a maquina e a revolta

134
G> '" I: G> .- - .- '" C Il. ;.a c Il. o ••• . - "'tJ G>

Upload: braulio-rodrigues

Post on 14-Sep-2015

189 views

Category:

Documents


9 download

DESCRIPTION

Antropologia. Favela. Estudo de campo.

TRANSCRIPT

  • G>'"I:G>.--.-'"CIl.;.acIl.o.-"'tJG>

  • ALBA ZALUAR

    A MQUINAE A REVOLTA

    AS ORGANIZAES POPULARES E OSIGNIFICADO DA POBREZA

    ,

    editora brasiliense

  • Este livro dedicado a:Niceas, parteiroRicardo, Marilia eTom, parceirosBloco Luar de Prata, partido da alegria

    AgradecimentosEste livro foi apresentado na Universidade de So Paulo

    como tese de doutoramento em Antropologia. A tese, comotodas as outra&, representou tempos de agruras e de alegrias.No estimulante convivio dos seminrios da USP com meuscolegas e professores, no podia avaliar o que me esperavadepois nesse trabalho solitrio que a pesquisa etnogrfica.Nos seminrios conduzidos, numa rara experincia de traba-lho coletivo, pelos professores Eunice Durham, Ruth Cardo-so e Jos A. Guilhom, pude aprender com a socializao dosconhecimentos de todos. No campo, enfrentando sozinha asdificuldades, tive que desenvolver meus prprios mtodos dedescoberta e de sobrevivncia num mundo inicialmente des-corihecido. Mas, em Cidade de Deus, contei com a pacinciados pesquisados diante da minha inesgotvel curiosidade,sendo ainda premiada com a amizade de alguns. Contei coma ajuda inestimvel de Sidney e Pico, que foram desbravado-res de terrenos hostis e conquistadores de novos espaos.Todo o pessoal do bloco Luar de Prata, personagens destatese, foram caros amigos. So eles que enchem de vida estaspginas.

    Eunice Durham, minha orientadora de tese, leu atenta-mente suas primeiras verses, dosando as crticas com os co-mentrios de incentivo. Foi ela tambm que sabiamente meadministrou doses de presso para terminar com perodos emque me deixava livre para trabalhar no meu prprio ritmo (e

  • Copyriglrt
  • 8 ALBAZALUAR

    dos compromissos docentes). A convivncia com ela foi sem-pre estimulante.

    Otavio G. Velho leu a primeira verso do capitulo 5 elevantou questes estimulantes. No sei, entretanto, se areformulao que fiz respondeu s suas crticas.

    Meus colegas da Antropologia, UNICAMP, sensibiliza-dos pelo meu esforo, concederam-me dois perodos livres datarefa docente. Vrios deles sempre me incentivaram paralevar adiante minha tese e, claro, termin-Ia logo. BelaBianco dividiu comigo interesses comuns. Michael Hall, emafastamento forado do pas, enviou-me dois preciosos livrosque muito usei para encontrar o rumo das minhas idias. Ouso que fiz deles, no entanto, de minha inteira responsabili-dade. Ao soar do gongo, Marisa Correa e PUnio Dentzienrevelaram-se preciosa fonte de informaes da ltima hora.Sou tambm inteiramente responsvel pelo uso que fiz delas.

    Outras pessoas contriburam sobretudo para aumen-tar as alegrias. Roberto Schwarz foi, como sempre, um ouvin-te atento, receptivo e perspicaz. Marcio e Fausta Camposbrindaram-me com a sua amizade, valiosa em inmeros mo-mentos.

    A Fundao Ford concedeu-me a verba para realizar apesquisa durante um ano, entre 1980e 1981, e esperou pacien-temente por este- produto final. O CNPq concedeu-me umano de bolsa de doutorado em 1981.

    Finalmente, a simptica banca de examinadores na USPdirigiu-me comentrios generosos e estimulantes, que me de-cidiram a publicar as palavras que se seguem. Os co-respon-sveis por esta deciso so Roberto Schwarz, Leoncio Mar-tins Rodrgues, Ruth Cardoso, Manoel Berlinck e EuniceDurham. Se a posteridade lhes ficar agradecida, no sei.

    o antroplogo e os pobres:introduo metodolgica

    e afetivaImagine-s estacionando seu carro particular na rua de

    um bairro de pobres cujo nome permanecia nas manchetesdos jornais como um dos focos da violncia urbana, um antrode marginais e de bandidos. Voc no conhece ningum quelhe possa indicar os caminhos e prestar-lhe as informaesde que necessita para mover-se sem riscos desnecessrios.Voc nem sabe muito bem onde procurar o que tem em men-te. Conhece apenas um jovem que lhe foi apresentado por umamigo comum, o qual lhe recomendou cautela. E nada mais.

    Era por esse jovem que, em janeiro de 1980, procuravade porta em porta para iniciar meu aprendizado sobre o modode vida das classes populares urbanas no conjunto habitacio-nal chamado Cidade de Deus. As primeiras informaes noforam nada animadoras. Ningum parecia conhec-lo muitobem. Comecei a invejar intensamente Malinowski, que apor-tou a uma praia longinqua nos mares da Oceania para estu-dar um povo tribal sem saber-lhe a lngua, mas com a convic-o de que iria deparar com uma cultura diferente e autno-ma, harmoniosamente coerente e aceita por todos. Ali estavaeu bem no meio do dissenso e dos conflitos que, segundo osjornais, rasgavam a vida pacifica do povo carioca e mancha-vam de sangue a vida brasileira. -

    A sensao mais forte que tive naquele momento foi a

  • 10 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 11

    de medo. No o medo que qualquer ser humano sente diantedo desconhecido, mas um medo construdo pela leitura diriados jornais que apresentavam os habitantes daquele localcomo definitivamente perdidos para o convivio social, comoperigosos criminosos, assassinos em potencial, traficantes detxicos, etc. Apesar de saber que essa campanha no era se-no a continuidade de um processo de longa data de estigma-tizao dos pobres, eu tinha medo. Um medo realista de meenredar em malhas cujo controle me escapasse ou de enfren-tar a morte nas mos de um bandido raivoso. Duvidei que pu-desse permanecer por l e me relacionar com as pessoas. Masisso pouco tinha a ver com a possibilidade real de depararcom um assaltante, possibilidade esta cada vez mais comuma qualquer habitante do Rio de Janeiro, mesmo sem sair decasa. No, no era apenas o medo de morrer com um tiro nabarriga ou algo ainda mais prosaico.

    O cenrio com o qual deparei no era totalmente des-provido de tranqililidade. De certos ngulos, parecia mesmoum calmo bairro de subrbio, de intensa vida social entrevizinhos. Meninos correndo ou soltando pipa no telhado,donas-de-casa conversando no porto, homens jogando car-teado na birosca, trabalhadores passando a caminho do tra-balho e brincando com os conhecidos, os grupinhos na esqui-na, e tudo mais que j foi eternizado para ns nos sambascompostos pelos artistas populares. Mas a tenso era visivel.Nos bbados apedrejados, na mulher louca andando pela ruaem meio indiferena geral e, nas esquinas estratgicas, nosolhares atentos e avaliadores dos adolescentes que se encami-nham para a vida que denominamos criminosa. Esses sinaisde misria social e moral eram sublinhados pela prpria com-posio material do conjunto: ruas esburacadas, cheias delama e de dejetos ftidos dos esgotos j arrebentados encami-nham os passos de quem por elas anda, especialmente as ruasmas interiores, menos freqilentadas. No inicio fui poupadapela sorte de presenciar algum dos tiroteios que agitam estequadro to freqilentemente. Mas ouvi regularmente os comen-trios a seu respeito. Sendo estranha, mulher e de classe supe-rior, era natural que despertasse curiosidade neste cenrio. E,sendo novata, ainda no havia aprendido que estar ali den-tro, e no nas ruas ou nos nibus da Zona Sul do Rio de Janei-ro, era at certo ponto uma garantia de minha integridade fi-

    sica. Pois se eu estava ali era porque conhecia gente do local.Tinha imunidades sociais e morais.

    Olhando para trs, percebo que junto com o medo expli-cvel, havia certa ambigilidade na minha postura cujas raizesno consegu deslindar na poca. O que me atraia e repelia aomesmo tempo era a possibilidade de romper uma barreira,cuja visibilidade no posta ao alcance do olho nu, mas cujafora se faz sempre presente nos menores gestos, nos olhares,nos rituais da dominao, nos hbitos dirios de comer, falar,andar e vestir, a barreira que separa a classe trabalhadora po-bre das outras classes sociais que gozam de inmeros privil-gios, entre eles o de receber "educao". Chegar perto, toperto a ponto de me confundir com eles em sua casa, em seubairro, deles que a nossa sociedade construiu inmeros mo-dos de manter distantes atravs de diferentes gostos, palada-res, cheiros e hbitos, atravs da permanente carncia, me pa-recia impossvel. No entanto, no era um tabu com proibi-es especificadas nem a poluio decorrente do contato como mpuro que dificultavam esse contato. Nada ordena clara-mente, na nossa sociedade, o contato entre os pobres e osricos. Ao contrrio, somos instados a conviver alegrementenos estdios de futebol, nos desfiles de escolas de samba e nanossa cozinha. Mas vivemos em mundos separados, cada vezmais longe um do outro. Comecei a me dar conta, por estaforma violenta, da invisivel e poderosa hierarquia (ou separa-o de classes) da nossa sociedade. Que no somos iguais nemperante a lei, nem perante a riqueza produzida j sabemos hmuito tempo. O que eu no sabia era que havia tantos obst-culos microscpicos a entravar o contato social mais ntimoentre ns. Eu os visitava no seu dominio, por assim dizer.Longe da minha cozinha e dos seus lugares de trabalho subal-terno. Que regras de convivncia mudariam e o que haveriade confluncia e de permanncia?

    Da viagem no sai a mesma, nem aos olhos alheios nemaos meus. Aprendi, a duras penas, a cultivar o envolvimentocompreensivo, isto , a participao afetuosa e emocionadanos seus dramas dirios, sem me deixar levar pela piedadeque desemboca no paternalismo e na recusa dignidade deles.Para amigos e colegas sem a prtica de contato poltico comesta populao, adquiri o carisma de quem realizou um "fei-to". Se para outros polu-me, no sei. Nosso esprito cristo

  • 12 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 13

    tende a cercar estas incurses junto populao pobre deuma certa aura divina ou santificada, mesmo que a esquea-mos a maior parte do tempo.

    No era necessrio fazer uma opo racional pelo elitis-mo, nem defender idias que pregam a conveniente separaosocial entre pobres e ricos. Quer queiramos, quer no, estaseparao j est embutida nos rituais de dominao de classeque incluem um rigoroso afastamento do local de moradiados pobres. As favelas subindo pelos morros em ruelas tor-tuosas incomodavam nossas vistas e atrapalhavam os neg-cios da construo civil. Nem a policia, dizia-se, conseguiachegar por l. Removeram-nas para bem longe da nossa deli-cada viso. Mesmo as que ficaram mais perto, como Cidadede Deus, que somos obrigados a cruzar a caminho de bairrosricos da zona de Jacarepagu, so apenas atravessadas poruma estrada principal. O seu interior no alcanado pelosnossos olhos sensiveis. Desconhecemos o que l se passa,embora nossa frtil imaginao o faa, desde logo, um antrode banditismo, violncia, sujeira, imoralidade, promiscui-dade, etc. Duplamente excludos por serem "outros" e porserem "ncultos" e "perigosos", os pobres urbanos vivem,neste olhar etnocntrico e homogeneizador, o avesso da civili-zao.

