelson Ferreira dos Santos

    A MATEMATIZAO DA NATUREZA:

    Uma abordagem filosfica da construo do pensamento matemtico do movimento nos sculos XVII e XVIII

    Defesa em: ______ / _______ / _______ Nota Obtida: _________

    Banca Examinadora

    __________________________________ Prof. Me. Tiago Guimares Batista

    Orientador

    ____________________________________ Prof. Dra. Maria Celeste de Sousa

    Examinadora

    Fortaleza

    2013

  • Ao Pai Celestial, pela beno da Vida.

    Aos meus pais e irmos, pelo aconchego do recanto familiar.

    Aos meus professores que iluminaram meu estradar.

    A pessoa muito especial, Evanessa, por todo amor, carinho,

    compreenso e incentivo, pelas conversas esclarecedoras que

    muito contriburam para a elaborao dos meus raciocnios.

    A todos, dedico-lhes essa conquista com gratido e amor.

  • Aqui surge um enigma que tem perturbado os

    cientistas de todos os perodos. Como possvel que

    a matemtica, um produto do pensamento humano,

    que independente da experincia, se encaixar to

    perfeitamente aos objetos da realidade fsica? Pode a

    razo humana, sem a experincia, descobrir por puro

    pensamento as propriedades de coisas?

    Albert Einstein, 1921.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 ..................................................................................................................................... 11

    Figura 2 ..................................................................................................................................... 11

    Figura 3 ..................................................................................................................................... 23

    Figura 4 ..................................................................................................................................... 36

    Figura 5 ..................................................................................................................................... 36

    Figura 6 ..................................................................................................................................... 36

    Figura 7 ..................................................................................................................................... 36

    Figura 8 ..................................................................................................................................... 36

    Figura 9 ..................................................................................................................................... 37

    Figura 10 ................................................................................................................................... 37

    Figura 11 ................................................................................................................................... 38

    Figura 12 ................................................................................................................................... 38

    Figura 13 ................................................................................................................................... 38

    Figura 14 ................................................................................................................................... 39

    Figura 15 ................................................................................................................................... 39

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................... 2

    1 ANTECEDENTES HISTRICOS: A FILOSOFIA NO SCULO XVII .......................... 5 1.1 ARISTTELES A CONCEPO DO MOVIMENTO PR-CIENTFICO .......................................... 5 1.2 GALILEU GALILEI E AS BASES CIENTFICAS DO MOVIMENTO ................................................ 8 1.3 REN DESCARTES AS BASES FILOSFICAS DA MATEMATIZAO DA NATUREZA .............. 11

    2 A MATEMATIZAO DA NATUREZA POR ISAAC NEWTON ............................. 19 2.1 A FORMALIZAO MATEMTICA NEWTONIANA ................................................................. 20 2.2 OS PRINCIPIA ...................................................................................................................... 26

    3 AS RAZES FILOSFICAS DA MATEMATIZAO DA NATUREZA .................... 30 3.1 A REPRESENTAO DO MOVIMENTO PELA GEOMETRIA EUCLIDIANA ................................... 34

    4 A INFLUNCIA DO PENSAMENTO DE NEWTON ............................................... 39

    CONSIDERAES FINAIS ..................................................................................... 42

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 44

  • 2

    INTRODUO

    Esta monografia pretende descrever o processo pelo qual a matemtica tornou-se

    uma realidade para a filosofia natural, segundo uma perspectiva filosfica, no sculo XVII e

    no primeiro quartil do sculo XVIII, perodo em que surgiu a cincia moderna. Este perodo,

    certamente, o mais representativo, onde se origina todo um pensar em que as matemticas

    passam a representar uma importante ferramenta para expressar os eventos da natureza.

    Um trabalho deste jaez, pressupe explicar determinadas condies nos quais o

    pensamento relativo filosofia da natureza, efetivamente pde ser expresso atravs de uma

    linguagem matemtica. Embora no pretendamos estabelecer correlaes especficas da

    efetivao dessa matematizao, devido natureza do trabalho e da limitao bvia do autor,

    pretendemos sim, indagar, quais os processos que favoreceram essa matematizao.

    Identificamos a importncia do pensamento matemtico para o pensar filosfico,

    desde Pitgoras de Samos (571 a.C. ou 570 a.C. - 497 a.C. ou 496 a.C.) a Arquimedes de

    Siracusa (287 a.C. - 212 a.C.). Reconhecemos ainda uma importante diferena nesta

    abordagem matemtica da natureza, por parte destes gregos antigos. Pois trata-se de

    matematizaes ontologicamente distintas, revelando em Pitgoras uma acentuada inclinao

    metafsica que ser retomado posteriormente por Plato; enquanto que em Arquimedes,

    verificamos um proceder tcnico, voltado para as exigncias prticas da realidade cotidiana,

    que ser retomada por Galileu. Sendo ontologicamente distintas essas matematizaes,

    foroso reconhecer que cada abordagem, mesmo adotando uma linguagem comum, atravs de

    termos semelhantes, seno idnticos, no possuem os mesmos objetos, nem a natureza, e nem

    mesmo o mtodo.

    A motivao por essa temtica se justifica por uma constatao nossa, do

    desinteresse de filsofos e fsicos, uma vez que os filsofos desconhecem a fsica na mesma

    proporo que os fsicos desconhecem a filosofia. Se os primeiros alegam que a fsica tornou-

    se incompreensvel para quem no tenha uma longa especializao em matemtica, os

    segundos afirmam que a filosofia pouca ou nenhuma contribuio tem a oferecer. Claro que,

    com honrosas excees, em ambas as partes. Portanto, o principal interesse mostrar que esse

    mal-entendido se d principalmente pela forma como a fsica ensinada em nossas escolas e

    academias, de forma bastante pontual, desconsiderando o contexto histrico e portanto, as

    grandes discusses filosficas em torno dos problemas; bem como na filosofia, a matemtica

  • 3

    esquecida, excluindo importantes pensadores da filosofia natural, como se pode verificar ao

    observar o programa dos cursos de filosofia oferecidos em boa parte de nosso pas.

    Pretendemos assim, mostrar como a problemtica histrica-filosfica em torno do

    movimento (no sentido de deslocamento) contribuiu, de forma taxativa, para o

    estabelecimento de uma nova forma de interpretar e utilizar as matemticas (geometria e

    aritmtica) para representar esse movimento em suas vrias acepes. Decididamente, a

    partir da matematizao do movimento que se inicia os primeiro passos para uma explicao

    concordante com a experincia vivenciada, culminando na fsica-matemtica de Isaac

    Newton. Sem desconsiderar que esse caminho conciliava o pensamento filosfico com o

    pensamento prtico, permitindo o desenvolvimento de novas tcnicas e descobrimento de

    novos instrumentos, que favoreceram o aperfeioamento da observao/experimentao com

    a solidificao do pensamento matemtico na filosofia natural.

    Iremos conduzir nosso raciocnio, traando uma linha temporal que conduza o

    leitor a compreender o que representava a problemtica do movimento no pensamento

    filosfico do sculo XVII, imediatamente anterior a Galileu Galilei, no qual o pensamento

    aristotlico era predominante. Veremos que a estrutura do pensamento filosfico anterior ao

    surgimento da cincia moderna, identificava-se com uma filosofia contemplativa, com uma

    procura pelas causas primeiras que justificasse um conhecimento seguro; que a mudana no

    pensar filosfico, impulsionado por novas teorias que contrariavam o modelo aristotlico

    vigente, comeou a ganhar impulso com Francis Bacon (1561 - 1626) com seu Novum

    Organum, que pretendeu estabelecer um novo mtodo para a interpretao da natureza atravs

    de uma nova tcnica de raciocnio, com a finalidade precpua de dominar a natureza,

    querendo desta forma assentar em bases empricas e mais confiveis a filosofia natural.

    Contemporneo de F. Bacon, Galileu Galilei (1564 - 1642) em seu livro, Dilogo

    Sobre os Dois Maiores Sistemas do Mundo desenvolve toda uma argumentao contra os

    dois sistemas de leis naturais aceitos at ento: um para o firmamento e outro para a Terra.

    Neste livro, Galileu procura estabelecer as bases de um sistema - no qual as matemticas

    assumem uma importncia capital - e neste seu sistema as leis seriam nicas para todo o

    sistema solar; confirmando com suas evidncias, o sistema heliocntrico de Coprnico.

    Vemos ento, seu esforo em estabelecer um conhecimento fundamentado na certeza

    matemtica, no mais nos princpios metafsicos de ento.

    Esta procura de fundamentao matemtica do conhecimento, leva Galileu a

    desconstruir crenas bem estabelecidas pela filosofia aristotlica mormente aos conceitos de

  • 4

    espao e movimento, desenvolvendo os princpios fundamentais da relatividade do

    movimento, no qual ir fundamentar toda mecnica newtoniana.

    Esta procura pela fundamentao do conhecimento, a busca pela verdade, leva

    dvida metdica de Rene Descartes (1596 - 1650) que desconstri crenas bem estabelecidas

    pela suposio de variaes da ideia de um esprito enganador. Colocando a possibilidade de

    que o grau de alienao possa ser tal, que nem sequer nos damos contar de que o nosso

    raciocinar esteja condicionado a tal viso enganadora, procede ele como na matemtica:

    estabelece os princpios fundamentais para em seguida derivar as consequncias, da mesma

    forma que teoremas so derivados de axiomas. Temos um procedimento de fundamentao do

    conhecimento em bases matemticas.

    Isaac Newton (1643 - 1727), apoiado em ombros de gigantes com o seu

    Princpios Matemticos de Filosofia Natural formula uma sntese filosfico-matemtica e

    estabelece os princpios formais daquilo que ir denominar-se matematizao da natureza, um

    procedimento de fundamentao do conhecimento, em bases matemticas, da fora e do

    movimento, alicerada nos princpios da relatividade estabelecida por Galileu.

    Essa matematizao da natureza, que hoje conhecida como Mecnica Clssica,

    foi fundamental para a revoluo cientfica do mundo, permitindo a ultrapassagem da

    realidade sensvel pela construo de modelos matemticos que oferea inteligibilidade aos

    fenmenos naturais, imperou nos sculos XVII e XVIII e formou a matriz de fundamentao

    do conhecimento cientfico at o final do sc. XIX.

