a magia dos trouxas

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anorama P LITERATURA Porto Alegre, quinta-feira, 13 de dezembro de 2012 - Nº 112 Mariana Amaro, especial JC a edição brasileira de Morte súbita (Nova Fronteira, 512 págs., R$ 49,90), um dos livros mais aguardados pela crítica em 2012, chega às livrarias de todo o País nesta semana. A nova aposta da britânica J.K. Rowling (autora da saga Harry Potter) busca provar que a estrela da autora é maior do que a de sua criação. Porém, desta vez, não é o bruxinho que brilha nas páginas dos jornais, e sim, a própria Rowling. Bem longe da escola de bruxaria de Hogwarts, mas não tão longe da Rua dos Alfeneiros, a Pagford de Morte súbita é habitada por “trouxas” (termo utilizado por Rowling na série Harry Potter para descrever pessoas não má� gicas), e não causaria estranheza se os tios de Potter, Valter e Violeta Dursley, aparecessem na história. Provavelmen� te, estariam muito mais confortáveis nessa narrativa do que no mundo lúdico e cheio de magia da obra anterior da autora. A trama se desenrola a partir da morte súbita de Barry Fairbrother, que repercute de diferentes formas na vida de cada morador. O sinistro abre imediatamente uma vaga no Conselho do Distrito de Pagford e, em sequência, começa uma eleição para ocupar a lacu� na deixada por Fairbrother. A disputa é importante, pois quem assumir o posto pode ser o voto de Minerva para deter� minar se a região The fields, habitada por dependentes de drogas e população marginalizada, deve permanecer como parte de Pagford ou ser incorporada à administração da cidade vizinha, Yarvil, igualmente “desagradável”, nas pala� vras dos figurões da comunidade. A disputa rapidamente penetra nos corações e nas mentes de jovens e adultos, ricos e pobres, donas de casa e políticos da cidade. Na superfície, tudo pode parecer igual, mas o leitor vai descobrindo que a realidade se tornou quebradiça, fina como papel. Intrigas, traições, prostituição, drogas e suicídio são alguns dos temas abordados em Morte súbita. No livro, bem e mal se confundem, e ninguém é meramente aquile que aparenta ser. Em toda sua extensão, a obra destila acidez e ironia sobre a sociedade moderna e a cultura da “boa vizinhança”. Rowling revela, por meio de um texto ao mesmo tempo intrincado e fluído, que o dia a dia se equilibrava ali como peças de um dominó postas de pé a contragosto. Assim, direta ou indireta� mente, a queda de Fairbrother é capaz de desestabilizar a relação entre um pai abusivo e seus filhos, revelar amores impróprios e a vida trágica de uma jovem, filha de uma prostituta viciada em heroína. O personagem principal de Morte súbita é, então, uma lacuna a ser preenchida. É a vida regada pela morte. Professora da Unisc e doutora em Letras, Ana Cláudia Munari escolheu a série Harry Potter e sua narrativa como tema de pesquisa após notar o interesse espontâneo que a obra despertava nos alunos do ensinos Fundamental e Médio, mesmo os que não gostavam muito de ler ou escrever. Alguns dos estudantes ainda “escreviam fan fiction (histórias criadas por fãs a partir dos personagens e locais da trama) com até mais capítulos que o original com todo o fervor de criadores de histórias”. Conforme ela, o repertório da narrativa de Rowling em Harry Potter é extremamente denso. “São muitos personagens e suas histórias, que se entrelaçam nesse eixo esquemático que é, aos pou� é, aos pou� aos pou� cos, oferecido � uma imensa teia em que o leitor também tem de te� cer e, às vezes, destecer”, explica. Criando um paralelo entre a nova obra da autora e os livros que marcaram seu nome na literatu� ra, Ana Cláudia diz que Rowling parece ser campeã em estratégias textuais. “Ela repete algumas estratégias, mesmo que de forma diferente. Agora, escolheu um único livro e insere os esquemas logo no início, criando novamente um intrincado universo. É uma complicada trama humana, sem magia, mas com uma camada de indeterminação, aos moldes dos livros de mistério que instigam a curiosidade.” Ao decidir não adotar um pseu� dônimo e lançar Morte súbita, a autora resolveu enfrentar críticas, anunciando que sua maior perda seria ler comentários negativos como “de volta para os bruxos, Rowling”. Contudo, o livro recebeu avaliações positivas da mídia. “Como ela quer fugir do estere� ótipo da literatura de massa � e, ao mesmo tempo, não mexer em time que está ganhando �, a his� tória trama laços humanos, mais profundos do que meros casos de mortes súbitas e mexericos de vizinhos”, avalia. Figurando entre os mais ven� didos da Inglaterra, Morte súbita não decepciona, apesar de estar bem distante das 450 milhões de cópias vendidas no mundo todo com os sete volumes da série. A maior ressalva dos críticos foi o fato de o livro não ter o “toque mágico” da saga que deslanchou sua carreira. O livro é um passo importante na independência criativa de J.K. Rowling, que demonstra que pode voar sem a vassoura de Potter como meio de transporte. Independência criativa TROUXAS a magia dos Morte súbita é o primeiro livro adulto da britânica J.K. Rowling NOVA FRONTEIRA/DIVULGAÇÃO/JC

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Matéria sobre o Morte Súbita, novo livro de J.K. Rowling para o Panorama.