    Nas minhas idas e vindas, percebi que passei a exercerum novo papel - o de mediador intelectual entre os pobrestemidos e meus temerosos iguais. Nas conversas com estes,em que essas impresses do afamado conjunto habitacionalficavam patentes, eu esclarecia os circunstantes sobre o que sepassava nas suas ruas interiores. Eu os tranqilizava com ofutebol na praa, a pipa no cu, as brincadeiras na rua, asconversas na porta de casa e no botequim. E falava tambmde suas preocupaes morais e do seu desejo de democracia,sobre a importncia que para eles tem "vencer na moral" e"trocar idias". At hoje exero esse papel.

    Ultrapassada a barreira inicial, vi-me diante de outrosrituais que reconduziam ao afastamento social, dominaode classe, hierarquia. Isso me foi gradativamente reveladono desenrolar da pesquisa pela prpria relao que ia sendoconstruda entre mim e os moradores do local.

    Quando l cheguei, no inicio do ano de 1980, as notciasnos jornais dirios eram desabonadoras da vida no conjunto,

    limitadas que estavam guerra de quadrilhas que havia se ini-ciado no ano anterior e que j deixara vrios mortos. Era oauge do que alguns de seus lideres comunitrios considera-vam como uma campanha negativa que visava desaloj-losdo local. O noticirio policial, ento, j no comportavatodas as noticias sobre a crescente criminalidade na cidade doRio de Janeiro e se espalhava por outras folhas, anunciando-se s vezes em manchetes de primeira pgina. O teor dessasnotcias era claramente sensacionalista: a crminalidade incon-tida, a violncia cada vez maior cometida durante os assaltos,o clima de guerra em que estavam envoltos os bairros pobresonde atuavam quadrilhas de traficantes de txicos. Cidade deDeus era apontada como um dos principais focos do trficode maconha e, portanto, do clima de guerra e violncia quetomava conta da cidade. Havia realmente uma guerra entreas trs principais quadrilhas de Cidade de Deus. Mas essaguerra tnha regras que tornavam a sua violncia at certoponto compreendida pelos moradores locais. A guerra eraassunto dos "bandidos" apenas. O resto da populao viviao seu cotidiano de trabalho e de luta para manter um padrode vida digno. Os jornais confundiam o que para eles deveriaestar claramente separado, alm de difam-los por no mos-trar o lado "bom", positivo, do conjunto. Isso s acrescenta-va dificuldades ao seu viver, j to prejudicado pela pobreza,e os "revoltava". Nesse contexto ouvi pela primeira vez falarem revolta e percebi que repercusses teria nas duas fases dotrabalho de campo desenvolvido por mim ao longo de 1980,1981 e, esporadicamente, em 1982.

    Na primeira fase, nos trs primeiros meses de 1980, ointuito principal da pesquisa era recolher as representaesdos moradores acerca da pobreza vinculadas ao consumo nasunidades domsticas. Nesta fase, no tive contato continuocom as pessoas entrevistadas, com exceo de trs rapazesque, alm de serem informantes privilegiados, me abriam oscaminhos e garantiam que no seria molestada neste contur-bado ambiente. Eram eles que possibilitavam a minha pas-sagem de uma rea para outra controlada por diferentes qua-drilhas, bem como a aceitao daquela presena estranha porparte dos olheiros e sentinelas das quadrilhas. Foi apenas nes-te perodo que senti necessidade de ser guiada. Logo adquiriconfiana para andar sozinha, tomando o cuidado de me

  • 14 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 15

    concentrar em apenas uma das reas em que o conjunto esta-va dividido.

    Estivesse ou no acompanhada, fui ora recebida comdesconfiana, como jornalista interessada em difamar o local,ora com esperana, como uma enviada do governo que ante-cederia os sacos de feijo e arroz que o governo iria mandarpara as famlias mais pobres. A desconfiana se explicavapelo fato de que o conjunto sofria um processo de estigmati-zao pela imprensa. Eles temiam que eu tambm estivesse cata de estrias sensacionalistas para contar e me pergunta-vam, cheios de dignidade e indignao, se eu tambm ia explo-rar a misria do povo. Essa impresso se dilua medida quefalava da pesquisa, s vezes apenas para dar lugar, junto aalgumas familias muito pobres, a um outro papel que estesme imputavam: a de funcionria do governo federal. Enquan-to me viam assim, algumas mulheres tendiam a pintar emcores fortes suas dificuldades, a enumerar os produtos de quenecessitavam para que possivelmente eu as inclusse em algu-ma lista ou fizesse uma ficha que as tornasse candidatas a re-ceber a ajuda paternalista do Estado nos moldes que a Igrejalocal lhes oferece.

    Se, por. um lado, isso era uma indicao segura da ima-gem paternalista forte do Estado que ainda impera entre osmuito pobres, por outro lado, a bem da pesquisa, era umaimpresso que deveria ser superada. E essa impresso eu sconseguia desmantelar quando os desenganava nesta expecta-tiva: eu no lhes traria nenhuma comida, nem o governo iriaenvi.la posteriormente. Com isso apareceu novo tom nasentrevistas, que no se limitavam mais monotonia das quei-xas e que comearam a falar da valorizao positiva de seumodo de vida. Poucas vezes, no entanto, fui dispensada porcandidatos entrevista que se negaram a dar informaes.Para qualquer pesquisador, esta uma experincia desagra-dvel, s vezes desanimadora, pois que nos leva a refletirsobre os efeitos da pesquisa na populao. Mas no apenasns, pesquisadores, pensamos sobre isso. Comentrios espar-sos dos que colaboraram com a pesquisa, a recusa de umhomem em prestar informaes com o argumento de que issono lhe serviria para nada e de uma mulher que me perguntoudespachada quantos sacos de feijo ganharia por isso, revela-ram que tambm os pesquisadores se perguntam sobre o sen-

    tido desta troca que a pesquisa. Se nada nos garante o direi-to de perturbar-lhes a vida no espao que eles concebem comoo de sua liberdade (a casa, o bairro), s nos resta concluir quecontamos tambm com a pacincia e a generosidade do nosso"objeto" .

    Nos que aceitaram a entrevista, a expectativa paterna.lista tinha outros desdobramentos. Eu poderia funcionarcomo uma agncia ambulante de empregos, j que nada maisparecia fazer ali alm de perguntas. Foram muitos os pedi-dos, partidos quase na sua totalidade de mulheres que procu-ravam encaminhar seus jovens filhos ao mercado de traba-lho. Vivi momentos difceis tentando lhes explicar que no ti-nha capacidade para tanto. Algumas dessas mulheres no meesconderam que eu me apequenara aos seus olhos. Outras, amaioria, continuaram generosamente a manter interesse nasminhas interminveis perguntas e na minha curiosa pessoa.

    Muito me ajudaram nisso os amigos do local por quemme fazia acompanhar, que me apresentavam s pessoas co-nhecidas e que permaneciam durante as entrevistas. Em virtu-de de sua presena, a polarizao entre a minha imagem demembro da classe privilegiada e o pobre entrevistado se diluiae mais facilmente aparecia a identidade coletiva de moradordo conjunto e de trabalhador pobre, categoria sempre pre-sente para definir a comida que comiam. Tanto foi assimque, nas poucas entrevistas isoladas que fiz, surgiu a atitude,entre os que tinham pretenso ascenso social, de procurarelevar sua posio social junto a mim falando de uma comidavariada e elaborada que no faz parte da dieta alimentarusual entre os pobres.

    Na segunda fase, iniciei o contato com as associaes demoradores e as organizaes voltadas para o lazer. Aps ficaralgum tempo junto a duas das associaes de moradores exis-tentes no conjunto, conversando, participando de reunies eentrevistando alguns membros da diretoria sobre a vida e apoltica local, resolvi dedicar-me s agremiaes carnavales-cas e aos times de futebol. Isto por duas razes principais.Primeiro, porque os membros da maior associao negaram-se a me abrir dados sobre a histria da associao que eu con-siderava indispensveis, recusa que se explicava pelos conta-tos anteriores com jornalistas e fotgrafos nos quais se senti-ram usados e traldos. Essa desconfiana em relao aos pro-

  • 16 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 17

    fissionais da imprensa s era equiparada pela desconfianadevotada aos intelectuais de um modo geral.. Queriam serseus prprios intelectuais e no precisavam de nenhuma tesede doutorado a seu respeito. Segundo, porque pude perceberque essa associao abrigava o pessoal de nvel educacionalmais alto e que no tinha muita penetrao nos meios maispobres do conjunto. Resolvi ento procurar as organizaesque atuavam ao nivel das quadras, das praas, das ruas doconjunto e que se espalhavam por todo ele.

    Quando cheguei ao pedao mais interior, e um dos maisvisados pela difamao pois abrigava uma das mais impor-tantes quadrilhas de traficantes de txicos, deparei com umbloco em formao que sara pela primeira vez em 1980, emresposta viso negativa que se fazia deles e na tentativa dealegrar o ambiente da quadra. a histria desse bloco e dosesforos da diretoria em implantar uma organizao reconhe-cida no local e campo de atividade poltica que conto nos trsltimos capitulos desta tese.

    Ali, o meu saber foi logo objeto de especial admiraoassim que declinei a minha condio de professora universit-ria, e no creio que, apesar dos esforos em mitig-Ia, tenhaconseguido me livrar dela. Enquanto l estive, era procuradapara opinar sobre inmeras coisas e muitas vezes essa solicita-o vinha acompanhada de algo mais do que respeito - eradeferncia diante da minha "cultura", inalcanvel para elese to pouco valorizada pelos seus lderes comunitrios. Assim,vi-me diante de amostras de pano tendo que dizer qual delasficaria melhor para que fantasias, diante de versos para emitirjulgamentos sobre sua beleza esttica e correo gramatical,diante de casos para decidir quem tinha mais razo. Essa foi anica instncia em que vi desenhar-se com clareza o que pudediagnosticar como deferncia pelo superior. Eles sentem umenorme respeito pelos que estudaram e conhecem os livros.No entanto, no eram cegos inteiramente para os limites domeu conhecimento. Com alegria, percebi que tendnciasopostas os faziam duvidar, criticar, zombar dos meus ensaioscontrafeitos em exercer esse poder que me colocavam nasmos. Descobri mesmo, mais tarde, pelas suas afirmaesmais ntimas, que me consultavam porque achavam que eupoderia ajud-los a descobrir de que o jri do desfile gostava.

    Na verdade, por inclinao pessoal e por opo metodo-

    lgica, fui pouco a pouco abdicando desse poder nas suasmanifestaes mais claras. Recusei-me sempre a impor ou adifundir meus padres morais e estticos, no aceitei o papelde juiz e desviei-me conscientemente de qualquer identifica-o minha com esses personagens do seu mundo, em especialcom os que "julgam" a produo cultural deles nos desfiles emeios de comunicao de massa, mesmo sabendo que a rela-o com estes apenas instrumental; trata-se de ganhar oconcurso. As reaes a essa minha postura foram divergen-tes. Houve os que, mais independentes, mal disfaravam umaponta de desprezo na sua percepo sobre os limites do meusaber. Se eu no entendia de samba, do que entendia que va-lesse a pena realmente? Houve outros que, decepcionadoscom a minha recusa, reclamaram de mim por no estar cum-prindo o que consideravam como minha obrigao. Ora, oque vinha eu fazer ali se no queria ajud-Ios a ganhar o des-file de carnaval, arrumar empregos e, finalmente, glria dasglrias, conseguir notcia sobre eles no jornal? Mas o que pre-dominou foi a atitude generosa de me aturar como um perso-nagem sem grande utilidade mas com quem gostavam de con-versar. E conversamos bastante. Gostavam tambm da idiade que iria escrever um livro a respeito deles, por sentirem-sepersonagens da histria do Brasil, conforme eu lhes dissera.

