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Rua de Mão Dupla documentário e arte contemporânea

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Rua de Mão Dupladocumentário e arte contemporânea

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1. O cinema nasceu na cozinha.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima1

2. A realidade é a superfície de um lago.Realidades: sobre “Da janela do meu quarto”,“Rua de mão dubla”, “Histórias do não ver”,“A alma do osso”, “Andarilho” e “O homemdas multidões”.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima2

3. O grivo: o visual já estava por minha conta,precisava alguém do som.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima3

4. Sobre o processo criativo: descontrole,acaso, o que pode acontecer, candomblé eporos abertos. “Rua de mão dubla”.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima4

5. A essência do cinema. Olhar o mundo, pelonão dito, pelo aparentemente não acontecenada. Aproximar a obra da vida. Ritmo, tempoe expressividade da vida. Tactilidade.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima5

6. Sobre “Sopro”, “O inquilino” e omicrodrama da forma.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima6

7. Sobre “Otto”, o encontro e o outro. Ficar nasuperfície da bolha, nem dentro nem fora.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima7

8. O tempo da vida, o estar ali. Sobre “A almado osso” e “Andarilhos”. Andar e pensar,viagens da percepção.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima8

9. Da fotografia e do cinema. Do ser mineiro,dos Andarilhos, de pensar duas vezes antes dedizer nada ou das armadilhas para que sempretudo seja diferente.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima9

10. O infilmavel, Sobre “Histórias do não ver”ou sobre como a imagem cansa. Os outrossentidos, o filme mental e a curiosidade poroutras formas de estar no mundo além de estarfilmando tudo.https://soundcloud.com/hambre­cine/cao­guima10

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Rua de Mão Dupla:documentário e arte contemporâneapor Consuelo Lins1

Rua de Mão Dupla é o titulo de um dosdocumentários do artista mineiro Cao Guimarães,concebido inicialmente como videoinstalaçãopara a 25ª Bienal Internacional de São Paulo, em2002, que teve como tema IconografiasMetropolitanas. Trata­se de um projeto queemerge de uma trajetória artística ligada àfotografia e à videoarte, mas em diálogo diretocom o campo do documentário, apostando namistura e contaminação de procedimentosestéticos como forma de invenção audiovisual. Datradição do documentário, Cao Guimarães retomaa questão do “outro”, a quem o filme é dedicado,mas subverte essa tradição com instrumentos depráticas artísticas contemporâneas; realiza assimuma espécie de documentário­jogo, no qual nãose propõe mais a filmar "o mundo", nem ainteragir ou conversar com seus personagens, masa estabelecer parâmetros de filmagem e regrasespecíficas a partir dos quais imagens e sonspodem ­ ou não ­ surgir.

Cao Guimarães imprime nesse filme umcuriosíssimo deslocamento em relação a todas asquerelas em torno da "voz do outro" queatravessam a história do documentário, através deum gesto à primeira vista pequeno: altera adireção do que se solicita aos personagens emgrande parte dos documentários baseados emconversas. Não quer que eles se voltem para si,que falem de suas vidas, que se revelem para acâmera; pede, antes, que falem de pessoasdesconhecidas e filmem casas alheias. O resultadoé surpreendente pois o que mais chama atenção aolongo do filme é a carga de "exposição de si"contida em imagens e depoimentos teoricamente"sobre os outros" ­ mas de viés, indiretamente,

quando menos se espera. Rua de Mão Duplaproduz ainda o efeito de “desprogramar” o queestava previsto não apenas no campo dodocumentário, mas no da produção de imagensmediáticas, retirando do jogo proposto o que háde mais definidor dos espetáculos de realismo: alógica competitiva e a exclusão.

