a mão dupla da rua

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  • 8/18/2019 A Mão dupla da rua

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    INFORMAÇÕES

    Para leitoresPara AutoresPara Bibliotecários

    OPEN JOURNAL SYSTEMS

    CAPA SOBRE A CESS O CADA STRO PES QUIS A A TUAL A NTERIORES

    TUTORIAL DE SUBMISSÃO

    Capa > v. 2, n. 19 (2013) > Barreto

    Est. Soc. [online]. 2013, vol. 2, n. 19

    A MÃO DUPLA DA RUA: a ambivalência da “nova resistência” ou elementos para umaoutra gramática da mobilização

    TWO-WAY STREET: THE AMBIVALENCE OF THE "NEW STRENGTH" OR ELEMENTS TOANOTHER GRAMMAR OF MOBILIZATION

    Francisco Sá Barreto1

    Júlia Figueiredo Benzaquen2

     ______ _____ _____ ______ _____ ______ _____ _____ ______ _____ 

    ResumoAs leituras sobre os levantes de junho no Brasil têm sido muito diversas e ainda poucoconciliadoras. Por certo, o cenário em questão acompanha um sem número de eventos,movimentos ou novos programas políticos que têm funcionado como renovados objetos para umaciência social que pretende acompanhá-los a partir de uma reforma de seu próprio programa defazer científico. Este trabalho procura refletir a respeito do conjunto de levantes no mês de junhode 2013, no Brasil, tomando um vocabulário dos estudos pós-coloniais como referência. Adiscussão que segue está organizada a partir de dois eixos fundamentais, os quais são: a) umaexperiência contemporânea da rua: uma geopolítica dos movimentos sociais e pensar em termosde (r)existências; e b) elementos para um estudo do “Jano brasileiro”: entre o pertencimentonacional como disciplina e o desafio de novas formas de associação. A partir de tais eixos,pretendemos investigar uma gramática dos levantes de junho e uma potência montada a partir detais eventos para analisarmos, de um lado, as atualizações das lógicas de disciplinamento do sociale, de outro lado, a exaustão de um programa de diferença social que sustenta uma estruturaliberal do projeto moderno de democracia.

    Palavras-chave: Novos Movimentos Sociais. Democracia e contemporaneidade. Teorias pós-coloniais.

     _____ ____ _____ ____ _____ _____ _____ ____ _____ ____ _____ ___

    AbstractThis paper aims to investigate the set of uprisings of June 2013, in Brazil, considering themthrough the vocabulary of postcolonial studies. The readings about the June uprisings in Brazilhave been very different and yet little conciliatory. Certainly, the scenario in question follows amyriad of events, movements or new political programs which have provided renewed subjects toa social science that, in order to accomplish it, needs to rethink its own way of doing science.Thereby, the argument is developed in two different pillars: a) a contemporary experience of thestreet, i.e. to trace the geopolitics of social movements and also think in terms of resistance; b)outline the elements for a study of the "Brazilian Jano": between national belonging as disciplineand the challenges of new forms of association. From these axes, we intend to investigate a

    grammar of the uprisings of June in order to analyze, on the one hand, the updates of socialdiscipline logics and, on the other hand, the exhaustion of the social differentiation program whichsustains the liberal framework of modern democracy project.

    Key-words: New Social Movements. Democracy and contemporaneity. Postcolonial theories. _____ ____ _____ ____ _____ _____ _____ ____ _____ ____ _____ ___

    I - Introdução

    Notadamente nos últimos dois anos, um conjunto de mobilizações de grandes contingentespopulacionais tem exigido esforço de diversas frentes para que se compreenda suas estratégias,agendas, seus sentidos e resultados produzidos. Dos veículos de comunicação de massa de umagrande mídia aos centros universitários, em sua pluralidade de áreas, as teses sobre umamultiplicidade de movimentos aproximados por sua cada vez menos presente sazonalidade3representam, ao mesmo tempo, de um lado, esforços para identificar rapidamente os mecanismosde esvaziamento das ruas que podem se ligar aos programas do que tomamos genericamente poruma miríade de projeções de resistência a partir do elemento feito comum pelos movimentosOcupe, por exemplo4. De outro lado, representam apenas os inícios de programas de investigaçãoque têm a identificação de uma nova linguagem das ruas como ponto de partida para umarenovada tarefa política fortemente vinculada (aparentemente) a um novo projeto de “coisa

    pública”.

    Nesse cenário, o Occupe Wall Street  ou a Primavera Árabe funcionam como importantes célulaspara o desenvolvimento ou visibilidade – bem podia ser viabilidade – de um sem número deprojetos de nova tomada das ruas ou de programas de contra-uso de zonas urbanastradicionalmente ocupadas pelo dispositivo estatal e seus multifacetados mecanismos. As ruas degrandes cidades brasileiras parecem ter funcionado como palco para tradução desses esforços emuma série de ocupações que, desde 2011, pretendem funcionar como lugar de um programa dereivindicações por novas linguagens para a vida na metrópole.

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    Em junho de 2013, contudo, os instrumentos de reivindicação estiveram descolados dessesprogramas de nova ocupação das vias públicas e, a partir de complexo cruzamento entre osentimento nacionalista oitocentista e uma forte crítica ao projeto de Estado brasileiro,representaram, com muito expressivas reuniões populacionais, uma avalanche daquilo que sepretendeu traduzir no imperativo de um novo programa de vida política.