    Mas as armadilhas clientelsticas continuaram a ser arma-das para mim, embora encontre alguma dificuldade de dife-renci-las das que so armadas no meu prprio meio social.s vezes vinham to disfaradas que s me dava conta depoisdo acontecido. O antroplogo tambm tem seu dia de otrio,conclua. No me lembro de ter conseguido arrumar empregopara ningum e cedo aprendi a importncia de nada prometera essa populao j cansada de promessas no cumpridas.Mas tentei vrias vezes, contando sempre os resultados nega-tivos dos meus esforos. Afinal, no tinha o menor interesseem que me considerassem uma pessoa importante e me man-tivessem nesse papel de mediadora entre eles e o resto da socie-dade. E eu tinha deixado claro que no vinha em busca de vo-tos, que no era candidata a nada, o que me ajudou bastantea conqusitar sua simpatia. Tambm j tinha tido inmerasdemonstraes da capacidade deles.de se "virarem" que dei-xava meus tmidos esforos parecerem coisa de criana.Achei melhor assim.

  • 18 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 19

    Fui tambm muitas vezes pressionada a fazer o papel derico generoso pelas mulheres das famlias mais pobres e pelopresidente do bloco, bem como por sua secretria. Como, napercepo deles, eu tinha dinheiro, nada mais natural queexercesse a generosidade esperada dos ricos, nesta concepopauperista de redistribuio de riqueza. Recebi pedidos vela-dos de dinheiro emprestado para a passagem, de roupas ve-lhas, de presentes para as crianas da parte das mulheres, emais claros, quase imperativos, de ajudar o bloco nas suasobrigaes rituais e exibies de prestigio junto a outros blo-cos. Entre estas mulheres muito pobres, as representaes dopauperismo que ligam a assistncia social a agentes privadosera ainda forte. Mas havia algo em outros pedidos, vindos dadiretoria do bloco, que no consegui classificar. Nestes noesperavam por nenhum movimento gracioso de minha parte,encostavam-me na parede simplesmente. Como negar umpedido que vinha acompanhado da certeza na sua justeza?Assim, fui eu quem financiou a bebida quando o bloco apa-drinhou uma agremiao amiga. E quando se aproximava ocarnaval, a presso exercida pelo presidente do bloco era tan-ta que meu dirio de campo descreve por pginas e pginas aaflio que sentia por achar que no podia nem devia finan-ciar o carnaval deles. Ajudei o bloco, junto com os seus dire-tores, a pagar sua dvida de registro na Federao dos Blocos,mas me recusei a pagar o conserto das peas da bateria. E, de-pois de um perodo de certo desconforto e decepo da partedo presidente, acho que entenderam que eu no era assim torica afinal, a ponto de me tornar seu patrono. E continuarama me receber com toda simpatia.

    Esse dilogo registrado pelo meu gravador dramatizabem a situao que tive de enfrentar, independentemente deminha vontade e inclinaes, durante reunies da diretoria dobloco:

    Lcia: "Alba, no dia da festa das crianas tu vai colaborarcom doces, no vai?".Alba: "Minha Nossa Senhoral".Lcia: "Se vocno quiser colaborar com a gente financeira-mente, voc pode fazer o seu papel. Ir numa casa de doce ecomprar umas 50 caixas de cocadas" (risos).

    Lcia: "Sabe o que , Alba? Isso eu no falei com o Jairono. Isso uma idia minha que t saindo agora. Falei 50cai-xas de cocada, isso uma suposio. Porque a nossa finali-dade dar dois mil sacos de doce" .Alba: "Para as crianas?".Lcia: "Pras crianas. A gente vai fazer distribuio na qua-dra. Ai quem da diretoria, por exemplo, se vocvier com50caixasde cocadas... essa aqui a ajuda da diretoria. Esse aqui o fundamento que a gente vai fazer pra Cosme e Damio,isso vai ser da diretoria mesmo, com guaran, vela, fita. SeuGeraldo, eu no estou falando os troos direito? Se vocqui-ser dar, d. Se no quiser, voc vai se estrepar" (risos).

    Virei tambm parte de um espetculo montado para asvisitas importantes ao local. Eu era bem vestida, bem falantee amiga deles. Como iriam deixar de me exibir s "autorida-des" que apareceram em nmero cada vez maior proporoque nos aproximvamos das eleies de 1982?Os polticos vi-nham buscar s,eus votos, eles queriam receber a ajuda mate-rial dos polticos e na barganha pelo custo do voto eu entravacomo demonstrao do prestgio e da importncia deles nolocal. Deixei-me, sem opor nenhuma resistncia, usar dessemodo. No me custava nada, a no ser a obrigao de com-parecer a todas as festas a que eu era convidada e comer inter-minveis pratos de angu baiana. E nas festas eu podia obser-var de cadeira, literal e metaforicamente, os contatos entre ospoliticos e a populao local. Eu tambm os estava usandopara avanar a minha pesquisa. Era uma troca em que eu ofe-recia alguma vantagem palpvel: ajud-los a elevar o valor desuas apostas no jogo politico que travavam para consguirmelhorar as condies de vida no local.

    No todo, estava numa posio privilegiada para discu-tir, a partir da prpria relao que mantinham comigo, suaposi.o diante do poder que eu representava. Afinal, eu erauma Intelectual que tinha o privilgio de dedicar horas de tra-balho atividade de pensar sem que nada fosse" feito" nofinal dessas horas. Deparei com uma atitude ambgua da partedeles. Embora demonstrando respeito e at deferncia pelosaber que no possuam de escrever.livros, inmeras vezes merevelaram sua desconfiana quanto importncia ou utili-dade disso. Que espcie de trabalho era esse? Para que serve a

  • 20 AlBAZAlUAR A MQUINA E A REVOLTA 21

    pesquisa? Quando ficamos mais ntimos, comearam a mepressionar para "fazer alguma coisa", prestando pequenosservios na atvidade incessante de preparar o carnaval doprximo ano. Desajeitada com as mos, especialmente diantedas eficientes que possuam, limitei-me a lhes dar carona dequando em quando e a tirar fotografias deles. Nas proximi-dades do carnaval, no entanto, ajudei a desenhar a bandeira erecortei muita alegoria em papel laminado. Se percebiam opoder que meu status social me conferia, procuravam valer-sedele colocando-me no lugar do intelectual tradicional, media-dor com o mundo, ou melhor, um dos muitos mediadorescom o mundo de que se valiam. Mais tarde, porm, outrarepresentao passou a prevalecer. Como para mim a ativida-de de pesquisa no era mera tcnica de obteno de dados, vi-vemos uma relao social em que ambas as partes aprende-ram a se conhecer.

    Foi a prpria atividade de pesquisa que me livrou de sermero objeto decorativo, porm, intil, na paisagem movi-mentada dos seus guetos, ou um "comissrio" (broker) junto sociedade nacional. E foi s passada a fase inicial das abor-dagens experimentais e dos jogos de conhecimento mtuo,que pude usufruir do doce e livre convivio que s existe entrepessoas amigas. Em parte porque no era "orgulhosa" ou"metida" e no os olhava com superioridade; em parte por-que consegui convenc-los da seriedade dos meus propsitos,em parte porque tambm me divertia com eles, virei "umapessoa muito bacana". No dizer deles, e so palavras tex-tuais, eu "dera fora para o bloco desde o incio" e no era"interesseira" como os polticos que os procuravam. Confes-so que isso me gratificou enormemente. Como outros antro-plogos, J eu preferia ser amada a ser respeitada, e havia atin-gido o meu intento. Com isso, nossas trocas perderam o car-ter que rege as prestaes entre desiguais. Sem nunca ser con-siderada uma igual, fui "aceita" finalmente. Nossas trocasno eram apenas medidas de poder, nem tentativas de extrairo mximo do parceiro. A generosidade e a confiana fizeramsua entrada e ns passamos a trocar idias, objetos, pequenasdelicadezas sem preocupaes imediatas com o retorno, comoconvm a relaes de longa durao. Comi muita comidagostosa na casa dos amigos que ficavam contentes de memostrar a sua "fartura" de domingos, paguei muita cerveja

    nas refeies assim melhoradas. As reunies da diretoria dobloco, na poca em que delas fiz parte, foram regadas a.cer-veja e continuaram muito animadas. Gravei as entrevistasque me concediam como um gesto gracioso, mas deixei-osgravar seus sambas e suas canes com meu gravador e mi-nhas fitas algumas das quais ficaram por l mesmo.

    Sobr~tudo tirei muita fotografia, vrias das quais deipara eles. Aprendi muita coisa a seu respeito fotografando-osnas suas casas, nas suas famlias, na praa, na rua, arruma-dos, fantasiados, desprevenidos. Havia finalmente descober-to alguma coisa que consideravam produtiva para fazer. Ape-sar disso, jamais consegui entrar na categoria dos trabalhado-res. Mas aprendi sobre o gosto imenso que tm de aparecernas fotos - nicas representaes iconogrficas de suas pes-soas, suas imagens nas casas sem espelho em que moram -: e,portanto, o desejo de aparecerem sempre arrumados e lIm-pos. No gostam de ser flagrados. Pr.eocupam-se em n?parecerem ridculos ou de alguma maneira que os faa sentI-rem-se envergonhados. E aprendi a jamais ferir a etiqueta dassuas relaes. Uma das lies mais marcantes durante a pes-quisa foi que no se pode fotografar juntos uma mulher como marido de outra, mesmo que seja no meio da rua. Mas dei-xavam-se fotografar alegremente. Uma das impresses maisvividas da minha memria foi a corrida descarada das crian-as e a pressa mais disfarada dos adultos em se postarem sobo ngulo das minhas lentes. Acabei deixando-os posar comoqueriam e pude observar, nos seus arranjos fotogrficos,quem fazia questo de relembrar a hierarquia entre eles e emque situaes a estrutura predominava sobre a alegre misturade todos sem distines de status e prestgio. Junto s insg-nias do bloco, o presidente e a diretoria sempre deveriam ocu-par o lugar central; no meio da praa ou no bar do bloco rela-xavam a vigilncia sobre a formalidade.

    Suas representaes sobre a condio de pobre - "menino, sai dai que voc t todo sujo. Vo pensar que pobreno toma banho" - e seus preconceitos raciais - "pretoqueima a fotografia" - eram estimulados pelas fotos. E napoca em que tornou-se sinistrame.nte famoso o "Mo Bran-ca", outro nome do esquadro da morte ento em franca ati-vidade no Estado do Rio de Janeiro, tomei conhecimento deuma forma dramtica da outra funo importante da foto-

  • 22 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 23

    II

    grafia no seu meio: a de fornecer s autoridades do pais a suaidentificao. "moa, no pra dar pro Mo Branca, ?",ouvi de um jovem que parou um importante jogo de futebolnum domingo quando percebeu que eu o fotografara. E con-tinuou esbravejando ameaadoramente contra mim enquantoeu me afastava para praas onde era melhor conhecida. Quero tom fosse de brincadeira, quer fosse srio, isso no aconte-ceu uma ou duas vezes, mas sempre que eu me aventuravapor reas do conjunto onde no era bem conhecida. Em rela-o fotografia, a mesma multiplicidade de concepes, amesma polissem ia que encontrei em todos os campos de suavida social. Fotografia para mostrar quem eles so para elesmesmos, seu espelho pessoal, fotografia para os outros, suaimagem ou mscara social, fotografia que os identifica comovigiados, documento nas malhas muito pouco jurdicas doaparato policial repressvo do Brasil de hoje.