  • 5

    1 Antecedentes histricos: a filosofia no sculo XVII

    1.1 Aristteles A concepo do movimento pr-cientfico

    A filosofia aristotlica afirmava que uma cincia devia possuir seus princpios em

    bases epistmicas. Isso significa que deve-se estabelecer os princpios universais e necessrios

    que expressem a natureza das substncias cujas propriedades queremos conhecer. Esses

    princpios so derivados por induo da percepo sensorial e justificados por intuio

    intelectual. A partir dos conceitos de ato e potncia, Aristteles ((384 a.C. - 322 a.C.) definir

    todo movimento como uma atualizao de potencialidades, e toda mudana como a gerao

    de um efeito por uma causa. Tem-se ainda que aquilo que por natureza, produz-se de acordo

    com uma causao interna prpria e pr-ordenada, gerando-se e corrompendo-se de acordo

    esses princpios ordenantes. Dentro desse raciocnio de atualizao, esto envolvidos

    questionamentos causais que explicitam esse processo, atravs das quatro causas aristotlicas:

    a) material; b) formal; c) eficiente; e d) final.

    Por conseguinte, o conhecimento para Aristteles a identificao das causas

    motrizes e finais, que lhe serve de existncia e parmetros funcionais, de modo que a cincia

    da natureza deve ser entendida como a explicao do movimento e mudana pelos princpios,

    conforme ele afirma no primeiro pargrafo da Fsica I: Dado que, em todos os estudos nos

    quais h princpios, sabemos quando reconhecemos estes ltimos, evidentemente devemos, de

    incio, tentar delimitar tambm o que concerne aos princpios da cincia da natureza1.

    Dentro desta concepo, o estagirita, modificou e aperfeioou o modelo dos

    quatro elementos de Empdocles de Agrigento (484 - 421 a.C.), - gua, terra, fogo e ar -

    dotando cada um desses elementos de qualidades como mido, seco, quente ou frio, onde

    essas substncias naturais, conteriam em si mesmas, o princpio de seu movimento.

    O movimento definido por Aristteles, que o alvo de nossa ateno, o

    movimento do gnero knesis em sua espcie de deslocamento. Esse movimento, assim

    entendido, a resultante da ao de um corpo motriz sobre o corpo movido, de forma a

    produzir uma modificao situacional deste.

    Aristteles classificou o movimento (knesis) em quatro tipos, a saber: a) trao;

    b) empuxo; c) transporte; e d) rotao. Lembrando que, nosso autor tem por corolrio que

    1 ARISTTELES. Fsica I-II. Traduo, introduo, e comentrios ANGIONI, L. So Paulo: UNICAMP, 2009. p. 23

  • 6

    tudo o que est em movimento tem que ser movido por algo. Com base nessa concepo,

    existem "lugares naturais", nos quais um corpo naturalmente est, ou aos quais volta, quando

    deles afastado. Por exemplo, o fogo e o ar tendem para cima, enquanto a terra e a gua

    tendem para baixo. O em cima e o embaixo no so posies relativas a algo, mas lugares

    naturais que, se no houver nenhum obstculo que impea, os corpos tendem naturalmente para

    eles, como podemos ler em Realle: o em cima no qualquer coisa, mas o lugar para onde se

    dirigem o fogo e o que leve; e, igualmente, o embaixo no qualquer coisa, mas o lugar para

    onde vo as coisas pesadas e feitas de terra2.

    Essa concepo de movimento local, envolve uma anlise qualitativa que

    responde o por que dos corpos se moverem, uma vez que o raciocnio se desenvolve em

    termos de realizao da natureza das coisas, pois a natureza que o princpio de causao

    do movimento e da mudana. Na filosofia aristotlica, encontramos termos explicativos para

    o movimento como ao, paixo, causa eficiente, fim, lugar natural. Com isto, as explicaes

    do movimento propriamente dito, resume-se a simples distines entre movimento natural e

    violento, retilneo ou circular.

    Nessa filosofia, o movimento compreendido como um processo que importa na

    alterao da posio ao qual estava anteriormente uma coisa. Assim, o mesmo a realizao

    de sua natureza, uma vez que se toda coisa existente dotada de natureza prpria, o tambm

    de uma causa final; e esta causa se atualiza por meio do movimento. No universo aristotlico,

    cada uma das coisas, seja celestial ou terrestre, tem seu lugar natural e seu movimento

    natural para este lugar. A esse deslocamento a procura de seu fim natural, classificado

    como movimento natural.

    Esses movimentos naturais determinado pela prpria natureza intrnseca do

    corpo. Se o corpo no estiver em seu lugar natural, ele tende a mover-se para l. Assim, uma

    pedra, que seria formada pelo elemento terra, encontra seu lugar natural na superfcie da

    Terra. Se fosse atirada para cima (atravs de um movimento violento), cairia pela tendncia

    normal de se dirigir ao lugar que a natureza lhe designou. Esse movimento de queda era,

    portanto, descrito como uma tendncia natural do objeto, a procura de seu lugar natural.

    Assim o movimento concebido como um retorno ordem natural, ao repouso; e definindo o

    estado de repouso como o seu termo e a sua finalidade. Ainda de acordo com a lgica do

    autor, quanto maior for o corpo, mais intenso o movimento em que se desloca para o seu

    lugar natural. Em consequncia, os corpos mais pesados tendem a cair mais rapidamente que

    2 REALE, G. Histria da Filosofia Antiga II: Plato e Aristteles. 9 ed. So Paulo: Loyola, 1992. p. 378.

  • 7

    os mais leves, com uma velocidade proporcional ao seu peso, corroborando assim a intuio

    imediata da realidade.

    O outro tipo de movimento, ainda segundo Aristteles, o movimento violento,

    imposto por foras que empurram ou puxam os corpos. A caracterstica principal desse tipo de

    movimento violento que ele causado por agentes externos. um movimento imposto a um

    objeto atravs de um impulso ou de um tracionamento. Movimento violento um movimento

    forado.

    Ao analisar a explicao aristotlica para o movimento, observamos que sua

    explicao no comporta uma inteligibilidade do porqu do movimento, uma vez que a

    interpretao dada, apresenta dificuldades, pois no h critrios claros que estabeleam as

    relaes entre o impulso dado e o objeto movido. Em geral, as explicaes geravam uma

    difcil visualizao daquilo que se queria explicar, dificultando a apreenso da dinmica da

    movimento. Nesta linha de raciocnio, fica complicado explicar o porqu de uma flecha

    continuar seu movimento aps ter deixado o arco. O impulso do arco j no opera mais.

    Ento, por que ela simplesmente no cai aos ps do arqueiro? Foram feitas vrias tentativas de

    explicao; e concebeu-se a ideia de que a flecha, em pleno curso, produz uma compresso

    em seu extremo posterior, obrigando o ar a correr para trs da seta e evitando, assim, a

    formao de um vcuo. Era esse ar o agente responsvel pelo movimento da flecha aps

    deixar o arco.

    Alexandre Koyr3 em seu comentrio sobre a representatividade do pensamento

    de Aristteles na Idade Mdia, afirma que pelo fato do corpus aristotelicum ter chegado

    completo ao mundo latino e ser dotado de uma imensa capacidade enciclopdica - medicina,

    matemtica, lgica, fsica, astronomia, cincias naturais, psicologia, tica, poltica, etc. - tais

    escritos foram, aos poucos, tornando-se uma fonte representativa da verdade diante da

    capacidade explicativa contida em tal corpus.

    No sculo XVI, a filosofia escolstica faz largo uso da autoridade aristotlica,

    mediante as explicaes teleolgicas, subordinando essas causas finais aos desgnios do

    Criador. E isso ser alvo de crticas de pensadores como Galileu Galilei e Ren Descartes.

    3 Cf. KOYR, A. Estudos de histria do pensamento cientfico. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2011. p. 21.

  • 8

    1.2 Galileu Galilei e as bases cientficas do movimento

    Podemos observar que a filosofia natural renascentista pressupe um mundo

    ordenado independentemente do ser humano, cabendo ao homem apenas descobrir essa

    ordem previamente estabelecida, vinculados uns aos outros atravs de relaes de

    causalidade. Portanto, o mundo exterior no um problema: ele existe fora da nossa mente.

    Essa forma de pensar a natureza ordenada tem em Galileu (1564 - 1642) um

    representante tpico. Entretanto, encontraremos uma diferena significativa do pensar desse

    filsofo e matemtico, que compartilha a crena de que os eventos naturais so independentes

    do julgamento humano, agindo inexoravelmente atravs de leis imutveis que nunca so

    transgredidas. Tendo por verdade que essa rigorosa necessidade causal, resulta de um carter

    fundamentalmente matemtico, ento os fundamentos da natureza esto no domnio das

    matemticas4. Em suas ideaes, o matemtico de Florena no faz uso da lgica escolstica,

    mas sim de instrumentos e experimentaes, formulando demonstraes matemticas para

    desvendar os segredos do mundo. Assim em sua cincia da dinmica ou movimento local

    afirma ter descoberto por meio da experincia, algumas propriedades do movimento nunca

    antes observadas.

    Sobre um assunto velhssimo promovemos uma cincia novssima. Talvez nada mais antigo na natureza que o movimento e acerca dele acham-se escritos pelos filsofos volumes nem poucos nem pequenos. Descubro, porm, vrias das propriedades dignas de conhecimento que lhe cabem, ainda no observadas e indemonstradas. Algumas de pouca importncia foram registradas como, por exemplo, que o movimento natural de queda dos graves acelera-se continuamente5.

    Com o pensamento voltado para a anlise matemtica, sentiu a necessidade de

    excluir de sua observao, elementos que no fossem importantes na realizao de seus

    experimentos. A anlise matemtica exige objetividade ao lidar com os eventos naturais, e a

    forma mais lgica encontrada por ele, foi distinguir de forma clara, entre o que objetivo,

    imutvel e matemtico do que seja relativo, subjetivo e sensorial. Para um mundo imutvel,

    Galileu colocou o conhecimento divino e humano; para um segundo mundo cambiante, as

    opinies e as iluses6. Ele olhava os objetos naturais no como objetos reais ou matemticos,

    mas como objetos possuidores de caractersticas que se definem numa realidade ltima, com

    4 BURTT, E. A. As bases metafsicas da cincia moderna. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1983. p. 61. 5 NASCIMENTO, C. A. R. Quatro textos de Galileu. Trans/Form/Ao. So Paulo, v.3, 1980. p.145. 6 Cf. BURTT. 1983. p. 67.