    Desde então, as leituras sobre os levantes de junho no Brasil têm sido muito diversas e aindapouco conciliadoras. Por certo, o cenário em questão acompanha um sem número de eventos,movimentos ou novos programas políticos que têm funcionado como renovados objetos para umaciência social que pretende acompanhá-los a partir de uma reforma de seu próprio programa defazer científico. A esta altura deste texto que apenas se introduz, é cabível representar tal desafio apartir de um projeto de ciência pós-colonial. Com esse desafio – e de acordo com uma ainda difíciltarefa de compreensão de suposta nova linguagem das ruas –, pretendemos refletir a respeito deum “outono brasileiro”, tomando um vocabulário dos estudos pós-coloniais como referência.

    Nesse contexto, de partida, é possível verificar como elemento fundamental o risco e, ao mesmotempo, o mote de um projeto de tomada das ruas que funciona a partir de empreendimento dedupla face. Na primeira delas, os levantes de junho representam a resistência a um projeto deEstado e governo em progressiva exaustão, em suposto desacordo com um programa democráticoe as tendências de um tempo que exigem a reescritura e os reforços dos envelhecidos contratossociais da Modernidade. Em sua face duplicada, residem as sofisticações das lógicas de controlesocial que permitem a celebração da coisa pública inclusive através da forma de crítica à mesma;em outras palavras, os levantes de junho funcionaram como estratégicos aprofundamentos dosentimento nacional em tempos de grande esvaziamento dos símbolos cívicos ou de programas demobilização da experiência da brasilidade.

    Dessa maneira, a fim de compreender essa mão dupla do dito “outono brasileiro”, organizamos adiscussão que segue a partir de dois eixos fundamentais, os quais são: a) uma experiênciacontemporânea da rua: uma geopolítica dos movimentos sociais e pensar em termos de(r)existências; e b) elementos para um estudo do “Jano brasileiro”: entre o pertencimento nacionalcomo disciplina e o desafio de novas formas de associação. Com isso, pretendemos investigar umagramática dos levantes de junho e uma potência montada a partir de tais eventos paraanalisarmos, de um lado, as atualizações das lógicas de disciplinamento do social e, de outro lado, aexaustão de um programa de diferença social que sustenta uma estrutura liberal do projetomoderno de democracia.

    II – Uma experiência contemporânea da rua

    Desde a década de 1990, variadas formas reivindicativas de ocupar as ruas5 se apresentaramenquanto uma forma original de protesto. Mais recentemente, finais de 2010 e em 2011,assistimos aos protestos no mundo árabe, que ficaram conhecidos como “Primavera Árabe”.Aconteceram revoluções na Tunísia e no Egito, uma guerra civil na Líbia, grandes protestos naArgélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Síria, Omã e Iémen e protestos menores no Kuwait,Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental. Os protestos têmcompartilhado técnicas de resistência civil, fazendo greves, manifestações, passeatas e comícios, etambém fazendo o uso das mídias sociais, como Facebook , Twitter  e Youtube, para organizar,comunicar e sensibilizar a população e a comunidade internacional.

    O uso das redes sociais na internet também foi o que divulgou o Movimento 12M em Portugal. 12Mporque o manifesto publicado no Facebook  incitava à participação numa manifestação em Lisboa nodia 12 de Março de 2011. O Movimento 12M, autointitulado “apartidário, laico e pacífico”,reivindicava melhorias nas condições de trabalho, principalmente para os jovens. Nesta mesmalinha, a Espanha vivenciou protestos que ficaram conhecidos por Movimento 15-M, Indignados eRevolução Espanhola. Esse movimento, também catalisado pelas redes sociais, começou em 15 deMaio de 2011 e se caracterizou por uma série de protestos, também apartidários, laicos e pacíficos,

    que exigiam “Democracia Real Já!”. As ações extrapolaram a Espanha e muitos outros paísesorganizaram protestos inspirados pelos Indignados. Seguindo a mesma linha desses protestos, emsetembro do mesmo ano surge em Nova York o movimento Ocupe Wall Street , que protestavacontra a crise financeira e o poder econômico norte-americano.

    Em junho de 2013, as reivindicações por melhoria no transporte público foram o catalisador deuma série de manifestações nas principais cidades brasileiras. Foram protestos marcados pelabandeira da não bandeira, ou seja, pelo rechaço da política tradicional, e em alguns casos pelarepulsa à política. É esse movimento que pretendemos analisar com este artigo. Até que pontoessa experiência contemporânea das ruas, traduzida no Brasil nos movimentos de junho, é umanova forma de fazer política ou é uma maneira de sofisticar os processos de dominação?

    Ficou clássico no debate sociológico o conceito de novos movimentos sociais (NMSs) (SANTOS,2005; TOURAINE, 1998; LACLAU e MOUFFE, 1985). Para esses autores, os “velhos” movimentos,ou seja, aqueles que não se enquadram na definição de NMSs, são aqueles inspirados no paradigmamarxista tradicional, que se centram na luta de classes como elemento motivador e que têm comoforma clássica os sindicatos e os partidos políticos. E qual seria a novidade dos NMSs?