Rua de Mão Dupla expressa um cruzamento euma circulação cada vez mais intensos entredomínios até pouco tempo distantes, e mesmohostis entre si: a arte contemporânea e odocumentário. Cineastas que trabalhamprioritariamente no documentário criaminstalações para serem expostas em galerias aomesmo tempo em que artistas expandem suascriações para o campo das imagens documentais.Não são poucos os exemplos dessa prática quedespontou com mais força a partir de meados dosanos 90: as videoinstalações de Maurício Dias eWalter Riedveg sobre porteiros nordestinos, OsRaimundos, os Severinos e os Fransciscos (Bienalde São Paulo ­1998), a de Karim Aïnouz eMarcelo Gomes sobre o carnaval, Se Fosse Tudosempre Assim (Bienal de São Paulo – 2004), eainda os trabalhos de Sandra Kogut, Eder Santos,Lucas Bambozzi, Kiko Goiffman, entre outros.Na França, Agnès Varda e Raymond Depardon,cineastas com obras majoritariamente ligadas aodocumentário, apresentaram recentementeinstalações em galerias parisienses. Diretores queampliam o caminho aberto pela cineasta ChantalAkerman que, desde 1995, reorganiza seus filmesem instalações em galerias e museus. Obras quese renovam a partir de estratégias extraídas da artecontemporânea e que propiciam outras maneirasde se relacionar com imagens em movimento

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redefinindo temporalidade, espaço, narrativa eimpondo modificações à interação mental ecorporal do espectador.

Duas precisões são importantes. Essa hostilidadeé menos fruto dos procedimentos artísticospropriamente ditos do que de praticasinstitucionais que visam, com bons e mausefeitos, defender determinados territórios. Alémdisso, relações íntimas entre esses dois camposnão são inéditas. Há, ao longo da história docinema, vários momentos em que artes plásticas edocumentário se misturam para produzir obrasfundamentais. Os anos 20 e os 60 são asreferências mais célebres: as vanguardascinematográficas e particularmente o cinemasoviético de Dziga Vertov e, a partir da década de60, o cinema experimental de Andy Warhol eespecialmente o de Jonas Mekas, entre outrasassociações possíveis. No Brasil, a história dessarelação é mais recente e tem na obra de ArthurOmar o exemplo mais contundente. Filmes,vídeos, fotografias, instalações que impuseram aodocumentário um movimento radical de“desprendimento de si”, fabricando um lugar atéentão inexistente no Brasil.

Na verdade, torna­se cada vez mais difícilidentificar um espaço exclusivo de atuação deuma obra, a tal ponto os trabalhos hoje sãoatravessados por diferentes práticas artísticas.Árdua também é a tarefa de tentar caracterizar deforma precisa o que se passa no campoaudiovisual contemporâneo. Inúmeras objetos seconstituem e são constituídos em meio adiferentes domínios e dispositivos técnicos,utilizando­se de elementos retirados de todos eles.Passam de um suporte a outro, de um tipo deexibição a outro, circulam em diferentes festivaise instituições pouco preocupadas com o que “defato” são. De toda maneira, mais do que o cinemade ficção, o documentário – entendido como umcampo de práticas diversificadas ­ tem

contaminado diferentes estéticas e se infiltra cadavez mais em múltiplos domínios das artes visuais,adquirindo uma nobreza artística que lhe foirecusada em grande parte de sua história – muitasvezes pelos próprios documentaristas, quequeriam se afastar da idéia do cinema como arteou diversão.

Contudo, o que nos interessa nos limites desseartigo é verificar o que há de específico e inéditonessa articulação. Não é portanto uma abordagemgeral desses cruzamentos; nos concentraremos naanálise de Rua de Mão Dupla e nas questões comas quais o filme se confronta.

O dispositivo: uma máquina de ver e fazer ver

Rua de Mão Dupla é fruto de um dispositivo defilmagem organizado com precisão pelo diretor,cujas linhas centrais são explicitadas para oespectador já nas primeiras imagens do filme. CaoGuimarães convidou seis pessoas pertencentes àscamadas médias da população ­ não há ricos nempobres, mas variações entre esses extremos ­,moradores solitários de Belo Horizonte, aparticipar de uma experiência inusitada: divididosem duplas, eles trocariam de casa por 24 horas e,munidos de uma pequena câmera digital,filmariam o que bem lhes aprouvesse em casaalheia, tentando "elaborar uma "imagem mental"do outro (a) através da convivência com seusobjetos pessoais e seu universo domiciliar"2. Aofinal, dariam um depoimento para a câmera,contando como imaginaram esse "outro".