  • 9

    caractersticas matemticas. Essas caractersticas do objeto natural so identificadas com o

    nmero, a figura, a grandeza, a posio e o movimento; e que no podem ser, pela nossa

    capacidade de abstrao, separadas do objeto em questo. Por esses atributos, as denominou

    de qualidades primrias, que podem ser expressas em sua totalidade, em termos matemticos,

    por acreditar que a realidade da natureza geomtrica. Essas qualidades primrias produzem

    efeitos secundrios, que podem ser bastante intensos aos nossos sentidos, e por isto

    denominadas de qualidades secundrias. Diferentemente das qualidades primrias, as

    secundrias so subjetivas e no pertencem ao objeto, e portanto, no possuem atributos que

    possam ser tratadas matematicamente. Logo, no se pode atribuir um conhecimento

    verdadeiro s qualidades secundrias.

    Assim Galileu utilizar de sua nova abordagem da natureza para analisar o

    movimento dos objetos. Essa sua perspectiva o colocar em confronto direto com a

    conceituao aristotlica de movimento e repouso. Como vimos, Aristteles define o

    movimento como um retorno ao seu lugar natural e o repouso como a finalidade deste

    movimento; Galileu conceituar movimento como sendo uma modificao relativa entre as

    coisas. Assim sendo, o estado de movimento ou de repouso indiferente s coisas, no afeta o

    seu ser. Mais ainda, o movimento s pode ser concebido numa relao, e o repouso um

    movimento partilhado, porque entre corpos que partilham o mesmo movimento, nada muda7.

    Podemos observar que essa conceituao indita de movimento partilhado

    inteiramente inconcebvel na filosofia aristotlica, porque neste o movimento inerente ao

    objeto em busca de seu lugar natural; j a observao galilaica, conduz ao estabelecimento de

    uma equivalncia entre movimento e repouso, abolindo a distino ontolgica realizada por

    Aristteles entre esses dois estados. Ao alterar o estatuto do movimento, deixa-o de definir

    como uma propriedade inerente do corpo e passa a ser um estado ocupado pelo corpo,

    negando ainda o movimento retilneo infinito. Encontramos, pela primeira vez, os

    fundamentos do Princpio da Inrcia:

    (SALVIATI, dirigindo-se a SIMPLCIO) Fechai-vos com um amigo na maior cabina sob a ponto de um grande navio e levai convosco moscas, borboletas e quaisquer outros animaizinhos que voem; muni-vos tambm de um recipiente cheio de gua com peixinhos; prendei tambm um pequeno vaso cuja gua cai gota a gota num outro colocado debaixo. Quando o navio est imvel, observai cuidadosamente como os insectos voam igualmente em todas as direces dentro da cabina, os peixes nadam em qualquer direco e as gotas caem no mesmo vaso; se atirais qualquer coisa para ao vosso amigo,

    7 BALIBAR, F. Einstein: uma leitura de Galileu e Newton. Lisboa: Edies 70, 1984. p. 28.

  • 10

    no tendes necessidade de o fazer com mais fora numa direco do que noutra, pois as distncias permanecem as mesmas (...) fazei andar o navio velocidade que queirais, desde que o movimento seja uniforme, sem qualquer balano num sentido qualquer, no notarei a mnima alterao em todos os efeitos que se acabou de indicar; nenhum deles vos permitir dar conta se o navio est em movimento ou parado (...)8

    Galileu observa que s os movimentos em relao aos quais o navio est em

    repouso relativo so perceptveis. Observa ainda que esses movimentos no se alterariam,

    seriam idnticos se o navio estivesse imvel. O que Galileu est afirmando o princpio da

    relatividade, a indiferena do movimento partilhado em relao ao movimento uniforme de

    conjunto9, que ser fundamental para Isaac Newton. Poderamos tambm dizer que o dilogo

    mostra a validade da mesma lei da natureza para todos os corpos, animados e inanimados; e

    que essas leis no so alteradas quer estejamos em repouso ou em movimento, nem os efeitos

    (as gotas caem do mesmo jeito, quer o navio parado ou no) ou as causas (no preciso,

    aumentar ou diminuir a fora no lanamento da bola, a favor ou contra a direo do

    movimento).

    O pensamento matemtico de Galileu, ao conceber o princpio da relatividade,

    favoreceu, posteriormente, o estabelecimento de uma equivalncia entre os referenciais, e

    assim formalizar uma transformao que podia ser utilizada na comparao dos fenmenos

    que ocorrem em referenciais inerciais10 distintos. Esta transformao consiste num conjunto

    de equaes dos parmetros de posio e movimento em relao a um sistema de referncia S,

    com origem em O e coordenadas (x, y, z), num sistema S', com origem em O' e coordenadas

    (x', y', z').

    As equaes so: = ; onde y' = y; z' = z e t' = t, sendo V a velocidade do referencial S' relativamente ao referencial S e t o tempo, que graficamente

    representamos:

    8 GALILEU apud BALIBAR. 1984. p. 26. 9 Esta designao na fsica moderna chama-se de invarincia de Galileu, e refere-se ao princpio de relatividade

    segundo o qual as leis fundamentais da Fsica so as mesmas em todos os sistemas de referncia inerciais, isto , a forma das equaes fsicas no podem depender do estado de movimento de um observador, uma vez que o movimento relativo. Nota do autor.

    10 Referencial inercial todo o sistema de referncia que esteja em repouso ou se locomovendo com velocidade constante. Tais sistemas ou esto parados (velocidade = 0) ou em movimento retilneo uniforme uns em relao aos outros. Nota do autor.

  • 11

    11 12

    Realamos que Galileu acreditava numa regularidade da natureza, e que essa

    regularidade poderia ser expressa dentro de parmetros matemticos mediante o

    estabelecimento daquilo que hoje denominamos de leis cientficas. No que se refere forma

    com que dois sistemas fsicos interagem entre si, na busca da correta correlao entre as

    mudanas observadas nos sistemas, ele viu a necessidade de estabelecer o carter absoluto do

    tempo e a separao espacial entre dois acontecimentos que ocorrem no mesmo instante.

    Essas leis so inerentes a todos os sistemas inerciais que combinados, permitem a correta

    descrio dos movimentos13.

    1.3 Ren Descartes As bases filosficas da matematizao da natureza

    Embora Descartes (1596 1650) seja contemporneo de Galileu, existem grandes

    diferenas em seus modos de pensar. Enquanto Galileu acredita na realidade objetiva do

    mundo e utiliza-se de experimentos e instrumentos para comprovar suas hipteses, Descartes,

    numa postura ctica, duvida da veracidade do conhecimento adquirido atravs dos sentidos.

    Certamente que esta postura no se inicia com Descartes, mas ele se pergunta se nossos

    sentidos no nos enganam sempre, ou seja, duvida da existncia de uma realidade conduzida

    por nossos sentidos.

    Alm disso, outra importante diferena diz respeito ao papel desempenhado pela

    metafsica. Galileu se desvinculou claramente de qualquer pressuposto metafsico, enquanto

    que Descartes tinha em Deus o fundamento de todo o conhecimento verdadeiro. Assim como

    11 Em um vago de trem, S refere-se a um referencial em movimento em relao a este trem; e S o referencial de quem est dentro do vago. Nota do autor.

    12 Um objeto deixado cair no interior do vago, ser visto pelo sujeito do referencial S caindo aos seus ps. J no referencial S, o sujeito presenciar o deslocamento do objeto em forma parablica. Nota do autor.

    13 VIDEIRA, A. A. P. e COELHO, R. L. Fsica mecnica e filosofia: o legado de Hertz. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2012. p. 19 e 20.

    S

    O

    x X

    y`

    V

    y

    x

    V

    0 0 S

    S

    Figura 1 Figura 2

  • 12

    podemos considerar Galileu como um realista, porque desenvolvia seu raciocnio realizando

    experimentos com base na observao do sensvel; podemos considerar Descartes como um

    racionalista extremo, porque partindo do pensamento, toma a posio contrria de Galileu. E

    por isso a experincia no tem a mesma importncia que assume neste. Para Descartes, a

    experincia serve como um complemento razo, mas cabendo matemtica um importante

    meio de descobrir a verdade.

    Aps o pioneirismo de Galileu, ao reduzir os objetos s suas qualidades primrias,

    e assim manter uma constncia que pudesse ser expressa por meios quantitativos, e encima

    destas novas concepes realizar experimentos, com as representaes matemticas destas

    qualidades primrias; assistimos o racionalismo de Descartes, procurando nas matemticas,

    uma forma de conhecimento que no houvesse tanta dissenses como na filosofia14, pois nas

    matemticas, por causa de sua certeza e da evidncia de suas razes (...)15 poderia se

    estabelecer uma filosofia capaz de resistir aos ataques cticos, porque possuiria um ponto de

    sustentao de forma certa e indubitvel.

    Para compreendermos a importncia do trabalho de Descartes no

    desenvolvimento da cincia moderna e especificamente na matematizao da natureza,

    teremos que esclarecer o seu mtodo, no que diz respeito a utilizao das matemticas, e

    especificamente a geometria, na funo de conduzir a ideias claras e distintas.

    Fica evidente na primeira linha da segunda regra16, que ele pretende superar o

    conhecimento proposto pela escolstica por um novo tipo de conhecimento certo e evidente: a

    cincia17. No mtodo de Descartes incorporado uma nova exigncia para aquilo que se tem

    por conhecimento, propondo um projeto fundamentado na intuio e numa nova relao

    lgica entre a aritmtica e geometria, que explique tudo em relao a ordem e a medida18.

    Sua proposta de cincia, parte de uma concepo de uma unificao do

    conhecimento, uma vez que todas as cincias nada mais so do que a sabedoria humana, a

    qual permanece sempre una e idntica, por muito diferentes que sejam os objetos e que se

    aplique19. Esta concepo de cincia, implica na rejeio de uma antiga lei (lei da

    homogeneidade) que determinava a relao entre coisas de um mesmo gnero (p. ex., branco

    e preto), ou que tm a mesma composio (p. ex., as partes de um objeto composto do mesmo

    14 DESCARTES, R. Discurso do mtodo. 2 ed. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 32. Coleo Os Pensadores. 15 DESCARTES. 1979. p. 32. 16 DESCARTES, R. Regras para orientao do esprito. Lisboa: Edies 70, p. 14. 17 H poca de Descartes, o termo cincia no possua a equivalncia que a temos hoje. O termo que mais se

    aproximava com o significado atual de cincia era o termo filosofia. Cf. COTTINGHAM, J. A filosofia de Descartes. Lisboa: Edies 70, 1986. p. 16.

    18 COTTINGHAM, J. Dicionrio Descartes. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. p. 41. 19 DESCARTES. Regras para orientao do esprito. p. 12.