    A maior novidade dos NMSs é que constituem tanto uma crítica àregulação social capitalista, como uma crítica à emancipação social

    socialista, como foi definida pelo marxismo [...] Nestes termos, denunciarnovas formas de opressão implica denunciar as teorias e os movimentosde emancipação que as omitiram, que não estiveram atentos a elas, ouque até mesmo compactuaram com elas (SANTOS, 2005, p. 258).

    Os NMSs são entendidos como aqueles cujas fontes dos conflitos sociais enfatizariam a cultura, aidentidade, a esfera dos micropoderes, ou seja, mobilizariam sujeitos vinculados a temáticasespecíficas como gênero, etnia, identidade cultural, meio ambiente, etc. O que a teoria dos NMSsdeseja evidenciar é que, nos últimos 30 anos, as lutas mais avançadas foram protagonizadas porgrupos sociais – indígenas, campesinos, mulheres, afrodescendentes, piqueteiros, desempregados– cuja presença na história não foi prevista pela teoria crítica eurocêntrica. São resistências que seorganizaram muitas vezes segundo formas – movimentos sociais, comunidades eclesiais de base,piquetes, autogovernos, organizações econômicas populares – muito distintas das privilegiadas pelateoria crítica: o partido e o sindicato. As suas reivindicações, na maioria das vezes, não são porsocialismo, direitos humanos, democracia ou desenvolvimento, mas por dignidade, respeito,território, autogoverno, bem viver, Madre Tierra (SANTOS, 2010).

    Nesse sentido, as experiências contemporâneas de rua, seriam novíssimos movimentos sociais. Aocontrário dos NMSs, fortemente embasados em lutas identitárias, parece existir nas reivindicaçõescontemporâneas lutas contra-identitárias, como veremos com mais cuidado na terceira parte destetrabalho.

    Entrando em cena a experiência contemporânea das ruas ou os novíssimos movimentos sociais, seevidencia a dificuldade conceitual do “novo”. Para além dessa dificuldade de nomeação, há oproblema de se considerar essas manifestações contemporâneas enquanto processosessencialmente originais. O problema já está no que se refere aos NMSs. O novo existe emoposição ao antiquado, no entanto com as “novas” opressões, as ditas velhas questões não estãosuperadas. As questões trabalhistas (representadas pelos sindicatos, por exemplo) são vistas comovelhas questões, ou seja, movimentos sociais tradicionais, no sentido de atrasados, ainda que

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    muitas das reivindicações sindicais sejam intensamente contemporâneas e mereçam mais atençãodo que se parece estar disposto a dar. Também é preciso dizer que as reivindicações que algunssociólogos classificam como NMSs são muito mais antigas do que certas reivindicações sindicais,mas permaneceram por mais tempo invisíveis enquanto movimentos sociais. Um bom exemplopara tanto é as revoltas escravas no Brasil, que foram reivindicações que apelavam a umacomunidade bastante vinculada a uma identidade específica (o negro escravo), que congregaramuma multiplicidade de formas de resistências: fugas, suicídios, abortos, quilombos, entre outros(ÁGUAS, 2008).

    Na literatura sobre movimentos sociais, as resistências que aconteceram no período que Dussel(2001) chama de Primeira Modernidade – ou seja, desde os “descobrimentos” das Américas até aSegunda Modernidade, ou seja, a época do Iluminismo, com a Revolução Industrial e com aRevolução Francesa – são menosprezadas. Às barricadas francesas do período revolucionário(1789-1800); ao movimento ludista (1811 e 1820) que decidiu destruir os meios de produçãodevido às condições de exploração que os trabalhadores se encontravam; às revoltas campesinasinglesas; a todas essas e muitas outras lutas européias, desenvolvidas no início da (segunda)modernidade, pelo menos por interesse historiográfico, se deveria adicionar outras lutas que asantecederam e aconteceram fora da Europa, como por exemplo:

    Os quilombolas, que, fugindo da escravidão, ansiavam, como BenkosBioho no palenque caribenho de San Basilio (1691), a formas de vidamais dignas para seu povo; a rebelião liderada por Tupac Amaru II noVice-Reino do Peru (1780); ou a Revolução Haitiana (1804) que dividiu ailha La Española em duas áreas, étnica e culturalmente distintas(FLÓREZ, 2007, p. 255)6.

    Dessa forma, nos parece infrutífera a distinção dos movimentos sociais no tempo (a diferença entrevelho, novo e novíssimo). No entanto, a divisão espacial nos dá pistas para pensar uma geopolíticados movimentos sociais. Foi a história do capitalismo que permitiu pensar em um mundo divididoem Ocidente e Oriente ou em Norte e Sul. Segundo uma projeção tradicional da ideia de História,foi o Norte global (um Norte autodefinido e autoinstituído pelas cartografias construídas nesseNorte) que colonizou o Sul. Dessa maneira, “o Sul é uma metáfora do sofrimento humano causadopelo capitalismo” (SANTOS, 200 6, p. 2 7).

    De acordo com Ceceña (2005), a primeira diferença é que os movimentos dos Norte querem a

    regularização dos sistemas modernos, já os movimentos do Sul questionam as premissasfundamentais da sociedade capitalista. Nos termos de Santos (2007) os movimentos deste lado dalinha, ou seja, do Norte, estão no paradigma da regulação-emancipação; já os movimentos dooutro lado da linha, do Sul, nunca estiveram no paradigma regulação-emancipação, mas aoquestionar o paradigma apropriação-violência, questionam profundamente este lado da linha, quesó foi possível através do outro lado da linha.

