a magia da realidade
TRANSCRIPT
•
• •
•
•
•
•
•
•
. � ·
/ . .1••----·
\ ___ /
•
r\ · - · ....... -- .
• ' ----· ....... .
/-.........\ • •
• •
Como sabemos o que é verdade
ILUST
-
TRADUÇAO
LAURA TEIXEIRA MOTTA
•
• •••••••••••• •••••••••••••
CIA. DAS LETRAS
Copyright do texto© 2011 by Richard Dawkins Copyright das ilustrações© 2011 by Dave McKean
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original The magic of reality
Capa Fabio Uehara
Preparação Lígia Azevedo
Índice remissivo Luciano Marchiori
Revisão Luciane Helena Gomide
Márcia Moura
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Dawkins, Richard A magia da realidade : como sabemos o que é verdade
/ Richard Dawkins ; ilustrações Dave McKean ; tradução Laura Teixeira Motta. - lª ed. - São Paulo : Companhia das Letras, 2012.
Título original: The magic of reality. ISBN 978-85-359-2054-3
1. Ciência - Filosofia 2. Ciência - Miscelânea 3. Natureza 4. Realidade 1. McKean, Dave. II. Título.
12-00710
fndice para catálogo sistemático: 1. Ciências : Filosofia 501
[2012]
CDD-501
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ S.A. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32
04532-002 São Paulo SP Telefone (11) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
• •
•
•
• •
•
Clinton John Dawkins
1915-2010
Oh, meu pai querido
•
•
•
, •
•
ue é ma ia? 12
uem oi ·a rimeira essoa? 32
Por ue existem tantos ti os
e animais? 54
Do ue são eitas as coisas? 76
Por ue temos noite e ia,
inverno e verão?
ue é um arco-íris?
96
118
140
•
•
•
•
•
•
•
•
uan o e como tu o
come ou? •
•
•
160
•
•
· Es·tamos sozin os? 182
•
•
•
ue é um terremoto? 204
Por ue coisas ruins
acontecem? 226
•
_ . ue é um mi a re? 246
,, ln ice 267
ra ecimentos 271
•
•
• •
•
•
'
•
•
•
•
,,,,.,.. .,.,.. - h. o.., '** ...
., ... 1 t "'�··
•
•
. � .
• •
•
�-- ,.;, b
J4., I ··11 "1'-
-
,. . ,.... •
� ·I
• - - , -. ;.
-11 .. ,.., zrlf.. .... . - '
1�
•
12
•
EALIDADE É TUDO o que existe. Parece claro,
não? Só que não é. Há vários problemas. O que di
zer dos dinossauros, que não existem mais? E das estre
las, tão distantes que quando sua luz finalmente chega
até nós e conseguimos vê-las podem já ter se extinguido?
Trataremos dos dinossauros e das estrelas daqui a
pouco. Mas, afinal, como sabemos que as coisas exis
tem, mesmo no presente? Para começar, nossos cinco
sentidos visão, olfato, tato, audição e paladar fa
zem um trabalho razoável para nos convencer de que
muitas coisas são reais: pedras e camelos, grama recém
-cortada e café moído na hora, lixa e veludo, cachoeiras
e campainhas, açúcar e sal. Mas dizemos que algo
é cereal'' só quando podemos detectá-lo direta
mente com nossos cinco sentidos?
E quanto a uma galáxia, tão distante que
não pode ser vista a olho nu? E uma bactéria, tã-0 •
pequena que só pode ser vista com um micros
cópio? Devemos dizer que essas coisas não exis- ·
tem porque não· as enxergamos? Não. É claro que
podemos intensificar nossos sentidos com ins
trumentos especiais: telescópios para as galáxias,
microscópios para as bactérias. Entendemos os
telescópios e microscópios, sabemos como f4ri
cionam, por isso podemos usá-los para aumentar
o alcance dos sentidos da visão, nesses casos. E
o que esses instrumentos nos permitem ver nos
convence de que galáxias e bactérias existem .
•
•
.
E quanto às ondas de rádio? Existem? Os
olhos não podem detectá-las, nem as orelhas,
mas, também nesse caso, instrumentos especiais,
como a televisão; convertem essas ondas em si
nais que podemos ver e ouvir. Portanto, embora
não possamos ver nem ouvir as ondas de rádio,
sabemos que são parte da realidade. Eritendemos
o funcionamento do rádio e da televisão, que aju
dam nossos sentidos a construir uma imagem do
que existe: o mundo real, a realidade. Radiote
lescópios (e telescópios de raios X) nos mostram
estrelas e galáxias através de outro tipo de olho -
são mais um modo
· de expandir a •
. ....
nossa visao . .
1 3
•
•
•
Sempre existiram átomos, mas só recen
temente tivemos certeza disso, e é provável que
nossos descendentes saibam muitas outras coisas
que hoje desconhecemos. É o fascínio e o prazer da ciência: ela revela coisas continuamente. Isso não quer dizer que devemos acreditar em tudo
que se possa imaginar. Há inúmeras coisas que
podemos imaginar cuja existência é improvável
demais para ser real: fadas, duendes, hipogrif os.
Devemos ter sempre a mente aberta, mas a única
razão para acreditar que algo existe é ter evidên
cias reais dessa existência.
Modelos: imaginação à prova •
Há um recurso menos conhecido que os
cientistas usam quando nossos sentidos não
conseguem decidir o que é real. Eles criam um
ccmodelo'' do que poderia estar acontecendo, de
pois o testam. Imaginamos você poderia dizer
que tentamos adivinhar qual seria a situação.
Em seguida, calculamos (normalmente pela ma
temática) o que deveríamos ver, ouvir etc. se o
modelo fosse verdadeiro (em geral com ajuda de
instrumentos de medição). Verificamos se foi isso
mesmo o que vimos na realidade. O modelo pode
ser de vários tipos: uma maquete feita de madei
ra ou plástico, uma série de cálculos matemáti
cos no papel ou uma simulação por computador.
Examinamos atentamente o modelo e predizemos
o que teríamos de ver (ouvir etc.) com os nossos
sentidos (auxiliados talvez por instrumentos) se
o modelo fosse correto. Por fim, averiguamos
se as predições estão certas ou erradas. Se es
tiverem certas, isso aumenta nossa confiança
de que o modelo representa mesmo a realidade; passamos então a criar novos experimentos, talvez refinando o modelo, para testar no
vamente as conclusões e confirmá-las. Se nossas
predições estiverem erradas, rejeitamos o
modelo, ou o modificamos e fazemos uma nova tentativa.
1 6
Vejamos um exemplo. Hoje, sabemos que os
genes, as unidades da hereditariedade, são feitos
de uma substância chamada DNA. Temos bons conhecimentos sobre o DNA e como ele funciona.
Mas não podemos ver detalhadamente como ele
é, nem mesmo com um microscópio. Quase tudo
o que sabemos sobre o DNA provém, indiretamen
te, de modelos que foram imaginados e testados.
Na verdade, muito antes que alguém tives
se ouvido falar em DNA, os cientistas ja tinham
descoberto várias coisas sobre os genes testando
predições de modelos. No século XIX, um monge
austríaco, Gregor Mendel, fez experimentos na
horta de seu mosteiro, cruzando ervilhas em
grandes quantidades. Ao longo de gera
ções dessas plantas, ele contou quantas
tinham flores de várias cores e quantas tinham grãos enrugados ou lisos.
Mendel nunca viu ou tocou um gene.
Viu apenas ervilhas e flores, e usou
seus olhos para contar os diver-
sos tipos. Ele inventou
um modelo, que envolvia o que nos dias de hoje
chamamos de
·-
• •
� . ..... -· ----� .. >.e:::--· •
"--·- ·--. -· .......__ . '·--� --·-•
/ ---. )<:._./ • ............ .___ __
.- - - "" ' ·;:y·
oo ao ao ooor1r1
·-
o . · ~ ... . 1 l.. ='t, -· ,,._, . . ...... .. �
� � _ ..... - -4 � ·-� ••
r;-.. , • • .., .,....._
-..,. ... ...... ---'•...... ..�-tt.
L .... • ....,
-
•
genes (embora Mendel não usasse esse termo), e·� calculou que, se o modelo fosse correto, em dado
experimento de cruzamento deveriam nascer três
vezes mais ervilhas lisas que enrugadas. E foi isso
mesmo que ele viu ao fazer a contagem. Deixando
de lado os detalhes, o importante é que os ((genes''
de Mendel foram produto de sua imaginação: ele ,.,, • • I • •
nao os via, nem mesmo ao microscopio, mas via
ervilhas lisas e enrugadas, e pela contagem delas
encontrou evidências indiretas de que seu mode
lo de hereditariedade era uma boa representação
de algo no mundo real. Tempos depois, cientistas
usaram uma modificação do método de Mendel, trabalhando com outros seres vivos, como
drosófilas, em vez de ervilhas, para mostrar que os genes se encadeiam em uma ordem definida
ao longo de filamentos chamados cromossomos
(nós, humanos, temos 46 deles; as drosófilas têm
oito). Foi possível até calcular, testando modelos, a ordem exata na qual os genes se dispunham.
Tudo isso foi feito muito antes de sabermos que os genes eram feitos de DNA.
Hoje temos esse conhecimento, e sabemos
exatamente como o DNA funciona, graças a James
•
Watson e Francis Crick, além de muitos outros
cientistas que vieram depois deles. Watson e Crick
não puderam ver o DNA a olho nu também
fizeram suas descobertas imaginando modelos e
testando-os. Eles construíram modelos de pape
lão e metal representando uma possível estrutura
do DNA e calcularam quais teriam de ser as medidas se tais modelos fossem corretos. As predições
de um dos modelos, chamado de dupla hélice,
corresponderam exatamente às medições feitas
por Rosalind Franklin e Maurice Wilkins usando
instrumentos especiais que projetavam raios X
1 7
•
1 8
•
•
•
•
em cristais de DNA purificado. Watson e Crick também per·ceberam imediatamente que seu modelo da estrutura do DNA
produziria exatamente o tipo de resultados encontrado por Gregor Mendel na horta de seu mosteiro.
Portanto, temos três modos de saber o que é real. Podemos
detectar diretamente com nossos cinco sentidos; indiretamen
te, com instrumentos especiais como telescópios e microscó
pios auxiliando nossos sentidos; ou ainda mais indiretamente,
criando modelos do que poderia ser real e fazendo uma série de
testes para ver se eles predizem corretamente o que podemos
ver (ouvir etc.), com ou sem a ajuda de instrumentos. Em últi
ma análise, de um modo ou de outro tudo será confirmado por
nossos sentidos.
Isso quer dizer que a realidade contém apenas coisas que
podem ser detectadas, direta ou indiretamente, pelos nossos
sentidos e pelos métodos da ciência? Mas e coisas como ciúme
e prazer, felicidade e amor? Não são também reais? Sim, são reais. Mas para existir dependem do cérebro: do
cérebro humano, com certeza, e provavelmente também do cé
rebro de outras espécies animais avançadas, como chimpanzés,
cães e baleias. Pedras não sentem alegria nem ciúme, montanhas
não amam. Essas emoções são intensamente reais para quem as
sente, mas não existiam antes de o cérebro existir. É possível que
emoções desse tipo e talvez outras com as quais nem sonha
mos existam em outros planetas, mas apenas naqueles que
contenham cérebros, ou algo equivalente a eles, pois quem sabe
que estrambóticos órgãos pensantes ou máquinas providas de
sentimentos podem existir em outras partes do universo?
A ciência e o sobrenatural: a explicação e seu inimigo
Então essa é a realidade, e é assim que podemos saber se
uma coisa é ou não real. Cada capítulo deste livro tratará de
um aspecto específico da realidade o Sol, os terremotos, o
arco-íris ou os muitos tipos de animais. Agora quero falar so-.
bre a outra palavra-chave do meu título: magia. É uma palavra ardilosa. Costumamos usá-la em três sentidos diferentes, e
a primeira coisa que preciso fazer é distingui-los. Chamarei o
primeiro de ccmagia sobrenatural': o segundo de ccmagia de pal
co'' e o terceiro (que é o meu sentido favorito e o que eu tinha
em mente no meu título) de ''magia poética':
19
•
•
•
•
Magia sobrenatural é aque-
la descrita nos mitos e contos de fadas. (E
também nos <<milagres>: mas deixarei estes
para examinar no último capítulo.) É a magia d�
lâmpada de Aladim, dos feitiços de bruxa> das
histórias dos irmãos Grimm> de Hans Christian
Andersen e de J. K. Rowling. É a magia ficcional
da bruxa que transforma um príncipe num sapo,
ou da fada madrinha que faz uma abóbora virar
uma luxuosa carruagem. Essas são histórias da
nossa infância que recordamos com ternura, e
muitos de nós ainda apreciam quando são repre
sentadas em um espetáculo de Natal. Mas todos
sabemos que esse tipo de magia é apenas ficção e
não acontece na realidade.
A magia de palco> em contraste, realmen -
te acontece e pode ser muito divertida. Ou, pelo
menos, alguma coisa realmente acontece, embora
não seja o que a plateia está pensando. Um ho
mem num palco (costuma ser um homem, não
20
• A sei por que, então usarei <<ele'); mas você pode trocar
por ''elà: se preferir) nos ilu
de, fazendo-nos pensar que algo
espantoso (talvez até sobrenatural) acon -
teceu, quando o que realmente houve foi uma
coisa bem diferente. Lenços de seda não podem
ser transf armados em coelhos, do mesmo modo
que sapos não podem virar príncipes. O que ve
mos no palco é apenas um truque. Nossos olhos
nos enganam ou melhor, o mágico se empenha
em iludir nossos olhos, às vezes usando palavras com astúcia para nos distrair do que ele está fa
zendo com as mãos.
Alguns mágicos são honestos e fazem questão de que a plateia saiba que eles simplesmente
•
•
mque , umero
--stou pensando? •
'
•
•
executaram um truque. Estou falando de pes
soas como James ('o Incrível'' Randi, Penn e Tel
ler, ou Derren Brown. Embora esses admiráveis
artistas não costumem explicar exatamente como
fizeram um truque (até porque poderiam ser ex -
pulsos do Círculo Mágico, o clube dos mágicos),
eles asseguram ao público que nenhuma magia
sobrenatural aconteceu. Outros não dizem com
todas as letras que tudo não passa de um truque, porém não ficam alardeando o que não fizeram;
simplesmente deixam a plateia com a prazerosa
sensação de que algo misterioso aconteceu, sem
mentir. Infelizmente, existem alguns mágicos
que são desonestos de propósito e fingem pos
suir poderes ('sobrenaturais'' ou ''paranormais''; por exemplo, dizem que são capazes de entortar metais ou parar relógios apenas pelo poder do
pensamento. Alguns desses farsantes (((charla
tães'' é um bom adjetivo para eles) recebem altas
remunerações de companhias mineradoras ou
petroleiras porque se dizem capazes de desco-
brir, usando <<poderes psíquicos'', onde estão os bons lugares para fazer sondagem. Outros ho
mens desse tipo exploram pessoas que vivem o
luto dizendo-se capazes de entrar em contato
com os mortos. Quando essas coisas aconte
cem, não se trata de divertir ou entreter, mas
de abusar da credulidade ou do desespero das pessoas. Sejamos justos: é possível que nem
todos esses indivíduos sejam charlatães. Alguns
talvez acreditem sinceramente que são capazes
de falar com os mortos.
2 1
A ciência faz exatamente o contrário. Quan -do encontra alguma coisa que não sabe explicar,
aproveita e faz perguntas, cria modelos possíveis
e os testa; e assim vamos avançando, aos poucos,
em direção à verdade. Se acontece alguma coisa que contraria a noção que temos da realidade, os
cientistas veem isso como uma refutação do mo
delo que eles mesmos criaram, sendo então pre
ciso abandoná-lo ou alterá-lo. É por meio desses
ajustes e testes subsequentes que nos aproxima
mos cada vez mais da verdade.
O que você pensaria de um detetive que, não
conseguindo explicar um assassinato, tem preguiça de tentar desvendar o mistério e. apela para a
simples explicação de que é um caso ''sobrenatu
ral''? Toda a história da ciência mostra que muito
do que já foi atribuído ao sobrenatural causado por deuses (felizes ou zangados), demônios, bru
xas, espíritos, maldições e feitiços na verdade tem explicações naturais, explicações que pode
mos compreender e testar até considerar confiá
veis. Não existe nenhuma razão para acreditar
que as coisas para as quais a ciência ainda não
tem uma explicação natural são sobrenaturais, do
fig.2
24
mesmo modo que os vulcões, terremotos e doen
ças não são causados por deuses furiosos, como
antes se acreditava.
É claro que ninguém acredita realmente que
seria possível transformar uma abóbora numa carruagem ou um sapo num príncipe. (Ou será
um príncipe num sapo? Nunca consigo me lem
brar. ) Mas alguma vez você já parou para pensar
por que coisas assim seriam impossíveis? Há vá
rias maneiras de responder a essa pergunta. Eis a
minha favorita.
Sapos e carruagens são coisas complexas,
com inúmeras partes que precisam ser reunidas de um modo específico, segundo um padrão que
não se forma por acaso (ou por um movimento
de varinha mágica). É isso que significa ''comple
xo': É dificílimo produzir algo complexo como
um sapo ou uma carruagem. Para fazer uma carruagem, é necessário montar todas as partes do
modo exato. É preciso ter a habilidade de um
carpinteiro e outros artesãos. Carruagens não
surgem por acaso, nem se você estalar os dedos
ou disser ''abracadabra''. Uma carruagem tem es
trutura, complexidade, diversas partes com fun-
fig.3 fig.4 '
ções específicas rodas e eixos, janelas e portas,
molas e assentos acolchoados. Seria relativamente
fácil transformar algo complexo como uma car
ruagem em algo simples como cinzas, por exem
plo. A fada madrinha só precisaria de um bom
maçarico. Quase qualquer coisa pode facilmente ser transformada em cinzas. Mas ninguém é capaz de pegar um monte de cinzas ou uma abó
bora e transformar numa carruagem, porque
se trata de algo muito complexo, até em um senti
do utilitário: uma carruagem tem a finalidade de
transportar pessoas.
Facilitemos as coisas para a fada madrinha. Suponhamos que, em vez de recorrer a uma abó
bora, ela tivesse todas as partes necessárias para
montar uma carruagem misturadas dentro de
uma caixa, como naqueles kits para montar mo
delos de aviões. O kit para fazer uma carruagem
consiste em centenas de tábuas, painéis de vidro,
hastes e barras de aço, espumas, pedaços de couro,
além de pregos, parafusos e cola para unir tudo.