  • 13

    material); em consequncia, estava proibido a determinao de grandezas de ordens diferentes

    numa mesma expresso, ou seja, no se podia provar uma proposio geomtrica usando a

    aritmtica. Descartes, entretanto, passa a considerar as diferentes espcies de grandeza (raiz,

    quadrado, cubo, etc.) como sendo grandezas que constituem os termos de uma mesma

    proporo contnua. Tambm reinterpreta o smbolo a2 como o comprimento de um segmento

    e no como rea, como era tradio naquela poca, e, assim, faz para as outras potncias a3,

    a,4 a,5...20.

    Alm disto, passa a considerar as operaes aritmticas (multiplicao e diviso),

    como casos particulares do clculo decorrente para encontrar o quarto elemento de uma

    proporo, de tal forma que: 1

    = = . Neste modelo de conhecimento, vamos

    encontrar o desconhecido - a incgnita -, atravs de uma relao com o conhecido, ou seja, em

    funo das variveis estabelecidas. O processo consiste em estabelecer uma relao recproca,

    de tal maneira que, partindo de um ponto determinado, e seguindo uma regra constante, pode-

    se percorrer todo o processo e reduzir a varivel indeterminada, a uma identidade que a defina

    como parte da funo estabelecida, segundo as regras de uma operao matemtica21.

    Segundo Kobayashi22, esta teoria da propores, abre caminho para uma nova

    teoria das cincias, pois organiza os objetos do conhecimento segundo uma relao serial das

    matemticas. Ao estabelecer essa correspondncia entre uma grandeza geomtrica com uma

    grandeza aritmtica, Descartes percebe que h um conhecimento que subjaz a essas grandezas

    matemticas, que ele identifica com a lgebra, que juntamente com a astronomia e a teoria das

    harmonias, que so tipos especficos de matemtica, e que por essa razo, esse novo

    conhecimento seria uma mathesis universalis, uma espcie de matemtica universal.

    A partir dessas relaes de propores, nosso filsofo criou as bases para a

    geometria analtica. E com ele, a lgebra comea o seu processo de autonomia em relao a

    geometria, com uma progressiva introduo de uma notao mais concisa com uso de letras

    para denotar coeficientes e incgnitas, abandonando de vez, o princpio geomtrico da

    homogeneidade dimensional. Esse rompimento com a doutrina aristotlica e a concepo da

    mathesis universalis, permite-o imaginar que se poderia desenvolver um mtodo universal

    para a soluo de problemas relativos a filosofia da natureza. E a matemtica seria o modelo

    20 Cf. FREITAS VAZ, D. A. A Geometria de Ren Descartes. Boletim de educao Matemtica, Rio Claro, v. 18, n. 23, maio, 2005.

    21 DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentao das cincias humanas. So Paulo: Loyola, 1991. p. 178.

    22 KOBAYASHI, M. A filosofia natural de Descartes. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. p. 26.

  • 14

    pelo qual se daria fundamentao esse mtodo universal.23Com uma notao mais simples e

    geral, representando somente propores e relaes abstratas, pensava poder revelar as

    estruturas inerentes a todos os objetos de investigao. Em sua obra Geometria24, inicia a

    procura da unificao dos campos, antes impensvel, entre a aritmtica e a geometria,

    representando as quantidades aritmticas sob a forma de linhas geomtricas, para em seguida,

    expressar essas linhas como equaes algbricas25.

    A preocupao maior em sua filosofia a procura dos fundamentos de um

    conhecimento verdadeiro. Ao formular seu mtodo para bem conduzir a prpria razo e

    procurar a verdade nas cincias26 pretendia estabelecer os fundamentos de uma cincia que

    "geometrizasse" a natureza. Ao olharmos os motivos pelos quais o levaram desenvolver um

    mtodo, que orientasse no estudo da natureza, deparamo-nos com um crtico das bases do

    conhecimento de sua poca, onde acreditava que no existia um conhecimento verdadeiro,

    mas no mximo verossmil. Ao desenvolver seu raciocnio, Descartes tem plena conscincia

    de que seu mtodo para facilitar a soluo de problemas, no garantir os resultados; pois

    este antes uma organizao do pensar para bem conduzir a pesquisa da realidade do que

    uma soluo para estes mesmos problemas. No seu entender, resolvemos os problemas

    partindo do simples para o complexo ou do fcil ao difcil. E este critrio antecede e

    predetermina a resolubilidade ou no dos problemas. Desta forma, ao utilizar suas regras, ele

    julga ter descoberto a caracterstica universal do processo de conhecimento.

    Essas longas cadeias de razes27, todas simples28 e fceis29, de que os gemetras costumam servir-se para chegar s suas mais difceis demonstraes, haviam-me dado ocasio de imaginar que todas as coisas possveis de cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas s outras da mesma maneira...30

    Partindo do conceito de abstrao aristotlica, Descartes vai ampliar e

    universalizar tal operao intelectual como uma regra metodolgica a fim de reificar as

    23 GAUKROGER, S. Vida e obra. In: BROGNTON, J. e CARRIERO, J. (Org.). Descartes. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 22 e 23.

    24 A Geometria de Descartes foi publicado inicialmente como um apndice de O discurso do mtodo, em 1637. Nota do autor.

    25 COTTINGHAM, J. A filosofia de Descartes. Lisboa: Edies 70, 1986. p. 40. 26 Subttulo de sua obra O discurso do mtodo. Nota do autor. 27 Com o significado de propores. Nota do autor. 28 O que primeiro pela ordem das coisas. Nota do autor. 29 Do ponto de vista psicolgico. Nota do autor. 30 DESCARTES, R. Discurso do mtodo. 2 ed. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 38. Coleo Os Pensadores.

  • 15

    diferenas entre os diferentes objetos, e assim conseguir um critrio de quantificao que

    permita expressar um dado objetivo, dentro de um mesmo critrio de certeza31.

    Na tradio tomstica, o processo de abstrao32 no implica uma diviso em dois

    entes distintos, como na teoria platnica. Se aplica aos entes sensveis, sendo estes a fonte de

    instanciao dos objetos matemticos, atravs do qual se abstrair uma matria inteligvel,

    tomada no seu aspecto individual ou acidental. Nesse processo de abstrao, a qualidade

    independente da quantidade, o que faz com que esta seja tomada como um componente

    acidental, e aquela como um componente da matria sensvel. Assim, os objetos matemticos

    se referem a matria, mas s retm dela a quantidade que no se encontra na matria corporal.

    A quantidade em virtude da qual instanciado o objeto matemtico referente matria

    inteligvel33. Observamos que a escolstica atribua um papel as matemticas referente as

    quantidades e totalmente dependente da matria sensvel. Assim os objetos matemticos so

    tidos por abstratos porque no possuem corporeidade, e consequentemente qualidades

    sensveis. Dentro deste quadro referencial, a matemtica est intimamente ligada aos sentidos,

    atravs da experincia sensvel.

    Kobayashi34 destaca a estreita correspondncia entre a epistemologia de

    Aristteles e de Descartes, uma vez que ambos mostram a necessidade das imagens contidas

    na imaginao de onde o entendimento captura a essncia (forma) das coisas materiais.

    Entretanto, este ultrapassa o empirismo daquele, ao considerar a percepo como um juzo

    que depende do entendimento, extrado atravs dos sentidos, a partir de seu contexto. A

    filosofia natural de Descartes conduzida a partir de sua metafsica.35 Um dos principais

    postulados, qui o principal, postula que as verdades matemticas, que vs nomeais eternas,

    foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, assim como todo o resto das

    criaturas36. Dito de outra forma, ao estabelecer as leis naturais, Deus tambm imprimiu no

    esprito humano as ideias destas leis. Existindo portanto, uma correspondncia entre as leis da

    natureza e as ideias matemticas impressas em nosso esprito, pela subordinao comum a

    vontade de Deus. Esse postulado implica na possibilidade de que a nossa concepo, clara e

    31 Cf. ANDRADE, E. O papel da abstrao na instanciao da lgebra nas regulae ad directionem ingenii. Analytica (UFRJ), v. 15 n. 1, 2011, p. 147.

    32 Entendido aqui como a subtrao de certas qualidades do ente sensvel a partir do isolamento de seu aspecto quantitativo. Nota do autor.

    33 TOMAZ, A apud ANDRADE, E. O papel da abstrao na instanciao da lgebra nas regulae ad directionem ingenii. p.155.

    34 KOBAYASHI. 1993. p. 30. 35 KOBAYASHI. 1993. p. 15. 36 DESCARTES, cartas a Mersenne, 25 de novembro de 1630, apud Kobayashi. 1993. p. 38 e 39.

  • 16

    distinta das ideias matemticas, possua uma equivalncia correlata aos objetos materiais, que

    nos so externos.

    Qual a implicao deste postulado para a filosofia da natureza em Descartes?

    Podemos dizer que este postulado, desloca as verdades matemticas do mundo inteligvel das

    ideias37 para o mundo concreto, autorizando a busca das verdades eternas (matemticas) no

    mais no mundo das ideias, mas atravs da correspondncia matemtica entre nosso

    entendimento e a natureza criada. Com isso, explicita-se uma justificativa que autoriza o

    conhecimento humano a formar ideia da essncia das coisas materiais a partir das suas

    prprias ideias matemticas, sem recorrer a imaginao ou aos sentidos, rompendo com o

    empirismo aristotlico, no qual ele mesmo, Descartes, ainda se sustentava, conforme vimos.

    Com isto, ao concebermos em ns mesmos, os objetos matemticos, tais como a

    extenso geomtrica, podemos estabelecer, seguramente, uma correlao com o objeto

    material, e assim apreender a sua natureza essencial. Devemos ainda dizer, que a concepo

    descartiana no se confunde com alguma espcie de idealismo, uma vez que no estamos

    autorizados a deduzir diretamente das ideias que representam a essncia da coisa, a existncia

    da coisa exterior, porque a tese da criao das verdade eternas confere um carter contingente

    s ideias matemticas que existe em ns. As nossas ideias para poderem figurar uma realidade

    externa, devem submeter-se prova da experincia, para serem consideradas como

    correspondente essncia das coisas.38

    Vejamos agora como os conceitos fundamentais de sua fsica so apresentados em

    seus Princpios de Filosofia39, onde Descartes estabelece a identificao entre espao, ou da

    extenso, com a substncia material, onde afirma que a mesma extenso que constitui a

    natureza do corpo, constitui tambm a natureza do espao,40 definindo um mesmo estatuto

    ontolgico entre espao e matria. Desta identificao direta entre espao e extenso, algumas

    dedues importantes serviro de orientaes para sua filosofia natural, onde se destaca a

    negao do vazio e a impossibilidade da diviso da matria ao infinito; bem como a

    homogeneidade entre a Terra e o cu. Entretanto, o que caracterizar sua filosofia da natureza

    ser a definio de movimento como sendo aquele que se efetua de um lugar para outro41, e

    podendo somente ser concebido em relao a um referencial fixado por ns; onde

    37 No que pese a filosofia aristotlica, a filosofia platnica, ou melhor dizendo neoplatnica, era admitida pela maior parte dos metafsicos seiscentistas. Nota do autor.