    Para a experiência contemporânea, seja das ruas espanholas com os Indignados ou das ruasbrasileiras em junho de 2013, a bandeira da não bandeira parece revelar uma postura do Sul. Ouseja, mesmo estando em países do Norte geopolítico, os Indignados espanhóis e os nova-iorquinosdo Ocupe Wall Street , só para dar dois exemplos, reivindicam não a regularização do sistemamoderno, mas lutam por “outros mundos possíveis” 7.

    Outra diferença entre movimentos do Norte e do Sul, para Ceceña (2005), seria que asubjetividade se constrói desde o ocidental nos movimentos do Norte e, no Sul, desde a resistênciaao Ocidental. Esta questão se desdobra para o fato de que no Norte, os interlocutores são o Estadoou as instituições supraestatais, enquanto que, no Sul, há uma demonstração reiterada de que oEstado é incapaz de defender os seus povos contra o Império, nos termos de Hardt e Negri (2006).Assim, numa realidade do Sul, o poder do Estado, enquanto protetor do público, é insignificante, ouseja, o Estado é deslegitimado da sua função primordial: zelar pelo bem público.

    A maneira de se relacionar com o Estado parece um diferencial importante para as manifestaçõesdo tipo das que ocorreram em junho de 2013 no Brasil. A recusa à política pode ser traduzida pelarecusa à in stitucionalidade, pela recusa ao Estado. No Brasil, essa recusa aparece bastantevinculada à crítica feita ao governo de esquerda dos últimos anos. Para alguns ativistas o governonacional de esquerda trouxe benefícios ao estar “mais próximo” dos movimentos sociais. Noentanto, muitos movimentos sociais sentem que com um governo dito de esquerda, cresceu onúmero de entidades que foram corrompidas e cooptadas pelo governo, gerando assim uma fortedesmobilização e uma confusão de “contra quem” se deve lutar, já que não se poderia ir deencontro a um governo dito popular.

    Dessa forma, é preciso ressaltar a fragilidade argumentativa da divisão entre movimentos sociais doNorte e do Sul em um estágio da globalização no qual as relações entre as diferentes escalas estãoimbricadas e na qual há um Norte no Sul e um Sul no Norte. Mais importante que categorizar osmovimentos sociais em conceitos estanques é compreender sob quais supostos teóricos eepistemológicos as teorias dos movimentos sociais mantêm vigente um pensamento dicotômicoque, muitas vezes, suprime o potencial das lutas que acontecem no Sul, ao invisibilizá-las por nãose enquadrarem completamente nem no conceito de velho e nem no de novo, ou por serem

     “atrasadas” em relação aos movimentos sociais do Norte. Dessa forma, a maioria das teorias sobremovimentos sociais se sustentam em argumentos baseados em dicotomias modernas: autonomia-

    dependência, atraso-desenvolvimento, local-global, centro-periferia etc.; uma lógica binária quehierarquiza as dinâmicas sociais segundo seu maior ou menor distanciamento a um modelomoderno-ocidental-colonial (FLÓREZ, 2007).

    Neste sentido, a divisão entre movimentos sociais do Norte e do Sul também não é válida ou maisainda: o conceito de movimentos sociais não nos serve por estar fortemente enraizado em umagramática ocidental colonial. Uma proposta é pensar esses novíssimos movimentos sociais, queganham força ao redor do globo, a partir da ideia de (r)existências resistentes. São (r)existênciaspor proporem uma nova lógica, uma lógica de implosão dos fundamentos que estruturam amodernidade ocidental. A resistência se traduz na afirmação da existência, que por si denuncia oque foi construído como inexistente através de processos de expropriação, repressão e-ouassimilação. A (r)existência pode acontecer através de processos de visibilização ou deinvisibilização.

    Dessa forma, a pobreza de experiências concretas de crítica à colonialidade8 não é expressão decarência de iniciativas, mas de uma arrogância da razão indolente9 que as desperdiça, que não asvê. A arrogância da colonialidade gerou, segundo Santos (2006), uma forma de produzir nãoexistência: a monocultura. A monocultura se caracteriza por ser monolítica, só aceitar umamaneira válida de existir. Santos (2006) destrincha cinco monoculturas que caracterizam o nossotempo: a do saber, do tempo, das classificações sociais, das escalas e das produtividades. ASociologia das Ausências  ao dar visibilidade às experiências disponíveis contrapõe aos cinco modosde produção de não existências cinco ecologias: de saberes, das temporalidades, dosreconhecimentos, das transescalas e das produtividades. As cinco ecologias são formas de

     “agregação da diversidade pela promoção de interações sustentáveis entre en tidades parciais eheterogêneas” (SANTOS, 2006, p. 105). Dessa maneira, (r)existir é combater o monopólio dacolonialidade  através de ecologias, através de tornar o ausente presente, dessa forma dando força àdiversidade.