Agora suponhamos que, em vez de ler as instru -
ções e unir as partes na sequência correta, ela
simplesmente ponha tudo dentro de um grande
fig.] fig.2
saco e o chacoalhe. Qual a chance de que as par
tes venham a se unir do modo certo para montar
uma carruagem? A resposta é: praticamente ne
nhuma. E parte da razão é o número imenso de
modos possíveis em que os pedaços poderiam se
combinar sem produzir uma carruagem ou qual
quer coisa útil. Se você pegar inúmeras partes e sacudi
-las de qualquer jeito, é possível que em algum
momento elas venham a se juntar de um modo
que tenha alguma utilidade ou que possamos re
conhecer como especial. Mas a probabilidade de
isso acontecer é irrisória, insignificante se comparada aos inúmeros modos em que a mistura
apenas produzirá um monte de lixo. Há milhões
de modos de misturar e remisturar uma porção
de pedaços avulsos: milhões de modos de trans
formá-los em . . . outro monte de pedaços avulsos.
Toda vez que você os mistura, obtém uma pilha
de lixo única, nunca vista antes mas só uma
ínfima minoria desses milhões de pilhas possíveis
será útil para alguma coisa (por exemplo, para le
var a moça ao baile) ou será digna de nota por
qualquer outra razão.
fig.3
•
25 •
Às vezes, podemos contar
quantas maneiras existem de or
ganizar uma série de partes
como em um baralho, consideran-
d d t (( t )) o ca a car a uma par e .
-
26 ....
-
-·�/ - '
Suponhamos que alguém em
baralhe as cartas e as distribua para quatro jogadores, treze cartas para
cada. Pego as minhas e tenho uma
grande surpresa: recebi a série de
espadas completa!
- --
Estou tão per
plexo que nem con -
sigo jogar e mostro
minhas cartas aos
outros, achando que
também vão ficar
espantados.
Mas então todos põem suas
cartas na mesa, e o espanto aumenta. Cada jogador tem uma mão
((perfeita'': uma com treze cartas de
copas, outra com treze de ouros e a
última com treze de paus.
•
•
. '.J:.
-
•
•
,
Isso seria magia sobrenatural? Poderíamos fi
car tentados a achar que sim. Os matemáticos sabem
calcular a probabilidade de que essa combinação
aconteça por puro acaso. É infinitamente peque
na: 1 em 536 447 737 765 488 792 839 237 440 000.
Acho que eu nem saberia como dizer esse núme
ro! Se você se sentasse e jogasse cartas durante
um trilhão de anos, receberia uma mão perfeita
como a do nosso exemplo em uma ocasião. Só
que e aí está o X da questão essa mão não
é mais improvável do que qualquer outra mão
de cartas que já tenha sido distribuída! A chance de qualquer mão específica de 52 cartas é 1 em
536 447 737 765 488 792 839 237 440 000, porque
esse é o número de todas as combinações possí
veis. Acontece, simplesmente, que não notamos
nenhum padrão específico na imensa maioria de
mãos distribuídas e por isso elas não nos parecem
fora do comum. Reparamos apenas quando por
acaso uma mão se destaca de alguma forma. Há bilhões de coisas em que você poderia
transformar um príncipe se fosse brutal a ponto
de montar os pedaços dele em bilhões de combi
nações aleatórias. Mas a maioria dessas combina
ções resultaria numa tremenda confusão como
aqueles bilhões de mãos de cartas sem nexo, alea
tórias, que foram distribuídas. Apenas uma irri
sória minoria dessas possíveis combinações de
pedaços de príncipe embaralhados produziria
algo reconhecível ou bom para alguma coisa, e
ainda mais dificilmente produziria um sapo.
Príncipes não viram sapos e abóboras não •
viram carruagens porque sapos e carruagens
são coisas complexas cujas partes poderiam ter
se combinado em um número quase infinito de
pilhas de lixo. No entanto, sabemos que cada ser
vivo pessoa, crocodilo, pardal, árvore ou alface
- evoluiu de outras formas, originalmente mais
simples. Mas então isso não é um processo f ortui
to ou algum tipo de magia? Não! Absolutamente
não! Esse é um equívoco muito comum, e por isso
quero explicar agora mesmo porque aquilo que
vemos na vida
real não é resultado de acaso, sorte
ou qualquer coisa que seja mesmo que remotamente ''mágica'' (exceto,
é claro, naquele sentido estritamente poético das coisas que nos enchem de
assombro e deleite).
A lenta magia da evolucão
•
Transformar um
organismo complexo
em outro organis
mo complexo em , .
uma un1ca etapa -
como num conto de
fadas está fora dos
limites do que é realística -
mente possível. Contudo,
organismos complexos exis
tem. Como surgiram? Como
vieram a existir coisas comple
xas como sapos e leões, babuí
nos e figueiras, príncipes e abó
boras, você e eu? Durante a
maior parte da história, essa
foi uma questão desnorteante . , .
que n1nguem conseguia res-
ponder apropriadamente. En
tão foram inventadas anedotas. Mas, um dia, a questão foi
respondida, e brilhantemente.
Isso aconteceu no século x1x,
graças a um dos maiores cientistas
que já viveram, Charles Darwin.
Usarei o resto do capítulo para
explicar brevemente sua resposta,
em palavras diferentes das dele. •
2 7 •
A resposta é: os organismos complexos (hu
manos, crocodilos, alfaces) não surgiram de re
pente, de uma vez só, e sim gradualmente, passo a
passo. E o que surgia a cada novo passo era só um
tantinho diferente daquilo que já existia. Imagine
que você quer criar um sapo de pernas compridas.
Seria vantajoso começar com algo que já fosse um
pouco parecido com aquilo que você quer obter:
um sapo de pernas curtas, por exemplo. Você po
deria pegar um conjunto de sapos de pernas cur
tas e medir as pernas de todos. Poderia escolher
alguns sapos e sapas que possuíssem pernas um
pouco mais compridas do que a maioria e deixar
que eles cruzassem, enquanto impedia que seus
colegas de pernas mais curtas se reproduzissem. Os machos e as fêmeas de pernas longas pro
duziriam girinos, que por fim ganhariam pernas
e se tornariam sapos. Você mediria essa nova ge
ração, escolheria os machos e as fêmeas de pernas
mais longas e os poria juntos para se reproduzir.
28
\\ l 1'
Depois de fazer isso por umas dez gerações,
você poderia começar a notar uma coisa inte
ressante. O comprimento médio das pernas da sua população de sapos seria agora visivelmente
maior do que o comprimento médio das pernas
da população inicial. Você talvez até concluísse
que todos os sapos da décima geração têm per
nas mais longas do que qualquer sapo da primeira
geração. Ou, talvez, dez gerações não sejam sufi
cientes para obter esse resultado. Quem sabe você
precise de vinte gerações, ou até mais. No entanto, um belo dia finalmente você poderá dizer com
orgulho: ''Obtive um novo tipo de sapo com per
nas mais compridas do que o antigo''.
Não foi preciso varinha mágica. Nenhum tipo de magia. O que aconteceu foi um processo
chamado reprodução seletiva, baseado no fato de que os tipos de sapo variam e essas variações ten -
dem a ser herdadas, ou seja, transmitidas dos pais
aos filhos através dos genes. Simplesmente esco-
•
lhendo quais sapos vão se reproduzir e quais não
vão, podemos obter um novo tipo de sapo.
Simples, não? Mas conseguir pernas mais compridas não é muito impressionante. Afinal,
já começamos com sapos. Eles só tinham pernas
mais curtas. Suponha que você começasse não
com um tipo de sapo de pernas mais curtas, mas
com um animal diferente por exemplo, com
um tipo de salamandra. A salamandra possui
pernas traseiras bem mais curtas que as do sapo
e as usa não para saltar, mas para andar. A sala
mandra tem cauda longa, o sapo não tem cauda.
Além disso, em geral as salamandras têm o corpo
mais comprido e estreito do que a maioria dos sa -
pos. Mas acho que você consegue perceber que,
ao longo de milhares de gerações, seria possí
vel transformar uma população de salamandras numa população de sapos simplesmente esco
lhendo com paciência, em cada uma dessas ge
rações, salamandras machos e fêmeas que fossem
apenas um tantinho mais parecidas com sapos
e deixar que cruzassem, impedindo ao mesmo
tempo o cruzamento de seus colegas menos pa -
recidos com sapos. Em nenhuma etapa isolada
desse processo você veria uma mudança drástica.
Cada geração seria bem parecida com a anterior,
mas ainda assim, depois de um número suficiente
de gerações, você começaria a notar que o com -
primento médio da cauda diminuiu ligeiramente
e que o comprimento médio das pernas traseiras
aumentou um pouquinho. Depois de muitas gerações, talvez os indivíduos de pernas mais com
pridas e cauda mais curta começassem a achar
mais fácil usar as pernas para saltar em vez de
rastejar. E assim por diante.
Evidentemente, na situação que acabei de
descrever, nos imaginamos como diretores da reprodução, escolhendo machos e fêmeas que vão
cruzar, tendo em vista um resultado final que nós
escolhemos. Os agricultores usam essa téçnica
29 •
•
há milhares de anos para obter animais e plantas
mais produtivos ou resistentes a doenças. Darwin
foi a primeira pessoa a compreender que isso funciona mesmo quando não há ninguém fazendo a
escolha. Ele percebeu que tudo acontece natural
mente, sem interferência, pela simples razão de
que alguns indivíduos sobrevivem por tempo su
ficente para se reproduzir enquanto outros não, e
que os que sobrevivem são mais bem equipados
para sobreviver do que os outros. Assim, seus fi
lhos herdam os genes que ajudaram os pais a vi
ver mais. Sejam salamandras ou sapos, ouriços ou
margaridas, sempre haverá indivíduos que têm
mais condições de sobreviver do que outros. Se
pernas compridas ajudarem (o sapo ou gafanho
to a saltar e fugir de um perigo, por exemplo, um
guepardo caçar gazelas ou uma gazela fugir dos guepardos), os indivíduos com pernas mais lon
gas terão menor probabilidade de morrer. E maior
probabilidade de viver tempo suficiente para se re
produzir. Além disso, um número maior dos indi
víduos disponíveis para ele se acasalar terá pernas
compridas. Desse modo, em cada geração haverá maior probabilidade de os genes para pernas mais
30
compridas serem transmitidos à geração seguinte.
Com o tempo, veremos que cada vez mais indi
víduos dessa população possui genes para pernas
mais compridas. Portanto, o efeito será exatamente o mesmo que veríamos caso um criador inteli
gente um humano que gerenciasse essa repro
dução, por exemplo escolhesse os indivíduos
de pernas compridas para se reproduzir. Só que
esse criador não é necessário: tudo acontece por
conta própria, naturalmente, como consequência
automática de quais indivíduos sobrevivem o su
ficiente para se reproduzir e quais não. Por isso, o
processo é chamado de seleção natural.
Depois de certo número de gerações, ances
trais que se pareciam com salamandras podem ter
descendentes que se parecem com sapos. Depois
de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com peixes podem originar descendentes parecidos com macacos. Depois de ainda mais gerações,
ancestrais parecidos com bactérias podem origi
nar descendentes parecidos com humanos. E foi
exatamente isso que aconteceu na história de cada
animal e planta que existe ou existiu neste plane
ta. O número de gerações necessárias é maior do
•
que podemos imaginar, mas o mundo tem bilhões
de anos de existência, e sabemos pelos fósseis que
a vida começou há mais de 3,5 bilhões de anos,
tempo suficiente para a evolução ocorrer.
Essa foi a grande ideia de Darwin, conhe
cida como evolução pela seleção natural. É uma das mais importantes conclusões saídas de uma
mente humana e explica quase tudo o que sabe
mos sobre a vida na Terra. Por ser tão importante, voltarei a ela em outros capítulos. Por enquanto,
basta entender que a evolução é muito lenta e gra
dual. Aliás, é essa qualidade gradual que permite o surgimento de coisas complexas como sapos
e príncipes. Uma transformação mágica de um
sapo num príncipe não seria gradual, mas súbita,
e é isso que a exclui da realidade. A evolução é
uma explicação real e pode ser demonstrada por
evidências reais; qualquer sugestão de que f armas de vida complexas apareceram de repente (sem
evoluir gradualmente, passo a passo) é pura in
venção, como a magia ficcional da fada madrinha.
Quanto a abóboras que viram carruagens, os
encantamentos mágicos também estão excluídos,
•
do mesmo modo que para os sapos e príncipes.
Carruagens não evoluem pelo menos não na
turalmente. Mas, tanto quanto aviões e enxadas,
computadores e pontas de flecha, as carruagens
são fabricadas por humanos, e eles evoluem. O cé
rebro e as mãos humanas evoluíram pela seleção natural, tão seguramente como a cauda da sala
mandra e as pernas do sapo. E o cérebro huma
no agora é capaz de projetar e criar carruagens e
carros, tesouras e sinfonias, máquinas de lavar e
relógios. Sem mágica. Sem truques. Explicando tudo, de um modo belo e simples.
No resto do livro, quero mostrar a você que
o mundo real, como é entendido cientificamente,
tem sua própria magia. Eu a chamo de magia poé
tica, uma beleza inspiradora que é ainda mais má
gica porque é real e podemos compreender como funciona. Em comparação à verdadeira beleza e
magia do mundo real, o sobrenatural e os truques
de palco parecem vulgares e sem graça. A magia
da realidade não é sobrenatural, não é um truque.
É absolutamente fascinante. Fascinante e real. Fas
cinante porque é real.
•
3 1
MAIORIA DOS CAPÍTULOS deste livro tem
uma pergunta no título. Meu objetivo é res
ponder a ela, ou pelo menos dar a melhor resposta
possível: a da ciência. Mas quase sempre começa
rei com algumas explicações míticas, porque são
curiosas e interessantes, e pessoas reais acredita
ram nelas. Algumas ainda acreditam.
Todos os povos do mundo têm mitos sobre sua origem, para explicar de onde vêm. Muitos mi
tos tribais sobre isso dizem respeito apenas a uma tribo
específica. Como se as outras não tivessem a menor impor-
tância! Ao mesmo tempo, muitas tribos respeitam a regra de que . não se deve matar pessoas mas ((pessoas'' significa apenas gente
da própria tribo. Matar gente de outra tribo não tem problema. Eis um típico mito de origem, de um grupo de aborígines
tasmanianos. Um deus chamado Moinee foi derrotado por um
deus rival, Dromerdeener, numa batalha nas estrelas. Moinee des
pencou de lá e caiu na Tasmânia para morrer. Antes de deixar este
mundo, quis abençoar o local do seu derradeiro descanso e decidiu
criar os humanos. Porém, apressado, com sua vida por um fio, ele se esqueceu de dar aos homens joelhos e distraidamente (sem
dúvida de tanto que sofria) lhes deu uma cauda, comprida
como a do canguru, que os impedia de se sentar. Em se
guida, morreu. Todos detestaram ter cauda de canguru e
não ter joelhos, e clamaram aos céus por ajuda.
32
O poderoso Dromerdee
ner, que gargalhava pelo céu no
desfile da vitória, ouviu o clamor
e desceu à Tasmânia para ver o que
se passava. Ele teve pena das pes
soas. Deu-lhes joelhos e cortou fora
aquela incômoda cauda de canguru
para que finalmente pudessem se sen -
tar. E todos viveram felizes para sempre.
É bem frequente encontrar diferen
tes versões de um mesmo mito. Isso não
surpreende, pois as pessoas costumam al
terar detalhes quando contam histórias em
volta da fogueira; com isso, as narrativas vão
divergindo. Em outra versão desse mito tasma
niano, Moinee cria lá no céu o primeiro homem,
chamado Parlevar. Esse homem também não podia
se sentar porque tinha uma cauda como a dos can -
gurus e seus joelhos não se dobravam. Como no caso
anterior, o deus rival, agora Dromerdeener, veio rapida-
mente em socorro. Deu a Parlevar joelhos e cortou sua
cauda fora, curando a ferida com sebo. Par levar
desceu pela estrada do céu (a Via Láctea) e foi
parar na· Tasmânia.
(
33
•
V,..
As tribos hebraicas do Oriente Médio ti
nham um deus único e o consideravam superior
aos deuses das tribos rivais. Ele tinha vários nomes,
que todos estavam proibidos de pronunciar. Esse
deus fez o primeiro homem com o pó da terra e deu-lhe
o nome de Adão (que significa ''homem"). Deliberada
mente, fez Adão parecido consigo. Aliás, a maioria dos deuses
da história é retratada como homem (alguns como mulheres), em
geral de tamanho gigantesco e sempre com poderes sobrenaturais. Esse deus pôs Adão em um lindo jardim chamado Éden, com muitas
árvores cujos frutos ele era incentivado a comer com uma exceção. Essa árvore
proibida era a '(árvore do conhecimento do bem e do mal': e o deus deixou bem claro a
Adão que daqueles frutos ele jamais deveria comer. O deus percebeu que Adão devia se sentir solitário, e quis fazer alguma coisa a
respeito. Nesse ponto como na história de Dromerdeener e Moinee há duas ver-
sões do mito, ambas relatadas no livro bíblico do Gênesis. Na visão mais pitoresca, o
deus fez todos os animais como ajudantes de Adão, depois decidiu que ainda faltava
alguma coisa: uma mulher! Por isso, deu a ele uma anestesia geral, abriu seu corpo,
retirou uma costela e tornou a fechá-lo. Em seguida, fez uma mulher com a costela,
como quem obtém uma flor a partir de uma muda. O deus a chamou de Eva e a
apresentou a Adão como sua esposa.
Infelizmente havia no jardim uma ser
pente má, que se aproximou de Eva e a con
venceu a dar a Adão o fruto proibido da árvore
do conhecimento do bem e do mal. Adão e Eva
comeram o fruto e imediatamente adquiriram
o conhecimento de que estavam nus.
34
..
Isso os deixou envergonhados, e eles se cobri
ram com folhas de figueira. Quando o deus notou,
ficou furioso por terem comido o fruto e adquirido
conhecimento e por terem perdido a inocência,
suponho. Expulsou-os do jardim e os condenou,. com todos os seus descendentes, a uma vida de tra
balhos e sofrimento. Até hoje a história da terrível
desobediência de Adão e Eva é levada a sério por
muita gente, sob o nome de ''pecado original''. Al
gumas pessoas acreditam até que todos herdamos
esse ''pecado original'' de Adão (embora muitas
admitam que Adão nunca existiu realmente ! ) e que
somos tão culpados quanto ele.
•
•
•
3 5
•
Os povos nórdicos da Escandi
návia, os famosos vikings, tinham, •
assim como os gregos e os romanos, muitos deuses. O principal deles era
Odin, também conhecido como Wotan
ou Woden, de onde provém a palavra
''Wednesday': que significa quarta-feira
em inglês. (''Thursday': quinta-feira,
vem de outro deus nórdico, Thor, que
produzia trovões com seu martelo.)
Um dia, Odin andava pela praia
com seus irmãos, também deuses, e
encontrou dois troncos de árvore.