    38 KOBAYASHI. 1993. p. 44 e 45. 39 Obra publicada em 1644, onde Descartes com 50 anos, apresenta sua sntese do conhecimento humano e

    analisa as coisas materiais da Terra e de todo o mundo visvel. Nota do autor. 40 KOBAYASHI. 1993. p. 83. 41 KOBAYASHI. 1993. p. 85.

  • 17

    naturalmente o leva a seguinte observao: o movimento e o repouso no so mais do que

    dois modos diferentes do corpo onde eles se encontram42.

    Com estes princpios estabelecidos, Descartes comea a pesquisar a natureza do

    movimento, atribuindo a Deus a causa primeira do movimento. E como Deus imutvel,

    deduz que Ele age de forma invarivel, de onde postula uma quantidade de movimento no

    universo.

    Como Deus no est sujeito a mudanas, agindo sempre da mesma maneira, podemos chegar ao conhecimento de certas regras a que chamo as leis da natureza, e que so as causas segundas, particulares, dos diversos movimentos que observamos em todos os corpos, e da a importncia dessas leis.43

    A partir destas consideraes, anunciar suas trs leis da natureza, tidas por ele

    como causas segundas do movimento:

    i. A primeira lei estabelece que cada coisa permanece no seu estado, se nada o

    alterar; assim, aquilo que uma vez foi posto em movimento continuar

    sempre a mover-se44;

    ii. A segunda estabelece que (...) cada parte da matria, considerada em si

    mesma, nunca tende a continuar o seu movimento em linha curva mas sim em

    linha reta (...)45;

    iii. A terceira a lei do choque, deduzida a partir do princpio da quantidade de

    movimento, que se mostrou inexata.

    Podemos concluir que o projeto da mathesis universalis de Descartes, consiste em

    construir uma teoria fsica a partir das ideias matemticas que nos so inatas, tendo como

    fundamento a criao das verdades eternas por Deus.

    Como verificamos, sua filosofia procura destacar a preciso do raciocnio

    matemtico, a fim de torn-lo mais preciso e certo. Definindo por preciso matemtica o tipo

    de demonstrao que rejeitasse as noes qualitativas indeterminadas, favorecendo as

    convices quantitativas que pudessem ser medidas. Entretanto, sua obra extremamente

    carecente das caractersticas que mais destaca em sua obra: as matemticas. Apesar da escassa

    matematizao encontrada, em comparao com o grau de enlevao que ele prprio atribui a

    42 KOBAYASHI. 1993. p. 86. 43 DESCARTES, R. Princpios de filosofia. In PORTO, C.M. e PORTO, M.B.D.S.M. Galileu, Descartes e a

    elaborao do princpio da inrcia. Revista Brasileira de Ensino de Fsica (SBF), v. 31, n. 4, 2009, p. 4601-8. 44 KOBAYASHI. 1993. p. 87. 45 KOBAYASHI. 1993. p. 87.

  • 18

    esta formalizao, podemos destacar o papel significativo das matemticas na sua cincia,

    como por exemplo, a determinao da velocidade e direo dos corpos (depois do impacto),

    tendo como referncia seu princpio de conservao da quantidade de movimento, medida

    como o produto da dimenso pela velocidade (Q=mv); a anlise geomtrica da relao entre

    o ngulo de incidncia e o de refrao de um raio luminoso46.

    Descartes foi uma pea fundamental para a definio do mtodo, linguagem e

    conceitos a serem adotados pelos novos filsofos que estudavam a natureza. Sua metafsica

    consistia numa reduo de todas as propriedades materiais sua essncia puramente

    geomtrica e, portanto, eliminando, tal como Galileu, srios obstculos epistemolgico.

    Podemos observar sua rejeio s noes vagas e qualitativas da filosofia escolstica; mas o

    reconhecimento, por sua parte, da importncia da quantificao matemtica, tal como

    interpretada por Galileu, no foi muito alm do que a exigncia de propriedade, que fossem

    passveis de ser quantificveis. Sem se comprometer com o raciocnio matemtico necessrio

    ao estabelecimento das relaes axiomatizadas que as vinculem a uma relao causal, a fim de

    expressar uma igualdade matemtica que signifique quela relao, iremos perceber seu

    pensamento ainda bastante preso s concepes tpicas do pensamento seiscentista,

    articulando uma representao matemtica com base na metafsica, como sua teoria do vrtice

    para explicar a gravitao.

    Como sua obra, no conjunto, no teve um significado mais profundo para a

    matematizao da natureza, no sentido galileano, podemos concluir que a caracterstica mais

    importante para essa referida matematizao a sua abordagem da filosofia da natureza

    atravs de um modelo matemtico, que expressa a simplicidade e o rigor dedutivo da

    geometria.

    46 Cf. COTTINGHAM. 1986. p. 125.

  • 19

    2 A matematizao da natureza por Isaac Newton

    Isaac Newton (1643-1727) foi um crtico de Descartes. De incio, seus trabalhos,

    conforme Mrio Barbatti,47 considerava a filosofia de Descartes numa tentativa de super-la.

    Essa superao torna-se realidade a partir do rompimento do pensamento metafsico de

    Newton com Descartes, que permite a este formular uma nova concepo mecnica do

    universo. Como vimos no captulo anterior, para Descartes, a ao divina a responsvel pela

    explicao dos fenmenos naturais, compreendendo estes fenmenos pela ao de uma

    inteligncia que garante a perfeio das leis determinstica da natureza atravs do que ele

    chamou de princpios primeiros.

    Newton tambm concordava com a necessidade da interveno divina para iniciar

    o movimento primeiro, entretanto discordava da concepo desta de Descartes, atribuindo

    uma interpretao testa relao entre Deus e a natureza48.

    Disto decorre que a quantidade de movimento imposta por Deus inicialmente,

    para manter os movimento dos planetas ad aeternum, dentro da viso desta de Descartes, no

    ser aceita por Newton, porque Deus seria o responsvel pela criao e manuteno da

    fora que sustenta os planetas, pois Este no somente o criador, mas tambm um agente

    inteligente, que age continuamente para manter o equilbrio do universo.

    Trilhando o caminho desbravado por Galileu e Descartes, assistimos ao

    matemtico de Cambridge compartilhando da ideia de se poder expressar matematicamente a

    regncia de Deus sobre a construo do sistema planetrio, pois comparar e ajustar todas

    essas coisas [o movimento planetrio] em conjunto, numa variedade to enorme de corpos,

    demonstra que essa causa no cega nem fortuita, mas muito versada em mecnica e

    geometria.49

    Dissemos que Galileu foi um pioneiro na experimentao e na interpretao

    matemtica dos resultados observados. J Descartes, teve o mrito de conduzir as

    matemticas para filosofia natural, atravs de seu mtodo. Porm, Newton consegue unificar o

    procedimento galilaico de elaborar experimentos e interpret-los matematicamente, ao

    47 BARBATTI, Mrio. Conceitos fsicos e metafsicos no jovem Newton: uma leitura do de gravitatione. Revista da Sociedade Brasileira de Histria da Cincia, So Paulo, n.17, p. 59. 1997.

    48 Para Newton, Deus quem fundamenta a realidade. A ordem csmica estaria comprometida se no fosse a ao incessantemente de Deus. Cf. BURTT. 1983. p. 229.

    49 NEWTON, I. Quatro cartas a R. Bentley. In COHEN, I e WESTFALL, R. (Org.) Newton: textos, antecedentes e comentrios. RJ: Contraponto, 2010. p. 403.

  • 20

    mtodo de Descartes, ao fazer a transposio do pensamento metafsico, atravs das

    matemticas, extraindo princpios para, em seguida, axiomatiz-los.50

    2.1 A formalizao matemtica newtoniana

    Isaac Newton expe sua filosofia natural procurando derivar as causas a partir dos

    princpios mais simples possveis, comprovados pela experimentao, e os expe como

    princpios matemticos.

    No campo do pensamento matemtico possvel deduzir leis a partir de

    pressupostos e definies, com resultados experimentais testveis. Por exemplo: quando

    Galileu postula que a velocidade adquirida no movimento naturalmente acelerado a mesma

    em todos os planos de mesma altura, qualquer que seja a inclinao, podemos observar que

    esta declarao no possui nenhuma referncia natureza fsica da causa da acelerao.

    Segundo Cohen51, esse procedimento para descobrir leis matemticas da natureza, sem

    investigar suas causas, mas diretamente da anlise dos dados da experimentao e da

    observao, era normal nos anos seiscentos.

    Havia tambm neste perodo, um procedimento no pensamento matemtico, que

    consistia na procura das causas para o fenmeno. Como exemplo, a lei de Boyle uma

    afirmao matemtica da proporcionalidade entre duas variveis, cada uma das quais uma

    entidade fsica relacionada com uma quantidade observvel ou mensurvel. Os experimentos

    de Boyle mostraram um aumento de presso junto com uma diminuio do volume de um

    gs, ou seja, quando a temperatura do gs mantida constante, presso e volume so

    grandezas inversamente proporcionais. Mas nada diz sobre a causa da presso de um gs

    aumentar medida que este confinado em um volume menor. Apesar dos modelos fsicos

    sugeridos por Boyle que sustentasse uma explicao matemtica da causa do aumento da

    presso, uma explicao matemtica s surgiria dois sculos mais tarde52.

    50 Axiomatizar um sistema mostrar que suas inferncias podem ser derivadas a partir de um pequeno e bem definido conjunto de sentenas. Nota do autor.

    51 COHEN, I e WESTFALL, R. Newton: textos, antecedentes e comentrios. RJ: Contraponto, 2010. p. 168. 52 Em seus Principia (Princpios matemticos de filosofia natural Livro II. So Paulo: EDUSP. 2012. p. 81),

    Newton demonstrar matematicamente que, se um fludo elstico constitudo de partculas em repouso, entre as quais existem foras repulsivas inversamente proporcionais a sua distncia, a densidade ser diretamente proporcional a presso; mas ainda assim, essa demonstrao matemtica no a explicao fsica para a relao observada. Ser necessrio uma teoria cintica, desenvolvida dois sculos depois por Maxwell e Boltzmann. Nota do autor.