    Muitas vezes me trataram como aluna, o que me delicia-va. Aceitava o papel com prazer. Gosto de fazer perguntas,alis estava ali para isso, e quando se dispunham a ser meusinstrutores podia exercer sem empecilhos ou vacilaes o meuoficio de antroplogo. Eles me explicavam a sua "lingua"com uma enorme pacincia. Como no tinham um sistema deparentesco complicado e desconhecido, no pude satisfazerminha curiosidade com as perguntas interminveis sobre pa-rentes e mitos que deixam os indgenas enfastiados com meuscolegas etnlogos. Contentava-me com seu linguajar rico,divertido e diferente, no mais observando-os em ao. Perce-beram logo que eu gostava disso e ouvi inmeras vezes dosmais generosos - " rapaz, ensina pra moa. Ela madame,no sabe gria". E foi assim que fui aprendendo sobre as suasrepresentaes acerca da violncia, do banditismo, do poder,da policia, da politica e dos politicos.

    Chegou rpido o dia em que tambm fui inquirida poreles. Nas minhas primeiras visitas fui submetida a extensosinterrogatrios sobre a minha pessoa, minhas atividades,meus objetivos pelos lideres do local - dretores das associa-es de moradores e o presidente do bloco de carnaval queacabei estudando mais minuciosamente. Seus maiores temo-res com relao minha identidade deviam-se ao fato de car-regar comigo os mesmos objetos que identificavam um jorna-lista: a cmera e o gravador. E eu havia chegado num mo-

    mento em que o conjunto estava em evidncia na imprensaque produzia dele uma imagem negativa perante o seu pbli-co leitor. Acabavam de ser traidos, segundo me contaram,por uma jornalista de importante dirio carioca, a qual haviase aproximado deles com promessas de ajud-los a desman-char essa m impresso e que acabara de publicar mais umareportagem sensacionalista sobre a violncia em Cidade deDeus, falando apenas da guerra. Como resultado disso, sofrimomentos iniciais de severas dvidas a meu respeito por par-te dos diretores do Conselho de Moradores. Seu membromais velho, que possua importante arquivo sobre a histriado conjunto, acabou negando-me o que no havia negado jornalista: o acesso a essa fonte documental. Essas dificul-dades pessoais faziam parte da sua histria de contatos comestranhos, e eu tive que engolir a frustrao com o entendi-mento de que no podia apagar as marcas desses contatosanteriores. Acabei por conseguir impor a imagem de escritorae professora universitria, isso depois de exibir a torto e a di-reito a minha carteira profissional e o meu nico livro entopublicado.

    Depois que aceitaram a idia de que eu ia escrever umlivro a respeito deles, comearam as especulaes entre o pes-soal do bloco. Um dia descobri que corria o seguinte boato ameu respeito: eu no era nem da policia nem do jornal; masqueria escrever um livro sobre o Man Galinha, o bandido-heri da rea que mais pesquisei, morto no ano anterior emcircunstncias nunca esclarecidas. Era por isso que eu queriaconhecer toda a vida dele e do lugar para poder contar nolivro. Na verdade, j estaria trabalhando num filme que sefaria sobre a vida dele. Essa era uma representao positivado intelectual, pois esperavam que eu desfizesse uma injustiasobre a fama do rapaz e ajudasse a melhorar a imagem dolocal. Eu os representaria para o resto da sociedade. Com pe-na, desmanchei mais essa impresso e expliquei como pude oque era uma tese sobre "a vida do povo".

    Passado o perodo inicial de dvida, quando lhes mos-trei a carteirinha da universidade em que trabalho e lhes faleido meu projeto de escrever uma tese a seu respeito, meu gra-vador, de objeto de temor e desconfiana, passou a objetoquerido e procurado. Eu, minha mquina fotogrfica e meugravador rodvamos por suas casas, sedes de associaes e

  • praas, passados os primeiros momentos de indeciso sobrenossos objetivos, com grande desenvoltura. Se respeitaramsempre a mquina fotogrfica como objeto de meu exclusivomanuseio, at porque isso era necessrio para que pudessemsair sempre nas fotos, familiarizaram-se com meu gravador atal ponto que eles mesmos ligavam e desligavam o aparelhodurante as reunies e durante as gravaes musicais. E sem-pre queriam ouvir o que havia sido gravado, at mesmo algu-mas de suas entrevistas, o que me obrigou a emprestar-lhes ogravador e acabar por abrir mo de alguma das fitas. Numadessas vezes, gravaram para mim o discurso de politicos numafesta qual no compareci e entrevistaram vrias pessoas arespeito do evento. Nessas entrevistas feitas por eles pode-seperceber que fui sempre muito mais inquisitiva, insistente ecuriosa do que eles tinham vontade de ser uns com os outros.Perdeu a cincia, ganhou a simpatia.

    Nesse percurso da familiaridade com meu gravador,percebi que durante as reunies da diretoria do bloco come-aram a us-lo como veiculo dos recados enviados uns aosoutros nas suas disputas pelo poder. A secretria do bloco,mulher muito ativa e esperta, via em mim e no meu gravadoraliados potenciais contra o mandonismo do presidente e deoutros diretores. Os demais diretores justificavam suas posi-es de mando e suas prerrogativas masculinas. Eu e meu

    " gravador ouviamos. Da minha memria eles no tinham ne-nhuma certeza, mas a do meu gravador era infalivel. E elesapertavam o boto de retorno em caso de dvida para ouvir oque cada um havia dito, alm de fruir do prazer de ouvir suaprpria voz, comentando-a sorridentemente. A certa altura,percebi que eu e meu gravador tinhamos nos tornado o cen-tro das reunies quando o conflito entre eles estava mais ace-so. Quase todas as intervenes eram dirigidas a mim e as fra-ses vinham en trecortadas de "Alba, mas como estou lheexplicando" ou "Alba, no nada disso que ela disse" ou"Alba, voc no acha que ... ". Eu tinha me tornado uma ju-za sem ter nem a vocao nem o poder para gerar uma senten-a. Talvez quisessem apenas um mediador para seus confli-tos, mas nem isso ousei fazer. Escolhi o silncio e eles volta-ram seus discursos para seus mais importantes interlocutores:seus parceiros, seus aliados, seus inimigos no bloco. E eu alifiquei, atenta, registrando o que podia com a minha humana

    e nem sempre confivel memria e a infalvel do meu gra-vador.

    Nem sempre, porm, optei pela neutralidade. Quandofui convidada para participar na comisso julgadora juntocom outros visitantes ilustres e dois compositores locais,recusei-me a aceitar a ingerncia do diretor de carnaval quenos aconselhava a aceitar um dos sambas concorrentes. Espe-rei para ver como o pblico local reagia diante dos vrios sam-bas. E escolhi o que mais empolgou a bateria, os passistas e opblico assistente. Fui depois parabenizada. . .

    No auge da minha fama, pude escrever no meu dlno decampo:

    "Sou cumprimentada pelas ruas em que passo. Sensao deque j perteno ao lugar, que estou ligada a eles e daqui pordiante marcada por isso. Espanto de saber que posso me iden-tificar com pessoas to diferentes de mim socialmente. Meucarro pra, todos vo abrindo caminho, sorrindo. Os rapazescomeam a"querer saber das fotos, as crianas me tocam, mepedem, sentam no carro e eu vou para dentro da sede do blo-co. Lcia e Snia costuram. Jairo, num canto, olhando pelajanela, diz que no est bem ... 'Hoje no estou eu.' Vou paraperto das mulheres. Lcia vai logo dizendo que Jairo pensouem 'me dar urna idia' (estranho, no empregam a palavrafavor) de ir a Pilares (11) buscar no sei o que do bloco, queele teria reclamado que eu no ponho o carro disposio dobloco. Ossos do oficio. Por mais que eu diga que preciso tra-balhar na pesquisa, eles acham que a minha presena ali deveser justificada pelo que posso fazer de concreto. As expectati-vas de solidariedade por parte de quem tem mais do que eles muito grande. Solicitaes constantes de um lado, no tmnenhum pejo em pedir, isto , 'em dar urna idia'. Se colar,colou ... Sou firme quanto a Pilares: no irei. Mas no consi-go escapar da Taquara, onde Jairo quer que eu leve Jorgepara apanhar um surdo. E no h como reclamar do preo dagasolina, isso seria imperdovel mesquinharia. H que ser ge-neroso. Pobre, para eles, no l11iservel, em nenhum dosdois sentidos. Dinheiro no seu bolso no pra, nem nas trocasde cerveja nas rodadas do bar das quais s vezes participo,muito mais corno convidada pelos homens gentis do que comopatrocinadora" .

    24 ALBAZALUARA MQUINA E A REVOLTA 2l

  • 26 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 27

    Ouvi, ento, muitas conversas das quais no participavacomo interlocutora - no meio da rua, na praa, na sede dobloco, nas biroscas - e que pude registrar porque tornei-meum personagem local familiar. Ficaram acostumados com aminha presena, tal como me ensinavam os guias prticos depesquisa na disciplina de minha preferncia. Noutras conver-sas, eu era a principal ou uma das interlocutoras. Entenditodas elas, tanto as entrevistas formais e as conversas dirigi-das a mim quanto as outras apenas entreouvidas por mim,como situaes sociais. Mas as falas dirigidas aos outros ato-res dos mesmos dramas sociais eram diferentes das dirigidas amim especificamente, especialmente durante as entrevistasem que havia certa distncia com relao ao palco da ao.Ainda no calor da hora, mas permitindo o comentrio maisdescomprometido, refletido, ou ento racionalizador.

    No pude escolher um drama como fio condutor da tra-ma de suas alianas e conflitos, como me ensinara a antropo-logia politica inglesa (Gluckman, 1965; Turner, 1957; VanVelsen, 1969; Frankenberger, 1966), e que dariam a chavepara compreender a dinmica da politica local. A razo simples. Os dramas de aproximao-afastamento das pessoascom relao organizao local sucediam-se com rapidez, osconflitos dentro da diretoria e entre a diretoria e o resto dapopulao local eram dirios, as mortes provocadas pelaguerra entre bandidos e entre estes e a polcia, que formavamo pano de fundo da vida social local, iam tornando-se cadavez mais freqentes. Na verdade, era como se o oposto vales-se para o caso em questo: o acontecimento era o dia tran-qilo, sem dramas, nessa sociedade cheia de conflitos. Longeestava de poder identificar, como Victor Turner, um dramanico revelador:

    "The social drama is a limited area of transparency on theotherwise opaque surface of regular, unventful social life.Through it we are enabled to observethe crucial principiesofthe social structure in their operation, and their relativedomi-nance at different points of time" (1957:93).

    O revelado r era a presena continuada dos conflitos entre aspessoas, da coexistncia de idias contraditrias e de diferen-tes tendncias apresentadas na arena das suas disputas, s

    vezes pela mesma pessoa. A "estrutura" era a falta de mode-los claros e a tenso entre os vrios oferecidos pelas prticasinstitucionalzadas vitoriosas e as que permaneciam comoalternativas nos bastidores dos canais de comunicao dafofoca e nas discusses acaloradas, diretas e pblicas, querdurante as reunies fechadas da diretoria, quer no meio dapraa, da birosca ou da rua. Os conceitos mais adequadospara estudar esses processos eram, portanto, os de campo earena, condizentes com a flexibilidade da entrada de atoresna interao e a fluidez dos recursos e significados dos mem-bros participantes (Swartz, 1968), bem como a intercambiabi-lidade entre palco e platia .