    No entanto, é preciso reforçar a invisibilidade enquanto uma forma de (r)existência. Um bom

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    exemplo de invisibilidade é o poema de uma mulher negra descendente de escravos, citado porBhabha (1994, p. 46) que diz: “Um dia aprendi/ uma arte secreta,/ Invisibili-Dade, era chamada./Eu acho que funcionou/ como até agora você olha/ mas nunca me ver.../ Só os meus olhospermanecerão para ver e assombrar,/ e tornar seus sonhos/ em caos” 10. O mesmo pode servisualizado em uma das cenas primordiais do filme Clube da Luta, de David Fincher, 1999, na qualos protagonistas aprisionam o secretário municipal de segurança pública em um banheiro e oameaçam ut ilizando sua condição de invisibilidade como instrumento de (r)existência.

    A pluralidade de (r)existências leva à necessidade constante de reinvenção e pode ser entendidacomo fragilidade ou como fortaleza. A multidimensionalidade das composições e a diversidade deorientações podem significar tant o um processo de fragmentação e particularismo da ação socialreivindicatória, quanto a possibilidade de ações de grande impacto justamente por sua pluralidade.

    III – Um Jano brasileiro? Entre o pertencimento nacional como disciplina e o desafio denovas formas do social

    A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais. / Não venh o armado de verdades decisivas. / Minha consciência não édotada de fulgurâncias essenciais. / Entretanto, com toda a serenidade,penso que é bom que certas coisas sejam ditas. / Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não faz mais parte deminha vida. / Faz tanto tempo... / Por que escrever esta obra? Ninguém asolicitou. / E muito menos aqueles a quem ela se destina. E então?Então, calmamente, respondo que há imbecis demais neste mundo. E jáque o digo, vou tentar prová-lo. / Em direção a um novo humanismo... /À compreensão dos homens.../ Nossos irmãos de cor... / Creio em ti,Homem... / O preconceito de raça... / Compreender e amar... / De todosos lados, sou assediado por dezenas de páginas que tentam impor-se amim. Entretanto, uma só linha seria suficiente. Uma única resposta a dare o problema do negro seria destituído de sua importância. / Que quer ohomem? / Que quer o homem negro? / Mesmo expondo-me aoressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é umhomem (FANON, 2008, pp. 25-26).

    Na mitologia romana, Jano ( Janus) é o deus bifronte que traduz, de maneira mais simples, o

    trânsito de uma experiência anterior a uma posterior. Recorrentemente, sua figura é utilizada paraa representação de grandes mudanças, pretensos reinícios de uma passagem que, em tese, vê-sefinalizada e em vias de ser substituída por projeto de futuro que em muito combina com anovidade, a renovação etc.Jano não é o passado que parece bem representado em sua face mais envelhecida, fortementecaracterizada por barba protuberante e linhas faciais que, sem grandes dificuldades, traduzem oexperimentado, o já vivido11. Contudo, também não está bem compreendido se visto como o futuro

     já despontado, leitura também feita comum e fundamen talmente conectada à face jovem de Jano,confundida com um por vir representado pela força e inocência juvenis. Imprescindível é oentendimento de Jano fincado como lugar do meio entre passado e futuro, um furo no tempo que,com a experiência da vida moderna, aprendemos a chamar de presente. Há riscos nessa leituramais imediata sobre os quais precisamos pontuar.

    A associação da figura de Jano a portas – e parece ser bem apropriado a origem do mês de Janeiroestar ligada ao deus romano em questão – funciona como mote para a mais rápida interpretaçãode que o mesmo configura especificamente uma passagem, transições de um espaço-tempo aoutro. Jano, nesse sentido, representa, concomitantemente, uma estrutura colapsada e umaoutra, em acelerada construção. O furo no tempo que traduz Jano, diante disso, diz pouco sobre acompreensão de um presente intensamente ampliado pelo projeto de modernidade, elevado àcondição de tempo de centro, ao mesmo tempo, por seu lugar no meio entre passado e futuro e

    por sua importância política. Não pareceria exagero, nesse cenário, uma projeção docontemporâneo que se desenvolve a partir da experiência do presente. A conexão de três pés quepodemos, a essa altura, construir tem em Jano, no presente e no contemporâneo os seus nomes.Isso ainda diz pouco para as nossas pretensões.

    São bem conhecidos os escritos de Nietzsche e Benjamin sobre o contemporâneo a partir dasnoções desenvolvidas de “intempestivo” e “tempo do agora”. As muitas leituras sobre ambos são jásuficientes para transformar em problema um programa de conceito do contemporâneo emenfrentamento ao recorrente lugar comum do presente. O ensaio de Giorgio Agamben (2009)sobre o tema insiste na referência ao contemporâneo como quebra de uma racionalidadeinstrumental sugerida pelo presente, muito recorrentemente, facilmente mobilizado pelo mercadoe a experiência do consumo.

    O grande tempo/experiência da vida moderna, o presente, por excelência, aparece, tanto emBenjamin, quanto em Nietzsche ou Agamben, como objeto de rasura pelo contemporâneo. Este,por sua vez, funciona como indicativo de um projeto de permanente abertura de fendas no tempoque representam bem uma tensão responsável pela reflexão política sobre o que se fez e o que sepretende fazer. O deus bifronte não olha para o passado sem que isso implique uma atentavigilância do futuro, bem como não consegue empurrar para frente uma linha da históriamobilizada por linguagens do tradicional em progressivo desuso. Jano não é o presente, mas o

    contemporâneo. É, portanto, ao mesmo tempo, o deus que traduz fissuras em consolidadasestruturas de narrativa e comprime um futuro alargado pelo mundo do consumo, insistindo nodesafio político do não-saber. Nesse sentido, mais que uma passagem, uma representação datransição, Jano carrega em sua constituição a ambiguidade característica do contemporâneo, asaber, a experiência política da fronteira.