  • 21

    Para Cohen, esses dois exemplos mostram que no sc. XVII havia uma distino

    criteriosa, observada entre a afirmao puramente matemtica de uma lei e um mecanismo

    causal para explicar essa lei. Em alguns casos, a procura pela causa no exigia um modelo

    mecnico explicativo desta. Como exemplo temos a trajetria parablica dos projteis, que

    uma exposio matemtica do fenmeno, que em si mesmo, sugere as condies matemtica

    das causas, ou seja, atravs da exposio matemtica da trajetria, pode-se chegar s causas

    fsicas do movimento acelerado e uniforme da trajetria parablica dos projteis.

    Observamos que as especificaes matemticas das causas so diferentes das

    explicaes fsicas da origem e forma de ao das causas. Podemos constatar isso, quando

    Kepler verifica que os planetas se movem em elipses, tendo o sol em um dos focos, e que a

    linha traada a partir do sol at um planeta cobre reas iguais em tempos iguais. Essas so

    observaes empricas, dentro de um contexto matemtico, onde Kepler constatou a no-

    uniformidades do movimento orbital dos planetas, com uma variao na velocidade no aflio

    e no perilio. Entretanto, o astrnomo alemo vai alm dessa constatao matemtica, e

    sugere que a variao fsica de velocidade, deve-se a uma fora magntica celeste, mesmo que

    no conseguisse uma interpretao matemtica que unisse essa fora magntica celeste s

    rbitas elpticas e lei da rea.

    Nos Principia, Newton no discute a natureza da fora que atua nos planetas, mas

    sim, quanto s suas propriedades matemticas que produzem a lei das reas53. Assim, essa lei

    matematicamente descritiva do movimento, possui o equivalente a um conjunto de condies

    que satisfaa uma explicao interativa entre foras e movimentos54, ainda que no considere

    a natureza intrnseca desta fora.

    Devemos ainda destacar no contexto entre especificaes matemticas das causas

    e explicaes fsicas da origem e forma de ao dessas causas, que a argumentao

    matemtica de Newton no esclarece as causas que interagem no movimento dos planetas e

    satlites; mas que dentro de seu modelo explicativo, h a exigncia de foras que devem ser

    dirigidas para um centro e que variem em proporo inversa ao quadrado da distncia, sem a

    exigncia de especificar o tipo ou o modus operandi dessa fora. Porm, seu resultado

    matemtico, permite uma orientao para uma busca das possveis propriedades dessas foras,

    53 Para um corpo com uma componente inicial de movimento inercial, uma condio necessria e suficiente para a lei da rea era que tal fora fosse centrpeta, dirigida continuamente para o ponto em torno do qual so calculadas as reas. Para mais detalhes ver NEWTON, I. Princpios matemticos de filosofia natural Livro I. 2 ed. So Paulo: EDUSP. 2012. p. 83. Nota do autor.

    54 COHEN e WESTFALL. 2010. p. 170.

  • 22

    como iremos encontrar ao explorar o desdobramento das consequncias desse aparato

    matemtico da fsica newtoniana.

    Ao compararmos os modelos matemticos de Kepler e Newton, podemos

    constatar que o primeiro ordenou um conjunto de observaes empricas, elaborando uma lei

    descritiva, em bases puramente intuitivas, e relacionando-a com a realidade observada;

    enquanto o segundo estabelece um conjunto de condies matemticas que corresponde a

    uma descrio fsica dos fenmenos observados, possibilitando ainda, a previsibilidades

    destes fenmenos.

    Segundo Cohen Newton conseguiu elaborar as consequncias matemticas das

    suposies relacionadas com as possveis condies fsicas, sem ter que discutir a realidade

    fsica dessas condies nas etapas iniciais de seu pensamento55. Dito de outra forma, ele

    conseguiu simplificar o fenmeno e idealiza-lo no campo matemtico, de tal forma, que a

    interao entre o fenmeno idealizado e simplificado matematicamente, seja traduzido por

    uma interao matemtica que corresponda a descrio deste fenmeno experimentalmente,

    determinando assim, as condies possveis para a sua manifestao. Seu interesse estava em

    estudar as propriedades matemticas de um anlogo da realidade que lhe interessava. Unindo

    o pensamento matemtico ao da filosofia natural, conseguiu estabelecer uma diferena

    fundamental entre princpios matemticos e filosofia natural expressa atravs de princpios

    matemticos.

    Com fins essencialmente matemticos, utiliza-se de princpios geomtricos e

    trigonomtricos que so lidos exatamente como se fossem princpios fsicos aplicados ao

    movimento fsico local (knesis), incluindo a composio e decomposio de velocidades

    vetoriais, apoiados nos conceitos de inrcia, conforme a figura 15 abaixo. Com este tipo de

    pensamento, ainda segundo Cohen56, Newton estava idealizando um constructo matemtico

    anlogo (mas no idntico) a um sistema fsico. Podemos observar isso, quando ele utiliza

    termos como tempo matemtico, que no o nosso tempo fsico; e trata a velocidade

    como uma varivel puramente matemtica, etc. Estes so princpios matemticos que, no

    modelo newtoniano, expressam os princpios da filosofia natural do movimento.

    Esta ntima ligao entre matemtica e filosofia natural caracterstico dos

    Principia, onde alguns aspectos da filosofia da natureza so reduzidos a princpios

    matemticos, para depois serem aplicados aos problemas fsicos. A matemtica de Newton

    portanto, est revestida de um pensamento filosfico. Pois como vimos anteriormente, ele

    55 COHEN e WESTFALL. 2010. p. 171. 56 COHEN e WESTFALL. 2010. p. 174.

  • 23

    A

    C

    B

    D

    apresenta seus Principia, como fundamentos matemticos para a filosofia natural, revestindo

    a matemtica (geometria e clculo) com a linguagem da filosofia natural do movimento, como

    podemos observar no corolrio I da Lei III:

    Um corpo, submetido a duas foras simultaneamente, descrever a diagonal de um paralelogramo no mesmo tempo em que ele descreveria os lados pela ao daquelas foras separadamente57.

    Devemos ter em mente que I. Newton era um empirista e matemtico, acreditando

    que os postulados fundamentais e os resultados finais da anlise matemtica baseada nesses

    postulados poderiam ser compatveis com o mundo real, tal como revelado pela

    experimentao e pela observao criteriosa.

    Com um discurso essencialmente matemtico, conseguiu expressar aquilo que era

    a problemtica da filosofia natural de sua poca. Ele soube explorar as consequncias

    matemticas dos seus constructos, estabelecido como acima descritos. Certamente que alguns

    dos conceitos matemticos derivam de situaes fsicas; pois como vimos anteriormente, ele

    tendia a raciocinar em termos geomtricos para expressar os equivalentes de uma curva

    descrita por um ponto em movimento.

    Em sua fsica-matemtica, seu modelo analgico se aplica de modo sistemtico

    relaes quantitativas reais, sendo por isso, limitado s cadeias dedutivas matemticas,

    pressupondo alguns princpios estabelecidos pela realidade fsica. De fato, Newton

    estabeleceu as bases da fsica moderna, efetivou uma axiomatizao da mecnica, ainda que

    segundo M. Bunge, bastante ingnua58, pois seu sistema de proposies no possua uma

    consistncia filosfica como veremos adiante. Mas, certamente, no sentido de um conjunto de

    proposies evidentes (ou bastante aceitveis na poca), precedidas por uma srie de

    definies bsicas, em virtude das quais os termos utilizados nos axiomas ganham o seu

    sentido, sendo que da pde ser deduzido o conjunto da mecnica clssica.

    Na histria da cincia, o sculo de Newton encontrava-se diante de um conjunto

    enorme de conceitos e de princpios. Newton introduziu ordem e coerncia nesse contexto,

    57 NEWTON, I. Princpios matemticos de filosofia natural Livro I. 2 ed. So Paulo: EDUSP. 2012. p. 55. 58 BUNGE, M. Fsica e filosofia. So Paulo: Perspectiva. 2011. p. 295.

    Figura 3

  • 24

    tomando como inspirao Os Elementos de Euclides. Os estudiosos consideram que a

    construo newtoniana no to aprimorada quanto a euclidiana, entretanto, cabe-lhe o

    mrito de ter sistematizado os princpios matemticos da filosofia natural, estabelecendo

    assim, as bases da fsica-matemtica.

    A ttulo de exemplificao, usaremos as trs leis do movimento de Newton, para

    elucidar como a partir da observao e experimentao, ele axiomatizou59 e formalizou os

    princpios do movimento.

    Esses princpios foram assim enunciados60:

    Lei I - Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento

    uniforme em uma linha reta, a menos que ele seja forado a mudar aquele estado por foras

    imprimidas sobre ele.

    Formalizao: o repouso um caso particular de movimento retilneo uniforme

    (MRU), ou:

    = 0

    Inferindo-se que a fora resultante igual ao somatria das foras que agem sobre

    o corpo, e portanto, com atuao nula sobre este, ou:

    = 1 + 2 + 3 +

    Pode-se definir inrcia e suas propriedades em funo das foras atuantes no

    corpo com uma resultante de foras nula.

    Lei II A mudana de movimento proporcional fora motora imprimida, e

    produzida na direo da linha reta na qual aquela fora imprimida.

    Formalizao: para a mudana de movimento temos,

    (1) =

    59A tentativa de axiomatizar uma teoria fsica com base em postulados prximos observao pode ser chamada de abordagem empirista ou operacional. http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/FiFi-12-Cap-5.pdf. p. 33. Osvaldo Pessoa Jr. Acesso 03/07/2013.

    60 NEWTON. 2012. p. 53 e 54.

  • 25

    Onde segundo Newton representa a quantidade de movimento assim definida:

    a quantidade de movimento a medida do mesmo, obtida conjuntamente a partir da

    velocidade e da quantidade de matria61 temos:

    (2) = m

    Logo, se o movimento diretamente proporcional fora, teremos:

    =

    Como toda proporo direta em matemtica pode ser substituda por uma

    constante de proporcionalidade, teremos:

    (3) = c

    Onde essa constante de proporcionalidade c equivalente a variao da fora

    num intervalo de tempo ( ), ento teremos:

    (4) = que a representao formal desta lei.

    Para atingirmos a sua forma mais conhecida, precisamos realizar algumas

    transformaes, particularizando uma situao onde no haja variao de massa:

    (1) = =

    =

    (2) Para = teremos = ( )

    Como acelerao igual = ( )

    chegamos a formulao mais conhecida

    desta lei:

    (3) = 61 NEWTON. 2012. p. 40.

  • 26

    Lei III A toda ao h sempre oposta uma reao igual ou, as aes mtuas de

    dois corpos um sobre o outro so sempre iguais e dirigidas a partes opostas.