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anoramaPLI

TERA

TURA

Porto Alegre, quinta-feira, 13 de dezembro de 2012 - Nº 112

Mariana Amaro, especial JCa edição brasileira de Morte súbita (Nova Fronteira, 512 págs., R$ 49,90), um dos livros mais aguardados pela crítica

em 2012, chega às livrarias de todo o País nesta semana. A nova aposta da britânica J.K. Rowling (autora da saga Harry Potter) busca provar que a estrela da autora é maior do que a de sua criação. Porém, desta vez, não é o bruxinho que brilha nas páginas dos jornais, e sim, a própria Rowling.

Bem longe da escola de bruxaria de Hogwarts, mas não tão longe da Rua dos Alfeneiros, a Pagford de Morte súbita é habitada por “trouxas” (termo utilizado por Rowling na série Harry Potter para descrever pessoas não má�gicas), e não causaria estranheza se os tios de Potter, Valter e Violeta Dursley, aparecessem na história. Provavelmen�te, estariam muito mais confortáveis

nessa narrativa do que no mundo lúdico e cheio de magia da obra anterior da autora.

A trama se desenrola a partir da morte súbita de Barry Fairbrother, que repercute de diferentes formas na vida de cada morador. O sinistro abre imediatamente uma vaga no Conselho do Distrito de Pagford e, em sequência, começa uma eleição para ocupar a lacu�na deixada por Fairbrother. A disputa é importante, pois quem assumir o posto pode ser o voto de Minerva para deter�minar se a região The fields, habitada por dependentes de drogas e população marginalizada, deve permanecer como parte de Pagford ou ser incorporada à administração da cidade vizinha, Yarvil, igualmente “desagradável”, nas pala�vras dos figurões da comunidade.

A disputa rapidamente penetra nos corações e nas mentes de jovens e adultos, ricos e pobres, donas de casa e políticos da cidade. Na superfície, tudo

pode parecer igual, mas o leitor vai descobrindo que a realidade se tornou quebradiça, fina como papel. Intrigas, traições, prostituição, drogas e suicídio são alguns dos temas abordados em Morte súbita. No livro, bem e mal se confundem, e ninguém é meramente aquile que aparenta ser. Em toda sua extensão, a obra destila acidez e ironia sobre a sociedade moderna e a cultura da “boa vizinhança”.

Rowling revela, por meio de um texto ao mesmo tempo intrincado e fluído, que o dia a dia se equilibrava ali como peças de um dominó postas de pé a contragosto. Assim, direta ou indireta�mente, a queda de Fairbrother é capaz de desestabilizar a relação entre um pai abusivo e seus filhos, revelar amores impróprios e a vida trágica de uma jovem, filha de uma prostituta viciada em heroína. O personagem principal de Morte súbita é, então, uma lacuna a ser preenchida. É a vida regada pela morte.

Professora da Unisc e doutora em Letras, Ana Cláudia Munari escolheu a série Harry Potter e sua narrativa como tema de pesquisa após notar o interesse espontâneo que a obra despertava nos alunos do ensinos Fundamental e Médio, mesmo os que não gostavam muito de ler ou escrever. Alguns dos estudantes ainda “escreviam fan fiction (histórias criadas por fãs a partir dos personagens e locais da trama) com até mais capítulos que o original com todo o fervor de criadores de histórias”.

Conforme ela, o repertório da narrativa de Rowling em Harry Potter é extremamente denso. “São muitos personagens e suas histórias, que se entrelaçam nesse eixo esquemático que é, aos pou�é, aos pou� aos pou�cos, oferecido � uma imensa teia em que o leitor também tem de te�cer e, às vezes, destecer”, explica. Criando um paralelo entre a nova obra da autora e os livros que marcaram seu nome na literatu�ra, Ana Cláudia diz que Rowling parece ser campeã em estratégias textuais. “Ela repete algumas estratégias, mesmo que de forma diferente. Agora, escolheu um único livro e insere os esquemas logo no início, criando novamente um intrincado universo. É uma complicada trama humana, sem magia, mas com uma camada de indeterminação, aos moldes dos livros de mistério que instigam a curiosidade.”

Ao decidir não adotar um pseu�dônimo e lançar Morte súbita, a autora resolveu enfrentar críticas, anunciando que sua maior perda seria ler comentários negativos como “de volta para os bruxos, Rowling”. Contudo, o livro recebeu avaliações positivas da mídia. “Como ela quer fugir do estere�ótipo da literatura de massa � e, ao mesmo tempo, não mexer em time que está ganhando �, a his�tória trama laços humanos, mais profundos do que meros casos de mortes súbitas e mexericos de vizinhos”, avalia.

Figurando entre os mais ven�didos da Inglaterra, Morte súbita não decepciona, apesar de estar bem distante das 450 milhões de cópias vendidas no mundo todo com os sete volumes da série. A maior ressalva dos críticos foi o fato de o livro não ter o “toque mágico” da saga que deslanchou sua carreira. O livro é um passo importante na independência criativa de J.K. Rowling, que demonstra que pode voar sem a vassoura de Potter como meio de transporte.

Independênciacriativa

TROUXASa magia dos

Morte súbita é o primeiro

livro adulto da britânica J.K.

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