    Se, em tempos de esforços recorrentes para construção de novas políticas para tratar o grandeenclave da questão das imigrações, lidamos com o tema da fronteira como problema para pensarnovas estruturas para as noções de nação e território, parece bem compreensível tomar o estudode (e a partir das) bordas como ponto de partida para uma investigação comprometida com aambiguidade do contemporâneo e suas difíceis negociações entre formas políticas tradicionais e osesforços para rasurá-las. O cenário descrito pelos levantes de Junho de 2013 no Brasil, a essaaltura, dizem muito sobre uma leitura mais imediata dos sentidos de Jano e a ambiguidade que omobiliza politicamente.

    No dia 10 de fevereiro de 2012, em meio a uma semana de manifestações contra o aumento daspassagens de ônibus e pela melhoria do transporte público – mobilizações quase semprepredominantemente estudantis –, o Diario de Pernambuco 12 publicou em sua matéria de capa amanchete “A cidade não aguenta mais isso”. A reportagem pretendia explorar o quão insuportávela vida em Recife (capital do Estado) se transformava todas as vezes em que as manifestações quese estendiam por aquela semana se realizavam. As fotos apresentadas na matéria apresentam viascongestionadas e o bloqueio recorrentemente realizado pelos manifestantes. É bem nítido, no textoem questão, o esforço para criminalização das resistências, identificando nelas um risco aparentede um “sobre tudo reclamar” que em muito parece incomodar o projeto moderno de cidade e vidapara o consumo.

    O mesmo jornal, nas grandes paralizações de junho de 2013, utilizou um jargão que fortementeidentificou as manifestações para engrossar o coro de “um país regido pelo imperativo do fim dacorrupção”. “A maior arquibancada do Brasil”, manchete de capa do dia 21 de junho 2013, traduz

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    a mudança de uma política editorial do jornal que, pegando carona no amplo apoio da população àsmanifestações, procurou traduzir com entusiasmo os eventos que rivalizaram com a realização daCopa das Confederações da FIFA na projeção do Brasil no cenário geopolítico internacional naquelesdias.

    Esse trânsito não revela somente a contradição – ou a disposição para tanto – dos veículoshegemônicos de comunicação de massa para se adequar às demandas de um leitor que não podedeixar de ser consumidor. Revela, também, parte da ambiguidade do Jano brasileiro, forjado, nesseaspecto, na curiosa substituição parcial da intolerância da cidade burguesa aos levantes de rua àsimpatia pelos movimentos celebrada por uma forte política de adesão da classe média a algumasformas dos, discutidos ainda na primeira parte deste trabalho, ditos novíssimos movimentos sociais.

    Mais firme que essa passagem, contudo, é possivelmente um outro elemento da condição bifrontedos levantes de junho. Trata-se da forte conexão com uma simbologia do cívico, braço fortementenacionalizante (ou nacionalista) de uma representação geral do dito Jano brasileiro. Todos os dias, agrande mídia veiculou a forte relação entre os movimentos de rua e o aprofundamento (ourenascimento) do sentimento de pertencimento nacional, na maioria das teses midiaticamentepopulares condição fundamental para uma espécie de reset   político do nacional.

    Em já bem conhecida crítica ao Multiculturalismo como lógica cultural do capitalismo multinacional,o filósofo esloveno Slavoj Žižek (2005) destaca os riscos da emergência de um argumentototalitário no seio de levantes nascidos populares e arrebatados pelo dispositivo nacionalizante. Sejaem sua crítica ao cinema de Emir Kusturica – mais especificamente sobre o filme Underground  –,ou em suas análises sobre a reconstrução do partidarismo no leste europeu pós União Soviética, oumesmo sobre a emergência de uma maioria trabalhista no parlamento britânico, Žižek destaca apretensão de um instrumento que se pretende anterior ao político como face totalitária de umdiscurso recorrentemente propagado como ultrademocrático. Nesse contexto, o subterrâneo deKusturica, ou o lugar comum da solidariedade nos partidos de uma nova esquerda no lesteeuropeu, traduzem sofisticados movimentos de aprofundamento de uma experiência totalitáriadentro de um programa que se pretende democrático à medida que nega à esfera dosenfrentamentos políticos a condição de lugar no qual as decisões sobre a vida pública devem sertomadas.

    A territorialidade e o antigo tribalismo que, segundo o discurso de Norman Tebbitt destacado porŽižek, caracterizam o básico do ser britânico, são instrumentos sem lugar original, vagueando

    sempre de acordo com o difícil empreendimento de politização da vida pública que se desenvolve justamente a partir do esforço de despolitização da experiência cotidiana. No cenário apresentadopor Žižek – tanto no filme de Kusturica quanto na campanha dos conservadores contra apossibilidade de um governo trabalhista –, não estava simplesmente omitido, por trás do produto

     “não político”, um elemento político original. Não eram a territorialidade, o antigo tribalismo, nemuma cínica simpatia silenciosa por um novo regime totalitário que estavam escondidos pelo desejode “retorno ao básico”, mas o complexo empreendimento político do contemporâneo: apossibilidade da afirmação política no discurso da despolitização do social.