    Com uma representao formal de:

    (1) 12 + 21 = 0 12 = 21

    A aplicao destas trs leis acima, mediante a aplicao do princpio geral da

    gravitao tornou possvel a explicao de todos os movimentos do sistema solar sob a forma

    matemtica e reunir um grande nmero de fenmenos num princpio universal.

    Graas a esses princpios, todas as oposies entre diferentes categorias de

    movimento (naturais e forados, terrestres e celestes) so superadas, e no h mais diferena

    essencial entre o lanamento de uma pedra e o movimento da lua, por exemplo. O movimento

    de um planeta representado como a resultante do movimento retilneo uniforme seguindo a

    tangente, em relao trajetria que teria se fosse subtrado a toda fora exterior e ao

    movimento de queda em relao Terra.

    2.2 Os Principia

    O modo pelo qual Newton ir abordar a filosofia natural, est exposta em sua obra

    Philosophiae Naturalis Principia Mathematica publicada em 1687, contendo as leis do

    movimento dos corpos e a lei da gravitao universal.

    Nesta obra, observa-se uma formalizao para descrever os fenmenos fsicos

    observados experimentalmente, bem como a estrita relao entre causa e efeito, permitindo a

    formulao de leis que unificam o mundo terrestre com o mundo dos astros.

    Em sua forma de apresentao, os Principia a primeira exposio sistemtica,

    sob o ponto de vista matemtico, da compreenso do mundo, onde as leis ali contidas, so

    aliceradas em observaes experimentais, assumindo portanto, um carter de verdade

    manifesta da natureza e por isso, adquirindo um status de leis fsicas.

    (...) apresento esta obra como os Princpios Matemticos da Filosofia. Com efeito, a dificuldade precpua da filosofia parece consistir em que se investiguem, a partir dos fenmenos dos movimentos, as foras da natureza, demonstrando-se a seguir, por meio dessas foras, os outros fenmenos. (...) pelas proposies matematicamente demostradas nos livros anteriores,

  • 27

    derivam-se dos fenmenos celestes as foras de gravidade pelas quais os corpos tendem para o sol e os vrios planetas62.

    Ao seguir uma abordagem realista, de que conceitos derivados diretamente de

    experimentos possibilitam o estabelecimento de regras ou leis, que ao serem tratados

    matematicamente, permitem uma interpretao formal entre esses conceitos e a realidade

    fsica, Newton procurou elaborar princpios matemticos assim estabelecidos, para serem

    aplicados ao mundo fenomnico de forma mais abrangente, segundo o princpio de que os

    efeitos de um mesmo tipo, cujas propriedades conhecidas so as mesmas, tem sua origem nas

    mesmas coisas e tambm tem as mesmas propriedades conhecidas63, estabelecendo ento, as

    lei da natureza.

    Como na matemtica, assim tambm na filosofia natural, a investigao das coisas difceis pelo mtodo de anlise deve sempre preceder o mtodo de composio. Esta anlise consiste em fazer experimentos e observaes, e traar concluses gerais deles por induo, no se admitindo nenhuma objeo s concluses, seno quelas que so tomadas dos experimentos, ou certas outras verdades64.

    Os fundamentos dos Principia so compostos por oito definies e trs axiomas,

    onde as definies podem ser agrupadas em funo dos conceitos de matria, movimento e

    fora65. Formalmente, as definies podem ser agrupadas em dois conjuntos, porque em trs

    delas so definidos conceitos, e nas cinco restantes, quantidades.

    Apesar deste livro apresentar uma enorme carncia sobre o mtodo que o

    conduziu a tamanha formalizao66, e filosoficamente apresentar algumas deficincias quanto

    definies, pois Newton nunca foi alm de uma generalizao evidenciada por suas

    experimentaes. Este fato se torna evidente, ao lermos sua Definio I sobre a quantidade de

    matria. Vemos que sua definio no conceitua o que seja a quantidade de matria; mas

    antes estabelece uma relao entre grandezas, neste caso, o produto entre o volume e a sua

    densidade. Tambm no discute o conceito de densidade67, pois o tem como parte de um

    princpio que dado atravs de experimentos cuidadosamente realizados com pndulos,

    62 NEWTON, I. Princpios matemticos de filosofia natural. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 4. Coleo Os Pensadores.

    63 NEWTON. 2012. p. 26. 64 NEWTON. 1979. p. 56. 65 A primeira definio diz respeito matria, a segunda ao movimento e as seis restantes, fora. Nota do autor. 66 BURTT, E. A. As bases metafsicas da cincia moderna. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1983. p.

    168. 67 Na nota 11 do apndice explicativo do Princpios matemticos de Filosofia natural Livro I. 2 ed. So

    Paulo: EDUSP. 2012. p. 311, explica que na poca de Newton era normal e lgico definir massa em termos de densidade. Nota do autor.

  • 28

    onde verificou a proporcionalidade entre a densidade e o peso. Mesmo assim, com uma forte

    dose intuitiva, Newton pde deduzir princpios, que quando analisados, esclareceram que tipo

    de foras atuam na natureza dos pndulos, garantindo o raciocnio de igualdade entre

    quantidade de matria e massa. Uma conceituao assim estabelecida, ser uma grandeza

    susceptvel de medida com valores proporcionais ao peso, quer se chame corpo ou massa.

    Apesar desta ideia no ser estranha a Galileu, coube ao autor dos Principia,

    buscar uma determinao matemtica desse novo conceito o produto do volume pela

    densidade. Esse novo conceito de massa assume uma posio central em sua filosofia,

    possibilitando a definio de quantidade de movimento produto da velocidade pela

    quantidade de matria - (Definio II), e a concepo de fora, como fator determinante na

    mudana de momento, levando em considerao o princpio de inrcia, antes delineados por

    Galileu e Descartes.

    Apesar de observamos a importncia do fenmeno fora nos Principia, ao

    longo das seis ltimas definies, fora nunca definida, seno como um dado irredutvel

    da experincia, e no fornece nenhuma explicao sobre sua natureza. Fora, vai sempre se

    referir a um conceito relacional que descreve de modo conveniente relaes empricas e

    mensurveis entre fenmenos perceptveis68. Segundo Jammer69, suas consideraes sobre

    fora esto relacionadas questo da gravidade, porque naquele momento histrico, havia

    uma demanda para explicar a dinmica dos movimentos planetrios.

    Ao definir a vis nsita, na Definio III, Newton a define como uma espcie de

    fora inerte, inerente matria: A fora inata (nsita) da matria um poder de resistir pelo

    qual cada corpo, enquanto depende dele, persevera em seu estado, seja de descanso, seja de

    movimento uniforme em linha reta70. Observamos, como sugere alguns autores, a influncia

    de Descartes71, na formulao desta definio, na qual ser conhecida como fora de inrcia,

    que possui a caracterstica de manter o movimento e resistir alterao do estado deste

    movimento, frente a influncia de outra fora. De tal forma, que movimento e repouso,

    enquanto concebido pelo vulgo, apenas se distinguem relativamente um do outro, nem se

    acham sempre em repouso os corpos que o vulgo considera parados72. Definindo inrcia

    como uma espcie de fora inata (nsita) matria, agindo de forma dupla: como resistncia

    ao movimento se estiver em repouso; e como impulso, se estiver em movimento.

    68 JAMMER, M. Conceitos de fora: estudo sobre os fundamentos da dinmica. RJ: Contraponto, 2011. p. 190. 69 JAMMER. 2011. p. 155. 70 NEWTON. 1979. p. 5. 71 Ver as trs leis de movimento de Descartes nas p. 16 e 17. Nota do autor. 72 NEWTON. 1979. p. 6.

  • 29

    A Definio IV conceitua fora aplicada, vis impressa, que a fora responsvel

    por modificar o estado de movimento retilneo e uniforme ou de repouso, de um corpo,

    estabelecendo uma relao de causa e efeito, onde a fora impressa, a causa, provoca um

    mudana de movimento, o efeito. Esta fora possui um carter pontual, consistindo somente

    na ao, e no permanece no corpo depois dela. A fora de inrcia a que responsvel por

    manter o corpo em movimento.

    A Definio V define o que seja a fora centrpeta, aquela pela qual o corpo

    atrado ou impelido sofre qualquer tendncia a algum ponto como a um centro73. Esta fora

    desenvolveu um importante papel na filosofia newtoniana, uma vez que ele estabelece uma

    relao especial com a gravidade, conforme o texto explicativo da definio V. As Definies

    VI, VII e VIII introduzem conceitos diretamente relacionados com a fora centrpeta.

    Segundo alguns comentadores, Newton no tinha um mtodo to explcito quanto

    quer fazer nos parecer. B. Cohen74, afirma que em sua obra, o aspecto de anlise e sntese

    bastante confuso, de forma tal que, para entender seu mtodo, deve-se tentar buscar as

    respostas em outros campos, inclusive o metafsico.

    73 NEWTON. 1979. p. 6. 74 COHEN e WESTFALL. 2010. p. 165.

  • 30

    3 As razes filosficas da matematizao da natureza

    Vimos que Galileu inaugura um novo padro de racionalidade, e o desenvolve

    centrado nas matemticas, realizando as devidas redues75 dos objetos da natureza de seu

    estudo, a seus elementos quantificveis, numa tentativa de descobrir padres que justifique o

    estabelecimento de leis representativas da interao desses objetos estudados.76 Descartes,

    que v nas matemticas o nico padro de racionalidade contempornea, toma-a como uma

    espcie de linguagem universal, e procura explicar os fenmenos emergentes de sua poca, e

    estende esse padro de racionalidade a todos os campos do conhecimento a fsica,

    astronomia, fisiologia, metafsica, como uma mathesis universalis. Assistimos ento, uma

    crescente centralizao do pensamento racional matemtico, edificando em torno do estudo da

    natureza, um paradigma, de onde surgir um novo modelo racional de abordagem da filosofia

    da natureza: a fsica-matemtica.77

    Ao estabelecer que a certeza do conhecimento definido pelo prprio sujeito,

    sendo a ideia o mediador, atravs de suas caractersticas intrnsecas clareza e distino,

    Descartes define o critrio de verdade, como uma evidncia do pensamento e no da coisa.

    Com este ponto de partida, Descartes estabelece um princpio de realidade que o autoriza a

    procurar o projeto de fundamentao de um conhecimento universal, atravs da predicao

    legtima de um corpo de preposies.78 E a matematizao da natureza, se caracteriza por este

    tipo de pensamento racional: a busca de um novo modelo de interpretao da natureza. Esse

    modelo, procura um saber maneira de uma axiomtica do pensamento puro (matemtica); ao

    mesmo tempo que finca razes numa ontologia dos princpios (princpios primeiros e

    segundos).

