a manipulaÇÃo do corpo feminino na ......minhas experiências sexuais foi acompanhado do alerta...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A MANIPULAÇÃO DO CORPO FEMININO NA CONSTRUÇÃO DO
CONCEITO DE PREVENÇÃO EM SAÚDE: REFLEXÕES SOBRE OS
EXAMES DE RASTREAMENTO DE CÂNCER EM MULHERES
Laura dos Santos Boeira1
Resumo: O trabalho visa a refletir acerca da manipulação dos corpos femininos nos chamados “exames preventivos” de
câncer, a saber, exame citopatológico (papnicolau) e mamografia. A construção de um conceito de prevenção em saúde
é perpassada pela lógica de mercado vigente e, ao analisa-la, verificamos as implicações de uma prescrição acrítica de
exames, tomando como analisadores o corpo, os discursos de poder e saber em saúde e o papel da mulher na sociedade.
Os exames de rastreamento possuem riscos os quais raramente são debatidos com as usuárias dos sistemas de saúde. No
cenário atual do Sistema Único de Saúde, observamos uma realização desses exames em faixas etárias e periodicidades
que resultam em práticas de iatrogenias sobre o corpo feminino, além de sobrediagnóstico e sobretratamento dessas
doenças, o que atinge não só a mulher em sua vivência subjetiva, como o sistema público de saúde, em um processo que
mantém as iniquidades de acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento desses cânceres, ao mesmo tempo que não
proporciona empoderamento das mulheres frente as práticas de cuidado de si. Faz-se necessária, pois, a retomada do
corpo pela mulher, constituindo espaços de empoderamento, onde a vigência da vergonha e do silêncio sejam
substituídas por um enfrentamento ativo dos processos de patologização do feminino.
Palavras-chave: Citopatológico; mamografia; prevenção; saúde pública
Ao iniciar esse trabalho, declaro que escrevo desde o lugar de uma mulher que, desde antes
da puberdade, foi estimulada pela televisão, pelas revistas e pelo convívio social a situar o cuidado
do meu corpo no campo da medicina. A menstruação foi um evento disparador para começar a
frequentar ginecologistas, embora não houvesse anormalidade alguma nos meus ciclos. O início das
minhas experiências sexuais foi acompanhado do alerta sobre a necessidade de medicalização e de
realização de exames constantes (semestralmente, na recomendação do médico que eu frequentava
à época) para aferir que o sexo não estava danificando meu corpo. Houve profissionais que
recomendaram a realização de mamografias aos 25 anos, devido aos perigos do câncer de mama.
Ao acompanhar de perto indicadores do Sistema Único de Saúde e da saúde suplementar,
observo que convergem para um panorama de realização indiscriminada de exames e intervenções,
em corpos até então saudáveis e, em sua maioria, femininos. Esses corpos femininos, que também
representam o meu corpo e as minhas vivências, sendo expostos a riscos e danos pouco debatidos.
Em contrapartida, há uma superexposição a discursos de “cuidado” e “prevenção” em saúde, que
alternam o apelo ao amor (“quem se ama, se cuida”) e à culpa (“câncer tem cura, só depende de
você! previna-se”). Tomando como análise os chamados “exames preventivos” de câncer, em
mulheres, a saber, o exame citopatológico e a mamografia, minha inquietação é a de pensar como
um corpo feminino aparentemente saudável é caracterizado socialmente como um objeto a ser
controlado, de que formas observamos isso e quais as implicações dessas práticas. É uma
1 Psicóloga. Mestranda em Bioética, Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil.
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caminhada em busca de sentidos para o sofrimento oriundo da experiência de manipulação de um
corpo - o meu - por mãos e mídias que moldam, também, as possibilidades de uma mulher se
constituir socialmente.
Rastreamento de câncer em mulheres: danos, benefícios e silêncios
As ações de rastreamento de patologias são objeto constante de estudos, especialmente no
âmbito da saúde pública, devido à necessidade de atestarmos as dimensões de custo-efetividade da
intervenção, de viabilidade de ofertar exames complementares ao rastreamento na rede de saúde
existente, além do conhecimento acerca dos riscos e benefícios que tais ações apresentam à
população. Brasil (2010) aponta que a ação de rastreamento, por representar a oferta de intervenção
em saúde para uma população assintomática, envolve as esferas de gestão, os profissionais que
atuam no desenvolvimento de pesquisas, os profissionais que atuam diretamente na atenção e os
usuários do sistema de saúde. É um processo intrincado de relações de saber-poder, atravessado por
conflitos de interesse, dificuldades na comunicação e transparência das informações e um marcante
debate acerca da autonomia do sujeito nas decisões do cuidado em saúde.