    A “solidariedade” como lugar vazio do m undo político contemporâneo funciona, nesse aspecto,como muito bem acabado arranjo de silenciamento dos acordos políticos que se localizam além domundo controlado por forças políticas já tradicionais. Por isso, nas antigas nações comunistas doLeste europeu, a “solidariedade” pôde funcionar como porta de acesso para antigas figuras públicas,ligadas ao regime superado pela “abertura” produzida pela queda do muro de Berlim no final dosanos 1980. Não se trataria, contudo, de um retorno ao mundo comunista, mas de uma nova vidapolítica oferecida aos sujeitos que, antes, estavam montados no grande Outro13  da bandeiravermelha e, agora, consolidam seus poderes no lugar vazio da experiência da “solidariedade”. Dessamaneira, investimos, sem dificuldade, na ideia de que uma nova bandeira se forma para darmaterialidade a um antigo mecanismo.

    No caso específico da referência ao Leste europeu, poderíamos afirmar que o lugar vaziopossibilitado pela solidariedade oculta um bem articulado retorno à mesma estrutura política queacabou de ser superada.

    Haveria, dessa forma, no Jano brasileiro, o perigoso interesse pelo isolamento de uma supostaexaurida forma do fazer político por um novo sujeito – pretensamente pré ou pós-político –comprometido, antes de tudo, com uma espécie de ressurreição do sentimento nacional. Essatomada dos levantes de junho não poderia ser mais decepcionante. A partir de tal compreensão, osditos novíssimos movimentos sociais não fariam nada além de reforçar um programa político quetem o bloqueio da diferença e das zonas de fronteira como sua mais importante estrutura. Não foium exercício difícil encontrar, no meio das multidões mobilizadas no mês de junho de 2013,grandes grupos dispostos a reprimir duramente quaisquer manifestações que se vinculassem àstradicionais bandeiras de luta, sejam aquelas referentes aos movimentos sociais ligados a partidose/ou sindicatos, sejam mesmo aquelas, como apresentamos ainda na primeira parte, conectadas àsdemandas dos NMSs. Essa, no entanto, é apenas uma das faces de Jano.

    Uma segunda face, como mencionamos, guarda a luta contra-identitária como sua característicafundamental, fazendo funcionar nas negativas dos lu gares comuns produzidos pelas linhas abissais– que aprofundaram as lógicas de um colonialismo atualizado pelos dispositivos de colonialidade –seus instrumentos de resistência ao poder colonial traduzido do próprio projeto de subjetividade

    ocidental. É esse o argumento de autores do quilate de Said (2007), Spivak (2010), Bhabha(1994) e Fanon (2008), todos tomados pelo desafio de pensar a crítica ao sujeito como produto deum projeto de racionalidade que tem, como já expomos, o elemento europeu como ponto departida.

    Livres do compromisso de salvar um sujeito subalterno – o que parece ter sido o elemento centraldo programa das políticas de reconhecimento do pós-1945 –, tais autores apresentam comoprerrogativa o imperativo de vencer o programa do colonial não somente na rejeição de umainscrição de humanidade a partir da (desde a) metrópole, mas também na rasura dos lugares desubalternidade pelos quais, eventualmente, se acostumaram a lutar. A face duplicada do Jano emquestão tem a rasura do pertencimento identitário/nacional como seu mais importanteinstrumento. Nesse cenário, uma luta contra um governo específico ou a retomada do sentimentonacional fazem menos sentido que uma nova lógica de uso das ruas, mais próxima, nesse aspecto,de um contra-uso, ou aquilo que Boaventura de Sousa Santos projeta a partir do desafio daconstrução de uma outra racionalidade.

    Diante dessa demanda, encontramo-nos às voltas com o imperativo, inclusive, de uma reflexão emciências sociais que encontra seus limites na dificuldade de compreender as estratégias para aquiloque, no título deste trabalho, chamamos de uma outra gramática da mobilização. Seja a partir deuma ecologia de saberes ou uma sociologia das emergências em Santos (2007), seja no “qualquer” de Giorgio Agamben, ou nas categorias desenvolvidas por Maffesoli (2006) para (re)pensar asformas do social a partir das sugestões de Simmel – o “estar junto”, a “nebulosa afetual”, o

     “segredo”, as “comunidades tipo-seita” –, todos têm como mote uma estrutura de racionalidadeque precisa se adequar às demandas de um tempo regido por um fluxo permanente das estratégiasde associação.

    Os levantes de junho de 2013, no Brasil, e aqueles aos quais esses se afinam ao redor do globo,demandam categorias de apreensão do social que precisam fazer mais para bem entender asambivalências do contemporâneo como estratégia política de um fazer público multifacetado. A

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    crítica a um suposto esvaziamento das bandeiras contemporâneas parece ser pouco para umpensamento/mobilização de fronteira que exige mais de um observador que, por sua vez, pareceprecisar ser mais que somente sujeito de conhecimento científico.