36
•
Eles transformaram um desses troncos no primeiro ho
mem, e o chamaram de ('Ask''; o outro, na primeira mulher,
((Embla''. Depois de criarem os corpos do primeiro homem e da
primeira mulher, os irmãos deram -lhes o sopro da vida, segui
do pela consciência, pelo rosto e pelo dom da fala.
Eu me pergunto: por que troncos de árvore? Por que não
pingentes de gelo ou dunas de areia? Não é fascinante tentar
imaginar quem terá criado essas histórias e por quê? Presumi
velmente, os inventores originais de todos esses mitos sabiam
que se tratava de ficção no momento em que os estavam elabo
rando. Ou então, podemos pensar, muitas pessoas criaram dif e
rentes partes da história, em momentos e em lugares distintos, e outras pessoas mais tarde juntaram tudo, talvez mudando
algumas coisas, sem perceber que as várias partes ha -
viam sido originalmente inventadas?
Todos gostam de ouvir histórias e repeti
-las. Mas quando encontramos uma realmente
mirabolante, seja um mito antigo ou uma
((lenda urbanà' que se espalha pela in-
ternet, vale a pena parar e pensar se ela, ou alguma parte dela, é verdadeira.
Por isso, façamos a nós mesmos a
pergunta: quem foi a primeira pessoa? Va
mos ver qual é a res
posta verdadeira, a resposta da ciência.
.
37 •
--,,. ..
iJ . / •
• ., ""--"
/ J
' i\ 1 ........... '-
,
•
• ' • •
VOCÊ TALVEZ se surpreenda, mas nunca houve
uma primeira pessoa porque toda pessoa pre
cisa ter tido pais, e esses pais têm que ser pessoas também! O mesmo vale para os coelhos. Nunca
houve um primeiro coelho, nem um primeiro
crocodilo, nem uma primeira libélula. Toda cria
tura que já nasceu pertence à mesma espécie de
seus pais (talvez haja um ínfimo número de exceções, mas não tratarei delas aqui). Portanto, isso
significa que toda criatura já nascida pertenceu à
mesma espécie de seus avós. E de seus bisavós. E
tataravós. E assim por diante, infinitamente.
Infinitamente? Bem, não é tão simples assim.
Teremos de gastar algum tempo com uma expli-
r ...
38
•
cação, e começarei com um experimento mental.
Um experimento mental é uma experiência que
fazemos na imaginação. O que vamos imaginar não é algo possível na vida real porque nos leva
muito para trás no tempo, muito antes de termos
nascido. Mas imaginar a situação nos ensina algo
importante. Vamos então ao nosso experimento
mental. Tudo o que você precisa fazer é imaginar
que está executando as instruções a seguir.
Pegue uma foto grafia sua. Agora pegue uma
de seu pai e ponha por cima. Sobre a do seu pai
ponha uma do seu avô. E, agora, uma foto do seu
bisavô, uma do seu tataravô. Provavelmente você
não conheceu seus tataravós. Eu não conheci os
\ • -
meus, mas sei que um deles era professor primário
na zona rural, outro era médico no interior, outro
era guarda florestal na Índia britânica e outro ainda era advogado, adorava creme e morreu prati
cando alpinismo em idade avançada. Mas mesmo se você não souber como era o pai do pai do pai
do seu pai, pode imaginá-lo como uma espécie de
figura indistinta, talvez numa fotografia desbota
da num porta-retratos velho de couro. Agora faça o mesmo com o pai dele, seu pentavô. E continue
empilhando as fotos, sucessivamente, voltando no
tempo a cada antepassado seu. Você pode continuar a fazer isso até mesmo quando chegar a um
momento em que a fotografia ainda não tinha sido
inventada afinal de contas, este é um experi
mento mental.
De quantos antepassados precisaremos em
nosso experimento mental? Ora, meros 185 mi
lhões já bastam!
Meros? MEROS?
I ; I , . I / / / \
I \ 1 f 1
; / I
(
'
Não é fácil imaginar uma pilha com 1 85
milhões de fotos. Que altura ela teria? Bem, se
cada foto fosse impressa numa folha com a es
pessura de um cartão-postal, 185 milhões de fo
tos dariam uma torre com quase 67 mil metros de altura. Isso é mais do que 1 80 arranha-céus
um em cima do outro. Alto demais para escalar,
mesmo se a pilha inteira não despencasse (o que
certamente aconteceria) . Por isso, vamos deitar a
pilha e arrumar as fotos horizontalmente numa
única prateleira de estante.
Qual será o comprimento dessa prateleira?
Aproximadamente 64 quilômetros.
A ponta mais próxima da prateleira contém a
sua fotografia. A mais distante, a do seu 185 milionésimo avô. Como ele era? Um velhote de cabelos ralos e costeletas? Um homem das cavernas vestido
com pele de leopardo? Esqueça isso. Não sabemos
como ele era exatamente, mas pelos fósseis podemos ter uma boa noção. Seu 185 milésimo avô era
mais ou menos assim ,..._
É isso mesmo. O seu 1 85 milionésimo avô
era um peixe. E também era peixe a sua 185 mi
lionésima avó ainda bem, do contrário não po
deriam ter se reproduzido e você não estaria aqui.
Agora, andemos ao longo da nossa prate
leira de 64 quilômetros pegando algumas fotos e
dando uma olhada nelas. Cada foto mostra uma
criatura pertencente à mesma espécie que a das
duas fotos contíguas. Cada uma se parece exata -
mente com a foto vizinha, ou pelo menos é tão
parecida quanto qualquer homem se parece com
seu pai e com seu filho. No entanto, se você for
andando sem parar de uma ponta da prateleira
peixe no outro. E uma porção de outros ante
passados interessantes pelo caminho, entre os
quais, como logo veremos, incluem-se alguns
animais que se parecem com grandes símios, outros com macacos, outros com musaranhos
etc. Cada um é parecido com o da foto vizinha, e, no entanto, se você pegar duas fotos
quaisquer que estejam bem distantes uma da
outra, elas serão bem diferentes e se você
retroceder na fila desde os humanos até um ponto bem remoto dará de cara com um
peixe. Como pode ser isso? Na verdade, não é tão difícil de en
tender. Já estamos acostumados com mu
danças graduais que, devagarinho, passo a
passo, produzem uma grande mudan
ça. Você já foi um bebê. Não é mais.
Quando for bem mais velho, terá uma
aparência muito diferente da de hoje. No
entanto, a cada dia da sua vida, quan -
do você acorda, é a mesma pessoa que
era ao ir para a cama na noite anterior.
Um bebê muda, vira uma criancinha
que já sabe andar, depois uma criança maior, um adolescente, um jovem
adulto, um adulto de meia-idade e por
fim um velho. E a mudança acontece tão gradual
mente que não existe um dia em que você possa
dizer ''esta pessoa subitamente deixou de ser um
bebê e se tornou uma criança pequenà: E nunca
existirá um dia em que você poderá dizer ''esta
pessoa deixou subitamente de ser
uma criança e se tornou
um adolescente': Nunca
haverá um dia em que
se possa dizer ''ontem este homem era uma
pessoa de meia -idade,
hoje é um velho': }' �-'" Isso nos ajuda a
compreender o expe-
à outra, verá um humano em um extremo e um rimento mental,
40
•
que nos leva por 185 milhões de gerações de pais,
avós, bisavós etc. até estarmos face a face com um
peixe. E, avançando no tempo, foi o que aconte
ceu quando seu ancestral peixe teve um filho peixe, que teve um filho . . . que 185 milhões de gera
ções depois (gradualmente menos parecidas com
um peixe) gerou você.
Portanto, tudo foi muito gradual, tão gradual
que você não notaria mudança alguma se voltasse
mil anos no tempo, ou mesmo 1 O mil anos, o que o levaria aproximadamente ao seu 4002 bisavô.
Ou melhor, você notaria muitas mudanças mi
núsculas pelo caminho, já que ninguém é igualzi
nho ao pai. Mas não notaria nenhuma tendência
geral. Dez mil anos antes dos humanos atuais não
é suficientemente distante no tempo para eviden
ciar uma tendência. O retrato do seu ancestral de 1 O mil anos atrás não seria diferente dos retratos
de pessoas de hoje, se deixarmos de lado varia
ções superficiais no modo de vestir e nos cabelos
e nas costeletas. Não veríamos diferenças maiores
do que aquelas que notamos entre um grupo de
pessoas do nosso tempo.
E se fossem 1 00 mil anos, onde poderíamos
encontrar nosso 4 milésimo avô? Bem, agora po
deríamos encontrar uma mudança observável.
Talvez um ligeiro engrossamento do crânio, espe
cialmente embaixo das sobrancelhas. Mas ainda
seria discreto. Agora voltemos mais no tempo.
Se você andasse pela prateleira até 1 milhão de anos atrás, a foto do seu 50 milésimo avô seria
Seu 4 milésimo avô
suficientemente diferente para indicar outra es
pécie, aquela que chamamos de Homo erectus.
Hoje, como você sabe, somos Homo sapiens. O
Homo erectus e o Homo sapiens provavelmente
não teriam sido capazes de cruzar entre si e ter
filhos. Mesmo se fossem, o bebê resultante prova
velmente não seria capaz de procriar, do mesmo
modo que quase todas as mulas, que são animais
nascidos do cruzamento de um jumento com
uma égua, são incapazes de se reproduzir. (Veremos o porquê no próximo capítulo.)
Novamente, porém, tudo é gradual. Você é
Homo sapiens e seu 50 milésimo avô foi Homo r
erectus. Mas nunca houve uma Homo erectus que
subitamente gerasse um bebê Homo sapiens.
Assim, a questão de quem foi a primeira pessoa e quando ela viveu não tem uma resposta pre
cisa. É uma coisa vaga, como a resposta à pergunta
<<Quando é que você deixou de ser bebê e se tornou uma criança pequena?': Em algum ponto, prova
velmente há menos de 1 milhão de anos porém há
mais de 100 mil anos, nossos ancestrais diferiam
de nós o bastante para impossibilitar que uma pes
soa dos dias de hoje tivesse filhos com eles caso pu
dessem se encontrar.
Seu 50 milésimo avô
Se devemos ou não considerar o Homo erectus uma
pessoa é outra conversa . . É uma questão semântica, ou seja,
de como escolhemos usar as palavras. Algumas pessoas
podem dizer que a zebra é um cavalo listrado, enquanto
outras preferem manter a palavra ''cavalo'' só para a espécie que cavalgamos. É outra questão semântica. Você pode
preferir reservar as palavras ''pessoa': ''homem'' e ''mulher'' para o Homo sapiens. É escolha sua. Mas ninguém chama -
ria de homem seu 185 milésimo avô peixe. Seria bobagem,
embora haja uma cadeia contínua que liga vocês, na qual
cada elo é membro da mesma espécie que seus vizinhos.
Impresso em pedra
Como sabemos que aparência tiveram nossos ances
trais e quando eles viveram? Graças aos fósseis, princi
palmente. Todas as ilustrações de ancestrais nossos neste
capítulo são reconstituições baseadas em fósseis, coloridas segundo uma comparação com animais modernos.
Fósseis são feitos de pedras que gravaram a forma de
animais e plantas mortos. A grande maioria dos animais
morre sem esperança de se tornar fóssil. O truque, se você
quiser ser um, é ser enterrado no tipo certo de lama ou
lodo, aquele que endurecerá formando rocha sedimentar.
O que isso significa? As rochas podem ser de três ti
pos: ígneas, sedimentares e metamórficas. Deixarei de lado
as metamórficas, pois foram originalmente um dos dois
outros tipos e se modificaram por pressão e/ ou calor. As
rochas ígneas (do latim ignis, ''fogo'') já foram derretidas, como a lava quente que sai de vulcões em erupção, e se soli-
•
•
dificaram em rocha dura depois de resfriadas. As
rochas duras de qualquer tipo se desgastam (são
erodidas) pelo vento ou pela água, formando ro
chas menores, pedregulhos, areia e pó. A areia e o
pó ficam em suspensão na água, depois podem se
assentar em camadas de sedimentos ou lama no fundo de um mar, rio ou lago. Muito tempo de
pois, os sedimentos podem endurecer formando
camadas (estratos) de rocha sedimentar. Embo
ra todos os estratos sejam inicialmente planos e
horizontais, milhões de anos mais tarde, quando os vemos, muitos foram inclinados, revirados ou
deformados (veja o capítulo 1 0 sobre terremotos).
Suponha que um animal morto seja arrasta
do para a lama, em um estuário, por exemplo. Se
essa lama endurecer e se transformar em rocha
sedimentar, o corpo do animal, ao se decompor, pode ir deixando sua forma afundada na rocha
conforme ela endurece: a forma que um dia fi
nalmente encontramos. Esse é um tipo de fóssil - uma espécie de ''negativo'' da imagem do ani
mal. A forma que ficou impressa na depressão da
rocha pode funcionar como um molde no qual novos sedimentos se depositam e mais tarde endurecem, formando uma réplica ''positivà' dos
contornos do corpo do animal. Esse é um segundo tipo de fóssil. Existe um terceiro tipo, no qual átomos e moléculas do corpo do animal são substituídos, um por um, por átomos e moléculas de
minerais da água, que depois se cristalizam for
mando rocha. É o melhor tipo de fóssil, porque,
com sorte, minúsculos detalhes do interior do
corpo do animal são reproduzidos permanente
mente, inclusive nas partes centrais do fóssil.
Podemos até determinar a idade dos fósseis
medindo os isótopos radioativos nas rochas. (Ve
remos isótopos e átomos no capítulo 4.) Em pou-
cas palavras, um isótopo radioativo é um tipo de
átomo que se desintegra, formando outro tipo
de átomo; por exemplo, urânio-238 se transforma
em chumbo-206. Como sabemos quanto tempo
isso leva para ocorrer, podemos conceber o isóto
po como um relógio radioativo. Relógios radioa
tivos são bem parecidos com os relógios de água
ou de vela que eram usados antes da invenção dos
de pêndulo. Um tanque com um orifício no fundo escoa água a uma taxa mensurável. Se você en-
.
cher o tanque ao amanhecer, poderá saber quanto do dia já se passou medindo o nível da água. O
mesmo se dá com o relógio de vela. A vela queima
a uma taxa fixa, por isso podemos dizer quanto
tempo se passou medindo quanto resta dela. No
caso de um relógio de urânio-238, sabemos que
é preciso 4,5 bilhões de anos para que metade do urânio-238 se desintegre e se torne chumbo-206. É a chamada ''meia-vidà' do urânio-238. Se me
dirmos quanto chumbo-206 existe em uma rocha
e compararmos com a quantidade de urânio-238,
podemos calcular quanto tempo passou desde
quando não havia chumbo-206; ou seja, há quan
to tempo o relógio estava ''zerado''.
E quando o relógio está zerado? Isso acon
tece somente com rochas ígneas, no momento
em que a rocha derretida se solidifica. Não fun -
ciona com rochas sedimentares. Elas não têm
esse ''momento zero': o que é uma pena, pois os
fósseis só são encontrados em rochas sedimen -
tares. Por isso, temos de encontrar rochas íg
neas próximas de camadas sedimentares e usá
-las como relógio. Por exemplo, se um fóssil se
encontra num sedimento que tem acima dele
rochas ígneas de 1 20 milhões de anos e abaixo
dele de 1 30 milhões de anos, sabemos que o fós
sil tem entre 1 20 milhões e 1 30 milhões de anos.
-
-·1 -\i-----w{l Tlf--11il_ 1 1
1 ,,.,.,..
--
· � �, � � '•17, V y #
' --==:=aa::r· l
•
--\ 1 1 QD QI
• -
•
-- ---
--
....
.. . --
•
- -- --- � -
! 1 �/ --- t " -
- ----- -
l
J . .
y 51-..J ..........-. r I
. J --4 \ -li .... \ '; - 1 �r----�-�� h \
e r• rsn , o?\ t"X7
' ....
As datas que menciono neste capítulo foram cal
culadas assim. Portanto, são apenas aproxima
ções, inexatas.
O urânio-238 não é o único isótopo radioa
tivo que podemos usar como relógio. Existem
muitos outros, com uma esplêndida variedade de meias-vidas. Por exemplo, o carbono-14 tem
meia-vida de 5730 anos, sendo assim útil para os
arqueólogos que investigam a história humana.
Muitos relógios radioativos têm escalas de tempo
que coincidem parcialmente, por isso podemos
confrontar uns com os outros. E eles sempre mos
tram os mesmos resultados.
O relógio de carbono- 1 4 funciona de modo
diferente dos outros. Não depende de rochas íg
neas e usa restos de corpos vivos, como madeira
antiga. É um dos relógios radioativos mais rápi-
-- �===-=====�·�-=---�---> - •
- .. , - - l
;; , ' « e ---
' •
•
•
....... ...__
� 1 , '
• ... \. •
•
• ' •
-. . ' , ,
•
• -•
J •
• -'·
-
• • ; J 1
dos de que dispomos, mas ainda assim 5730 anos
é muito mais que o tempo que dura uma vida
humana. Por isso, você poderia perguntar como
sabemos qual é a meia-vida do carbono- 14, sem
falar na meia-vida do urânio-238, que é de 4,5 bilhões de anos! A resposta é fácil. Não precisamos
esperar que metade dos átomos se desintegre. Po
demos medir a taxa de desintegração de uma mi
núscula fração dos átomos e calcular a meia-vida
(um quarto de vida, um centésimo de vida etc.) a
partir disso.
Uma viagem ao passado
Façamos outro experimento mental. Chame
alguns amigos e entrem numa máquina do tem
po. Ligue a máquina e viaje 1 0 mil anos para o
,
--
�-------
. -----:::=::-�==-=,____ ---....-- - - .. - . - . ... . r-- -----
--. . ..
•
•
--= = - - '::.-_ ---•
- - . -- •*·- az � " - � .�. \ .. , , " ' . ' . ·-
· - "' . . •
... ... ,
, _ ..... ', , ,, .
. . . . . . ... \
-"'- . . ... � · .... I ; .... • , f - " • • • ,, . . . . ( ...
... _ .. · . " � . , '
' \ \ ...
• • , , , · ,,., . '
.
. , ... ' t t I
'" .. ' � \\ , � ' ' . • • , , ,_ • � # ' '
,fl\ \j",\\\) ) I ' • 1// r \ '- 1 f ' ''
, I ' ' ' r � -"' '1,•' 1 'I \ ) ( '\lt �;(Jt I M ( ; . ' 1 I . "' ' -• •
. , , ..