    Neste sentido, a matematizao da natureza, envolve tanto as ordens qualitativas

    quanto as quantitativas, porque associa a matemtica metafsica. Pelo aspecto puramente

    matemtico, exige-se que a verdade emerja das relaes conceituais de seu corpo analtico, ou

    seja, atravs da prova demonstrativa. Pelo aspecto metafsico, o apriorismo dos princpios

    exige que a verdade deva emergir, necessariamente, como a verdade da coisa, como ao se

    definir, aprioristicamente, que a alma uma, indivisvel, tambm defina seu carter de

    75 Essa reduo, no significa uma reduo ontolgica, mas antes uma tcnica que permite distinguir o que efetivamente participa e interfere no fenmeno daquilo que seria um epifenmeno. Nota do autor.

    76 DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentao das cincias humanas. So Paulo: Loyola, 1991. p. 32.

    77 DOMINGUES. 1991. p. 37. 78 DOMINGUES. 1991. p. 47.

  • 31

    realidade. E seguindo este raciocnio, a matematizao da natureza possui duas variantes: i) a

    associao das matemticas com a metafsica, que prioriza uma variante, no qual predomina

    uma reduo s essncias; e ii) a associao das matemticas com a experimentao

    (inaugurada com Galileu) permitiu o desenvolvimento de um tipo de saber relativo aos

    fenmenos, portanto dissociado de toda metafsica.79

    As razes que levaram a matematizao da natureza, como vimos, est ancorado

    numa descrena, por parte de alguns pensadores (Bacon, Galileu, Descartes, Gassendi,

    Huyguens, etc.) na filosofia escolstica, e que viam nas matemticas um modelo per

    excelentia de uma racionalidade no qual existe uma predicao legtima, podendo ser aplicada

    filosofia natural, desde que se obedea os critrios nos quais esto fundados os pressupostos

    (prova, clareza, distino), porque a realidade comporta uma estrutura matemtica.

    Vimos ainda, a importante participao de Descartes neste modelo de

    racionalizao, ao estabelecer uma relao funcional entre esprito e realidade, tendo como

    mediador as matemticas, a lngua comum entre as coisas e os homens. Desta forma, a

    possibilidade de uma mathesis universalis adquire uma autorizao, e se desenvolve tendo por

    fulcro o logicismo como pensado nas matemticas a axiomtica; e uma ontologia dos

    princpios pensado nos mesmos moldes.

    Podemos supor que o modelo matemtico ao ser aplicado como uma linguagem

    entre o esprito e as coisas, devido a sua construo clara e sem hiatos, tendo como

    instrumentos metodolgicos a intuio e a deduo, podem conferir um ttulo de validade ao

    conhecimento assim desenvolvido. Temos ento, a gnese de um estatuto que garante a

    validade do procedimento matemtico aplicado natureza. Essa articulao entre

    representao matemtica e a coisa, se entrecruza com a metafsica de tal forma, que abarca e

    exprime as essncias, agora matemticas, das coisas mesmas.

    Destarte, no de se admirar que em tal poca (anos seiscentos) se procure uma

    ontologia dos princpios no mais preciso sentido das matemticas, e tendo como principal

    referncia a obra de Euclides Os elementos80. Isto porque, neste livro, os termos nunca so

    introduzidos sem uma definio; todas as proposies so demonstradas e as demonstraes

    no remontam ao infinito. Desta maneira, toda a estrutura deste modelo proposicional, toda a

    axiomatizao vai partir de um certo nmero de princpios fundamentais, guisa de

    79 DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentao das cincias humanas. So Paulo: Loyola, 1991. p. 57-58.

    80 Os Elementos de Euclides um tratado matemtico e geomtrico consistindo de 13 livros escrito pelo matemtico grego Euclides em Alexandria por volta de 300 a.C. Ele engloba uma coleo de definies, postulados (axiomas), proposies (teoremas e construes) e provas matemticas das proposies. Nota do autor.

  • 32

    postulado, e outros obtidos atravs de derivaes, a deduo. De onde os resultados, assim

    obtidos, sero justificados por meio de demonstraes, porque cada teorema est intimamente

    unido, a este modelo proposicional, atravs de uma relao de necessidade lgica, do qual

    deriva como consequncia imediata. O resultado final, ser um sistema fechado sobre si

    mesmo, favorecendo um discurso bem articulado, de tal forma que a modificao de uma

    parte compromete o todo81.

    Vimos tambm que Descartes coloca no interior do esprito uma fundamentao

    axiomtica do pensamento puro, que se estende fsica, atravs da intuio, revelando a

    essncia da matria em suas propriedades fundamentais: extenso, figura e movimento. Como

    o processo desenvolvido transcorre dentro de uma cadeia logicamente estabelecida, numa

    ordem de razo, das causas primeiras at as leis particulares, a relao entre a fsica e a

    matemtica coextensiva, onde esta estabelece os princpios daquela, e os princpios so

    estabelecidos atravs da intuio e estabelecidos em definies82.

    Entretanto, Isaac Newton, que tambm procura fundamentos matemticos

    universais para explicar os fenmenos da natureza, no parte de princpios primeiros,

    metafsicos, mas do dado primitivo, do ftico, para estabelec-los. E procura relacionar os

    princpios matemticos com os princpios inquiridos atravs da experincia, colocando a

    matemtica como um instrumento que exprima a experincia, segundo um modelo axiomtico

    emprico-analtico. Neste modelo newtoniano, no se estabelece um princpio a priori como

    verdadeiro, seno segundo um critrio que responda a uma base emprica, ou seja, no possui

    nenhuma nota metafsica, mas to somente uma fidelidade aos dados da experincia.

    Vemos que seus princpios empricos como de massa, impenetrabilidade, dureza,

    etc., reportam-se a uma observao analtica da empiria, como ele prprio nos assevera:

    S conhecemos a extenso dos corpos por meio de nossos sentidos, mas estes no percebem a extenso de todos os corpos (...). Aprendemos, pela experincia que muitos corpos so duros, (...). Que todos os corpos so impenetrveis aprendemos, no pela razo, mas pela sensao.83

    Podemos encontrar aqui, uma inflexo no pensamento newtoniano em que a

    fundamentao de seus princpios esto assentados. H um deslocamento da tnica de uma

    matematizao associada metafsica para um fisicalismo, onde agora os traos da

    observao e da experincia estabelecem o ponto de apoio fundamental84. Esse ponto

    81 DOMINGUES. 1991. p. 69 e 70. 82 DOMINGUES. 1991. p. 167. 83 NEWTON, I. Princpios de matemticos de filosofia natural - Livro III. EDUSP. p. 186. 84 DOMINGUES. 1991. p. 169.

  • 33

    arquimediano, pressupe que os fenmenos possuam uma forma que os unifique. E esta

    forma se apresenta matematicamente determinada, organizada e articulada. E para satisfazer

    as exigncias do mtodo newtoniano, essa articulao no pode ser antecipada

    conceitualmente, mas deve ser encontrada e demonstrada nos fatos, justificando o caminho

    optado: dos fenmenos aos axiomas.

    Newton, procura ordenar os fenmenos, associando a matemtica ao empirismo,

    atravs de uma axiomatizao. Portanto, a matemtica como ele v, no uma representao

    direta da natureza, como em Descartes, mas uma representao de articulaes de eventos,

    onde se destaca um jogo de foras concebidas como movimento. Desta forma, encontramos

    nos Principia, uma rigorosa axiomatizao relativos aos eventos observados e

    experimentados, bem como os princpios empricos estabelecidos pela induo, em linguagem

    matemtica, tornando correlativos um corpo a um ponto, e o movimento ao deslocamento

    deste ponto85. Neste sistema fechado cada conceito representado por um smbolo

    matemtico, e as relaes entre os smbolos, so expressas por equaes matemticas; e esta

    formalizao assegura que nenhuma contradio possa produzir-se. Neste sistema, as

    possveis interaes entre os jogos de fora, gerando o movimento, podem ser representados

    pelas solues possveis dada pelas equaes, sendo esta soluo considerada representativa

    de uma estrutura organizacional da natureza, lembrando que esses valores representativos da

    natureza, no consideram o espao e tempo86.

    Presenciamos aqui uma importante acentuao no direcionamento do papel do

    fenmeno como representao da realidade. Se na antiguidade clssica, o termo cincia era

    tido como conhecimento das coisas eternas e incorruptveis, cabendo ao fenmeno um aspecto

    contingencial, no sendo, portanto, objeto da cincia; h agora importante mudana de

    perspectiva, que comea com Galileu, sendo seguida posteriormente por Newton, ao

    estabelecer o fenmeno como objeto de estudo da cincia, e ainda o postula como uma

    representao crvel da realidade.

    Surge aqui, a nvel epistemolgico, uma valorizao do fenmeno, que ser o

    novo centro no qual vai se organizar uma nova cincia, tendo as matemticas como expresso

    do relacionamento dos eventos que caracterizam o fenmeno, sendo este definido como

    positividade87 a nvel de sua empiricidade. Desta forma, o redirecionamento epistemolgico,

    85 NEWTON, I. Matemtica. In COHEN, I e WESTFALL, R. (Org.) Newton: textos, antecedentes e comentrios. RJ: Contraponto, 2010. p. 452.

    86 DOMINGUES. 1991. p. 184 e 185. 87 Compreendido no sentido de uma plena aderncia aos fatos e de uma absoluta submisso ratificao da

    experincia. Nota do autor.

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    subverte a tradio do saber orientado no sentido ser/essncia para o sentido ser/fenmeno, e

    com isto eliminando ou reduzindo as virtudes ocultas e os aspectos subjetivos destes

    fenmenos88.

    Veremos Newton tomando as foras como puras positividade, sem nenhuma

    preocupao sobre a sua natureza metafsica, atendo-se to somente aos aspectos revelados

    pela observao e pela experincia, sem tirar nenhuma consequncia filosfica de suas

    descobertas.

    3.1 A representao do movimento pela geometria euclidiana89

    Uma das grandes problemticas enfrentadas para matematizar a natureza, foi

    estabelecimento de uma relao de veracidade entre o contedo dos eventos fsicos com as

    proposies geomtricas. A geometria euclidiana parte de algumas noes fundamentais,

    como planos, retas, pontos, e alguns axiomas que consideramos verdadeiros. E toda

    proposio deduzida destes axiomas, ser considerada verdadeira, porque demonstradas.

    O cerne da problemtica que no se pode garantir a veracidade destas noes