Para estruturar o filme de 75 minutos, CaoGuimarães editou o material filmado em trêsblocos, um para cada dupla, de 20, 25 e 30minutos respectivamente. O diretor interveio naredução do tempo de filmagem de cadaparticipante, mantendo porém a cronologia dafilmagem. Decidiu ainda em que ordem as duplasseriam inseridas no filme. A tela foi dividida ao

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meio, o que permitiu ao espectador acessosimultâneo às imagens e sons feitos pelosintegrantes de cada dupla ­ um produtor musical euma oficial de justiça, um construtor e umarquiteto, uma escritora e um poeta ­, trazendopara o documentário uma das dimensões dainstalação. No final dos blocos, assistimos, emuma das telas, aos depoimentos de cada um delese, na outra, a pessoa descrita, olhando em direçãoà câmera, como se também fosse espectadora doseu "retrato falado".

De imediato, o que podemos observar nessaestratégia de filmagem é a elaboração de uma"maquinação", uma lógica, um pensamento, queinstitui condições, regras, limites para que o filmeaconteça, assim como na construção de uma“maquinaria”3 para produzir concretamente aobra. O dispositivo se constitui das duasoperações, com regras temporais e espaciais pré­definidas. De certa maneira, a noção dedispositivo que utilizamos aqui tem pontos deconvergência com o conceito de dispositivoutilizado por Michel Foucault nos seus escritos apartir dos anos 70. Ao descrever o surgimento e ofuncionamento de diferentes dispositivos depoder, Foucault inventa uma « filosofia darelação”4 e nos faz ver múltiplas redes em queestamos envolvidos, a que somos assujeitados, eque nos constituem à revelia. Redes, ou relações,que se estabelecem entre discursos, instituições,espaços, técnicas, regras, o dito e o não­dito deuma época específica, produzindo “mundos”,“sujeitos”, “objetos” – eis o que Foucault definecomo dispositivo. Ao destrinchar tais mecanismosde dominação, Foucault enfatiza o caráter deartefato de toda e qualquer realidade, produzidapor praticas específicas, em um lugar e momentoespecíficos.

Em todos os dispositivos descritos por Foucault, adimensão visual é fundamental. Sãoprocedimentos que colocam em cena “técnicas de

visualização” próprias que nos induzem a verdeterminadas coisas e não outras. Vemos e cremosque o poder é exercido por um grupo, centrado naLei e baseado na proibição, quando, na verdade,ele é muito mais inventivo do que isso, e seexerce anonimamente por meio de diferentestécnicas. É parte de sua estratégia ser vistoessencialmente dessa forma, só assim ele étolerável5. Foucault identificou ao longo de suatrajetória dispositivos de poder que ninguém viu enos fez compartilhar dessa visão de forma tãocontundente que é difícil não vermos o quanto,em um regime disciplinar, uma prisão se parececom uma fábrica, escola, caserna, hospital ouasilo. Trata­se portanto de uma tarefa filosóficaimensa que reorganiza visibilidades e nos mostrao quão presos estamos a uma forma de ver. Avisão, a observação, não são, em absoluto,essências a serem descritas por umafenomenologia da percepção, mas construçõeshistóricas que traduzem, em diferentes épocas,diversos “modos de ver e de fazer ver”6.

O alcance dos dispositivos artísticos éevidentemente outro, mas o pensamento deFoucault nos ajuda a precisar essa noção que setornou central na crítica das artes audiovisuaiscontemporâneas. É como se alguns artistasretomassem por conta própria e de múltiplasformas a “maquinaria de incitação”7 que é umdispositivo e impusessem a ela uma outra lógica.É como se, diante das inúmeras máquinas que nosprogramam, submetem, vigiam e controlam, elesconcebessem estratégias de resistência, táticas deguerrilha e pontos de implosão, fabricando umainfinidade de dispositivos inusitados, engenhocasinéditas, mecanismos de excitação e produção deexperiências diversas; a “eficácia” artística epolítica dessas pequenas máquinas medindo­sepelo potencial produtor e transformador do que éproposto, pela possibilidade de deslocar visõesestabelecidas, criar novas maneiras de ver e ser,experimentar outras sensações, narrativas,

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espaços e temporalidades. Em suma, pelapossibilidade de reorganizar visibilidades. Nãomuito distante, portanto, da “arte de ver” deFoucault8.