Gray (2004) alerta que toda ação de rastreamento pressupõe riscos, sendo necessário avaliar,
pois, os possíveis benefícios. Nas ações de rastreamento de câncer, recentemente, foi iniciado um
debate acerca da questão do sobrediagnóstico (ESSERMAN et al, 2014), e, por consequência, do
sobretratamento, enquanto riscos desta oferta. O sobrediagnóstico, enquanto descoberta de uma
patologia que não se manifestou e tampouco se manifestaria no sujeito, traz à tona a
problematização acerca do excesso de intervenções em saúde sobre um corpo aparentemente
saudável, a autonomia do sujeito deste corpo e a fobia da ciência em relação à morte. Frente ao
sobretratamento decorrente de um sobrediagnóstico, a medicina produz verdadeiros mitos de vidas
que foram salvas, como se a pessoa que habita o corpo-objeto dessas intervenções só pudesse
assegurar sua sobrevivência através da realização contínua de exames e tratamentos de quaisquer
alterações observadas.
Brasil (2010) reforça que, frente a novas tecnologias em saúde, é essencial explorarmos a
dimensão dos benefícios e riscos, a fim de não prescrevermos condutas à população
unilateralmente, mas proporcionando debate acerca das informações disponíveis para auxiliar o
sujeito no seu processo de escolha. Com o envelhecimento da população, o câncer desponta como
uma das patologias mais incidentes e importante causa de mortalidade, atraindo, assim, a atenção
das esferas de gestão, da indústria farmacêutica, de médicos especialistas e de grupos de interesse
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de representação social. A produção de discursos acerca do rastreamento para alguns tipos de
câncer pode ser enviesada, muitas vezes, pelos interesses desses atores, resultando em
recomendações conflitantes e informações parciais acerca destas ações.
Rastreamento em saúde pública
O Instituto Nacional de Câncer (2011) aponta que o rastreamento (screening) é o exame de
pessoas saudáveis (sem sintomas de doenças) com o objetivo de selecionar aquelas com maiores
chances de ter uma enfermidade por apresentarem exames alterados ou suspeitos e que, portanto,
devem ser encaminhadas para investigação diagnóstica, visando à redução da morbimortalidade
pela doença. O rastreamento pode ser organizado, seletivo ou oportunístico (ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DE SAÚDE, 2003), e estas formas de oferta dependem, entre outros fatores, da gestão
e da organização dos serviços de saúde, da disponibilidade de dados epidemiológicos que sustentem
a escolha e da convocação da população.
Wilson e Jungner (1969) estabeleceram alguns critérios para que fosse implementado o
rastreamento de alguma doença, a saber: esta representar um importante problema de saúde pública,
relevante para a população; a sua história natural ser bem conhecida; a existência de estágio pré-
clínico (assintomático) bem definido, durante o qual a doença possa ser diagnosticada; a
superioridade do benefício de detecção e de tratamento precoce; a disponibilidade, aceitabilidade e
confiabilidade dos exames de rastreamento para a população; o custo destes exames e do posterior
tratamento ser compatível com o orçamento da saúde; e o rastreamento ser contínuo e sistemático.
No entanto, para convocar uma população aparentemente saudável à realização de exames
periódicos, é essencial conhecer os possíveis riscos destas intervenções.
Dentre os riscos, há os resultados falso-negativos, que trazem uma sensação equivocada de
proteção ao sujeito, e falsos-positivos, que implicam a realização posterior de outras intervenções
de investigação diagnóstica, completamente desnecessárias, além de gerar preocupação e ansiedade
nas pessoas (BRASIL, 2010). Também há o risco de sobrediagnóstico, que é o diagnóstico de uma
doença encontrada pelo rastreamento que não evoluiria clinicamente e não causaria prejuízos à
saúde da pessoa, e o posterior sobretratamento, o qual representa a realização de tratamentos
desnecessários que podem provocar problemas graves que interferem na qualidade de vida da
pessoa. Louise et al. (2001) apontam para a necessidade de debatermos com os usuários do sistema
de saúde, especialmente os mais idosos, a questão de realizar ou não algum exame de rastreamento,
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considerando tanto os dados quantitativos de riscos e benefícios, quanto os valores e preferências da
pessoa.