' ' ' :\ . \,l \ \; . • "' I '
, , _1 ,\ . , , _ \ � .. 1 1 r , , , , , \ , , , , , ,
passado. Abra a porta e dê uma olhada nas pessoas
que encontrar. Se por acaso você tiver ido parar
na região que hoje é o Iraque, elas estarão inven
tando a agricultura. Mas, na maioria dos outros
lugares, os humanos serão caçadores-coletores
que não têm morada fixa e levam a vida se deslo
cando atrás de animais para caçar e de frutas silvestres, nozes e raízes para colher e extrair. Você
não conseguirá entender o que os outros huma
nos dizem, e eles estarão vestidos de um jeito
muito diferente (se é que estarão vestidos). Ainda
assim, se você der a eles roupas atuais e um corte
de cabelo na moda no nosso século, esses huma
nos serão indistinguíveis dos humanos dos dias
de hoje (as diferenças não serão maiores do que
as que vemos atualmente entre as pessoas). Eles
também serão totalmente capazes de procriar
1'!1 1 1 • " J . /' ' • ·�.... I ' • • '/ / t
, ' \ 1
1
(1 \{l�( ' '11 '1 • /
. 01 I ' \ l, • /1 •
1
; I l ' '
... ) • 1 '/ ,
•
-
\ , \ 1 •
' ,j , '\ - '\ I l - ' ' '
\ t
com as pessoas que viajaram com você a bordo
da máquina do tempo.
Agora pegue um voluntário entre essas pes
soas do passado (talvez seu 400� avô, pois esse é
aproximadamente o tempo em que ele deve ter
vivido) e prossiga viagem com ele na máquina do
tempo, voltando mais 1 0 mil anos. Você está agora 20 mil anos no passado, onde terá a chance de
encontrar seus 800� avós. Agora os humanos que
verá serão todos caçadores-coletores, mas ainda
terão o corpo igual ao dos humanos da atualidade
e serão capazes de cruzar com pessoas modernas
e ter filhos férteis. Ponha uma dessas pessoas na máquina do tempo e avance mais 1 O mil anos no
passado. Continue a fazer paradas a cada 10 mil anos, pegando um novo passageiro e transpor
tando-o para o passado.
•
I
-
Depois de muitas paradas de 1 O mil anos, tal
vez quando tiver voltado 1 milhão de anos, você
notará que os indivíduos que encontra ao sair da
máquina do tempo são indiscutivelmente dif e
rentes de nós e não podem produzir filhos com
as pessoas que iniciaram a jornada com você, mas
podem fazê-lo com aqueles que embarcaram nas
últimas paradas, quase tão antigos quanto eles.
Como eu disse, as mudanças graduais são
imperceptíveis, tal qual o movimento do ponteiro
das horas no relógio. Só que agora recorro a esse
outro experimento mental. Vale explicar de dois
modos distintos, pois essa questão é muito impor
tante e, no entanto, compreensivelmente, algumas
pessoas têm grande dificuldade em entendê-la.
Retomemos nossa viagem ao passado e veja
mos algumas das estações no caminho para aque
le simpático peixe. Suponha que chegamos, em
nossa máquina do tempo, à estação 6 Milhões de Anos Atrás. O que encontraremos lá? Enquanto
permanecermos na África, veremos nossos 250
milésimos avós (talvez algumas gerações a mais
ou a menos). Eles são grandes primatas, e talvez
se pareçam um pouco com chimpanzés. Mas não
são chimpanzés. São os ancestrais que temos em comum com os chimpanzés. Serão diferentes demais de nós para se acasalar conosco e procriar,
e diferentes demais dos chimpanzés para fazer o
mesmo com eles. Mas serão capazes de ter filhos
com os passageiros que pegamos na estação 5,99
Milhões de Anos Atrás. E provavelmente também com os da estação 5,9 Milhões de Anos Atrás. Mas
provavelmente não com os que subiram a bordo
na estação 4 Milhões de Anos Atrás.
Reiniciemos nossas paradas de 1 O mil anos,
voltando no passado até a estação 25 Milhões de
Anos Atrás. Lá encontraremos os seus (e meus)
1 ,5 milionésimo avós numa estimativa aproxi-
Seu 250 milésimo avô (6 milhões de anos atrás)
mada. Eles não serão grandes primatas, pois terão
cauda. Poderíamos chamá-los de macacos se os
víssemos hoje, embora não sejam parentes mais próximos dos macacos modernos do que de nós.
Apesar de muito diferentes de nós e de serem in
capazes de gerar filhos conosco ou com macacos
da atualidade, eles poderão ter filhos sem proble
ma nenhum com os passageiros quase idênticos
que subiram a bordo na estação 24,99 Milhões de
Anos Atrás. A mudança é muito, muito gradual
por todo o caminho.
E lá vamos nós, voltando, voltando, 1 O mil
anos por vez, sem encontrar mudanças notáveis a
cada escala. Paremos para ver quem vem ao nos
so encontro na estação 73 Milhões de Anos Atrás.
Aqui podemos apertar a mão (ou pata?)
dos nossos 7 milionésimos avós. Eles
se parecem com lêmures ou gálagos e
são, como seria de esperar, os ancestrais
de todos os lêmures e gálagos modernos.
Mas também são os ancestrais de todos os
macacos e grandes primatas modernos, in
clusive o homem.
Seu 1 , 5 milionésimo avô {25 milhões de anos atrás}
O grau de parentesco deles com os huma
nos modernos é o mesmo que têm com os macacos
modernos, e não é mais próximo dos lêmures ou
gálagos modernos. Eles não seriam capazes de ter filhos com nenhum animal hoje. Mas provavel
mente poderiam ter filhos com os passageiros que
pegamos na estação 62,99 Milhões de Anos Atrás.
Vamos lhes dar as boas-vindas a bordo da máqui
na do tempo e seguir viagem para o passado.
Seu 7 m ilionésimo avô {63 milhões de anos atrás)
•
Seu 45 mil ionési mo avô { 105 milhões de anos atrás}
Na estação 105 Milhões de Anos Atrás,
encontraremos nosso 45 milionésimo avô. Ele também é o mais antigo ancestral de todos os
mamíferos modernos exceto os marsupiais (hoje encontrados principalmente na Austrália e al
guns na América) e os monotremados ( ornitor
rincos e equidnas, vistos hoje apenas na Austrália
e na Nova Guiné). A ilustração mostra-o com sua
comida favorita na boca, um inseto. Ele tem pa -
rentesco no mesmo grau com todos os mamíf eros modernos, apesar de ser mais parecido com
alguns do que com outros. A estação 3 1 O Milhões de Anos Atrás nos
mostra nosso 1 70 milionésimo avô. Ele é o mais
antigo ancestral de todos os mamíferos moder
nos, de todos os répteis modernos (cobras, la
gartos, tartarugas, crocodilos) e de todos os dinossauros (e das aves, pois as aves evoluíram de
dinossauros). Esse nosso ancestral tem o mesmo
grau de parentesco com todos os animais atuais,
apesar de se parecer mais com o lagarto. O que
isso significa é que desde essa época os lagartos
mudaram menos do que, digamos, os mamíferos.
Agora que já somos viajantes experientes, não parecerá longe seguir viagem até en
contrar aquele peixe que mencio
nei no início. Vamos fa-I • zer so mais uma
parada
antes: na estação 340 Milhões de Anos Atrás,
onde veremos nosso 1 75 milionésimo avô. Ele
se parece um pouco com uma salamandra, e
é o mais antigo ancestral de todos os anfíbios
modernos (salamandras e rãs) assim como de
todos os demais vertebrados terrestres. E seguimos então para a estação 4 1 7
Milhões de Anos Atrás, encontrando nosso
185 milionésimo avô, o peixe da página 40.
Poderíamos continuar retrocedendo no tempo, encontrando ancestrais cada vez mais
distantes, entre eles vários peixes com man-
díbula, depois peixes sem mandíbula, depois . . . bem,
aí nossos conhecimentos se tornam nebulosos, incer
tos, pois desses tempos antiquíssimos começam a nos
faltar fósseis.
•
DNA mostra: somos todos primos •
Apesar de não termos fósseis para nos dizer
exatamente como eram nossos ancestrais mais
remotos, não temos dúvida de que todos os seres
vivos são nossos parentes e parentes uns dos ou -
tros. Também sabemos quais animais modernos
são parentes próximos uns dos outros (como o
homem e o chimpanzé, o rato e o camundongo) e
quais são parentes distantes (como o homem e o
cuco, o camundongo e o jacaré). E como sabemos
isso? Fazendo uma comparação sistemática entre
eles. Atualmente, as evidências mais convincentes
provêm da comparação do DNA dos animais.
DNA é a informação genética que todos os
seres vivos possuem em cada uma de suas células.
O DNA é soletrado ao longo de ''fitas'' de dados
densamente espiraladas chamadas ''cromossomos': Eles são muito parecidos com aquelas fitas
de dados que eram inseridas nos computadores
mais antigos, porque a informação que contêm é digital e se distribui de forma ordenada ao longo
deles. São longas cadeias de ''letras'' codificadas
que podemos contar: cada letra está ou não lá; não há meio-termo. É isso que faz o DNA ser digi
tal, e é por isso que digo que o DNA é ''soletrado''.
Todos os genes, em cada animal, planta e
bactéria que já foi examinado, são mensagens co
dificadas, escritas em um alfabeto que vale para todos os seres, com instruções sobre como for
mar essa criatura. Esse alfabeto contém apenas
quatro letras (em contraste com as 26 do alfabeto
português), e as representamos como A, T, C e
G. Os mesmos genes aparecem em muitos seres
distintos, com algumas diferenças reveladoras.
Por exemplo, existe um gene chamado FoxP2 que
aparece em todos os mamíferos e em muitos ou
tros seres. O gene é uma cadeia de mais de 2 mil
letras. No pé desta página vemos um breve trecho
de 80 letras de uma parte do meio do FoxP2, o
trecho que vai da letra 83 1 à letra 9 1 0. O trecho
de cima pertence a um humano, o do meio a um
chimpanzé e o de baixo a um camundongo. Os números no fim dos dois trechos inferiores mos
tram quantas letras no gene inteiro diferem das
letras em todo o gene FoxP2 dos humanos.
Podemos ver que o FoxP2 é o mesmo gene
em todos os mamíferos porque a imensa maioria
das letras codificadas coincide, e isso vale para
toda a extensão do gene, e não só para esse trecho
de 80 letras. Nem todas as letras do chimpanzé
são as mesmas que as nossas, e com os camun-
dongos temos ainda menos letras em comum.
As diferenças estão destacadas em verme
lho. Do total de 2076 letras no FoxP2, o
chimpanzé possui nove diferentes das
nossas, enquanto o camundongo tem
139. E esse padrão vale também para
outros genes. Isso explica por que os
Homem
Chimpanzé
Camundongo
C TCCAACACTTCC --GCATCACCACCAATAA C TCCACCACTTCC---GCGTCACCACCAATAA CTCCACCACGTCC GCATCACCACC CATCA
ij �' li r . • � .. li
chimpanzés são bem parecidos conosco, e os ca
mundongos, menos.
Os chimpanzés são nossos parentes próxi
mos; os camundongos também são nossos pa -rentes, só que mais distantes. Isso significa que
o ancestral mais recente que temos em comum
viveu muito tempo atrás. Os macacos são mais
próximos de nós que os camundongos, porém
mais distantes que os chimpanzés. Os babuínos - , .
e os resos sao macacos, parentes prox1mos uns
dos outros, com genes FoxP2 quase idênticos. Seu parentesco com os chimpanzés é exatamente do
' mesmo grau que seu parentesco conosco; e o nu-
mero de letras do DNA no FoxP2 que separam os
babuínos dos chimpanzés é quase o mesmo (24)
que o número de letras que separam os babuínos
de nós (23). Tudo se encaixa.
As rãs são parentes muito mais distantes dos
mamíferos. Todos os mamíferos têm aproxima -
damente a mesma diferença no número de letras
em relação a uma rã, pela simples razão de que o
grau de parentesco entre eles é exatamente igual:
todos os mamíferos têm um ancestral em comum entre si (de aproximadamente 180 milhões de
anos atrás) que é mais recente do que o ancestral
que têm em comum com as rãs (de aproximada
mente 340 milhões de anos atrás). É claro que os humanos não são todos idên
ticos, nem os babuínos e os camundongos. Pode
ríamos comparar os genes do leitor com os meus,
letra por letra. O resultado? Teríamos mais letras
em comum que qualquer um de nós dois teria com um chimpanzé. Mas ainda assim encontraría-
mos letras diferentes. Não muitas, e não há razão
para destacar o gene FoxP2. Mas, se você contar o número de letras que todos os humanos têm em comum nos nossos genes, seria mais do que qual
quer um de nós tem em comum com um chimpanzé. E você tem mais letras em comum com
seu primo do que comigo. E ainda mais letras em - . . ,..,
comum com sua mae, seu pai, sua 1rma ou seu
irmão. A propósito, podemos deduzir o grau de
parentesco entre duas pessoas contando o núme
ro de letras de DNA que elas têm em comum. É
interessante fazer essa contagem, e esse provavel
mente é um assunto de que ouviremos falar mais
no futuro. Por exemplo, a polícia será capaz de
identificar uma pessoa com base na <<impressão
digital'' do DNA do irmão dela.
Alguns genes são os mesmos (com diferenças
insignificantes) em todos os mamíferos. Contar o
número de letras diferentes nesses genes ajuda a
determinar o grau de parentesco entre diferentes
espécies de mamíferos. Outros são úteis para de
terminar parentescos mais distantes, como entre
vertebrados e vermes. Outros ainda nos ajudam a determinar parentescos dentro de uma mesma espécie digamos, se você e eu somos parentes muito ou pouco próximos. Se por acaso você for
inglês, nosso ancestral comum mais recente pro
vavelmente viveu apenas alguns séculos atrás. Se
você for um nativo tasmaniano ou americano, te
ríamos de voltar algumas dezenas de milhares de anos para encontrar um ancestral em comum. Se
você for da tribo !Kung San do deserto do Kalaha
ri, talvez tenhamos de retroceder ainda mais.
rCATCATTCCATAGTGAATGGACAGTCTTCAGTTCTAAGTGCAAGAC rCATCATTCCATCGTGAATGGACAGTCTTCAGTTCT TGCAAGAC \CATCATTCCATAGTGAACGGACAGTCTTCAGTTCTGAATGCAAGGC
9 1 3 9
Um fato que vai além de qualquer dúvida: te
mos um ancestral em comum com cada uma das
espécies de animais e plantas do planeta. Sabemos
disso porque alguns genes são reconhecivelmente os mesmos em todos os seres vivos, sejam eles
animais, plantas ou bactérias. Acima de tudo, o
próprio código genético o dicionário com
base no qual todos os genes são traduzidos
- é o mesmo em todos os seres vivos que
já examinamos. Somos todos paren-tes. Nossa árvore filogenética inclui
52
primos óbvios como chimpanzés e macacos, mas
também camundongos, búfalos, iguanas, cangu -
rus, lesmas, dentes-de-leão, águias, cogumelos,
baleias, vombates e bactérias. Todos são nossos
parentes. Sem exceção. Isso não é muito mais in
crível que qualquer mito? E o mais incrí-r----__
vel de tudo é que temos certe-
za de que é verdade.
•
UITOS MITOS TENTAM explicar
por que determinados tipos de ani
mais são como são: eles ((explicam'' coi-
sas como por que os leopardos têm
manchas e por que os coelhos têm
cauda. Mas parece que não há muitas
histórias sobre a origem dessa imen -
sa variedade de tipos de animais.
Não consegui encontrar nada
parecido com o mito judaico
da Torre de Babel, que dá uma
razão para haver tantas línguas
diferentes. Segundo esse mito,
antigamente todas as pessoas
do mundo falavam a mesma
língua. Assim, podiam traba
lhar juntas harmoniosa
mente na construção
de uma grande torre,
pela qual pretendiam
subir até o céu. Deus
descobriu e não gos
tou nada dessa his
tória de todo mundo
entender todo mundo.
O que mais poderiam
aprontar, sendo capazes
de falar uns com os outros
54
'
•
•
• ..
•
-
e trabalhar juntos? Por isso, ele decidiu confundir a
linguagem deles para que uma pessoa não entendes
se a outra. É por essa razão, diz o mito, que existem
tantas línguas diferentes e que, quando as pessoas tentam conversar com gente de outra tribo ou ou
tro país, sua fala geralmente soa como um monte de
sons sem sentido.
Eu estava torcend.o para encontrar algum mito
parecido que explicasse a grande diversidade de
bichos, pois há uma semelhança entre a evolução
da linguagem e a evolução dos animais, como ve-•
remos. Mas parece não existir nenhum mito que •
trate especificamente do imenso número de ti-
pos de animais� Isso é surpreendente, já que
há evidências indiretas de que os povos tri
bais sempre tiveram uma boa noção do
-
fato de que as variedades de animais são
muito numerosas. Nos anos 1 920, um .
cientista alemão hoje famoso chamado
Ernst Mayr realizou um estudo pionei
ro sobre as aves dos planaltos da Nova
Guiné. Compilou uma lista de 137 es
pécies e descobriu, admirado, que os
nativos da tribo Papua tinham nomes diferentes para 1 36 delas.
Voltemos aos mitos. A tribo Ho
pi, da América do Norte, tinha uma
deusa chamada Mulher Aranha.
•
•
55
Ela se aliou ao deus Sol, Tawa, e eles cantaram jun-•
tos a Primeira Canção Mágica, que gerou a Terra
e a vida. A Mulher Aranha pegou então os fios
do pensamento de Tawa e com eles teceu formas
sólidas, criando peixes, aves e todos os animais. Os povos Pueblo e Navajo, também da
América do Norte, têm um mito que lembra re
motamente a ideia de evolução: a vida surgiu da
Terra como uma planta que brotou e foi cres
cendo em uma sequência de etapas. Os
insetos subiram de seu
, • J
• • , -
•
...
•
56
• •
·..i
•
•
•
'
, . �
,..
J
-
J • \ .,
• •
• •
,. •
• •
, • •
.
•
1 -•
, ' , .. -
-•
• • ,
mundo, o Primeiro Mundo ou Mundo Vermelho,
e chegaram ao Segundo Mundo, o Mundo Azul,
onde viviam as aves. Com isso, o Segundo Mundo
ficou populoso demais, e as aves e os insetos voa -
ram para o Terceiro Mundo, ou Mundo Amarelo,
onde viviam as pessoas e os demais mamíferos. O
Mundo Amarelo então ficou muito populoso e a
comida escasseou, por isso todos os seres, insetos,
•
aves e outros animais fugiram para o Quarto
. -.., ,
Mundo, o Mundo Preto e Bran
co do dia e da noite. Nele os
-
..
r
J •
, • •
,/
r
I • • •
. , ' . . •
,
,.
•
'
•
I
•
-
...