Se os dispositivos de poder são frutos de práticasanônimas e dissimulam o que de fato são, osartísticos são construídos pelos artistas,individualmente ou coletivamente, e possuemuma dimensão “reflexiva”, ou seja, deixam claropara quem interage com eles, espectador e/oupersonagem, seu caráter de artefato pois faz partedo jogo revelar as estratégias utilizadas. De toda amaneira, a noção clássica de autoria é deslocada.Em Rua de Mão Dupla, o diretor não filma nemdirige, mas concebe um jogo, distribui cartas,determina regras, escolhe jogadores, fornececâmeras, transporte, comida. Provê o necessário esai de campo.

Trata­se de uma maquinação que implica aausência de controle do diretor sobre o materialfilmado, propiciando uma espécie de "retiradaestética" não propriamente do filme, mas dasimagens e sons que seu filme vai conter,atribuindo a seis outros indivíduos a tarefa defilmar e se auto­dirigir. Um gesto de mise­en­scène que se apaga em favor da auto­mise­en­scène do personagem, cedendo lugar ao outro,favorecendo seu desenvolvimento, lhe dandotempo e campo para se locomover. "Filmar torna­se assim uma conjugação, uma relação, onde sedeve enlaçar­se ao outro ­ até na sua forma."9 Nãose trata em absoluto de abdicar do filme em favordos personagens, mas de imprimir modificações àconcepção de autor, que deixa de lado afabricação das imagens para se concentrar naestruturação do dispositivo10.

"Um de olho no outro": a visibilidade comocondição de existência

À exceção dos depoimentos finais de cada dupla,tudo o que vemos no filme foi realizado pelospersonagens. Embora haja uma estética comumde vídeo amador (planos trêmulos, desfocados,mal­enquadrados, longos, rupturas abruptas nosom, luz estourada...), cada um deles imprimiusingularidades ao que filmou. O que filmam?Lixo de banheiro, a ponta de um baseado naprivada, livros, fotos, cesto de roupa suja, o quehá na geladeira, baratas na cozinha, instalaçõesdefeituosas, fotografias e filmes pornográficos,garrafas de bebidas... Realizam uma investigaçãodetalhada, registrando a intimidade alheia semconstrangimentos e fazem, em muitos momentos,comentários sincrônicos à imagem. Agem, àsvezes, como detetives na cena do crime à procurade vestígios, rastros, impressões, indícios, tudo oque possa identificar o culpado/a vítima/osuspeito.

São imagens amadoras mas deixam escapar aqui eali uma preocupação mais formal. A oficial deJustiça aciona o zoom rapidamente em quasetodas as imagens, como se tivesse recém­descoberto o procedimento. O produtor musicalse inclui nas imagens ­ é o único a fazer isso.Filma­se no espelho, simulando estar dormindo,ou lendo jornal no sofá. O construtor é o que maisse concentra na descrição do apartamento,fazendo um inventário dos problemas deconstrução. Mantém uma continuidade espaço­temporal na filmagem, o que raramente acontecenos outros materiais, cuja captação parece ter sidofeita de forma mais aleatória ao longo das 24horas. O arquiteto faz planos curtos de objetos emóveis com uma explícita intenção deenquadramento, desvelando uma pretensãoestética mais acentuada. O poeta e a escritorafilmam menos o interior do apartamento e maiscenas na rua.

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De todo o material filmado, as imagens realizadaspelo arquiteto chamam especialmente a atenção –ali explicita­se algo que atravessa em filigranatodo o projeto. A casa do engenheiroaparentemente o interessa pouco. Limita­se filmarde forma fragmentada móveis e roupas. O quedominantemente o atrai é a tela da TV, sejaexibindo imagens de um jogo de futebol, cenasdos programas Casa dos Artistas e Big Brother oufilmes pornográficos. Explora sem cerimônia tudoo que encontra de pornográfico na casa doparceiro (vídeos, fotos, revistas), a ponto desimular uma masturbação com o movimento dacâmera. Registra igualmente janelas deapartamentos vizinhos e atém­se à capa de umarevista com a frase: "Um de olho no outro". Essasimagens foram filmadas casualmente mas, decerta maneira, quase não poderiam deixar de estarno filme. Expressam dimensões cruciais da nossacondição contemporânea às quais a criaçãoaudiovisual, querendo ou não, tem de seconfrontar: o voyeurismo e o exibicionismo, avigilância e a exposição da vida privada.