Câncer de colo do útero
O câncer de colo do útero é uma doença causada após infecção persistente por HPV, quando
há alteração celular no tecido que evolui lentamente para o câncer. Como estas transformações
podem demorar um período superior a 10 anos, as lesões precursoras podem ser identificáveis
através da realização de exame citopatológico e, assim, esta é uma patologia prevenível e curável
em quase a totalidade dos casos. Uma das estratégias para a identificação dessas lesões consiste no
rastreamento, o qual “representa um processo complexo em múltiplas etapas: aplicação do exame
de rastreamento, identificação dos casos positivos (suspeitos de lesão precursora ou câncer),
confirmação diagnóstica e tratamento” (BRASIL, 2011, p. 19).
As Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero (BRASIL, 2011)
definem a faixa etária de 25 a 64 anos para rastreamento de câncer de colo do útero no Brasil, para
mulheres que já tiveram início da vida sexual, com periodicidade trienal após dois exames
consecutivos negativos. Martins, Thuler e Valente (2005) atentam para o fato de que o exame
citopatológico, além de ser rápido e efetivo para a detecção precoce da doença, ainda é
relativamente de baixo custo enquanto intervenção populacional. O sobrediagnóstico e
sobretratamento são marcantes nas lesões precursoras identificadas em mulheres jovens (25 anos ou
menos), em países que submetem estas mulheres a rastreamento. Nestes casos, identifica-se o
desenvolvimento de lesões que apresentariam regressão sem tratamento (MOSCICKI et al, 2004),
expondo, portanto, a jovem a exame e à posterior intervenção desnecessários.
Para efeito de reflexão, em consulta ao Sistema de Informações do Ministério da Saúde
sobre Câncer de Colo do Útero (SISCOLO/SISCAM), é possível verificar três dados alarmantes: a)
entre outubro de 2014 e outubro de 2015, foram realizados quase 160 mil exames citopatológicos
entre mulheres de menos de 11 anos a 24 anos, sendo 95 mil em periodicidade inferior a três anos, a
maioria desses realizada no mesmo ano ou em um intervalo de um ano; b) no mesmo período, entre
as mulheres na faixa etária recomendada (25 a 64 anos), mais de 780 mil exames foram realizados
em periodicidade inferior a três anos, sendo 500 mil exames repetidos no mesmo ano ou em um
intervalo de um ano; c) no mesmo período, nas mulheres acima de 64 anos, quase 80 mil exames
foram realizados.
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Câncer de mama
O câncer de mama é o mais incidente em mulheres, excetuando-se os casos de pele não
melanoma, com estimativa de mais de 50 mil casos novos da doença no Brasil no ano de 2014
(INCA, 2014). É uma patologia bastante heterogênea, sendo alguns fatores de risco para o
desenvolvimento deste câncer o envelhecimento, uma história familiar de câncer de mama e hábitos
de vida pouco saudáveis, relacionados ao uso de álcool, ausência de prática de exercícios físicos e
sobrepeso ou obesidade. Desses fatores de risco, chama atenção o fato de que quatro de cada cinco
casos de câncer de mama ocorre em mulheres acima dos 50 anos, todavia apenas um em cada dez
casos da doença estão relacionados com história familiar de câncer de mama.
As Diretrizes para detecção precoce de câncer de mama no Brasil (INCA, 2015b) indicam a
realização de mamografia para as mulheres de 50 a 69 anos a cada dois anos. Dentre os riscos da
oferta de mamografia à população assintomática, estão a indução do câncer de mama por radiação,
os resultados falso-positivos, e o sobrediagnóstico e sobretratamento, presentes em até 30% dos
exames realizados (KÖSTERS; GOTZSCHE, 2008). INCA (2015a), ao realizar o monitoramento
das mamografias de rastreamento realizadas no Brasil, entre os anos de 2010 e 2013, conclui que
ainda há uma proporção elevada de mamografias de rastreamento realizadas em mulheres entre 40 e
49 anos, apesar do balanço desfavorável entre riscos e benefícios desta prática.
O mercado, a medicina e o corpo feminino
A partir do momento que entendemos a saúde imbricada no mercado que regula as
necessidades dos sujeitos e o acesso às tecnologias, passamos a observar com mais nitidez os
processos de consumo que atravessam o cotidiano das pessoas nesse âmbito. O pacto social vigente,
conforme refletem Porto e Garrafa (2008), é marcado pela possibilidade dos sujeitos se inserirem no
mercado, seja como produtores ou consumidores de tecnologia. Assim, conceitos como o de
“prevenção” e “cuidado” passam a ser traduzidos em ideologias e materializados em bens
adquiríveis, passíveis de marketing, cujo consumo parece definir também uma espécie status social.