    A face dupla de Jano revela, diante desses desafios, o lugar do meio como elemento intensamentecaracterístico dos deslocamentos contemporâneos de sentido para os quais as discussões deBhabha (1994) chamam atenção. Um pensamento de fronteira, uma força política de bordas, oumesmo as “zonas cinzas” da Buenos Aires de Beatriz Sarlo (2005), indicam importantes manchasnas traduções mais recorrentes das grandes mobilizações; borras a partir das quais um novovocabulário para as ruas se faz imperativo do tempo.

    As contradições de um tempo regido pelo lugar comum do consumo parecem estar abrindo fendascognitivas no seio de uma tradição de interpretação dos movimentos sociais e suas formas demobilização dos/nos espaços públicos. As possibilidades para a constituição de uma novaexperiência das ruas parece se fortalecer ora quando não funciona a partir dos discursos derestituição do nacional, ora quando se descola das demandas exclusivas do mundo burguês poruma gentrificação das grandes metrópoles ocidentais.

    Em recente congresso sobre estudos contemporâneos de cultura, no Brasil, o escritormoçambicano, Mia Couto, arrematou: “Em Moçambique existe um provérbio que diz o seguinte 'ooutro é um espelho onde nós nos fazemos'. Essa crise dos novos tempos é muito mais do quefinanceira. Temos uma dificuldade de nos colocar no lugar do outro". Distantes do desafio quecaracteriza a necessidade de se colocar no lugar do outro, é possível que uma das grandesdemandas do Jano brasileiro seja a borra de locais bem definidos para o Eu e o Outro. A porta quetanto identifica o deus na mitologia romana não cabe em nenhum dos dois; ela é a abertura e ofechamento; é o trânsito; a mobilização e a dispersão. Entender seu funcionamento, por certo, éum desafio do qual este trabalho não dá conta, mas que pretendeu, nestas linhas, fazer ser maisevidente.

    1  Professor Adjunto I do Departamento de Antropologia e Museologia daUniversidade Federal de Pernambuco, Doutor em Sociologia pelo PPGS-UFPB. E-mail: [email protected]  Professora Adjunta I do Departamento de Ciências Sociais da Universidade

    Federal Rural de Pernambuco, Doutora em Sociologia no Programa de Pós-colonialismos e cidadania global do Centro de Estudos Sociais da Universidade deCoimbra. E-mail: [email protected]  Visto que alguns desses movimentos ficaram conhecidos a partir de suaconexão a uma estação do ano, como Primavera Árabe, por exemplo, o que, decerta forma, traduz um tipo de mobilização como elemento restrito a apenasuma época “natural” e definida do ano.4 Seja na descrença dos movimentos Ocupe nas formas tradicionais de protesto,seja na descrença dos grupos tradicionais nas formas de luta traduzidas pelosmovimentos Ocupe.5  Em janeiro de 1994, milhares de indígenas com rostos cobertos, o ExércitoZapatista de Libertação Nacional (EZLN), tomaram as principais cidades doEstado de Chiapas no México. Em novembro de 1999 aconteceram asmanifestações contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle. Emsetembro de 2000 foram as manifestações em Praga contra a reunião do FundoMonetário Internacional e do Banco Mundial; e em julho de 2001, asmanifestações contra a reunião do G8 em Gênova. Também em 2001aconteceu o primeiro Fórum Social Mundial (FSM) em Porto Alegre. É precisoainda mencionar insurreições populares como a de Cochabamba, na Bolívia, em2000, contra a privatização da água; as grandes marchas do Movimento dos

    trabalhadores Sem Terra no Brasil (MST) no final da década de 90; organizaçõespan-amazônicas; luta dos povos afegãos e palestinos; revoltas do povoargentino através de panelaços; entre outras.6  Tradução livre dos autores.7 “Outro mundo é possível” é um dos motes do Movimento Zapatista Mexicanoe do Fórum Social Mundial, o qual aconteceu em sua maioria em países do Sulglobal.8  O conceito de colonialidade, assim cunhado por Quijano (2002), enfatiza acontinuidade entre o tempo e os espaços coloniais e o tempo e espaços pós-coloniais. O conceito de colonialidade  evidencia que as relações coloniais não selimitam ao domínio econômico-político e jurídico-administrativo dos centrossobre as periferias, mas também uma dimensão epistêmica, cultural e racialdesse domínio. Dessa forma, descolonizar é colocar-se contra as diferentesformas de dominação que existiram e existem e que nos impõem uma lógica depensar.9  A razão indolente, um conceito de Santos (2002), inspirado em Leibniz,descarta a multiplicidade de experiências disponíveis e possíveis. A razãoindolente  é o saber que é indiferente a tudo aquilo que não lhe convém, ouseja, que invisibiliza o que ameaça a manutenção do status quo.110  Tradução livre dos autores.

    11 Existem várias representações imagísticas de Jano. Em muitas delas, as duasfaces do deus são iguais. Para o desenvolvimento que nos interessa, o bifronteestá representado por uma face mais jovem e uma outra, mais envelhecida,imagem também muito reproduzida em gravuras ou esculturas.12  Jornal de grande circulação em tal Estado brasileiro.13  A referência ao termo lacaniano é do próprio Žižek.

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     Artigo recebido em: 01/08/13 Aprovado em: 20/12/2013

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    @ 2012 - PPGS - Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia daUFPE.

    ISSN Impresso 1415-000X

    ISSN Eletrônico 2317-5427

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