É como se o filme se colocasse cara a cara com oestado do mundo e o incluísse na suas imagenspara tornar ainda mais visível a subversão queimpõe às regras do jogo mediático. Iniciativatemerária que enfatiza as convergências de Rua deMão Dupla com os espetáculos de realismo: afilmagem e a exibição da intimidade, o caráter dejogo, a desconexão entre visibilidade e sucessopessoal ­ os personagens são pessoas comuns enão celebridades. O diretor é também impelido alidar com o que move os personagens a aceitar aproposta e a abrir suas casas para serem filmadas.O motivo pode ser semelhante ao que leva aspessoas a falar na televisão e a expor o que têm depior: apelo ao reconhecimento, aspiração a umalegitimidade de comportamento. Em umasociedade em que “o olhar do outro deixa de serdado pelo coletivo”11, o olhar televisivo torna­seuma das formas mais potentes de reconhecimento.

De todos esses embates, o filme sai fortalecido.Primeiro, em Rua de Mão Dupla, nem tudo podeser mostrado, retomando uma moral preciosa docinema moderno que vai de encontro à injunçãode transparência, objetividade e visibilidade 24horas por dia dos espetáculos de realismo. Não setrata de um material produzido por câmerasanônimas de vigilância mas de imagensfragmentadas, em movimento constante, repletasde parcialidades, elipses, pontos obscuros12. Emseguida, não há como um participante ser melhorou pior do que outro, nem como o materialfilmado ser melhor ou pior, pois o que interessasão justamente as particularidades das imagens.Nenhum deles torna­se tampouco celebridade. Asupressão da competição, avaliação e julgamentoe a impossibilidade de exclusão são decisivas paradesprogramar a lógica dos reality shows.

O gosto do outro

No entanto, a grande invenção do filme,responsável pela solidez da proposta, é asolicitação do diretor de que os “outros” emquestão, os participantes do filme, se interessempor outros e não por eles mesmos, bloqueando odesejo de confessar, revelar segredos ou exportormentos íntimos que nos captura a partir domomento em que uma câmera é postada diante denós. Invenção que redireciona o desejo da “bestada confissão” em que nos transformamos, que nosfaz confessar crimes, pecados, pensamentos,desejos, doenças e misérias, “em público, emparticular, aos pais, aos educadores, ao médico,àqueles a quem se ama (...) a si próprios, noprazer e na dor (...)”13.

É verdade que podemos vislumbrar nesse “dar àcâmera ao outro”, extremamente facilitado pelastecnologias digitais, um exemplo a mais de umatendência cada vez mais forte na produçãodocumental contemporânea; tendência que, noBrasil, retoma em novo contexto experiências

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cinematográficas realizadas nos anos 60 e 70, emque se colocar à serviço do “outro de classe”significou também, em alguns casos, deixar o“outro” filmar. Tanto antes como agora, há umdesejo de “ver como o outro vê”, desejo da visãodo outro, algo que importa menos quandopressupõe uma visão “autêntica” a ser revelada14,mas ganha interesse quando parte do princípio deque a imagem realizada pelo outro é resultado deum turbilhão de antecipações e expectativas eadquire força quando revela justamente essamistura de base, como acontece em Rua de MãoDupla.

No filme, o "dar a câmera ao outro" produz defato uma novidade, um verdadeiro estranhamento,para além do que os personagens poderiam querermostrar. Há visivelmente uma impossibilidade decontrole dos efeitos que falas e imagensproduzem, uma “verdade” que se explicita sem oconhecimento deles. A mudança do foco do “eu”para o “outro” faz com que os personagensfiquem menos atentos a auto­controles, censuras efiltros que normalmente acionamos para oferecera imagem que desejamos de nós mesmos. Amaneira como se relacionam com o espaço alheio,o que escolhem filmar, o que dizem, como falam,palavras, sintaxes, entonações que colocam emcena, tudo isso revela muito mais deles mesmosdo que poderíamos esperar. São imagens do outrofortemente embebidas da visão de mundo e dosafetos daquele que filma. Trata­se de “ver como ooutro vê”, mas de forma impura e deslocada.