Um bom exemplo dessas práticas é o movimento do Outubro Rosa, o qual situa o exame de
mamografia como mercadoria principal, atrelando ao exame a maior demonstração de cuidado que
uma mulher pode ter em relação a seu corpo. O procedimento passa a ser comercializado a partir de
slogans coloridos e motivacionais, veiculando a imagem de mulheres “vencedoras”, “que se
cuidam” e “que se amam”, sem debater os desconfortos, riscos e danos que tal exame traz à saúde.
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Além disso, a realização do exame vem ancorada na propagação do medo do câncer enquanto
doença misteriosa e fatal. A própria ideia de um exame “preventivo”, nesse caso, é uma falsa
propaganda, que se sustenta no fato de que, felizmente, a maior parte das mulheres que consomem o
exame não descobrem, de fato, um câncer.
Dentre os exames de rastreamento de câncer, o exame citopatológico é o único que preserva
a possibilidade de identificação de uma lesão pré-cancerígena. A mamografia, por sua vez, estaria
situada num nível de prevenção do agravo de um câncer já instalado. E, ambos os exames, quando
realizados de forma indiscriminada, representam ações de prevenção quaternária, onde os danos são
maiores que os benefícios. Ao serem incluídos no pacote de saúde chamado de “check-up”,
“exames preventivos” ou “exames anuais”, esses procedimentos passam a ser prescritos e realizados
de forma acrítica, mas, não por isso, isentos de ideologia agregada.
Há uma função social na realização periódica de exames, também relacionada com a
necessidade de preservar o caráter produtivo do corpo jovem. Tais exames estão situados num
contexto de capitalismo fundado nas relações de trabalho e na capacidade de produção e
reprodução, onde a mulher, seja como mão-de-obra, seja como cuidadora daqueles que trabalham,
desempenha papel-chave na manutenção do sistema. Assim, ao passo que a mulher tem garantido o
direito a consumir essa modalidade de saúde (exames), não possui, de fato, o direito de adoecer.
Foucault (1987) situa o corpo como objeto e alvo do poder, com diversas disciplinas
incidindo sobre o mesmo. Podemos pensar essa realização de exames enquanto atos disciplinares do
campo da saúde, que visam a monitorar e, posteriormente, a intervir de modo a potencializar o
exercício desse corpo socialmente, mantendo preservada a função do trabalho. Na saúde, essas
prescrições universais, como as vacinas e os exames “de rotina”, são controladas tanto pelos
profissionais de saúde, quanto pela própria população, que interroga e censura seus pares.
O corpo, compreendido como fato concreto, é um reflexo da incorporação da estrutura social
e também um vetor de reprodução e perpetuação da dominação (MONTAGNER, 2008). É a partir
da corporeidade que inserimos os sujeitos no mundo e esse corpo, que conta história, também é o
corpo-objeto das intervenções que visam a docilizá-lo. Porto e Garrafa (2008) situam a
corporeidade como parâmetro das intervenções éticas, regulada por sensações de prazer e dor.
Enquanto materialização da própria condição de pessoas dos sujeitos, o corpo representa a
integração entre as dimensões físicas e psíquicas, formado e deformado constantemente pela sua
interação em relações sociais, ambientais e culturais.
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A identidade de gênero, que parece perpassar as mulheres, partilhada em certo entendimento
do papel do feminino na sociedade, é, também, uma marca histórica que se observa nos corpos.
Quando a medicina se ocupa dos corpos femininos, ela o faz desde um lócus de saber e poder, de
modo a controla-los em sua sexualidade, via de regra, a partir do pressuposto biológico de
reprodução. Isso implica dizer que as mulheres ocidentais são subjetivadas socialmente a partir de
um consenso cultural de onde e quando seu corpo pode ser sexual, e em quais limites essa mulher
esbarra ao exercer seu desejo.
Sem haver benefício clínico comprovado para tal intervenção, a menina que menstrua pela
primeira vez é estimulada a frequentar o médico ginecologista, a menstruação aí já caracterizada
como um primeiro “sintoma” dessa sexualidade a ser monitorada. E, mais a frente, quando inicia
seu corpo nas práticas sexuais, a jovem passa a ser convocada para a realização de um exame, o
qual simula a penetração sexual, agora em busca de doenças. De certa forma, essa convocação serve
para que a jovem possa ser lembrada, na periodicidade definida pelo profissional de saúde, dos
perigos de estar exercitando seu corpo sexualmente sem intenção reprodutiva.