    Ao lidar com o vasto material que acumulei ao longo dapesquisa, percebi que estava, seno diante de dados de tipodiferente, pelo menos diante de arranjos diversos da tensosempre existente, em qualquer classe social, entre o individuale o coletivo, entre o privado e o pblico, entre o prximo e odistante, entre o intimo e o formal. De um lado estavam osregistros da sua fala durante a ao e que deveriam ser infor-mados por uma teoria do ator num campo de disputas. Deoutro, estavam as entrevistas formais realizadas ao final doprimeiro ano em que l estive, quando j era bem conhecidadas pessoas entrevistadas. A atmosfera das entrevistas, queversavam sobre a poltica local e o banditismo, acabou reve-lando-se mais intima, mais pessoal. Sem a presena de maisningum a no ser eu e meu interlocutor, as entrevistas come-avam quase sempre pelo registro de dados pessoais e sinopsesde suas histrias de vida. Essa pessoalizao parece que mar-cava o restante, quando eu procurava extrair deles suas refle-xes sobre os temas momentosos de sua vida social. Comoresultado, recolhi um material muito mais rico e mais diferen-ciado do que o meu treinamento em farejar padres, regulari-dades e estruturas me deixava suspeitar. Isso no se devia auma suposta oposio entre o individuo manipulador e de-fensor de seus interesses e a cultura coercitiva, como no esque-ma malinowskiano (Malinowski, 1960; Sahlins, 1979: 97-99).Muito mais adequada para explicar esse fato a teoria deBoas sobre a natureza dos fenmenos culturais, comentadapor Sahlins (op. cit.: 85):

    "Boas argumentou mais tarde - em uma observao hoje

  • claro que aqui Sahlins tenta provar mais uma vez quea razo instrumental ou a "prtica utilitria" que critica emvrios autores so na verdade a razo cultural (inconsciente)das sociedades capitalistas disfarada em racionalidade eco-nmica e racionalizao do ganho individual. O que eu querosublinhar a diferena entre a lngua e os costumes ou a cul-tura que me leva, ao contrrio do prprio Sahlins, a criticar aidia de cdigo ou estrutura inconsciente quando aplicada sprticas sociais. Os pobres urbanos, descobri, como quais-quer seres humanos, pensam a respeito de suas condies devida e dos inmeros valores, normas, regras, significadoscom que costumam ser "educados" ou "formados" pelasinmeras agncias estatais e religiosas, bem como pelos meiosde comunicao de massa.

    Nem essas agncias de socializao eram homogeneiza-doras, j que guardam contradies entre si sem que nenhu-ma delas adquira clara hegemonia sobre as demais, nem oprocesso de socializao era totalmente fechado e eficaz aponto de eliminar a reproduo independente de sua culturade classe ou o seu bom senso, ou a sua capacidade criticadiante das estratgias de que eram alvo. Isso no quer dizerque seu pensar possa ser reduzido ao cdigo de sua tradio

    cultural autnoma, se que podemos falar num sistema cultu-ral autnomo. O desembarao com que misturavam diferen-tes tradies religiosas sem o menor cuidado com a ortodoxiato cara aos puristas, seja do candombl, seja do catolicis-mo, a fim de comporem sua viso de mundo, s pode sercomparado com a facilidade com que lanavam mo das in-meras instncias de mediao entre eles e o resto da sociedadena defesa da sua capacidade de sobreviver. Dificil, portanto,reduzir esse pensar a um sistema preestabelecido e rum decontedos culturais explicados em ltima instncia pela suaposio subalterna ou dominada no processo de produo oucomo prisioneiros de uma prtica vista na tradio estrutura-lista como mera execuo de um cdigo subjacente. Fosseporque tivessem um modelo inconsciente, fosse porque ape-nas correspondessem a uma matriz geradora de prticas masque permite a criao de novos arranjos (cf. Bourdieu, 1972),sua prtica no dispensava a reflexo. O que presenciei nopode ser entendido sem o auxilio do conceito de experincia,tal como usado por Gramsci (1974) e Thompson (1968), ou deproduo de idias (Durham, 1977, 1983; WiIliams, 1977: 13-43), embora no eliminasse totalmente as matrizes e padres.2

    De mais a mais, todos os sinais de uma crise social e mo-ral profunda estavam presentes. A descrena nos polticos, adesconfiana do governo, a falta de controle sobre os jovensrevoltados, a profunda insatisfao .com as perdas salariaissofridas nos ltimos quinze anos no revelavam um segui-mento automtico s regras da tradio. As coisas h muitodeixaram de caminhar por si e seria certamente um contra-senso afirmar que a ordem social confunde-se com a ordemnatural das coisas, como acontece nas sociedades estveis ouem que tradies aceitas conduzem hegemonia de um grupoou de uma classe social. Nem a tradio falada como justifi-cativa ou forma de legitimar usos e prticas atuais. A violn-cia cotidiana que toma formas novas e extremadas sob seusolhos, a quebra dos padres sexuais, as novas feies da pol-tica na ltima dcada, as perdas reais de poder aquisitivo colo-cam indagaes sobre o seu sentido que eles sentem neces-sidade de responder. Portanto, no possivel entender suaideologia como sendo exclusivamente ou preponderantementeregulada por rituais e prticas que se impem silenciosamente(cf. A1thusser, 1971). O conceito de opacidade da estrutura,

    -

    28 ALBAZALUAR

    clssica - que, embora a linguagem e outros costumes sejamorganizados por uma lgica no-refletida, h uma diferenaentre eles no fato de que as classificaes da primeira normal-mente no atingem a conscincia, ao passo que as categoriasda cultura a atingem, estando tipicamente sujeitas a uma rein-terpretao secundAria. A diferena desponta essencialmenteno modo de reproduo. Encaixadas em regras inconscientes,as categorias da linguagem so automaticamente reproduzi-das na fala. Mas a continuidade do costume sempre vulner-vel ruptura, quer somente pela comparao com outras for-mas, quer na socializao do jovem. O costume, conseqente-mente, torna-se um objeto de contemplao, bem como umafonte dela, e emprestamos uma expresso convencional quemal parece razovel a uma razo convencional que permaneceno expressa. A lgica cultural reaparece ento sob uma for-ma mistificada - como ideologia. No mais como um princi-pio de classificao, mas como satisfao de uma demandapor justificativa".

    A MQUINA E A REVOLTA 29

  • subentendido nesta viso, nos levaria a deformar a realidadepor eles vivida e se tornaria ela mesma ideolgica. Nem o seusimbolismo estava completamente encapsulado em objetosconcretos e aes mudas. Muito era verbalizado, explicitado.

    Do mesmo modo, a idia de que os sujeitos da pesquisa,ou melhor, suas normas e concepes de senso comum, cons-tituem obstculos epistemolgicos a serem superados teveque ser relativizada. Minhas entrevistas e algumas conversasparticulares revelaram-se como um momento de reflexo paraeles, em que a estrutura de dominao a que esto submetidostornava-se de algum modo transparente. claro que o mes-mo se passava nas conversas entre eles, algumas das quais tiveoportunidade de presenciar. Mas como se as entrevistas,por terem sido realizadas quando j havia sido construidauma relao de familiaridade e confiana mtua, pudessemser o momento de liberao desse pensamento crtico reprimi-do que me chegava como confidncia. claro tambm que,como todos os etngrafos, encontrei informantes sbios,tolos, cticos, ingnuos, cinicos, pouco ou muito experientese mais ou menos influentes. E se isso se me afigura como umreforo para a perspectiva que toma a mente como um siste-ma de processos cognitivos e no como um sistema de conte-dos previamente fixados e transmitido por mecanismos pas-sveis de aprendizagem (cf. Needham, 1963: XXV-XXIX;Hallpike, 1979: 45-51), o seu carter individual no pode ne.gar os processos sociais que observei de constituio de for-mas coletivas de pensamento e ao.

    " tudo iluso" foi uma frase que ouvi algumas vezesdurante minhas entrevistas e podia referir-se tanto ao cama.vai e s promessas dos politicos, quanto aos servios ofereci-dos pelas religies populares. Essa capacidade de distanciar.se de suas prprias prticas me deixou surpresa muitas vezes,como me surpreendeu a conscincia dolorosa que tinham desua condio de explorados, oprimidos e esquecidos. Foramlampejos, momentos de nudez que ficaram registrados nasminhas fitas e no meu caderno de campo. Esta possibilidadede que os prprios sujetos da pesquisa tomassem distncia desuas prticas me revelaram tambm a falsa antinomia entre omtodo objetivista da cincia e a cegueira engolfada na prti-ca cotidiana. No precisava, portanto, fazer de suas aes epensamentos um texto fixo diante do qual eu tomaria distn-

    cia para superar essa antinomia. O processo vivo de suas hesi-taes, dvidas, conflitos, idas e vindas s tradies popula-res, avanos e recuos diante',da dominao no pode ser cap-tado numa estrutura objetiva da qual fossem inteiramenteinconscientes. Ele supe a capacidade de distanciamento, em-bora limitada, dos prprios agentes. Nem as variaes queencontrei a respeito de suas concepes sobre o trabalho, apobreza, a politica etc. podiam ser isoladas e dissecadas foradesse extenso dilogo que travam entre si nas ruas, nas pra-as, nas biroscas, nas casas e que gostam de chamar animada-mente de "troca de idias". E em grande medida nessa trocade idias no institucionalizada, fora do controle dos apare-lhos ideolgicos da dominao. ou da disciplina, que idiastornam-se eficazes, aes incorporadas, reputaes legitima-das e politicas aceitas. Ou, alternativamente, negadas. Estecontinuo comentrio sobre o que se passava no local, ,na cida-de, no governo e na campanha eleitoral foi que me permitiupensar num processo de constituio de uma cultura de classeautnoma at certo ponto, e nunca una, homognea e com-pletamente sistematizada.

    "Hoje ningum respeita nada, nem o papa", "Acabouo respeito" foram frases ainda mais comuns. Neste mundoque perde seu encanto a passos largos, na descrena bastantegeneralizada de seus governantes, os pobres de Cidade deDeus l ficaram a lutar por manter a esperana. Continuam afreqentar hospitais, escolas, igrejas, tcrreiros, quadras desamba, campos de futebol e o que mais houver, bem comocontinuam a criticar os servios oferecidos nessas organiza-es. Mas esta sua fala ininterrupta que meus ouvidos e meugravador registraram continua ainda em grande medida silen-ciada para o resto do pais. Talvez por isso alguns me disseramvrias vezes que os pobres s podem falar e protestar quandovotam. E, por isso, a esperana de mudar ainda continua emgrande medida a ser depositada no voto, especialmente naeleio do poder Executivo.