, ' / / ,,,,- . -
-
-
•
, -
li'. �
' ' - -
,_. / '/
•
-
""
\.
deuses haviam criado pessoas melhores, que sabiam cultivar a
terra e ensinaram essa prática aos recém-chegados. O mito judaico da criação faz um pouco mais de justiça à
diversidade, mas não procura realmente explicá-la. Na verda
de, o livro sagrado do judaísmo contém dois mitos da criação,
como vimos no capítulo anterior. No primeiro, o deus judaico
criou tudo em seis dias. No quinto dia, criou os peixes, as ba
leias e todos os seres marinhos, além das aves. No sexto dia,
criou o restante dos animais terrestres, inclusive o homem. O
mito dá alguma atenção à variedade dos seres vivos. Por exem
plo: ''Criou, pois, Deus os monstros marinhos, e todos os se
res viventes que se arrastavam, os quais as águas produziram
abundantemente segundo as suas espécies; e toda ave que voa,
-
• 4 ...
V
I "
_.,. ...
•
- •
.J -'
..../
•
segundo a sua espécie'' e
fez ''os animais selvagens
segundo suas espécies'' e
''todo réptil que se arrasta
sobre a terra [ . . . ] segun
do suas espécies': Mas por que tamanha variedade?
Isso não é dito .
No segundo mito, ve
mos uma alusão à possibi
lidade de o deus ter julga
do que seu primeiro homem
precisava de companhei
ros. Adão, o primeiro ho
mem, é criado sozinho e
posto num lindo j ardim.
Mas o deus percebeu que
''não é bom que o homem
esteja só': assim ''da terra
formou, pois, o Senhor Deus
todos os animais do cam -
po e todas as aves do céu, e
os trouxe ao homem, para
ver como lhes chamarià' .
•
57
• •
A TAREFA DE ADÃO, nomear todos os animais,
era difícil mais difícil do que os antigos hebreus
imaginavam. As estimativas são de que 2 milhões
de espécies animais tenham nome científico, e
essa é apenas uma pequena fração do número de
espécies que ainda precisam ser nomeadas.
Como é que decidimos se dois animais per
tencem à mesma espécie ou não? No caso dos que
se reproduzem sexualmente, podemos dar uma
definição. Animais pertencem a espécies dif eren -
tes quando não podem procriar entre si. Há casos
duvidosos, como o dos cavalos e jumentos, que
podem cruzar e se reproduzir, mas, quando isso
acontece, a cria (que chamamos de mula) é infér
til, ou seja, não pode ter filhos. Por isso, colocamos
o cavalo e o jumento em espécies diferentes. Já os
58
cavalos e os cães são obviamente de espécies dife--
rentes porque nem sequer tentam cruzar, e mes
mo que o fizessem não poderiam gerar filhos, nem
mesmo inférteis. Já o cocker spaniel e o poodle
pertencem à mesma espécie porque cruzam sem
problema algum, e os filhotes que nascem desse
cruzamento são férteis. Todo nome científico de animal ou planta
consiste em duas palavras em latim, geralmente
grafadas em itálico. A primeira palavra designa o
''gênero'' ou grupo de espécies, e a segunda, a es
pécie individual pertencente a esse gênero. Homo
sapiens (''homem sábio'') e Elephas maximus
(''elefante muito grande'') são exemplos. Cada es
pécie pertence a um gênero. Homo é um gênero.
Elephas, outro. O leão é Panthera leo, e o gênero
PANTHERA ONCA
Panthera inclui também Panthera tigris
(tigre), Panthera pardus (leo
pardo ou pantera) e Panthera
anca (onça-pintada) . O Homo sapiens é a única
espécie sobrevivente do nosso gênero, mas temos
fósseis que receberam nomes como Homo erectus
e Homo habilis. Outros fósseis têm semelhanças
com os humanos, mas diferem suficientemente
do Homo para ser classificados em outro gênero,
como o Australopithecus africanus e o Australopi
thecus af arensis (esse nome não vem de Austrália;
austral o significa sul, palavra de que provém tam -
bém o nome do principal país da Oceania) .
Cada gênero pertence a uma família, cujo nome geralmente é escrito com inicial em maiús
cula. Os felinos (leões, leopardos, guepardos, lin-
ces e muitos felinos menores) compõem a f amí
lia Felídeos. Cada família pertence a uma ordem.
Cães, gatos, ursos, doninhas e hienas pertencem
a diferentes famílias da ordem Carnívoros. Ma
cacos, grandes primatas (incluindo o homem) e lêmures pertencem a diferentes famílias da ordem Primatas. E cada ordem pertence a uma classe. Todos os mamíferos são da classe Mamíferos.
Você consegue visualizar uma árvore en
quanto lê a descrição dessa sequência de agrupa
mentos? É uma árvore filogenética: tem muitos
ramos, cada um com sub-ramos, com sub-sub-ra
mos. As pontas dos menores galhos são as espé
cies. Os demais grupos classe, ordem, família, gênero são os ramos e sub-ramos. Completa,
essa árvore representa toda a vida na Terra . .
59
Pense por que as árvores têm tantos ramos.
Eles se ramificam. Quando temos suficientes ra -
mos de ramos de ramos, o número total pode ser imenso. É isso que acontece na evolução. O pró
prio Charles Darwin desenhou uma árvore rami
ficada na única ilustração de seu famoso livro A
origem das espécies. Abaixo você vê uma versão
inicial dessa figura, que Darwin esboçou em um
de seus cadernos alguns anos antes. No topo da página ele escreveu uma misteriosa mensagem
a si mesmo: ((Eu penso''. O que você acha que
ele quis dizer? Talvez tivesse começado a escre
ver uma frase quando foi interrompido por um
de seus filhos, por isso nunca a concluiu. Talvez
achasse mais fácil representar o que estava pen
sando em seu diagrama que em palavras. Talvez
nunca saibamos. Há outras coisas manuscritas na
•
60 '
página, mas são difíceis de decifrar. É fascinante
ler as anotações de próprio punho de um grande
cientista, nunca destinadas à publicação.
O trecho a seguir não explica como a árvore
dos animais se ramificou, mas dá uma ideia. Ima
gine uma espécie ancestral que se divide em duas.
Se cada uma dessas duas por sua vez se dividir em
duas, teremos quatro. Se cada uma dessas se divi
dir em duas, teremos oito, e assim por diante: 1 6,
32, 64, 1 28, 256, 5 1 2 . . . Você pode ver que, se essa
duplicação de cada espécie continuar, não demo
rará para que haja milhões delas. Isso provavel
mente faz sentido para você, mas talvez uma per
gunta lhe tenha ocorrido: por que uma espécie se
dividiria? Bem, mais ou menos pela mesma razão
por que as línguas humanas se dividem. Façamos
uma pausa para examinar essa ideia .
. -=-· . . 't
l •
\
•
. , \, E ..,
•
1
•
Desmembramento : como as línguas e as espécies se dividem
Embora a lenda da Torre de Babel não seja ver
dadeira, ela inspira uma pergunta interessante: por que existem tantas línguas?
Assim como algumas espécies são mais se
melhantes do que outras e nós as classificamos
na mesma família, também existem famílias de
línguas. Espanhol, italiano, português, francês
e muitos idiomas e dialetos europeus, como o
romanche, o galego, o occitano e o catalão, são
razoavelmente semelhantes umas às outras. Jun
tas, elas são chamadas de línguas latinas. Esse
nome provém de sua origem comum no latim,
a língua de Roma. Usemos como exemplo uma
expressão de amor. Dependendo do país em que
você estiver, pode declarar seus sentimentos
com uma das seguintes frases: ''Ti amo': ''Amo-te': ''T'aimi'' ou ''Je t'aime''. Em latim, seria ''Te
amo': exatamente como em espanhol e portu
guês modernos.
Para se declarar no Quênia, Tanzânia ou
Uganda, você poderia dizer em suaíli ''Naku
penda': Um pouco mais para o sul, em Mo
çambique, na Zâmbia ou no Malauí, onde fui criado, você poderia dizer, na língua chinyanja: ''Ndimakukonda': Em outras línguas chamadas
bantas, da África meridional, você poderia di
zer ''Ndinokuda': ''Ndiyakuthanda': ou, para um
zulu, ''Ngiyakuthanda': Essa família das línguas
bantas é bem distinta da família das línguas latinas, e ambas diferem muito da família germânica, que inclui o holandês, o alemão e as lín
guas escandinavas. Veja que usamos a palavra
''família'' para as línguas, como fazemos para
as espécies (a família felina, a família canina) e
também, é claro, para nossas famílias (a família. Silva, a família Pereira, a família Dawkins).
Não é difícil perceber como as famílias de
línguas aparentadas surgiram no decorrer dos
séculos. Preste atenção no modo como você e
•
•
6 1 •
seus amigos conversam entre si e compare com
o modo como seus avós falam. O modo de fa
lar deles é só um pouco diferente, e você pode
entendê-los facilmente. É que eles são de apenas duas gerações antes da sua. Agora imagine
como seria conversar com o seu 25º avô. Isso
poderia levá-lo mais ou menos ao tempo do Descobrimento do Brasil, quando Pero Vaz de
Caminha escreveu sua famosa carta ao rei d.
Manuel, que incluía o seguinte trecho:
� ---- _ __ __ __. .... _ ... � - � - ... �-�- · -��-...C::S..--- -----
A feiçam deles he seerem pardos ma
neira de vermelhados, de boos rastros e
boos narizes bem feitos. Amdam nuus
sem nenhuua cubertura nem estimam
nenhuua coussa cobrir nem mostrar
suas vergonhas, e estam açerqua disso
com tamta jnocemçia como teem em
mostrar o Rostro.
l .. · '
Podemos reconhecer a língua co-" mo portugues , mas aposto que
todos nós teríamos dificuldade de
entender as palavras se fossem fa
ladas por alguém daquela época. Se houvesse uma diferença muito
maior do português que usamos
atualmente, poderíamos chegar ao
ponto de considerar esta uma lín -
gua distinta, tão diferente quanto
o espanhol do italiano.
•
•
' --
•
Portanto, a língua, em qualquer lugar, muda •
no decorrer dos séculos. Poderíamos dizer que
<'deriva' para algo diferente. Além disso, as pessoas
que falam a mesma língua e moram em lugares diferentes não têm muitas oportunidades de ouvir
umas às outras (ou pelo menos não tinham antes da invenção do telefone e do rádio), e elas derivam
em diferentes direções nos diversos lugares. Isso se
aplica ao modo como a língua é falada e também
às próprias palavras: repare como soam diferentes
as palavras ditas, por exemplo, nos sotaques ca
rioca, gaúcho e nordestino. Um escocês distingue
facilmente o sotaque de Edimburgo do sotaque de
Glasgow ou das ilhas Hébridas, três localidades
do país. Com o passar do tempo, tanto o modo
como a língua é falada como as palavras usadas
Espanhol Português
Italiano
Provençal
Francês
Galês
Gaélico
Bretão Córnico
tornam-se característicos de uma região; quando
dois modos de falar derivaram e se distanciaram
muito, dizemos que são diferentes ''dialetos''.
Após séculos, os diferentes dialetos regionais por fim se tornam tão díspares que as pessoas de
uma região não conseguem mais entender as da
outra. Nesse ponto, dizemos que falam línguas
separadas. Foi o que ocorreu quando o alemão e o holandês derivaram cada qual numa direção a
partir de uma língua ancestral hoje extinta. Ou
quando o francês, o italiano, o espanhol e o portu -
guês derivaram independentemente do latim em
suas respectivas regiões da Europa.
Podemos desenhar uma árvore das famílias
de línguas, com ccprimas'' como o francês, o por
tuguês e o italiano em ramos vizinhos e ancestrais
como o latim mais abaixo na árvore - assim como Darwin fez com as espécies.
Galego
Romeno
Gótico
Alemão Islandês
Dinamarquês
•
Assim como as línguas, as espécies mudam
com a distância e o passar do tempo. Antes de en
tender por quê, precisamos saber como isso acon
tece. Nas espécies, o equivalente das palavras é o
DNA, a informação genética que todo ser vivo pos
sui em sua estrutura e que determina como ele é
feito, conforme explicamos no capítulo 2. Quando
indivíduos se reproduzem sexualmente, seu DNA
é misturado. Chamamos de ''fluxo gênico'' a mi
gração de membros de uma população para outra
região que encontram uma população diferente e
nela introduzem seus genes através de cruzamento.
O equivalente da deriva do italiano e do francês, por exemplo, é a diferenciação do DNA de duas
populações separadas de uma mesma espécie com
o passar do tempo. O DNA de cada uma dessas po
pulações passa a ser cada vez menos capaz de se misturar ao da outra e produzir filhos. Cavalos e
jumentos podem acasalar, mas o DNA do cavalo
derivou e se distanciou tanto do DNA do jumento
que os dois não conseguem mais se entender. Ou
melhor, entendem-se de maneira rudimentar os
dois ''dialetos'' de DNA conversam apenas o sufi
ciente para produzir outro ser vivo, uma mula, mas
não para gerar um que seja capaz de procriar: as
mulas, como já vimos, são estéreis.
Uma diferença importante entre as espécies
e as línguas é que as línguas podem pegar pala
vras ''emprestadas'' umas das outras. O inglês, por
exemplo, muito depois de se desenvolver como idioma distinto a partir de suas fontes românicas,
germânicas e celtas, adotou as palavras ''shampoo''
do hindi, ''iceberg'' do norueguês, ''bungalow'' do
bengali e ''anorak'' do inuíte. Mas as espécies ani
mais nunca (ou quase nunca) voltam a trocar DNA
depois de ter derivado o suficiente e perdido a ca
pacidade de se cruzar. As bactérias são outra histó
ria: elas trocam genes entre si, mas não temos espa
ço suficiente para entrar nesse assunto. No resto do
capítulo, falarei sempre de animais.
I lhas e isolamento: o poder da separação
O DNA das espécies, como as palavras das
línguas, deriva quando há separação. Por
quê? O que inicia a separação? Uma possibilidade óbvia é o mar. Populações de ilhas
separadas não se encontram, ou pelo me
nos não com frequência, por isso seus genes
podem derivar para longe um do outro. As
sim, as ilhas são extremamente importantes
para a origem de novas espécies. Podemos
imaginar que uma ilha não é apenas uma porção de terra cercada de água por todos
os lados. Para uma rã, um oásis é uma ''ilhà'
onde ela pode viver, cercada por um deser
to onde não pode. Para um peixe, um lago
é uma ilha. As ilhas são importantes, tanto
para as espécies como para as línguas, por
que sua população não tem contato com
outras populações (o que impede o fluxo
gênico no caso das espécies e a deriva no caso das
línguas). Com isso, as populações das ilhas ficam
livres para evoluir numa direção própria. O segundo aspecto importante é que a po
pulação de uma ilha não precisa estar isolada para
sempre: às vezes, genes podem transpor a barreira
que os cerca, seja ela de água ou de terra inabitável.
Em 4 de outubro de 1 995, uma esteira forma
da por toras e árvores arrancadas foi levada pela
água e acabou encalhando numa praia na ilha ca
ribenha de Anguilla. Nessa esteira havia quinze
iguanas, vivas depois do que parece ter sido uma
perigosa jornada partindo de outra ilha, provavelmente Guadalupe, a 1 60 km de distância. Dois
furacões, chamados Luís e Marilyn, haviam asso
lado o Caribe no mês anterior, arrancando árvo
res e jogando-as ao mar. Ao que parece, um desses
furacões derrubou as árvores em que as iguanas estavam (esses bichos adoram ficar trepados em
66
árvores, como pude ver no Panamá) e varreu tu
do para o mar. Quando chegaram a Aguilla, as
iguanas desembarcaram do seu insólito meio de
transporte e começaram uma nova vida na praia, alimentando-se, reproduzindo-se e transmitindo seu DNA em uma ilha que antes não tinha igua11as.
Sabemos que isso aconteceu porque pesca
dores de Anguilla viram as iguanas chegar. Séculos
antes, embora não houvesse ninguém para teste
munhar o fato, quase certamente algo semelhante
levou os ancestrais daquelas iguanas para Guada
lupe. E quase sem dúvida um acidente parecido explica a presença desses animais em Galápagos,
que é para onde vamos agora na nossa história.
As ilhas Galápagos têm uma importância
histórica porque provavelmente inspiraram as pri
meiras ideias de Charles Darwin sobre a evolução
quando ele as visitou em 1835, como membro de
uma expedição que viajava no navio Beagle. Trata-
--
•
•
-se de um grupo de ilhas vulcânicas no oceano
Pacífico próximo ao equador, quase mil quilôme
tros a oeste da América do Sul. São todas jovens
(surgiram há apenas alguns mill1ões de a11os),
formadas por vulcões que emergiram do fundo
do mar. Isso significa que todas as espécies de ani
mais e pla11tas dessas ilhas vieram de outro lugar,
presumivelmente do continente sul-americano,
e recentemente, segundo os padrões evolucioná
rios. Ali chegadas, as espécies podem ter feito tra-
vessias mais curtas de ilha para ilha,
com frequência suficiente para
ocupar todo o arquipélago
(talvez u1na ou duas vezes
a cada século), mas não
tão raramente que pu-�� ,,.._.
· ---�;� dessem evoluir à parte -
((derivar': como esta1nos
dizendo neste capítulo
durante os intervalos entre as raras travessias.
Ninguém sabe quando as primeiras iguanas
chegaram a Galápagos. Provavelmente vieram em
uma jangada de troncos arrancados e impelidos
do continente, como os que aportaram em An
guilla em 1995. Hoje em dia, a ilha mais próxima
do continente é São Cristóvão (Darwin a conhecia
pelo nome inglês Chatham), mas milhões de anos
atrás havia também outras ilhas, hoje submersas.
As iguanas poderiam ter cl1egado primeiro a uma
das ilhas hoje afundadas, depois feito a travessia
- r •
•
• • •
•
•
até outras ilhas, entre elas as que hoje continuam aci1na da água.
•
Uma vez ali, tiveram oportunidade de
prosperar em um novo lugar, como as iguanas
que chegaram a Anguilla em 1995. As primeiras
iguanas em Galápagos se diferenciaram de seus
primos do continente pela evolução, em parte
apenas ''derivando'' (como as línguas) e em parte
porque a seleção natural favoreceu novas habilidades de sobrevivência: uma ilha vulcânica re
lativamente árida é um lugar muito diferente do
continente sul-americano.
As distâ11cias entre as várias ilhas são bem
menores do que a distância de qualquer uma de
las até o continente. Assim, a travessia marítima
acidental entre ilhas seria relativamente comum: talvez uma por século em vez de uma por milênio.
E as iguanas acabariam por chegar à maioria da
quelas ilhas. A travessia para uma nova ilha teria
sido um evento suficientemente raro para permitir alguma deriva evolucionária nas diversas ilhas nos intervalos entre as '(contaminações'' dos genes
entre uma travessia acidental e outra: raro o bas
tante para permitir que as iguanas se desenvolves
sem tanto que, quando finalmente reencontras
sem uma de outra ilha, não pudessem mais cruzar com ela. O resultado é que hoje existem três espé
cies distintas de iguana terrestre em Galápagos, as
quais não são mais capazes de intercruzamento. A
Conolophus pallidus é encontrada apenas na ilha
de Santa Fé. A Conolophus subcristatus vive em
6 7
•
•
r
várias ilhas, entre elas Fernandina, Isabela e Santa
Cruz (a população de cada uma delas pode estar
a caminho de se transformar em uma espécie dis
tinta). A Conolophus marthae está confinada ao mais setentrional da cadeia de cinco vulcões da
grande ilha Isabela.