Na montagem precisa efetuada por CaoGuimarães, há uma hostilidade crescente daprimeira para a terceira dupla, a ponto da escritoradizer, na última parte do filme, ter achado“repulsivo” o cheiro do outro. As imagens ecomentários feitos pelo construtor na casa doarquiteto soam cômicas em função da atuaçãoprofissional deles. A amabilidade inicial ­ "umapessoa de bom gosto, um edifício chique, um

homem ligado à natureza", vai abrindo espaço auma irritação crescente nas observações sobre aarquitetura modernista do apartamento ­ o prédioé uma obra de Oscar Niemayer ­ ressaltadatambém nas imagens. "Problemas da arquiteturamoderna, a pia não cabe dentro do local... Aquievidencia­se claramente problemas que assolamprédios desse tipo.” Já o arquiteto chama aatenção para o “prédio de classe média”, situadoem “um bairro de classe média, de revestimentoclasse média, de média”. Há também uma tensãode “gênero” entre eles: o arquiteto enfatiza adimensão de “macho” do construtor e esse, porsua vez, se diz impressionado pela “ausência devestígio feminino” na casa, “uma ausência deAnita total”.

Apesar de ter achado a experiência “genial” entreoutras coisas por tê­la ajudado a desfazer­se de“preconceitos sérios” ­ “não ouvi pagode, nemaxé music, nem música baiana nem uma vez” ­, aescritora profere julgamentos sobre o outro queexibem de forma quase constrangedora como suavisão de mundo é impregnada de preconceitosmuito mais graves do que sua consciência poderiaadmitir, e que não se resumem a associar certasmúsicas a determinados locais. Preconceitos quenão são facilmente desfeitos, passando menospelo conteúdo do que é dito e bem mais pelamaneira como se expressa, pelas palavras usadas,ressalvas, evasivas, insinuações, indiretas,alfinetadas: “É um personagem muitocontraditório, que mora mal e tem mauscostumes, e eu não acho que ele mora mal porqueé pobre não... não sei se é pobre não, e tambémnão é despojado, acho que ele é desprovido, deidéia, de bom gosto, de atenção com ele mesmo.”Ela reclama ainda dos “rastros de ambigüidade”deixados na casa, quando, na sua visão, sua casa éo seu retrato. Uma fala que se torce ao pressentira palavra, a resposta ou a objeção do outro15. É oexemplo mais perturbador de que o filme fugiu aocontrole dos personagens.

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O que não quer dizer que Rua de Mão Duplaridicularize seus personagens. Nós, espectadores,"trabalhamos" ativamente e o material nos fazentender o ponto de vista deles, semnecessariamente lhes dar razão. O filme nãoresolve o “mundo”, não o interpreta, não o avalia;inversamente, abre para o espectador um campode possibilidades, uma multiplicidade de sentidos,forçando­o a pensar. Relacionamos de váriasmaneiras o que vemos e ouvimos e realizamosmentalmente, de forma selvagem, um retrato detodos esses personagens que se exibem às nossasvistas. Se isso fosse feito diante de uma câmeracertamente revelaria muito do que somostambém, e talvez nos ajudasse a constatar que“estamos” onde menos esperamos, nãoespecialmente no “conteúdo” do que dizemos oupensamos de forma consciente, tampouco em uma“interioridade” prévia, já dada, mas em “toneladasde subjetividades”16 que se constituem e seexpressam na nossa relação com o mundo e como outro.

Não se trata portanto de uma identidade fixa oude um "eu" profundo a se revelar através damaquinação do diretor, muito pelo contrário. Oque o filme mostra de modo cristalino é o quãoencharcado de memórias e afecções corporais énosso olhar sobre o mundo, o quão arraigadossomos a determinadas maneiras de ver e sentir, otanto que ignoramos nossos preconceitos, o tantode impossibilidade de nos colocarmos no lugar dooutro, de aceitá­lo na sua diferença esingularidade. Sintomaticamente todos ressaltama dificuldade de viver na casa do outro, tecendocomentários a respeito do aspecto “provisório" e"improvisado" dos espaços ­ como se fossenecessário negar as características do parceiropara se auto­definir. O único a não fazerobservações dessa natureza é o poeta. É quemmenos fala, quem menos interpreta, quem de fatose permite experimentar encontros e misturas como que lhe é estranho. É mesmo comovente vê­lo

expressar o que sentiu, vê­lo chorar, ficar emsilêncio e também refletir sobre o que lhe foiproposto. Não é por acaso que o diretor inseriu odepoimento dele no final do filme, depois daspalavras da escritora, nos deixando pressentir apossibilidade de uma relação diferente com omundo.