    Quanto a mim, aqui estou diante dos problemas ticos epoliticos de um pesquisador. Aps passar tanto tempo juntoa eles, bisbilhotando suas vidas, arrancando informaessobre seus conchavos, barganhas, 'conflitos, lutas e revoltas,deixei-os ainda mais livre para dedicar meu tempo reflexo.Tomo suas entrevistas como um texto que me facilita o dis-

    ,

    30 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 31

  • 32 ALBAZALUAR

    tanciamento. Debruo-me sobre a "troca de idias" fixadano meu dirio de campo para arrancar seus sentidos, sua poli-fonia, que, por algum motivo, temo reduzir ou empobrecer.Penso sobre eles em seu lugar. Um privilgio, sem dvida,que faz parte desse produto. A prerrogativa de estar afastadada produo material de bens, que eles executam por mim, afinal o que me possibilita a conquista de titulos e honrarias.Espero que, ao menos, esta tese influa nas politicas a eles des-tinadas.

    Notas

    , Eduardo Viveiros de Castro (1977).2 Refiro-me, claro. s concepes que Gramsci desenvolveu sobre oncleo de bom senso que faria parte da viso de mundo ou senso comumdas classes subalternas. Este ncleo, de um lado, estaria fundado sobreuma certa dose de experincia e observao direta da realidade e, deoutro, nas concepes religiosas, na ideologia dominante e nas tradiesreinterpretadas (Gramsci, 1974; PioUe, 1970). isso que permite a outrosautores falar de conscincia prtica equacionada atividade e no pas-sividade da reproduo cultural automtica. Na teoria antropolgica, amesma problemtica surge na discusso do conceito de conscincia cole-tiva de Durkheim. Segundo alguns autores, Durkheim confundiu a mentehumana como um sistema de processos cognitivos com um conjunto derepresentacs, tomando as categorias de pensamento como sendo de ori.gem scio-institucional, sem dar conta do processo de sua constituio(Needham, 1963; Hallpike, 1979).

    As teorias sociaise os pobres: os

    __ pobres como obj_et_o__Quando cheguei ao conjunto habitacional de Cidade de

    Deus' para estudar as formas de organizao das classes po-pulares, deparj:i com uma populao bastante heterognea.Porm, afora um pequeno ncleo de classe mdia - pessoasde nvel educacional alto e que exerciam ocupaes no-ma-nuais, tais como empregados em escritrio, laboratoristas outcnicos, alm de estudantes que estavam na universidade oupretendiam para l se encaminhar - os moradores de Cidadede Deus, em sua grande maioria, usavam como categoria deauto-referncia ora a de "pobre", ora a de "trabalhador". Eentre eles se encontravam tanto operrios semi ou no espe-cializados e empregados do tercirio com pouca qualificaoquanto autnomos do setor servios, continuos, guarda-livros e uns poucos pequenos funcionrios pblicos.

    Quem so esses "trabalhadores" "pobres"? De umponto de vista meramente descritivo, seriam todos aquelesque esto includos nas faixas de renda mas baixas (at 3 a 5salrios minimos) ou os que exercem as atividades pior remu-neradas da economia nacional. Entre eles esto obviamenteos operrios e assalariados do tercirio semi ou no qualifica-dos e que recebem baixos salrios em virtude da politica sala-rial vigente, bem como os trabalhadores por conta prpriapouco ou no especializados, quer sejam estabelecidos ouno. Esta seria a classificao objetiva e exterior, que apenasos inclui nas mesmas classes estatisticas, tal como acontece na

  • 34 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 3l

    literatura tecnocrtica. Mas isso no nos permite trat-losnem como uma identidade social, o que pressupe mecanis-mos de auto-reconhecimento, nem como classes populares, oque implica trat-los como ator politico dotado de certa auto-nomia no campo das disputas politicas. A dificuldade destaltima concepo que, como ator politico, as classes popu-lares apresentam uma multiplicidade de atitudes e comporta-mentos mesmo nos momentos mais decisivos ou dramticos,como no perodo eleitoral, em que so solicitados a "falar" efazer escolhas. Suas organizaes, quer sejam elas reivindica-trias ou recreativas, se que podemos fazer claramente taldistino, so igualmente cortadas por tenses entre "proje-tos" politicos muito distintos. Como categoria de auto-iden-tificao, no h dvida de que "trabalhador pobre" tomacomo referncia uma certa homogeneidade nas condies devida. Aqueles que se identificam enquanto trabalhadorespobres e se reconhecem, segundo certos smbolos, como umigual entre vizinhos, parentes, colegas e conhecidos, referem-se justamente a essa homogeneidade social demarcada peloslimites da renda, criada na convivncia nos bairros pobres,reinventada nos diferentes arranjos que as vrias tradies eopes culturais permitem e das quais parecem valer-se sempreocupaes com a ortodoxia ou com escolhas definitivas.Tudo se passa como se a relatixa excluso que os "pobres"sofrem nos campos educacional e poltico terminasse porfaz-los compartilhar de alternativas culturais, religiosas epoliticas cuja unidade est na presena de um mesmo conjun-to heterogneo mas limitado de prticas e projetos que po-dem ser utilizados de modo alternado, sucessivo ou simult-neo. Desta pluralidade de prticas participam tanto os oper-rios quanto os biscateiros, tanto os homens quanto as mulhe-res e, em certa medida, tanto os jovens quanto os adultos.

    Por isso mesmo, escrever sobre os "pobres" urbanos noBrasil de hoje uma dupla ousadia. Primeiro, porque os"pobres" constituem a maior parte da populao urbana,podendo apenas ser um sinnimo para outra palavra no dis-curso politico nacional: o povo. Segundo, porque os "po-bres" enquanto categoria social exerceram e exercem notvelfascnio sobre os pensadores daqui e dalhures, sendo alvo deteorias a respeito de seu papel politico e econmico em socie-dades em desenvolvimento.

    Como objeto de reflexo das teorias sociais, os "traba-lhadores pobres", embora no centro das atenes de muitos,no ocuparam o lugar da renovao ou da transformao.Ao contrrio, sobre eles caiu grande parte da culpa pela ausn-cia de mudanas significativas e pela conseqente estagnaopolitica e econmica nessas sociedades. Sua conscincia foidissecada e qualificada em nome dos anseios por uma socie-dade melhor. E a concluso, salvo variaes menores, temsido a de que sua pobreza coloca obstculos grandes suaao coletiva e autnoma, enquanto grupo social organizado,e sua viso critica da sociedade, cujos grupos dominantesempreendem em relao a eles inmeras estratgias de domi-nao. Dai, os "pobres" serem presas usuais do prprio ime-diatismo de suas reivindicaes, da fragmentao de seusinteresses em demandas paroquiais e das crenas irracionaisna sorte ou em lideranas carismticas como soluo de seusproblemas. Nas dicotomias presentes nos estudos sobre o seupapel politico, aos "pobres" urbanos coube carregar o pesodo fisiolgico em oposio ao ideolgico, do tradicional emoposio ao moderno, do atraso em oposio ao avano, dopessoal particularista em oposio ao impessoal universal e,acima de tudo, do material imediato em oposio aos ideaismais amplos, gerais e prementes da sociedade nacional.

    A presente tese nasceu de certo desconforto pessoal comessa viso disseminada nos meios intelectuais que freqento.Da Antropologia ficou o embarao com esta viso dos "po-bres" por lhe ser exterior e rotuladora,. portanto etnocntri-ca, que mais parece obedecer aos mecanismos, to conheci-dos nos estudos antropolgicos, da construo de fronteirasentre ns e os outros. Nossos outros, os "pobres", parecemter sido vitimas da nossa pressa de marcar posies e nos dis-tinguirmos, como elite, com as marcas j purificadas do querejeitamos como menor, inferior, inculto, tradicional e atra-sado. Da histria social inglesa, de cujos estudos me servireiao longo do percurso deste texto, ficaram-me as crticas eexemplos elucidativos de processos semelhantes que ocorre-ram com a classe operria inglesa, mesmo em perodos com-bativos de sua histria.

    A tentativa aqui feita de avaliar como as chamadas ca.madas populares, classes populares urbanas, "pobres" urba-nos, populao de baixa renda ou simplesmente "povo"

  • "Eles no vem mais longe que um prato de sopaEles no acreditam em nadaS se estiver em sua moIsto quando acreditam na moVivendo na ignorncia do que ser o amanhEles no saem do terra-a-terra mais rasteiroS a fome lhes fala de igual a igualPalavras e cantorias no chegam profundidadeA que eles desceram.'"

    tm sido tratados por autores de diferentes tendncias, estlonge de ser completa. Limito-me apenas a alguns autoresque analisam principalmente a sua cultura e as suas prticaspoliticas com nfase na eleitoral, que tambm tive a oportuni-dade de estudar. Nestes, o modelo do moderno proletariadourbano, tal como se desenvolveu na Europa e tal como foiconstruido teoricamente pelos pensadores que o defenderam, a referncia principal em termos da qual pensa-se o estgioatual da conscincia popular. Quem lembra dos versos decep-cionados que Brecht pe na boca de religiosos que tentamevangelizar trabalhadores europeus pauperizados?

    Esses versos poderiam servir de epigrafe aos textos sobrea cultura da pobreza, sobre a desagregao, o particularismoe a ausncia de conscincia de classe nas camadas popularesurbanas, textos estes que tm servido de embasamento paraas dicotomias entre o "clientelismo" e a "participao demo-crtica autnoma", entre a "demanda fisiolgica" e a "ideo-logia", entre o interesse individual e o "coletivismo", fican-do para os trabalhadores pobres o papel da massa passiva,desorganizada e dcil manipulao politica. Paradoxalmen-te, os que buscam manifestaes de bom senso entre os po-bres farejam ai valores de novo tipo, prprios de um proleta-riado empobrecido cujo compromisso primeiro com a suasobrevivncia e, portanto, um legitimo comportamento clas-sista. Os perigos dessa passagem apressada das condies ma-teriais de vida para as manifestaes culturais, os valores mo-rais e as prticas politicas ser um dos temas deste trabalho.

    Dado que a categoria "pobre" engloba diferentes seto-res da populao, mesmo que nos limitemos populaourbana, necessrio pensar como a distino terica entre

    37A MQUINA E A REVOLTA

    estes setores tem sido usada para explicar a sua atuao poli-tica conjunta. A conhecida distino que Marx faz entre olumpen-proletariado, o exrcito industrial de reserva e a clas-se operria ativa ofereceu um veio bastante explorado nasexplicaes dadas ao populismo e ao clientelismo, seja pelolado da adeso irracional a um lider carismtico, seja peloaspecto da satisfao de demandas imediatas e particularesque este possibilita. como se a presena do lumpen e dopauper (aqui representado pelo migrante rural marginaliza-do) acabasse por contaminar todo o conjunto dos trabalha-dores pobres, servindo como critrio para caracterizar suaideologia (ou ausncia de) e seu comportamento politico. Oprprio Marx, num texto que serviu de inspirao para mui-tas anlises posteriores, parece ter sido ctico quanto ao papelpolitico dos que chamou de desclassificados, despojos, refu-go do proletariado e de outras classes sociais, sem no entantoprecisar os limites dessa massa indefinida:

    " ... A pretexto de fundar uma sociedade beneficente, o lum-pen-proletariado de Paris fora organizado em facOes secre-tas, dirigidas por agentes bonapartistas e sob a chefia geral deum general bonapartista. Lado a lado com rous decadentes,de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado comarruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vaga-bundos, soldados desligados do exrcito, presidirios liber-tos, forados foragidos das gals, chantagistas. saltimbancos,[auarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, marquereaus,donos de bordis, carregadores, lilerali. tocadores de realejo,trapaceiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos -em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atiradade ceca em meca, que os franceses chamam la Boheme; comesses elementos afins, Bonaparte formou o ncleo da Socie-dade de 10 de dezembro. 'Sociedade beneficente' no sentidode que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam ne-cessidade de se beneficiar s expensas da nao laboriosa; esseBonaparte que se erige em chefe do lumpen-proletariado, ques aqui reencontra, em massa, os interesses que ele pessoal-mente persegue, que reconhece nessa escria, nesse refugo,nesse rebotalho de todas as classes a nica classe em quepode apoiar-se incondicionalmente, o verdadeiro Bona-parte ... (Marx, 1974: 372).