O que levanta outra questão interessante.
Você deve se lembrar de eu ter dito que um lago
ou oásis pode ser visto como uma ilha, mesmo
não sendo terra cercada de água. Pois bem: o mes
mo vale para os cinco vulcões de Isabela. Cada um
está cercado por uma zona de vegetação densa (em
verde na figura abaixo) que é uma espécie de oá
sis separado do vulcão vizinho por um deserto. A
maioria das ilhas de Galápagos possui apenas um
vulcão grande, mas Isabela tem cinco. Se o nível
do mar subir (por causa do aquecimento global,
por exemplo), Isabela poderá se transformar em
cinco ilhas separadas pelo mar. Atualmente, você pode considerar cada vulcão uma espécie de ilha
dentro de uma ilha. É assim que pareceria a uma
iguana (ou a uma tartaruga gigante) que precisa
se alimentar da vegetação encontrada nas encos
tas ao redor dos vulcões. Qualquer tipo de isolamento por uma bar
reira geográfica que possa ser transposto de vez
em quando leva à ramificação evolucionária. (Na
verdade, não precisa ser uma barreira geográfi
ca. Há outras possibilidades, sobretudo para os
insetos, mas para simplificar não as mencionarei
aqui.) Uma vez que as populações tenham deri
vado o suficiente para não serem mais capazes de
cruzar, a barreira geográfica deixa de ser necessá
ria. As espécies podem prosseguir seu caminho
evolucionário separadas, sem nunca mais conta
minar o DNA da outra. Separações desse tipo são a
principal fonte das novas espécies que já surgiram
no planeta até, como veremos, da separação
original entre os ancestrais das lesmas e os ances
trais de todos os vertebrados, inclusive o homem.
- -
Em algum momento da história das iguanas
em Galápagos ocorreu uma ramificação que con -
<luziu a uma nova espécie muito peculiar. Numa
dessas ilhas, não sabemos qual, uma população
de iguanas mudou totalmente seu modo de vida.
Em vez de comer plantas nas encostas dos vulcões, elas desceram para a praia e passaram a co
mer algas marinhas. A seleção natural foi então
favorecendo os indivíduos que nadavam bem, e
hoje seus descendentes têm o hábito de mergu
lhar para se alimentar das algas submersas. São
chamados de iguanas marinhas e, diferentemente
das iguanas terrestres, não vivem em nenhum lu-
..
gar fora de Galápagos. Possuem estranhas carac
terísticas que lhes permitem viver no mar, e isso
as torna muito diferentes das iguanas terrestres de
Galápagos e de todos os outros lugares do mun -do. Com certeza evoluíram de iguanas terrestres, mas não são parentes muito próximas das que habitam Galápagos atualmente. É possível que
tenham evoluído de um gênero mais antigo, hoje
extinto, que chegou do continente e colonizou as
ilhas muito antes das Conolophus atuais. Em Ga
lápagos existem raças diferentes de iguanas ma
rinhas, mas não espécies diferentes. No futuro,
provavelmente essas diferentes raças derivarão o suficiente para serem consideradas espécies dis
tintas do gênero iguana marinha .
•
•
,,
•
•
I
•
,, .
•
A história é seme
lhante para tartarugas
gigantes, lagartos, es
tranhos biguás que não
voam, sabiás, pintassilgos
e muitos outros animais e
plantas de Galápagos. E o
mesmo tipo de coisa ocorre no
mundo todo. Galápagos é ape
nas um exemplo particularmente
claro. Ilhas (incluindo lagos, oásis e montanhas) forjam novas espécies.
Um rio pode fazer a mesma coisa. Se for
difícil para um animal atravessá-lo, os ge
nes nas populações dos dois lados podem deri-
var, do mesmo modo que uma língua pode de
rivar formando dois dialetos, que depois podem derivar e se transformar em duas línguas. Cadeias
montanhosas também podem desempenhar esse
mesmo papel de separadoras. E o mesmo pode
mos dizer da distância pura e simples. Os camun
dongos da Espanha podem estar ligados por uma
cadeia de camundongos que cruzaram através de todo o continente asiático. Mas demora tanto para
um gene viajar de um camundongo para outro por
essa imensa distância que eles até poderiam ser
considerados habitantes de ilhas separadas. E a
evolução dos camundongos na Espanha e na China poderia derivar em direções distintas.
As três espécies de iguana terrestre de Ga -
lápagos tiveram apenas alguns milhares de anos de
evolução para se distanciar pela deriva. Depois de decorridos centenas de milhões de anos, os des
cendentes de uma única espécie ancestral podem
ser tão diferentes quanto, digamos, uma barata e um crocodilo. De fato, num passado muito, mui
to remoto existiu um ancestral das baratas (e de
muitos outros animais, entre eles lesmas e caran
guejos) que também foi o mais antigo ancestral (o
''grancestral'') dos crocodilos (sem falar de todos
os outros vertebrados). Mas teríamos de retroceder
muito no tempo, talvez mais de 1 bilhão de anos,
antes de encontrar um grancestral tão antigo quan
to esse. É uma época tão re1nota que nem podemos supor qual teria sido a barreira original responsá
vel pela separação dos animais. Seja qual for, deve
ter ocorrido no mar, pois naqueles tempos longín
quos nenhum animal vivia em terra firme. Talvez
a espécie grancestral só pudesse viver em recifes de corais, e duas populações tenham ido parar em recifes separados por águas profundas e inóspitas.
Corno vimos no capítulo anterior, seria pre
ciso retroceder 6 milhões de anos para encontrar
o mais recente grancestral comum de humanos e
chimpanzés. É recente o bastante para que possa
mos especular que barreira geográfica poderia ter ocasionado a divisão original. Já foi sugerido que essa barreira foi o vale do Grande Rift, na África,
e que os humanos evoluíram do lado leste e os
chimpanzés do lado oeste. Mais tarde, a linhagem
ancestral dos chimpanzés dividiu-se em chimpan
zés comuns e pigmeus, ou bonobos. Neste segundo caso, a hipótese é de que a barreira foi o rio Congo. Como vimos no capítulo anterior, o grancestral comum de todos os mamíferos sobreviventes vi
veu há cerca de 185 milhões de anos. Desde então,
seus descendentes ramificaram-se muitas vezes,
produzindo as milhares de espécies de mamíferos
que vemos hoje, incluindo 23 1 espécies de carní
voros (cães, gatos, do ninhas, ursos etc.) , 2 mil de roedores, 88 de baleias e golfinhos, 1 96 de animais
de casco fendido (vacas, antílopes, porcos, veados,
ovelhas), 16 de cavalos (cavalos, zebras, antas e ri
nocerontes), 87 de coelhos e lebres, 977 de morcegos, 68 de cangurus, 1 8 de grandes primatas (in
cluindo os humanos) e muitas que se extinguiram
pelo caminho (incluindo um bocado de espécies
humanas, conhecidas apenas graças a fósseis). •
7 1 •
Revolver, selecionar, sobreviver •
Quero finalizar este capítulo recontando a história
numa linguagem um pouco diferente. Mencionei brevemente o fluxo gênico; os cientistas também
falam em reservatório gênico, e agora vou explicar
melhor o que isso significa. É claro que não pode
existir literalmente um reservatório de genes. A
palavra ((reservatório'' sugere um líquido no qual os genes poderiam ser revolvidos. Mas os genes só
são encontrados nas células de corpos vivos. Então por que falar em reservatório gênico?
A cada geração, a reprodução sexual causa
uma mistura de genes. Você nasceu com os genes
de seu pai e sua mãe misturados, o que significa
que os genes dos seus quatro avós também entra
ram na mistura. O mesmo se aplica a todos os
indivíduos da população no decurso do longuís
simo tempo evolucionário: milhares, dezenas de
milhares, centenas de milhares de anos. Durante
esse tempo, o processo de mistura sexual assegura
que os genes da população inteira sejam tão mis
turados, tão revolvidos, que faz sentido falar em um imenso e revolto reservatório de genes: o
((reservatório gênico'' ou gene pool, em inglês.
Você se lembra da nossa definição de espécie como um grupo de animais ou plantas capazes de
cruzar entre si e procriar? Agora já pode ver por
que essa definição é importante. Se dois animais
são membros da mesma espécie na mesma popu -
lação, isso significa que seus genes estão mistura -
dos no mesmo reservatório gênico. Se dois ani-
72
mais pertencem a espécies distintas, não podem
ser membros do mesmo reservatório gênico, pois
seu DNA não se mistura pela reprodução sexuada,
ainda que vivam na mesma área e se encontrem
com frequência. Quando populações da mes
ma espécie são geograficamente separadas, seus
reservatórios gênicos podem se diferenciar pela
deriva genética a tal ponto que se por acaso
tornarem a se encontrar podem não ser mais ca-
' 'aS
• • •
I 13·
. . -
.. .
pazes de se cruzar e procriar. Agora que seus
reservatórios gênicos não se misturam mais,
esses grupos são espécies diferentes e podem
continuar a se diferenciar por milhões de
anos até um dia diferirem tanto quanto um
homem e uma barata, por exemplo.
Evolução significa mudança em um re
servatório gênico, o que quer dizer que alguns
genes se tornam mais numerosos e outros,
menos. Genes que antes eram comuns tor
nam-se raros ou desaparecem por completo.
Os que eram raros tornam-se comuns. E o resultado é que a forma, o tamanho, a cor ou
o comportamento de membros típicos da es
pécie mudam. A espécie evolui pelas mudan-
•
ças nos números de genes no reservatório
gênico. É isso que significa evolução.
Mas por que os números dos
diversos genes mudam com as gera -ções? Ora, podemos dizer que o sur
preendente seria se não mudassem,
pois estamos falando em períodos de
tempo imensos. Pense no modo como
uma língua muda com o passar dos
séculos. Palavras como ccvosmecê'', ((sinhá'', '(cáspite''
e interjeições cc como maca-
mos me mor-
d ,,,
am.
•
•
73
foram praticamente aposentadas. Por sua vez, - (( . . )) . .
expressoes como tipo assim , que seriam incom-
preensíveis duas décadas atrás, hoje são comuns.
Assim como ''tá'' querendo dizer ''sim':
Até agora não precisei avançar muito além
da ideia de que os reservatórios gênicos de popu -
lações separadas podem derivar e se tornar muito
diferentes, como ocorre com as línguas. Mas, na
verdade, no caso das espécies ocorre muito mais
do que uma simples deriva. Esse ''muito mais''
é a seleção natural, o processo de suprema im
portância que foi a grande descoberta de Char
les Darwin. Mesmo sem ela, seria de prever que,
quando se separassem, os reservatórios gênicos
acabassem por se diferenciar pela derivação. Só
que derivariam a esmo. A seleção natural direciona a evolução, direciona para a sobrevivência. Os genes que sobrevivem em um reservatório gênico são aqueles que têm aptidão para isso. E o que é
um gene com aptidão para sobreviver? É aquele
que ajuda outros genes a construir corpos aptos
para sobreviver e se reproduzir: corpos que so
brevivem por tempo suficiente para transmitir os
genes que os ajudaram a sobreviver. Como eles fazem isso varia de acordo com
a espécie. No corpo de aves e morcegos, os genes
•
74
sobrevivem ajudando a construir asas. No corpo
das toupeiras, os genes sobrevivem ajudando a
construir patas dianteiras fortes e parecidas com
pás. No corpo dos leões, os genes sobrevivem ajudando a construir pernas velozes, garras e dentes
afiados. No corpo dos antílopes, os genes sobre
vivem ajudando a construir pernas velozes, audi
ção e visão aguçadas. No corpo do bicho-pau, os
genes sobrevivem fazendo esse inseto ser quase
indistinguível de um graveto. Sejam quais
forem as diferenças, para todas as es
pécies a chave é a sobrevivência do
gene no reservatório gênico. Da I • A prox1ma vez que voce encontrar
um animal qualquer um -
ou uma planta, diga a si mesmo:
isso que estou vendo é uma refi
nada máquina para transmitir , os genes que a construiram.
•
'
Da próxima vez que se olhar no es
pelho, pense: eu também.
•
-
7 5
\ "
�/ /
M LIVRO MUITO POPULAR entre as crian
ças inglesas da era vitoriana, quase dois séculos
atrás, era o Book of nonsense, de Edward Lear. Eu ado
rava os poemas dele, como e� coruja e o gato'' (que ainda hoje é famoso), e as receitas que vinham no fi
nal do livro. As indicações de como fazer <<costeletas
migalhóficas'' começa assim:
Pegue alguns bifes e corte nas menores
fatias possíveis, depois vá cortando em pedaços
menores ainda, oito ou nove vezes.
O que teremos se continuarmos cortando uma
coisa em pedaços cada vez menores?
76
Imagine que você pega um pedaço de
qualquer coisa e corta pela metade, usan
do uma lâmina de barbear fina e afiada.
Depois corta cada pedaço pela metade, e cada metade na metade, e assim por diante.
Os pedaços ficam tão pequenos que não
podem ficar menores? Qual é a finura de
uma lâmina de barbear? Quão pequena é
a ponta de uma agulha?
• 1 ft '" 1:11 • ia • ,
AJ lii li 11: 1 t: • ;� •
••• ,. , ,. 1 i ,.., .... ii ·-· ••• •• i \;" • • ••• -· _, • - Ili - -· .. L 'J 11 Y .. a I ' •• '!!.!! • • • •• :!.I -· .. ,. IC� EI 1 1!! • !a •• •• er11: •• ' • 1 • �· .. ' • �- - 11!1 dl !li - l'!l•I •
--=· ! .. ···- - "'·' .. ••11 •• •• r1:1 1 ri.a 111 1· · .. 11 11 1 ••
• lii -
Quais são os menores pedaços de que as
coisas são feitas?
,
.... -
} •
•
As antigas civilizações da
Grécia, da China e da Índia pare
cem ter chegado à mesma ideia de
que tudo é feito de quatro elementos: ar, água, fogo e terra.
Demócrito, da Gré-
cia Antiga, chegou mais
perto da verdade. Supôs
que, se fôssemos cortan-
do qualquer coisa em pe
daços bem pequenos, aca
baríamos por chegar a um pedaço tão diminuto que seria impos-
sível cortá-lo mais. Em grego, <<cortar'' é tomos,
e um <<a'' acrescentado na frente de uma ..... 'rJ. \ \ \.�' ( l..''.... -.:; 1 palavra significa <<não'' ou <<não pode''. -#'---
Assim, cca-tômico'' refere-se a algo tão
pequeno que não pode ser cortado
em pedaços menores, e daí vem •
,
a palavra ((átomo': Um átomo de
ouro é o menor pedaço possível de ouro. Se desse para cor
tar mais, deixaria de ser ouro.
Um átomo de ferro é o menor pedaço possível de ferro. E assim por diante.
•
77
78
Hoje sabemos que existem cerca de cem tipos de átomos, mas apenas noventa deles ocorrem na
natureza. Os outros são criados em laboratório
por cientistas, mas em minúsculas quantidades.
t As substâncias puras que consis
tem em apenas um tipo de átomo
são chamadas de elementos (a
mesma palavra que no passado era usada para designar terra, ar,
fogo e água, mas com um significado muito diferente). Exemplos
de elementos são hidrogênio, oxi
gênio, ferro, cloro, cobre, sódio,
ouro, carbono, mercúrio e nitro
gênio. Alguns, como o molib
dênio, são raros na Terra (razão
pela qual você talvez nunca te
nha ouvido falar nele), porém são
mais comuns em outras partes do
universo (contarei como sabemos
disso no capítulo 8).
Metais como ferro, chumbo,
cobre, zinco, estanho e mercú
rio são elementos, além de gases
como oxigênio, hidrogênio, nitro
gênio e neônio. Mas a maioria das
substâncias que vemos à nossa
volta não são elementos: são com -
postos. Um composto é formado
quando diferentes átomos se juntam de um modo específico. Você
provavelmente já ouviu alguém se
referir à água como H20. Essa é
-
•
� 1
sua fórmula química, e significa
que é um composto de um átomo
de oxigênio e dois de hidrogênio.
Um grupo de átomos que formam
um composto é chamado de molécula. Algumas delas são muito
simples: uma molécula de água,
por exemplo, tem apenas aque
les três átomos. Outras, especial
mente as de seres vivos, possuem
centenas de átomos, unidos de um modo muito específico. Aliás, é o
modo como eles se unem, tanto
quanto o tipo e o número de áto
mos, que faz dada molécula ser
um composto e não outro.
Podemos também usar a pa
lavra ''moléculà' para descrever o
que se forma quando dois ou mais átomos do mesmo tipo se unem. Uma molécula de oxigênio, gás
. -
que procuramos na resp1raçao,
consiste em dois átomos de oxigê
nio unidos. Às vezes três átomos
de oxigênio formam um tipo di
ferente de molécula, o ozônio. O número de átomos em uma mo
lécula faz muita diferença, mesmo
se forem todos do mesmo tipo.
•
Faz mal para nós respirar
ozônio, mas a camada de ozônio
que existe na parte superior da at
mosfera da Terra nos protege dos
efeitos mais <lanosos dos raios
solares. Uma das razões por que os australianos precisam ter mais
cuidado ao tomar sol é que existe
um ((buraco'' na camada de ozô-
nio no extremo sul do planeta.
Cristais - um desfile de átomos
Um cristal de diamante é uma
molécula enorme, sem tama
nho fixo, que consiste em mi
lhões de átomos de carbono
unidos, alinhados de um modo
muito específico. Eles têm um
espaçamento tão regular que
poderíamos imaginá-los como
soldados em formação num des
file, só que numa formação em três
dimensões, como em um cardume.
O número de ((peixes'' nele o número
de átomos de carbono até no menor dos cristais
de diamante é gigantesco, maior que todos os
peixes (somados a todas as pessoas) do mundo.
E ((unidos'' é um modo enganoso de descrevê-los
se fizer você pensar nos átomos de carbono como
pedaços sólidos amontoados, sem espaço entre
eles. Na verdade, como veremos, a maior parte dos corpos sólidos consiste em espaço vazio. Isso
requer uma boa explicação! Voltarei ao assunto.
Todos os cristais são construídos desse mes
mo modo, com átomos regularmente espaçados,
e isso dá a f arma do cristal como um todo. Aliás, é
isso que quer dizer cristal. Alguns ((soldados'' são
capazes de ''entrar em formação'' de vários mo
dos, produzindo cristais bem diferentes. Quando
assumem dada formatura, átomos de carbono
produzem os cristais de diamante famosos pela
- .
,,
A T O M O S D E C A R B O N O E M U M D I A M A N T E
dureza. Mas quando adotam uma formação dife
rente, produzem cristais de grafite, um material
tão macio que é usado como lubrificante.