***

Ao falar de seus trabalhos, Cao Guimarães osdivide em três “categorias”: os mais plásticos,contemplativos e formais, como Sopro, Hypnosis,Word/World, Nanofania; aqueles em que se deixalevar por um determinado objeto ou assunto,como nos filmes A alma do osso, O fim do semfim e Da janela do meu quarto; e os propositivos,como Rua de Mão Dupla e Volta ao mundo emalgumas páginas. Esses últimos lembram omovimento da artista francesa Sophie Calle emalgumas de suas obras, tal como em LesDormeurs (1979), em que propõe a vinte e novedesconhecidos dormir na sua cama. Como emmuitos trabalhos de Calle, há uma atração pelojogo e suas regras, uma submissão obediente aoarbitrário que ela mesma criou: a cama deveriapermanecer ocupada ao longo de oito dias; cadaconvidado dormiria oito horas, com direito a caféda manhã e lençóis limpos; eles responderiam aquestões, ela anotaria, e durante o sono, poderiafotografá­los à vontade. O conjunto de fotos enarrativas foi exibido na XI Bienal de Paris, em1980, e reunido, depois, em livro. Tanto em LesDormeurs quanto em Rua de Mão Dupla, não setrata de contar uma história já vivida, mas deviver uma história para contá­la17. A partir daí,muita coisa diferencia os dois artistas. CaoGuimarães trabalha com vídeo e cria dispositivospara se descolar de si; Calle fez apenas umdocumentário em 1992 com seu namorado deentão e a dimensão autobiográfica do seu trabalhoé fortíssima, mesmo se parcialmenteficcionalizada: ela joga com seu nome, sua vida,seus amigos e amores perdidos.

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Nos últimos anos, os trabalhos de Cao Guimarãestêm sido selecionados e premiados nos principaisfestivais internacionais de documentário e vídeoexperimental e exibidos em diversasmanifestações artísticas mundo afora. Um dosmais recentes, Da janela do meu quarto (2004),realizado em digital, filmado e editado pelopróprio diretor, foi selecionado para a Quinzenade Realizadores do Festival de Cannes, talvez omais importante festival de cinema da atualidade– aquele que mais conta para os autores docinema. Cao Guimarães não tem formação emcinema, nunca fez escola nem trabalhou no meiocinematográfico. A “sério”, estudou filosofia efotografia; cinema, ele começou em casa, quandomorava em Londres, com super 8, fazendo umaespécie de diário filmado, “um pequeno exercíciode observação solitária do mundo”, em uma“ampliação natural das possibilidades deexpressão”, diz, que inclui “vídeo, super 8, 35 ou16 mm, câmera fotográfica digital, caixa desapato, câmeras de plástico, caneta, lápis, laptop,máquina de escrever, gravador de som,microfone, projetor de slides, projetor de vídeo ede cinema e mais uma infinidade de coisas”.

Sua cinefilia é “digital e rizomática”18, própria auma forma contemporânea de se relacionar com ocinema que não passa, necessariamente, porfiliações, mas que não deixa de ser atravessadapor uma paixão e de reencontrar um certo espíritodo cinema, o da experimentação. Atitude que seconfronta tanto com uma postura conservadoraque vê o cinema como “patrimônio”, objeto desaber e reverência, quanto ao cinema comomercado. E faz filmes libertadores, que inventamnarrativas, dispositivos e novas percepções doreal, sugerindo, nesse movimento, que o cinematem muito a ganhar associando­se ao que lhe é, decerta forma, “exterior”. Tal como é hojedominantemente produzido (mercado, marketing,leis, lobbys, projetos intermináveis, distribuição,exibição), o cinema tem poucas chances de se

renovar; essa engrenagem o engessa e fossiliza,corroendo do interior suas possibilidades decriação.

1Este texto foi publicado no livro “Transcinemas”, organizado porKátia Maciel (Contra­Capa). Consuelo Lins é documentarista eprofessora do Programa de Pós­Graduação em Comunicação(ECO­UFRJ). Autora de O documentário de Eduardo Coutinho:televisão, cinema e vídeo (Jorge Zahar Editor).