Elias (1990) ressalta que os processos civilizadores estão marcados por imperativos de
vergonha e silêncio sobre o corpo, sendo necessário o controle dos impulsos, inclusive os sexuais,
através de uma autodisciplina. Assim, parece fazer sentido que a referência para os discursos sobre
o corpo esteja situada em uma figura de autoridade detentora de algum saber inatingível (dos padres
aos médicos). Uma quebra de silêncio através da troca entre grupos de adolescentes, por exemplo,
seria temida pela sociedade, devido à possibilidade de, entre pares, construirmos sentidos para as
práticas que são menos moralizantes e disciplinares.
Essa vergonha é um sentimento reafirmado pela própria ginecologia que, de acordo com
Rohden (2009), é uma ciência que vem para estudar e tratar o corpo da mulher em sua normalidade,
pois considera as manifestações desse corpo (variações hormonais, sangramento menstrual)
potencialmente patológicas. A mulher, tida como aquela que sofre de perturbações e desequilíbrios,
é, ao mesmo tempo, o retrato de todas as mulheres do mundo e uma pessoa singular, que deve
manter suas questões corporais num espectro de sigilo e silêncio, buscando a autodisciplina. Como,
então, essas mulheres enxergam a manipulação do seu corpo pela ciência médica?
No estudo de Rico e Iriart (2013), a partir de entrevistas com mulheres que realizam o
exame citopatológico, foi possível observar alguns sentidos atribuídos ao procedimento: a) o
primeiro exame como marco do ingresso dessas mulheres a um universo feminino partilhado, uma
espécie de nova etapa no desenvolvimento desse corpo de mulher; b) o exame como uma
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necessidade resultante de um uso “sujo” do corpo, de uma promiscuidade que pode resultar em
adoecimento e precisa ser acompanhada; c) o discurso moral acerca de uma responsabilidade
individual sobre o não-adoecimento e, mais, uma espécie de dever feminino.
Já o estudo de Paula e Madeira (2003) traz relatos de mulheres que realizaram o
citopatológico, mostrando que muitas delas são capazes de repetir o conceito de necessidade de
realizar o exame propagado pelas propagandas, todavia atrelado a sentimentos de medo, de dor e de
vergonha. A importância desse “cuidado” parece se sobrepor ao não-desejo de realizar o
procedimento. A violência da exposição de seu corpo para o exame, do rompimento com o pacto
que exige da mulher que se resguarde em suas intimidades, parece também gerar sentimentos de
ansiedade e raiva, que poderiam ser trabalhados em uma relação de confiança entre o profissional
de saúde e a mulher. Ou seja, a mulher pode não possuir o saber médico acerca do seu corpo, mas
sabe sobre o seu corpo e sua história, e isso deve ser entendido como parte essencial da intervenção.
No estudo de Mendonça (2009) sobre a não-realização da mamografia entre mulheres, os
dados de entrevistas mostram experiências de mulheres que buscaram a realização do exame antes
da faixa etária, devido ao apelo da mídia. Mesmo frente a médicos que não recomendaram a
realização naquela idade, o imperativo de “cuidar-se” levou essas mulheres a procurar o
procedimento por conta própria. Dentre os relatos de não-realização do exame, o componente da
dor emerge como principal motivo para evitar a experiência, aliado ao medo de um resultado ruim.
O fato da mamografia ser realizada em um ambiente asséptico, em que um profissional técnico
apenas orienta a mulher sobre posicionamento e a deixa só para a vivência dolorida do
procedimento, contribui para o sofrimento relatado. Novamente, o corpo é manipulado sem a
construção prévia de um sentido subjetivo.
Considerações finais sobre gênero e saúde
O corpo feminino se constitui, em alguma medida, a partir de discursos que moldam e
manipulam a função da mulher socialmente. O saber médico, inserido na lógica de mercado
capitalista, muitas vezes fragmenta o corpo da mulher de modo a melhor controla-lo, propondo
intervenções que, não raro, causam danos simbólicos e físicos. O silêncio sobre os corpos e suas
pulsões é parte de um pacto social que impulsiona mulheres a medicalizar e patologizar processos
físicos normais, alienando-se dos sentidos dessa manipulação e consumindo um conceito de
prevenção que diz da autodisciplina em relação a um cuidado vigilante, de si e dos outros.