Quando falamos em cristais pensamos logo
em objetos transparentes, e até usamos o termo
('cristalino'' para descrever a água pura. Mas na verdade a maioria das coisas sólidas é feita de
cristais e não é transparente. Um pedaço de ferro
é um aglomerado de cristais minúsculos, cada um
composto de milhões de átomos de ferro, espaça
dos ((em formação'' como os átomos de carbono
em um diamante. Chumbo, alumínio e ouro são
feitos de cristais, com diferentes átomos. O mes
mo vale para as rochas, como o granito e o are
nito, só que a maioria delas consiste em misturas
de muitos tipos de minúsculos cristais reunidos.
79
• • •
• ti
•
•
A areia também é cristalina. Aliás, muitos
grãos de areia não passam de minúsculos peda
ços de rocha que o vento e a água pulverizaram. O mesmo se pode dizer da lama, que é rocha pul
verizada misturada a um líquido. Grãos de areia
e de lama podem voltar a se aglomerar formando
novas rochas, chamadas ((sedimentares': (Um se
dimento é feito de pedacinhos de matéria sólida
que se assentam no fundo de um líquido, como em um rio ou lago.) A areia do arenito é feita principalmente de quartzo e feldspato, dois cristais
comuns na crosta terrestre. O calcário é diferente.
Assim como o giz, ele é de carbonato de cálcio e
provém de esqueletos moídos de corais e conchas
marinhas, inclusive das conchas de criaturas uni
celulares chamadas foraminíferos. Praias de areia
muito branca normalmente foram formadas pelo
carbonato de cálcio dessas conchas.
Há cristais feitos de um único tipo de átomo
((em f armação de desfile': como diamante, ouro,
cobre e ferro. Outros são feitos de dois tipos de
átomo, também rigorosamente dispostos em for
mação. O sal não é um elemento, e sim um composto de dois elementos: sódio e cloro. Em um
cristal de sal, esses átomos estão dispostos alter
nadamente. Na verdade, nesse caso não falamos
80
•
o .. u "' •
• • • •
, (( , )) , -
.
em atomos, mas 1ons , porem nao entrarei em
detalhes dessa designação. Cada íon de sódio tem
seis íons de cloro como vizinhos, dispostos em ângulos retos: na frente, atrás, à esquerda, à di
reita, acima e abaixo. Cada íon de cloro é rodeado
de íons de sódio exatamente do mesmo modo. O
arranjo é composto de quadrados, e é por isso que
se você examinar os cristais de sal com uma lupa potente vai perceber que são cúbicos ou têm as
bordas quadrangulares. Muitos outros cristais são
feitos de mais de um tipo de átomo ((em formação
de desfile': e vários deles são encontrados em ro
chas, na areia e no solo.
Sólido, líqu ido, gasoso -como as moléculas se movem
Os cristais são sólidos, mas também existem
líquidos e gases. Em um gás, as moléculas não fi
cam juntas: movem-se livremente e em alta velo
cidade por todo o espaço à disposição, viajando em linhas retas, como bolas de bilhar (só que em três dimensões e não duas, como na mesa de bi
lhar). Elas se movem até colidir com algo, como
outra molécula ou as paredes de um recipiente.
Quando isso ocorre, as moléculas ricocheteiam
•
•
•
como as bolas de bilhar. Gases podem ser comprimidos, o que prova
que existe muito espaço entre os átomos e as moléculas. Quando
comprimimos um gás, ele parece elástico. Ponha o dedo no bico de
uma bomba de bicicleta e sinta a elasticidade quando você empurra
o êmbolo. Se mantiver o dedo ali, quando o soltar ele voltará a subir
rapidamente. Isso que você sente é chamado de ''pressão'' e é o efeito dos milhões de moléculas de ar (uma mistura de nitrogênio com
oxigênio e outros gases) bombardeando o êmbolo (e tudo o mais,
mas essa é a única parte capaz de se mover em resposta). Quando
a pressão é alta, o bombardeio ocorre com mais intensidade. Isso
acontece se o mesmo número de moléculas de gás for confinado em
um volume menor (por exemplo, quando você empurra o êmbolo da bomba) ou se você eleva a temperatura, o que faz as moléculas de
gás se moverem mais rápido.
Em um líquido, as moléculas se movem ou ''fluem'' (razão pela
qual usamos o termo ''fluido'' para ambos, mas não para sólidos) . As
moléculas de um líquido, porém, estão muito mais próximas do que
as de um gás. Se você puser gás em um tanque lacrado, ele preenche
todas as partes do tanque até o topo. O volume do gás se expande
rapidamente até ocupar o recipiente inteiro. Um líquido também
preenche todos os espaços, mas só até determinado nível, ocupan -
do um volume fixo para determinada quantidade de líquido. Como
a gravidade atrai o líquido para baixo, ele preenche esse espaço a
partir do fundo. É por isso que as moléculas de um líquido ficam
próximas umas das outras. Mas, ao contrário das moléculas de um
sólido, elas deslizam umas sobre as outras, e é por essa razão que um líquido se comporta como um fluido.
Um sólido nem tenta preencher o tanque: ele mantém sua for
ma. Isso acontece porque suas moléculas não deslizam como as dos
líquidos. Elas se conservam (mais ou menos) na mesma posição.
Digo ''mais ou menos'' porque até em um sólido elas se mexem um
pouco (mais depressa em temperaturas mais altas) , porém não se
-
afastam de sua posição na ''formação de desfile'' no cristal o bastan
te para afetar sua forma.
..
Certos líquidos são ''viscosos': como o mel. Um líquido
viscoso flui bem devagar e se for· muito viscoso demorará para
preencher o fundo todo do tanque. Alguns líquidos são tão vis-cosos que parecem sólidos e se comportam como tal, apesar de
não serem feitos de cristais. O vidro é um exemplo disso: diz-se
que ele ''flui': mas o faz tão lentamente que levamos séculos
para perceber. Por isso, para efeitos práticos, podemos consi
derar o vidro sólido.
8 1
•
•
•
84
•
' ,
Uma surpresa no modelo Rutherford/Bohr,
mas que provavelmente reflete a realidade, é que a
distância entre os núcleos é imensa se comparada ao tamanho deles, até mesmo num pedaço de ma
téria sólida duro como um diamante. Os núcleos fi
cam muito distantes. Prometo voltar a esse assunto.
Lembra que eu disse que um cristal de dia
mante é uma gigantesca molécula feita de átomos de
carbono dispostos como soldados em formação de
desfile, mas em três dimensões? Pois bem, agora podemos refinar nosso modelo do diamante dando-lhe
escala ou seja, uma noção de como os tamanhos
e distâncias se relacionam. Suponha que representa
mos o núcleo de cada átomo de carbono no cristal
não como um soldado, mas como uma bola de fu
tebol, com elétrons em sua órbita. Assim, as bolas de futebol vizinhas no diamante estariam a mais de
quinze quilômetros de distância .
1
'
�· •
•
•
•
•
Os quinze quilômetros que separam as bolas
de futebol conteriam os elétrons em órbita ao re
dor do núcleo. Mas cada elétron, na nossa escala
futebolística, é muito menor do que um mosquito, e esses mosquitos em miniatura estão a vá
rios quilômetros de distância das bolas de fute
bol em torno das quais voam. Assim, você pode
ver que, por incrível que pareça, até o reconhe
cidamente duro diamante é quase todo ele um
•
e s o a z 1 0 . O mesmo vale para as rochas, por mais duras
e sólidas que sejam, para o ferro, o chumbo, as mais
rijas madeiras, para você e para mim. Eu disse que a
matéria sólida é feita de átomos ((aglomerados': mas
('aglomerados'' tem um significado esquisito aqui,
pois os próprios átomos são principalmente espaço
vazio. Os núcleos ficam tão distantes uns dos ou
tros que qualquer um estaria a quinze quilômetros
do outro, com alguns mosquitos entre eles.
•
•
•
' ,
85
Como é possível? Se uma rocha é quase in -teiramente espaço vazio pontilhado por matéria,
como bolas de futebol separadas por quilômetros,
por que uma rocha nos dá a sensação de ser dura
e sólida? Por que não se desmancha como um cas
telo de cartas quando sentamos nela? Por que não
Esta é uma história verdadeira.
No verão de 1983, o general de divisão Albert Stubblebine III está sentado à sua mesa em Arlington, no estado da Virginia, fitando a parede na qual pendurou suas numerosas condecorações militares. Elas representam uma longa e ilustre carreira. Stubblebine é o chefe da inteligência do Exército dos Estados Unidos e tem 16 mil soldados sob seu comando . . . Ele olha a parede que contém suas condecorações. Há uma coisa que sente que tem de fazer, embora a ideia o amedronte. Pensa na escolha que o espera. Pode permanecer em sua sala ou ir para a sala ao lado. Eis sua escolha. Ele decide. Vai para a sala ao lado . . . Levanta-se, sai de trás da mesa e começa a andar. Vai pensando: afinal, de que é feito principalmente um átomo? De espaço! Acelera. De que eu sou feito principalmente? Ora, de átomos, ele pensa. Agora já está quase correndo. E de que é feita principalmente a parede? De átomos! Tudo o que tenho a fazer é combinar os espaços. . . E o general Stubblebine dá com o nariz na parede da sala. Droga, ele pensa. O homem fica perplexo com seu contínuo fracasso em atravessar a parede.
•
86
enxergamos através dela? Se tanto uma parede
como eu somos principalmente espaço vazio, por
que não consigo atravessá-la? Existe uma história
engraçada sobre um general americano chamado
Stubblebine que tentou fazer isso. Eis sua história,
que já contei em outro livro meu .
•
CI
•
•
Quem não sente pena do general? Ele sabia que a parede, assim como seu próprio
corpo, era feita de átomos espaçados. Ora, se
a parede e seu próprio corpo consistiam sobretudo de espaço vazio, ele deveria ser capaz de
atravessá-la passando seus átomos por entre os átomos dela! Mas por que não c()n.segu· ? ia.
Por que as rochas e as "ar�d t' "" es nos ... ao conseguimos combinar nossos espaços com os espa-
ços delas? Temos de entender ( . coisa que o pobre general fez de modo doloroso) que o que sentimos e vemos como matéria sólida é mais do que apenas núcleos e elé- •
trons as ''bolas de futebol'' e os
''mosquitos''. Os cientistas falam em <<e. ,, ''li - ,, '' , nos'' que atuam 1orças , gaçoes e carilr ter as ''bolas de
cada qual a seu modo para man d cada futebol" distanciadas e os co111Pºnentes e
((b 1 ,, . s - r fiças e campos o a Juntos. ao essas ro que dão solidez aos objetos.
Em coisas tão peque-I nas como atamos e
núcleos, a dis-
tinção entre ''matéria'' e ''espaço vazio'' começa
a não fazer sentido. Não é correto dizer que o
núcleo é '(matéria'' e que existe ''espaço vazio''
até o núcleo mais próximo.
Definimos matéria sólida como aquilo
que não podemos atravessar. Não podemos
ar uma parede devido às misteriosas atravess , . . ligam o nucleo aos seus v1z1nhos
numa os1çao ·
. .
, e 05 misteriosos campos e for-so qu ças mantêm os átomos unidos de
um modo menos coeso, e assim
eles desliza1n uns sobre os outros. Por isso podemos atravessar
, ª agua, en1.bora não tão depres-sa quanto o ar. O ar, sendo um gás
(na verdade . ,
fácil d t , Um.a mistura de gases), e e a ravessar
movl. , \)()is seus átomos vivem se mentan . m gas só se \.orna difícil de ser atravessado se
a maioria de seus átomos estiver se movendo
na mesma direção e você quiser passar por ele
vindo da direção oposta. É isso que acontece
quando tentamos andar contra o vento. Pode
ser difícil andar contra um vendaval, e até im
possível andar contra um furacão ou a ventania
produzida por uma turbina de avião.
87
Não podemos atravessar matéria
sólida, mas algumas partículas muito
pequenas, como os fótons, podem. Fei
xes de luz são fluxos de fótons e podem
atravessar alguns tipos de matéria sóli
da, aqueles que chamamos de ((transpa
rentes': Algo no arranjo das ((bolas de
futebol'' no vidro, na água e em certas
pedras preciosas permite que
fótons os atravessem,
embora percam um pouco de velocida -
de, do mesmo modo que desaceleramos
ao andar na água.
Com algumas exceções, como os
cristais de quartzo, as rochas não são
transparentes, e os fótons não podem
atravessá-las. Dependendo da cor da ro
cha, são absorvidos por ela ou refletidos em sua superfície. O mesmo vale para a
maioria das outras coisas sólidas. Alguns
sólidos refletem f ó tons de um modo
muito especial, em linha reta, e nós os
chamamos de espelhos. Mas a maioria
das coisas sólidas absorve a maior parcela dos fótons (não são transparentes), e espalham até mesmo aqueles que elas
refletem (não se comportam como espe
lhos). Elas podem ser <<opacas'' ou dota
das de cor, o que depende dos tipos de fótons que absorvem e dos tipos que re
fletem. Voltarei ao importante tema das cores no capítulo 7, <<o que é um arco
- íris?': Enquanto isso, precisamos focar
nossa visão no que é realmente muito
pequeno e olhar dentro do núcleo -
dentro da bola de futebol.
•
•
A menor de todas as coisas
O núcleo não é realmente como uma
bola de futebol. Aquilo era apenas uma analogia grosseira. Aliás, ainda
não está claro se podemos dizer que
o núcleo tem uma forma.
Talvez a própria palavra .
-
•
O ponto final desta sentença contém cerca de 1 milhão de átomos de tinta de impressão
Cada núcleo contém partículas menores, os pró
tons e os nêutrons. Você pode imaginá-las como bolas, se
quiser, mas assim como os núcleos elas não são bolas na
realidade. Os prótons e nêutrons são aproximadamente do mesmo tamanho. São muito, muito pequenos mesmo,
porém ainda assim são mil vezes maiores que os elétrons
(os ''mosquitos'') que orbitam o núcleo. A principal dif e
rença entre um próton e um nêutron é que o próton tem
carga elétrica. Os elétrons têm carga elétrica oposta à dos
prótons. Não precisamos nos preocupar agora com o que
isso significa. Só que os nêutrons não têm carga.
Como os elétrons são muito, muito, muito pequenos
(enquanto os prótons e nêutrons são apenas muito, muito
pequenos), a massa de um átomo, para todos os efeitos, é
dada apenas por seus prótons e nêutrons. O que signifi
ca ''massà'? Bem, você pode pensar nela mais ou menos
como o peso, e pode medi-la usando as mesmas unidades
(gramas ou libras). No entanto, peso não é o mesmo que
massa, e é preciso explicar essa diferença, mas vou deixar
isso para o próximo capítulo. Por enquanto, apenas pense
na massa como algo parecido com peso.
• •
-
assim como <<sólido': perca o sentido em tamanhos mínimos. E estamos falando em
tamanhos minúsculos mesmo.
•
•
89
A massa de um objeto depende quase intei
ramente de quantos prótons e nêutrons ele con -
tém em todos os seus átomos somados. O número
de prótons no núcleo de qualquer átomo de dado
elemento é sempre o mesmo, e é igual ao número
de elétrons em órbita ao redor do núcleo, embo
ra os elétrons não contribuam significativamente
para a massa por serem pequenos demais. Um
átomo de hidrogênio possui apenas um próton (e
um elétron). Um átomo de urânio contém 92 pró
tons. O chumbo tem 82. O carbono, 6. Para cada
número possível de um a cem (e alguns mais),
existe um e apenas um elemento que possui esse
•
Cdrbon
número de prótons (e esse número de elétrons) . Não especificarei todos, mas seria fácil fazê-lo
(Lalla, minha mulher, sabe recitá-los de cor, bem
depressa, um truque que desenvolveu para treinar
a memória e que usa para ajudá-la a adormecer).
O número de pró tons (ou de elétrons) que
um elemento possui é conhecido como o número atômico desse elemento. Assim, você pode iden -tificar um elemento não só por seu nome, mas
por esse número. Por exemplo, o elemento seis
é o carbono; o elemento 82 é o chumbo. Os ele
mentos são convenientemente representados na
tabela periódica. Não vou explicar a razão desse
,
T A B E L A P E R I D D I C A 2 4.0026 1 1. 0079
H � Hidrogênio
3 & . 9.41 4 9 . 0122
L i B e OÚMl!ro dtô11ico- 1 1. 0079 -MdSSd dtÔMÍCd
siicbolo- H Lítio Berílio Hidrogênio -noMI!
5 • NI! - gas Fe - sólido
ca - líQuido IDllil - sintético
14.007 8
e [ N O Boro carbono Nitroqênio oxiqênio
10 20.180
F N e. Flúor Neõnio
-1 1 2 2 . 990112 2•.3os" 13 26.982114 28.086 f 1 5 30.974 t 11i 32.065
A l S i P S 17 35.453 18 39.948
N -a M g [ l A r 1 Sódio 1 llagnésía Cloro Argônio Alu•inio f W
Silíci_
o_
FósForo Enxorre
2CJ 63 , 54-.i6ti-3-0_6_5�. 39�3-1 69.723 32 72. 64 33 74.922, 34 78-. 9& .... 1CJ 39 . 0981 20 40 078' 21 22 47.8&7 23 50.942 24 51.998 25 54.938 21i 5 5 . 845 27 58.933 28 58.693
N i 35 79.904 31i 83.80
K c a s e T i V c r M n F e [ O c u z n c a c e As s e B r K r • A
Potass10
37 85.468
R ll Rubídio
5 5 132. 91
[ S Césio
87 (223)
F r Frâncio
90
Cálcio Escândio Titânio vanádio cro•o Nanqanês Ferro Cobalto NiQuel Cobri!