    ALBAZALUAR36

    ,I

  • A leitura cuidadosa deste texto torna dificil distinguirentre o que Marx entende como o /umpen, o exrcito indus-trial de reserva e a superpopulao relativa, problema. que seagrava significativamente em pases como o Brasil, onde osempregados do tercirio, os biscateiros ou trabalhadores porconta prpria tm peso considervel na populao economi-camente ativa, especialmente nas faixas de renda mas baixas,e o trabalho industrial caracterizado por ser irregular e rota-tivo.

    Mas o prprio Marx oferece, em outros textos, umaconceituao clara que permite diferenciar o /umpen da super-populao relativa, sendo que apenas a primeira categoria excluida do conjunto dos trabalhadores por ser de vagabun-dos ou criminosos. A superpopulao relativa aos meios deproduo composta de trabalhadores desempregados porserem migrantes rurais, de homens excluidos das empresasquando atingem a idade madura e substituidos pelos jovens,bem como de trabalhadores ativos cuja base de trabalho muito irregular e que tm um nivel de vida abaxo do nvelmdio da classe operria (Marx, 1933, voI. I; Cardoso, 1977:154-156). O pauperismo oficial, definido legalmente, incluios "ltimos despojos da superpopulao relativa"; vivas,rfos, incapacitados para o trabalho, desempregados delonga data. O pauper , em suma, o miservel (Marx, op. cit.,voI. 11;Cardoso, op. cit.: 149). Entretanto, se essa separaoentre a classe operria, o exrcito industrial de reserva e opauper justifica-se teoricamente, ela perde a nitidez quando ofoco a constituio da prpria classe em dada formaosocial. Esta passa pela famlia dos trabalhadores e suas de-mas organizaes, bem como pelas definies legais dos ca-rentes com direito assistncia e pelo significado da pobreza.O rfo pode ter sido abrigado na famlia de trabalhadoresativos, o incapacitado para o trabalho ou o trabalhador ma-duro e desempregado podem ser presidentes de um time defutebol ou de um bloco do qual so membros os trabalhado-res ativos. E isso tem certamente conseqncias para as iden-tificaes e alianas do trabalhador desocupado e do pauper.De mais a mais, na Inglaterra, que constitui o modelo paraessa distino terica, foi a ao do Estado que efetivou aseparao entre o pauper e o trabalhador, j que aquele con-tara com a assistncia de organizaes pblicas e privadas at

    a Nova Lei dos Pobres de 1834. Esta suprimiu alguns privil-gios concedidos pela ajuda oficial aos definidos legalmenteenquanto pobres. O asilo para os pobres (workhouse) torna-va, por causa dessa ajuda, a vida destes, em certos aspectos,melhor do que a dos trabalhadores ativos, o que provocoupresses para que fosse modificada.

    Muito diferente a situao dos trabalhadores em pasescomo o Brasil, onde a muito baixa remunerao do trabalhoe a assistncia estatal limitada e ineficiente, que nunca assu-miu nem a forma da organizao asilar dedicada aos mais ca-rentes - como na Inglaterra do sculo XIX - nem a formado welfare system - como nas naes desenvolvidas, acaba-ram por fazer surgir um grande contingente de trabalhadorespobres, quer fossem operrios, quer fossem assalariados dotercirio, biscateiros ou trabalhadores autnomos. O concei-to de trabalhador marginal ou massa marginal, usado paradar conta desta realidade nos pases de economia chamadadependente, j foi suficientemente criticado por seu apelo disfuncionalidade em relao ao processo de acumulaocapitalista e desintegrao social do prprio trabalhadormarginal (cf. Oliveira, 1977; Kowarick, 1975; Cardoso, 1977;Paoli, 1978). Mas se o processo de acumulao de capital nospases de economia dependente parece ter sido desvendadonesta discusso, o mesmo no se pode dizer do processo deconstruo de um ou mas atores politicos entre os trabalha-dores urbanos, cujo entendimento anda parece padecer dacomparao negativa com a classe operria organizada. Porcontraste, a massa dos trabalhadores urbanos ainda apre-sentada como "manipulada", "passiva", "desintegrada","Inediatista", "primitiva", "pr-politica". Um diagnsticono mnimo demasiadamente generalizador, dadas as ambi-gidades e tenses observveis nas prticas politicas dos tra-balhadores pobres, existentes alis tambm na classe operriaorganizada.

    O uso alternativo do conceito de classes populares resol-ve o problema da categorizao operrio industrial/traba-lhador marginal, rgida demas para dar conta da realidadedos trabalhadores urbanos que passam de uma posio aoutra no processo de produo e cujas famlias comportamtrabalhadores de vrias categorias, mas deixa aparecer a faltade um conhecimento mais preciso sobre as formas de articu-

    38 ALBAZALUAR A MQUINA EA REVOLTA 39

  • lao entre as vrias categorias de trabalhadores que nos per-mitiriam falar de classes populares urbanas. Buscar umaidentidade comum a eles como "moradores subalternos" e aarticulao de seus interesses comuns como produto da ques-to urbana na qual se reduz a questo social, articulao estaproporcionada pelos movimentos de moradores (cf. Moiss,1979), corre o risco de tratar exclusivamente das demandasque opem as associaes de moradores ao Estado. Destasficam excluidas, por coerncia terica, as prticas clientelis-tas, paroquiais, "fisiolgicas" que tambm so acio~adascomo estratgias para melhorar as condies de moradIa, oumesmo os rituais de solidariedade da vizinhana, cuja articu-lao com a politica bem mais distante. Aqui tambm ocor-re a mesma tendncia, denunciada anteriormente, de exage-rar a politica de confronto com o Estado que tais demandaspodem provocar e buscar obsessivamente a racionalidadeclassista nas prticas dos trabalhadores pobres. No outro mo-vimento da lupa terica, em contraste, est a tendncia opos-ta de no ver nestas prticas seno manifestaes de aliena-o, espontanesmo imediatista, particularismo, etc. De maisa mais, as demandas que podem unificar os membros dasclasses populares enquanto consumidores, dada a politica depreos adotada pelo Estado, ou como trabalhadores que per-cebem baixa remunerao por um esforo prolongado de tra-balho, dada a politica salarial vigente, so esquecidas emfavor da questo urbana que invade e monopoliza a cenapolitica. Estas politicas, no entanto, criam uma identidadecomum, sempre presente em sua fala, e a base para uma pos-svel aliana politica entre assalariados e autnomos que sereconhecem como "trabalhadores pobres".

    Nas tentativas de sair dos impasses colocados pelo ma-peamento e avaliao das manifestaes culturais da pobre-za, uma soluo tem sido bastante influente, tanto nas cor-rentes que tentam caracterizar os pobres como o ltimo bas-tio do tradicionalismo no Brasil, isolando-os e criando fron-teiras ideolgicas entre eles e o resto da sociedade, como nascorrentes que fazem, dos pobres, participes plenos da culturabrasileira, seja como parte harmoniosamente integrada a ela,seja como meras criaturas da dominao. a que aciona ter-mos gerais e abstratos tais como o paternalismo, o individua-lismo ou o tradicionalismo da sociedade brasileira, termos

    que so solicitados a entrar na cena intelectual quer se tratede explicar o baixo nivel de organizao da populao pobre,quer de caracterizar a cultura brasileira desde os primrdiosde sua histria.' A referncia a universais abstratos obriga-tria e substitui a busca dos significados da ao politica dospobres a partir da observao direta do seu comportamento,do que dito durante a ao e do seu comentrio posterior(cf. Durham, 1977).

    Na corrente da chamada "cultura da pobreza" afirma-se que, devido situao dos pobres numa sociedade estrati-ficada e altamente individualista, como a capitalista, esses de-senvolvem uma cultura exclusiva que se caracterizaria pelominimo de organizao acima da familia e pela falta de inte-grao s instituies da sociedade mais ampla. Isto se mani-festaria numa propenso apatia, falta de interesse na poli-tica, ausncia de cultura de classe, e se explicaria por umapobreza cultural devido ao desconhecimento do estoque sim-blico da sociedade abrangente. Implicita nesta postura esta impossibilidade de que produzam um estoque simblicoprprio. O perigo disso, como bem apontaram seus criticos(Valentine, 1972; Leacock, 1970), reside em supor que a po-breza tenha o mesmo significado em diferentes partes domundo, onde a populao pobre tem origens tnicas muitodistintas. Suas caracteristicas objetivas, aquelas que so regis-tradas em censos e tabelas estatisticas, tais como a ausnciada figura paterna nas familias, podem muito bem dever-se aprocessos culturais distintos e ter, portanto, significados tam-bm distintos para os que vivem a pobreza. Nesse caso, o ape-Io ao conceito de desorganizao social para explicar suafamilia "desagregada" nada mais seria do que manifestaoda estranheza, dos que escreveram sobre a pobreza, diante decostumes diferentes do seu.' Alm do mais, a pobreza umconceito comparativo, e sua qualidade relativa aos outrosgira em torno da desigualdade social. Esta no uma conse-qncia de sua cultura, mas o resultado de politicas pblicasque provocam uma real privao material e uma real exclusodos pobres nos campos ocupacional, educacional e politico.O que os exclui no , portanto, o seu propalado fatalismo,desmotivao para o trabalho, apatia e resignao, nem a suaexcluso no campo educacional conseqncia de uma su-posta restrio no seu estoque simblico. Sublinhar a cultura

    II

    40 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 41

  • 42 ALBAZALUAR A MQUINA E A REVOLTA 43

    da pobreza neste caso termina por desviar a ateno das pr-prias relaes de poder e por alimentar as politicas pblicasque perpetuam a desigualdade. Por outro lado, na culturados pobres concebida como o negativo ou o desconhecimentodo estoque simblico erudito, no h lugar para as manifesta-es culturais desenvolvidas fora dos aparatos educacionaisoficiais.

    Uma sada para os impasses colocados pela cultura dapobreza foi ressaltar os traos culturais que diferenciam ospobres de diferentes paises e os aproximam das outras cama-das sociais das sociedades de que so parte (cf. Valentine,1972: 120-123). Os criticos brasileiros da cultura da pobrezachamam a ateno justamente para isso (Valladares, 1978;Berlinck, 1977). Apesar de admitirem um relativo isolamentocultural dos pobres, esses autores afirmam que as formas deorganizao que se baseiam em relaes de tipo pessoal einformal na verdade no caracterizam uma cultura prpriados pobres, mas so decorrentes da natureza dos padres deinterao na sociedade brasileira. O problema que, ao foca-lizar a dinmica cultural brasileira, acaba-se por pensar asrelaes entre as classes subalternas e as dominantes segundoos termos gerais do "paternalismo", "personalismo" e "indi-vidualismo", perdendo-se de vista as tenses e conflitos entreelas que se manifestam tambm nos usos e reinterpretaesdas mesmas tradies culturais, bem como a possibilidade deestarmos no diante de uma "opo" cultural cristalizada earraigada nos hbitos da populao pobre, mas sim de estra-tgias para canalizar recursos possveis dentro do quadroinstitucional em dado momento histrico.