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No que tange aos exames de rastreamento de câncer de mama e colo do útero, os órgãos
sexuais e reprodutivos da mulher são objeto dessa vigilância, mesmo em casos onde a ciência
acadêmica já encontra evidências para não-realização de tais procedimentos. Nesse ponto, podemos
observar o quanto as relações sociais, marcadas por forças de saber e poder distintas, são peça-
chave na manutenção de condutas antiéticas em saúde, em prol de um controle e de uma docilização
dos corpos. Scott (1990) apontaria que o gênero é fundado no discurso, o qual é um instrumento
para orientação do mundo.
O corpo, como esfera relacional do ser humano, é manipulado por procedimentos que se
respaldam numa espécie de discurso científico para mantê-lo dentro das normas que o discurso
social da mulher “que se cuida, que se ama, que precisa se preservar” cria. Essa mulher irreal, como
alertar Lessa (2005), é quem representa o “feminino” na publicidade: uma mulher que consome e é,
ao mesmo tempo, produto de consumo. A publicidade situa a ideia de cuidado no campo desse
feminino, como um papel a ser desempenhado por todas as mulheres, acriticamente. É comum,
inclusive, verificar, entre mulheres que receberam o diagnóstico de câncer de mama ou de colo do
útero, sentimentos de culpa por “não terem se cuidado direito” e de desvalorização de si “por terem
‘deixado de ser mulher’ após as cirurgias”.
A mulher, nos discursos da saúde pública e privada, é a mulher “mãe”, é a mulher que
submete seu corpo à medicina para inspeção periódica de suas práticas e, assim, é a mulher que a
indústria farmacêutica e tecnológica pode explorar. O movimento Breast Cancer Action, nos
Estados Unidos, lançou a campanha “Think Before You Pink”, a qual aborda a história do Outubro
Rosa, remetendo a produção e distribuição de lacinhos rosas à indústria farmacêutica e de
cosméticos. Alertam para o fato de que os procedimentos de rastreamento de câncer possuem riscos
os quais são escondidos das mulheres, já que há um interesse muito maior em comercializar esses
exames, inclusive glamourizar eles, o que é facilmente observável nos meses comemorativos, onde,
por exemplo, uma mulher pode se inscrever na academia e ganhar “de brinde” uma mamografia, ou
ir ao shopping e perceber milhares de anúncios indicando a necessidade de realização do exame a
partir dos 40 anos (faixa etária, como já exposto, sem recomendação científica para realização).
Argumento aqui, portanto, que a manipulação dos corpos femininos na saúde pública e
privada, especialmente nos exames de rastreamento de câncer de mama e colo do útero, é mais uma
insígnia da violência de gênero, sustentada pelo mercado. São exames desconfortáveis, doloridos e
com riscos graves atrelados, os quais são prescritos de forma unilateral, muitas vezes sem sequer
haver um debate com a mulher acerca de seu corpo e da intervenção proposta. No Brasil, ainda são
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realizados, em boa parte, em faixas etárias cujos riscos do exame superam os benefícios, nesse caso,
servindo apenas para os propósitos de lucro dos profissionais e indústrias envolvidos. Parece
essencial, portanto, a retomada do corpo pelas mulheres, a partir de espaços coletivos de
empoderamento e troca, de modo a ressignificar essa urgência de patologização do feminino em
potência de existência.
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Manipulation of women's bodies and health prevention: thoughts on cervical and breast
cancer screening among women
Abstract: The study aims to approach the manipulation of women's bodies in the so-called
"preventive tests" of cancer, pap-smear and mammography. The construction of a concept of health
prevention is situated in an economical marlet-logic and, when analyzed, it is possible to verify
numerous implications of an uncritical prescription of screening tests, specially concerning
women's bodies, discourses of power and knowledge in health and roles of women in society.
Screening tests have risks that are rarely discussed with healthcare users. In the current scenario of
Brazilian National Health System, we can observe these tests are performed among women outside
the reccomended ages and screening intervals. That results in iatrogenic practices over the female
body, as well as overdiagnosis and overtreatment of those diseases, which affects not only woman
in her subjective experience, but the public health system as a whole, in a process that maintains the
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
iniquities of access to early diagnosis and treatment of these cancers, while not providing
empowerment of women to self-care practices. It is necessary, therefore, to advocate for the
recovery of the body by women, constituting spaces of empowerment, where shame and silence are
replaced by an active confrontation of the processes of pathologization of the feminine.
Keywords: Pap smear; mammogram; prevention; public health.