2Cao Guimarães, em texto na contracapa do vídeo Rua de MãoDupla.

3Retomamos essas noções de Philippe Dubois, que as utiliza maisespecificamente para falar de filmes com dimensõesautobiográficas e relacionados à memória, mas que nos parecemférteis para pensar Rua de Mão Dupla, que trabalha com o "outro"e se insere no presente dos personagens.. “A foto­autobiografia”.In: Revista Imagens. Campinas : Ed. Unicamp. p. 64 a 76. Duboisamplia o uso dessas noções em Cinema, Vídeo, Godard. SãoPaulo: Cosac & Naif, 2004.

4Paul Veyne, “Foucault révolutionne l’histoire”, in Comment onécrtit l’histoire. Paris: Seuil, 1978.

5Michel Foucault, História da Sexualidade 1, A vontade de saber.Rio de Janeiro: Graal, 1984.

6John Rajchman, “L’art de voir de Foucault”, in Traffic, Revue deCinema, numéro 52, hiver 2004. Paris, P.O.L., p. 86.

7Michel Foucault, op. cit.

8John Rajchman chama atenção, no texto citado, para a arte deFoucault de “ver o impensado na nossa visão” e a extrair modos dever até então desapercebidos.

9Jean­Louis Comolli, “Carta de Marselha”, in Catálogo do 5Festival de Documentário de Filme Etnográfico. Belo Horizonte,novembro de 2001.

10A principal diferença entre o dispositivo de Rua de mão Dupla eos dispositivos dos documentários de Eduardo Coutinho ouFrederick Wiseman encontra­se na intensidade da dimensãoprodutora, que no caso do filme de Cao Guimarães é mais radical.Os personagens de Rua de Mão Dupla passam por umaexperiência corporal e uma interação mental complexas, distantedo que experimentam os personagens de Coutinho ou Wiseman. Aimplicação física e mental do espectador em certas instalações étrazida para dentro do filme e transferida para os seus personagens.

11Fernanda Bruno. "Máquinas de ver, modos de ser: visibilidade esubjetividade nas novas tecnologias de comunicação e deinformação" in Famecos: mídia, cultura e tecnologia, No 24, 2004.Porto Alegre: EDIPUCRS.

12O material bruto filmado por cada participante não ultrapassouuma hora.

13Michel Foucault, op. cit., p. 59.

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hambremarço 2014

14Em Jardim Nova Bahia (1971), de Aloysio Raulino, opersonagem principal realiza um terço das imagens que forammontadas, “sem qualquer interferência do realizador”, comoinformam os créditos iniciais. Observação que expressa asuposição de uma visão do outro depurada de influências. Ver emJ. C. Bernardet, in Cineastas e Imagens do povo São Paulo:Brasiliense, 2003, pp. 128­142. Trinta anos depois, Raulinoparticipa como fotógrafo de uma experiência distante dessapostura “purista’, ao lado do diretor Paulo Sacramento. Em Oprisioneiro da grade de ferro (2003) houve também uma divisãodas filmagens, mas na maior parte do tempo não sabemos quemestá filmando, se a equipe do filme ou os presidiários ­ com poucasexceções, que confirmam uma visão mais complexa da imagemfeita pelo outro. Na melhor seqüência do filme, filmada por umdos presos durante toda a noite, as imagens são claramenteproduzidas por uma mistura do que ele quer mostrar e do que eleacha que diretor, equipe, espectadores, querem ver. É justamenteessa mistura que torna a seqüência interessante e reveladora, e nãouma suposta autenticidade do olhar.

15Segundo M. Bakhtin, a maneira individual pela qual o homemconstrói seu discurso é determinada consideravelmente pela suacapacidade inata de sentir a palavra do outro e os meios de reagirdiante dela. In Problemas da poética de Dostoievski. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1977, p. 197.

16Expressão de Peter Pál Pelbart, in Vida Capital, Ensaios deBiopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.20.

17A narrativa literária de Bernardo Carvalho nos seus dois últimoslivros, Nove noites e Mongólia, tem semelhanças com essemovimento artístico. São histórias produzidas por um agir,previsto para que haja narrativa.

18Thierry Jousse, in Pendant les travaux, le cinema continue. Paris:Les Cahiers du Cinema, 2003.