    Se essas colocaes tm o mrito de denunciar a tenta-tiva de transformar os pobres em "outros" da nossa socieda-de, mostrando a disseminao de tais padres nas classessuperiores, tais conceitos no podem servir para caracterizara sociedade como um todo, pois dizem pouco sobre a nature-za e as inslituies do poder e do Estado, sobre as formas depropriedade, sobre a cultura das classes subalternas, sobre osmodos de explorao do trabalho.' A descrio final da socie-dade acaba reproduzindo a viso que se tem dela desde aci-ma, vale dizer, garantir sua hegemonia baseada nas relaes"calorosas" e pessoais das relaes familiares patriarcais,estendendo-a a toda a sociedade. No mesmo ato elimina-se o

    conflito, a reao dependncia e as manifestaes de auto-nomia das classes populares. Com efeito, pensar assim signi-fica admitir que essa ideologia impede a mobilizao e a orga-nizao coletivas dos trabalhadores pobres ur-banos e que, naausncia de conscincia de classe, este comportamento perso-nalista e individualista deve ser entendido como o resultadodo processo histrico brasileiro, seja pela entrada recente detrabalhadores de origem rural nos centros industriais, sejapela sua origem a ser encontrada no Brasil colonial.

    Na mesma direo integracionista, mas com outro senti-do poltico, criticas suposta marginalidade das populaesfaveladas nas grandes cidades brasileiras negam que estas secaracterizem pelo isolamento, desorganizao interna, tradi-cionalismo, cultura pobre, parasitismo econmico e apatiapoltica. Conclui que, ao contrrio, os favelados so social-mente bem organizados e coesos, fazem amplo uso do ambien-te urbano e das instituies deste, economicamente so traba-lhadores rduos e timos consumidores, politicamente "tmas aspiraes de uma burguesia, a perseverana dos pioneirose os valores dos patriotas", no sendo nem radicais nem ap-ticos (Perlman, 1977). Trata-se, portanto, de sublinhar a inte-grao completa dos favelados em todos os niveis da socie-dade.

    Assim posta a questo, a inteno de desmanchar asfronteiras arbitrrias entre as classes prsperas e os pobresurbanos "marginais" acaba por criar, nessa tentativa de des-truir o que Perlman chamou de "mito da marginalidade",uma idia talvez falsa da identificao positiva dos pobrescom a sociedade nacional na sua verso da classe dominante.E a idia de que existe uma cultura brasileira una, indivisa edisseminada em todas as manifestaes da vida social de todasas classes e categorias de pessoas na sociedade brasileira , nomnimo, discutivel. Ao se denunciar o processo de estigmati-zao das populaes pobres, especialmente os favelados ehabitantes de conjuntos da CEHAB, acaba-se por negarqualquer sinal de alteridade nas concepes e prticas cultu-rais destes, por oposio aos seus outros. Ao apresentar ummodelo uno e coerente de sua ideologia, destri-se a diversi-dade e tenses internas que marcam qualquer sistema culturalde qualquer sociedade e de qualquer classe social, tornando-nos cegos para as divises, conflitos e tenses a esta categoria

  • 44 ALBAZALUAR AMQUINAEAREVOLTA 45

    especialmente heterognea dos pobres urbanos. Em nome daurgncia de passar-lhes um diagnstico, decide-se se so radi-cais ou conservadores, tradicionais ou modernos, passivos oucontestadores, clientelistas ou classistas.' Ao sublinhar suadependncia em relao aos que dominam a sociedade, ma-neira de afirmar sua integrao sociedade, afasta-se no mes-mo ato a possibilidade de que possuam formas autnomas deorganizao e pensamento. Isso me parece vir acompanhadode etnocentrismo, que se intromete por debaixo do pano nasafirmaes de que os pobres urbanos so organizados social-mente porque so capazes de construir organizaes burocr-ticas do gnero conhecido pelas classes mdias letradas e"integradas". Ou que so ativos politicamente quando parti-cipam do jogo parlamentar democrtico, tal como definidopelas instituies polticas e pelos organismos partidrios quebuscam a direo da sociedade, desconhecendo suas formasprprias de protesto diante do sistema ou do Estado ou cha-mando-as de irracionais, cegas e espontanestas.' Agora preciso inverter o ponto de vista e pesquisar qual a viso dasociedade e da poltica desde baixo.

    Por terem recortado o seu objeto de forma a tratar ogrupo escolhido e habitantes de favelas ou conjuntos habita-cionais no seu meio social, denunciando o processo de estig-matizao que sofreram e sofrem, esses estudos acabam porrelegar ao segundo plano os mecanismos institucionais quepermitem ou entravam o relacionamento entre os trabalhado-res pobres e as demais classes sociais ou o Estado, modosestes divergentes conforme o parceiro em questo. Fica-nos oparadoxo final de Perlman quando conclui simultaneamenteque os pobres urbanos so integrados em todos os nveis dasociedade brasileira, embora marginalizados e no marginais,excludos e no apticos, explorados e no parasitrios. Comopoderiam, de fato, pessoas expostas a tal tipo de discrimina-o e explorao permanecer completamente simpticas,cegas e dces ao sistema que as exclui e explora?

    Tanto a recusa de pensar a atual situao dos pobresurbanos excludos, marginalizados e estigmatizados como ummomento nas relaes entre as classes, quanto o recurso sconcepes gerais que se aplicam a um amplo espectro desociedades onde possvel identificar traos paternalistas epersonalistas (onde no os h?), impede a busca do que existe

    de especifico no modo brasileiro de dizer as relaes entre do-minante e dominado, bem como do momento agora vividono processo de transformao por que passaram e passamestas relaes. Assim tambm o diagnstico de sua posiono espectro poltico-ideolgico baseado em pesquisa de opi-nio num dado momento no leva em conta nem os constran-gimentos sua fala no momento da entrevista, nem a tensoentre as idias divergentes que fazem parte da sua viso dapoltica e que podem estar sustentadas na relao entre osseus lderes e eles mesmos.'

    Tais consideraes gerais e abstratas sobre a sociedadebrasileira, que marcam a oscilao entre a "marginalidade" ea "incorporao" da populao pobre nos estudos culturais,no so acionadas nos estudos sobre o populismo que tam-bm trataram de entender o lugar que as "massas" urbanasocupariam na politica e que, desde logo, focalizam o quadroinstitucional e os limites impostos atuao poltica. Termousado para descrever fenmenos dspares, desde a idealizaodo rural na qual,o povo o repositrio da virtude moral e daverdadeira cultura nacional at a atividade demaggica dopolitico urbano em busca de votos, o populismo tem sido sin-tetizado como a ideologia poltica que ressalta o papel dolder como protetor e defensor das massas em detrimento desua organizao autnoma. Igualmente importante nessa ver-so mais moderna seria a imagem da sociedade dividida entreos "grandes", que controlam o sistema em beneficio prprio,e os "pequenos", que sofrem as injustias. Como propostapoltica, o populismo no seria radical: apenas advogaria aunio de todos contra os oligarcas, corrigindo distores dajustia social (cf. Nelson, 1979; lonescu, 1970; Worsley,1970). No Brasil, entretanto, o populismo foi pensado comouma estratgia para estabelecer a ligao entre as massas urba-nas e o Estado que se fortalecia e se libertava das oligarquias(Weffort, 1965; Soares, 1965; Debert, 1979). Nascida de umacrtica s posies isebianas que tomam o populismo comofenmeno no ideolgico e, portanto, pr-poltico e pr-capi-talista (Jaguaribe, 1962; Ramos, 1961), a abordagem dos tra-balhos mencionados recusa-se a tomar essa dicotomia denun-ciando sua filiao s oposies entre o tradicional e o mo-derno que usam o modelo poltico europeu e norte-americanocomo pice do desenvolvimento e ponto final da evoluo

  • poltica. Preocupados com o carter do Estado e com a ideo-logia realmente existente nas "massas urbanas", estes estu-dos tratam das mediaes que se estabelecem entre aquele eestas no chamado perodo populista, prncipalmente atravsda anlise das estratgias ou dos discursos dos lderes populis-tas. A questo que buscam responder por que tais discursosforam eficazes. Qual seria, no entanto, a interpretao queesses autores fazem do significado da pobreza e o lugar pol-tico dos trabalhadores pobres como identidade social exis-tente nos meios populares?

    Um dos trabalhos de maior repercusso sobre o populis-mo, o de Weffort (1965, 1965b, 1966) nega a continuidadeentre o fenmeno do coronelismo e o do populismo, recu-sando-se portanto a entender o ltimo dentro de qualquerperspectiva da cultura brasileira que, como um todo, favore-ceria os laos pessoais de dependncia. No entanto, sua ava-liao acaba vindo carregada de termos como paternalista,carismtico irracional ou mesmo individualista, especialmentenos textos de 1965. Assim, Weffort de inicio ressalta a ruptu-ra que o populismo representa com relao ao coronelismo.Ao contrrio do que ocorria neste ltimo, em que o poder po-ltico do chefe baseava-se numa relao de confiana, lealda-de e de dependncia econmica com seu seguidor, as massasafeitas ao populismo estavam "livres de qualquer coeroeconmica e social daquele tipo" (Weffort, 1965). Essas mas-sas so ento pensadas como um agregado heterogneo deindivduos que aderiam ao lder por suas qualidades pessoaisreais ou imaginadas. Liderana carismtica que, atravs doseu exercicio, conferia o carter politico, e no econmco esocial, da relao liberado-lder, este tambm uma represen-tao ou exaltao do poder pblico.' No entanto, como jassinalou Debert, essa massificao no teria advindo da pul-verizao das solidariedades grupais dos setores de trabalha-dores urbanos j integrados ao processo industrial, "mas daascenso vida urbana e aos processos polticos das camadaspopulares do interior e do campo" (Debert, 1979: 2). Emsuma, era o trabalhador de migrao recente e "marginal"ao sistema industrial moderno, o mais propenso a cair nasmalhas da manipulao populista. Supondo que o operriointegrado ao sistema industrial fosse "satisfeito" e portantomenos afeito pregao populista que sublinha a satisfao

    de interesses individuais, Weffort acaba por traar um retratoambguo do populismo: de um lado, satisfao de reais inte-resses das massas, de outro, forma irracional de liderana,baseada que est numa relao direta entre lder e liderado,sem mediao organizacional, sustentada pela populao queapenas deixa os laos de dependncia pessoal vigentes nocampo. Continua, portanto, o argumento de di Tella, quediferencia essa massa de trabalhadores vindos prematura-mente para a cidade, onde no podem mais satisfazer suasaspiraes, dos operrios industriais, por no terem nem adisciplina nem as idias complexas para participar de organi-zaes (apud Debert, op. eit.: 16-17).

    Essa mesma perspectiva da pobreza como o loeus daconscincia popular difusa, desagregada e manipulvel apa-rece em estudos mais recentes. A prpria viso dicotmica dasociedade como dividida rigidamente entre pobres e ricos'. entendida como conscincia inferior por basear-se mais nanoo de diferenciao social do que na de oposio ou anta-gonismo, prpria conscincia de classe (cf. Martins Rodri-gues, 1966). Debert, recusando-se a pensar o populismo comomanipulao das massas, busca encontrar o intercmbio entreos interesses dos grupos sociais e o discurso do poltico queaqueles apiam, identificando-se com a imagem ou lugar queaquele lhes confere. Interpreta, assim, a penetrao eleito-ral ademarsta nos setores operrios de So Paulo no comouma invaso da ideologia pequeno-burguesa no seu meio,mas uma conseqncia da mesma viso dicotmica que fazcom que