41i 106. 42 i 4 7 107. 87
Zinco Gcilio Ger•ânio Arsênio Selênio Bro•o � criptónio
48 112.41 4CJ 114.82 50 118.71 t 51 121.7& t 52 127.60 53 126.90 54 131.29 38 87.62 r JCJ 88.906 t 40 91 .224 t 41 92.906 ,, 42 - 96� 43 (98) l 44 101,01145 102.91 � "i' ' • .
s r V z r N b M o Vlb R u R h P d A g C d l n s n S b T e I x e • •
Estronc10
51i 137.33
B a Bário
88 ( 226)
R a Rádio
•
Ítrio
57-71 La-Lu
Lantanídeos
89-103
Ac-Lr
• • •
z1rcon10
72 178.49
H F HáFnio
104 (261)
[Rl(F Actinídeos RutherFórdio '
Nióbio
73 180.95
T a T.1nta10
� • • •
Nol1bden10 � 74 183.84
w 1 Tunqstêni -0
Tecnécio
75 186.21
R e Rênio
Rutí!nio
71i 190.23
O s ÓSMÍD
Ródio
11 192.22
I r Irídio
Paládio Prata --+ 78 195.08 7CJ 196 97
P t . Au Platind ouro
CádMio
80 200.59
H g llercúrio
índio
81 204.38
T l Tálio l
Estanho Anti•õnio
82 207 . 2 83 208.98
P b B i ChUMbO Bis•uto
Telúrio Iodo Xenônio
84 ( 209) 85 8 li (222)
P o A t R n Polônio Astato J Radônio -J
-----------------------
(266) 1 107 105 (262) 10& ( 264) 108 (277) 109 (268) 110 (281) 1 1 1 (272) 112 (285) 114 ( 289)
IID lº1 �(!] Dúbnio seabórqio
Lantanídeos
Actiníeleos
OODD 00� Bóhrio Hássio
OO'it lleitnério
IID oo liil IID oo oo IID oo lº1 ununílio Ununúnio 1 Unú•bio
0000� ununQuád10 • •
. 57 UI 91 58 110 li 59 1'1.'1 60 114 24 61 (IOI 62 110 l• 63 151 9' 64 117 21 65 lU 93 66 IU.11 67 1U.9l 68 U7 1' 69 UI 93 70 111 U 71 174.•7 L d e E! p r N d WlW s M E u G d T b o Y. � Q E r T "' - V b L u Lantdnio Cério Praseodirio Reodi110 Pro•ê.cic Sa•�rio Európio caoo1ini11 Térbio 01spros10 Ho1110 éroio Túlio Itérbio lutécio --- -=+ ' 1 89 (2271 90 n2 ·� 91 231.04 92 UI ll 93 (237) 94 (U•I 95 (201 96 UUI 97 (2'11 98 (Ull 99 (252) 100 uni 101 (251) 102 UHI 103 (262)
!iço 1 T6r� 1Pr�c�nioJ uMio �l , �t�o �r�a �� B��io c�r[io 1 E�!io �r� M�e�vio, ��o L�ê�ic •
nome, apesar de ser interessante. Mas agora é o
momento de voltar, como prometi, a por que,
quando cortamos um pedaço de chumbo em pe
daços cada vez menores, acabamos chegando a um ponto em que, se o cortarmos mais uma vez, ele deixa de ser chumbo. Um átomo de chumbo
possui 82 prótons. Se você o dividir, ele não terá
mais 82 prótons e deixará de ser chumbo.
O número de nêutrons no núcleo de um
átomo é menos fixo que o de prótons: muitos
elementos têm diferentes versões, denominadas
isótopos, com diferente número de nêutrons. Por
exemplo, há três isótopos do carbono, chamados
carbono- 1 2, carbono- 1 3 e carbono- 14. O núme
ro refere-se à massa do átomo, que é a soma dos prótons e nêutrons. Cada um possui seis prótons.
O carbono- 1 2 tem seis nêutrons, o carbono- 1 3
tem sete e o carbono- 14 tem oito. Alguns isótopos, como o carbono- 14, são radioativos, o que significa que podem se transformar em outros
elementos a uma taxa previsível, embora em mo
mentos imprevisíveis. Os cientistas podem usar
essa característica para ajudá-los a calcular a idade dos fósseis. O carbono- 14 é usa-do para datar objetos mais recentes,
como antigos navios de madeira.
•
Pois bem. A missão de cortar coisas em pe
daços cada vez menores termina nessas três partí
culas, elétrons, prótons e nêutrons? Não. Até mes
mo os prótons e nêutrons têm um interior. Até
eles contêm coisas ainda menores, os quarks. Mas esse é um assunto que não abordarei neste livro.
Não porque eu ache que você não entenderia. É
porque sei que eu não entendo! Entramos aqui em um reino misterioso. E é importante reco
nhecer quando atingimos os limites daquilo que compreendemos. Provavelmente chegará o dia
em que entenderemos isso, e os cientistas estão
trabalhando nesse sentido com muitas esperan
ças de sucesso. Mas temos de saber o que é que
não entendemos e admitir isso para nós mesmos
antes de começar a investigar. Existem cientistas
que entendem pelo menos alguma coisa desse
reino misterioso do que é
muito pequeno, mas
não sou um deles.
Conheço minhas
limitações.
\
91 '
<
\ ' . 7
-� � �
O C T AN O
Carbono - o andaime da vida
Todos os elementos são especiais, cada qual a seu
modo. Mas um deles, o carbono, é tão especial que terminarei o capítulo falando dele. A química do
carbono tem até um nome só para ela: química or
gânica. Todo o resto é química inorgânica. Então o
que o carbono tem de especial?
A resposta é que os átomos de carbono
ligam-se a outros átomos de carbono forman-
(acima), que como você talvez saiba é
92
pretos na ilustração) com átomos de hidrogênio (os átomos cinza) projetando-se para os lados. O
impressionante no carbono é que ele é capaz de
formar cadeias de qualquer comprimento, enca
deando centenas de átomos. Às vezes, as cadeias
juntam suas extremidades formando um anel.
Por exemplo, acima à direita vemos o naftaleno
(a substância de que é feita a naftalina), cujas
moléculas também são feitas de carbono ligado
a hidrogênio, desta vez em dois anéis. A química
do carbono lembra aquele brinquedo de montar
composto de pequenas bolas e hastes que se en
caixam para formar as mais diversas figuras, cha
mado Tinkertoy.
No laboratório, os químicos conseguiram fa
zer átomos de carbono ligarem não
em simples anéis,
N A F T A L E N O
mas em moléculas de formas esplêndidas que pa
recem construídas com Tinkertoy, e eles as apeli-
daram de Buckyballs e Buckytubes. ''Bucky'' era o M I O C L O B I N A apelido de Buckminster Fuller, o grande arquiteto
americano que inventou a cúpula geodésica. Você
-
perceberá a relação se olhar a figura abaixo. As Bu- infinito de moléculas, todas de formas diferentes,
ckyballs e Buckytubes criadas pelos cientistas são e milhares de moléculas distintas são encontradas
moléculas artificiais, mas ilustram o estilo Tinker- no corpo dos seres vivos. Acima vemos uma cha-
toy em que os átomos de carbono podem se ligar
em estruturas semelhantes a andaimes que podem ter tamanhos indefinidamente grandes. (Recente
mente, ouvimos a emocionante notícia de que fo
ram detectadas Buckyballs no espaço cósmico, na
poeira nas vizinhanças de uma estrela remota.) A
química do carbono possibilita um número quase
•
93
Ué, e os mitos? •
Este capítulo não começou com um lista de mitos, como os outros. Isso porque é difícil encontrar histórias sobre o assunto. Ao con
trário do Sol, do arco-íris ou dos terremotos, o
fascinante mundo daquilo que é muito peque
no escapou à atenção dos povos primitivos.
Pensando bem, isso não chega a surpreender.
Eles não tinham como saber que esse mundo
existe, por isso obviamente não imaginaram
mitos para explicá-lo! Foi só quando inven
taram o microscópio, no século XVI, que as
pessoas descobriram que as poças d'água e os
lagos, a terra e o pó e até o nosso corpo fer
vilham de seres vivos, pequenos demais para serem vistos, porém complexos e, a seu modo,
belos ou talvez assustadores, dependendo
de como pensamos neles.
As criaturas abaixo são ácaros, parentes
distantes das aranhas, mas tão diminutos que
não conseguimos enxergá-los, exceto como
pontinhos quase invisíveis. Eles existem aos
milhares nas casas, rastejam pelos tapetes e
pelas camas, incluindo a sua.
Se os povos primitivos soubessem da
existência dos ácaros, você já pode imaginar
os mitos e lendas que poderiam inventar para
explicá-los! Mas antes de surgir o microscópio
ninguém nem sequer sonhou com a existên -
eia deles, e é por isso que não há mitos sobre
ácaros. E, mesmo tão pequenino, até um ácaro
contém mais de cem trilhões de átomos.
Os ácaros são pequenos demais para que
possamos vê-los, mas as células de que são fei
tos são ainda menores. As bactérias que vivem em números imensos dentro deles e dentro
de nós são menores ainda que isso.
E os átomos são muito, muito menores até
que as bactérias. O mundo todo é feito de coi
sas incrivelmente minúsculas, que não podemos
ver a olho nu. E no entanto nenhum dos mitos
e nenhum dos ditos livros sagrados livros que alguns povos, ainda hoje, pensam que nos foram
dados por um deus que tudo sabe , nenhum,
repito, faz menção sobre tais coisas pequeninas!
Aliás, se você analisar esses mitos e histórias, verá que eles não contêm coisa alguma dos conheci
mentos que a ciência pacientemente desvendou. Não dizem qual é o tamanho e a idade do uni -
verso, nem como tratar o câncer, não explicam a
gravidade ou o motor de combustão interna; não
falam sobre os germes, a fusão nuclear, a eletrici
dade ou os anestésicos. De fato, como seria mesmo de esperar, as histórias dos livros sagrados não
contêm mais informações sobre o mundo do que
aquelas que os povos primitivos contaram pri
meiro! Se esses ((livros sagrados'' fossem realmen
te escritos, ditados ou inspirados por deuses que
tudo sabem, você não acha estranho que eles não
digam nada a respeito de coisas tão importantes e úteis como essas?
OSSA VIDA é regida por dois ritmos fundamentais, um muito mais lento que o
outro. O mais rápido é a alternância entre escuridão e claridade, que se repete a
cada 24 horas, e o mais lento é a alternância entre inverno e verão, que se repete em pe
ríodos de pouco mais de 365 dias. Não é de surpreender que esses ritmos tenham inspi
rado mitos. O ciclo noite-dia é especialmente rico em histórias, dado o efeito dramático
que o Sol produz quando parece se mover de leste para oeste. Vários
povos viam o astro como uma carruagem dourada
conduzida por um deus pelo firmamento.
Os povos aborígines da Austrália, que vi
veram isolados nessa ilha continental por no mínimo 40 mil anos, têm alguns dos mitos
mais antigos do mundo. A maioria se passa
em uma época chamada de Tempo do So
nho, quando o mundo começava e era po
voado por bichos e por uma raça de ances
trais gigantes. As diversas tribos aborígines ·�
possuem mitos diversos sobre esse tempo.
O que contarei primeiro é de um povo que
vive nas montanhas Flinders, no sul do país.
No Tempo do Sonho, havia dois lagar
tos amigos: um goanna (nome australiano
do grande lagarto-monitor) e um gecko
(uma simpática lagartixa com ventosas nas
patas, capaz de subir em superfícies verti
cais). Os dois descobriram que alguns de
seus amigos haviam sido massacrados pela
mulher-sol e sua matilha de dingos ( cachor
ros-do-mato) amarelos.
96
o
•
•
"� ..
•
•
.. � ... .. '·
4.. .,. ., , . " ,. . ,, . . ,. ' . : , . . .
U l:
..
... & -
.. .. • .. · ·�� \,r · ·O
• •
(.... .
: ..--• "' "4.... • .. • • •
<: ... .:;•' I
Furioso com a mulher-sol, o grandalhão goanna derrubou-a
do céu com seu bumerangue. O Sol desapareceu no horizonte a
oeste, e o mundo mergulhou na escuridão. Apavorados, os dois
lagartos tentaram desesperadamente devolver o Sol ao céu para
restaurar a luz. O goanna pegou outro bumerangue e o lançou a oeste, na direção de onde o Sol havia su-
mido. Como você talvez saiba,
o bumerangue é um objeto ad
mirável que volta às mãos de
quem o lançou. Assim, os lagar-
tos esperavam que ele pescasse
o Sol de volta para o céu. Não
deu certo. Então eles tentaram
lançar bumerangues em todas
as direções, na vaga esperança
de reaver o astro. Por fim, res-tou apenas um bumerangue
•
, .. para o goanna; sem alternativa, o animal lançou-o a leste, na di
reção contrária àquela por onde
o Sol desaparecera. Desta vez o bumerangue retornou trazendo
o astro de volta. E a partir daí o
Sol manteve o hábito de sumir a
.. ..... "'7\ • • . .. .. . , '')
oeste e reaparecer a leste.
.. . . . . ,. · · ·"4·· . . . .. . . . \ ' · ' . .,,.., ,.., , ·. . · -
� / 1 # I ,.•·'� · , . .. •' ' . . ,. . ... • • • ._ • • 4 • • • • • ,. r • • • • '· , .. J .. , ,, , , ··� · . 1:1·· . . ". . , . .
, ... .. .t"' " / ,. , •
• .. s.,, ,,, .
-. .
•
•
•
'.. . . . . ,. . .
..... ::: ., .. ..,.:.
·.... )) '·
. ' •. · . • • ; f • ,, • • • • • • • . ....
97
•
98
Muitos mitos e lendas das várias partes do
mundo possuem uma estranha característica em
comum: determinado incidente acontece uma vez
e a partir de então, por razões nunca explicadas, repete-se para sempre.
Vejamos outro mito aborígine, desta vez do sudeste da Austrália. Alguém jogou para o céu um
ovo de casuar (uma ave pernalta da Austrália). O
Sol nasceu dele e incendiou uma pilha de lenha que
estava lá nas alturas (sabe-se lá por quê). O deus do
céu notou que a luz era útil para os homens, e or
denou que a partir de então seus criados pusessem lenha o suficiente ali no céu toda noite para iluminar o dia seguinte.
O ciclo mais longo das estações também é
tema de mitos em todo o mundo. Muitas histó
rias dos nativos norte-americanos, assim como de
outros povos, têm personagens animais. Um mito
do povo Tahltan, do oeste canadense, diz que um porco-espinho e um castor discutiram por causa da
duração das estações. O porco-espinho queria que
o inverno durasse cinco meses, por isso mostrou
seus cinco dedos. Mas o castor queria que duras
se mais do que isso o número de ranhuras em sua cauda. O porco-espinho zangou-se e exigiu um
inverno ainda mais curto. De maneira dramática, arrancou seu polegar com uma mordida e mostrou
os quatro dedos restantes. Desde então, o inverno
dura quatro meses. Na minha opinião, esse mito
é decepcionante, pois pressupõe que o inverno e
o verão já existem e explica apenas quantos meses
cada um deve durar. Pelo menos nesse aspecto, o mito grego de Perséf one é melhor.
Perséf one era filha de Zeus, o deus
supremo. Sua mãe, Deméter, era
a deusa da fertilidade da Terra e
das colheitas. Perséfone era mui
to amada por sua mãe e a ajudava
a cuidar da agricultura. Mas Hades, o deus do submundo (a morada dos mortos), tam
bém amava Perséfone. Um dia, quando ela brincava
•
em um prado florido, uma grande fenda se abriu e
Hades emergiu de lá em sua carruagem. Ele se apos
sou de Perséfone, levou-a para as profundezas e a fez rainha de seu escuro reino subterrâneo. Deméter
sentiu tanto a perda de sua filha querida que fez as
plantas pararem de crescer, de modo que a fome se
abateu sobre o povo. Então, Zeus decidiu enviar ao
submundo o mensageiro dos deuses, Hermes, para
levar Perséf one de volta à terra dos vivos e da luz.
Infelizmente, a moça havia comido seis sementes de
romã enquanto estivera no submundo, e isso signifi
cava (pelo tipo de lógica a que já estamos acostuma
dos quando se trata de mitos) que ela tinha de voltar
ao submundo por seis meses ao ano (um para cada
semente de romã). Assim, a filha de Deméter vive na
superfície durante parte do ano, da primavera ao fim do verão. Nesse período, as plantas florescem e a ale
gria impera. Mas no inverno ela tem de voltar para
Hades, só porque comeu aquelas benditas sementes
de romã, e então a terra se torna fria e estéril, fazen -
do com que nada cresça.
•
•
•
SEMPRE que as coisas mudam com cadência e precisão, os cientistas desconfiam de que algo está oscilando como um pêndulo ou está em
rotação. Os ritmos dos dias e das estações en
caixam-se no segundo caso, a rotação. O ritmo
das estações se deve ao fato de a Terra orbitar
anualmente o Sol a uma distância aproximada
de 149 milhões de quilômetros. Já o ritmo diá
rio é consequência de a Terra girar sem parar, . ,.,
como um p1ao.
A ilusão de que o Sol se desloca pelo céu é
apenas isto: uma ilusão. A ilusão do movimen
to relativo. Com certeza você já deparou com
coisas desse tipo muitas vezes. Por exemplo,
você está em um trem, parado numa estação,
ao lado de outro trem. De repente parece que o
seu vagão começa a se mover. Mas você então
•
>
percebe que ele não saiu do lugar. Foi o outro
trem que começou a andar, na direção oposta.
Eu me lembro de ter ficado perplexo com essa
ilusão na primeira vez que andei de trem. (Eu devia ser muito pequeno, pois também me recordo de outra coisa que me confundiu nessa
primeira viagem. Enquanto esperávamos na
plataforma, meus pais repetiam coisas como ((Nosso trem já vai chegar': ((Lá vem o nosso trem'' e por fim ((Nosso trem chegou': Achei o
máximo estar a bordo do nosso trem. Andava pelo corredor, maravilhado, todo orgulhoso
porque pensava que nós éramos os donos de
tudo aquilo.)
•
A ilusão do movimento relativo também
funciona no sentido oposto. Você pensa que o ou
tro trem se moveu, mas acaba descobrindo que na
verdade foi o seu que andou. Pode ser difícil dis
tinguir movimento aparente e movimento real. É
fácil se o seu trem partir com um arranco, evi
dentemente, mas não se começar com suavidade.
Quando seu trem ultrapassa outro ligeiramente
mais lento, você pode se enganar achando que o seu está parado e que o outro está andando deva -
gar para trás.
O mesmo ocorre com o Sol e a Terra. O Sol não percorre o céu de leste para oeste. O que acon
tece é que a Terra gira sem parar, como quase tudo
no universo (inclusive o próprio Sol, mas não pre
cisamos falar sobre isso agora). Tecnicamente, di
zemos que a Terra gira em torno de seu eixo. Você pode imaginar esse eixo como uma reta atraves
sando o globo do polo Norte ao polo Sul. O Sol
permanece quase parado em relação à Terra (não
em relação a outras coisas no universo, mas vou
falar apenas do que parece para nós aqui da Ter
ra). Giramos de modo uniforme demais para po
der sentir esse movimento, e o ar que respiramos
gira conosco. Se isso não ocorresse, sentiríamos
uma tremenda ventania, pois giramos a mais de
1600 km/h. Pelo menos essa é a velocidade do giro
na altura do equador; obviamente, giramos mais
devagar conforme nos aproximamos do polo Nor
te ou do polo Sul, pois o chão que pisamos tem
que se mover menos para completar um circuito
ao redor do eixo. Como o ar gira conosco e não
podemos sentir o giro do planeta, estamos em um
caso igual ao dos trens. O único modo de saber
que estamos nos movendo é olhar para objetos
que não estão girando conosco, como as estrelas
e o Sol. O que vemos é o movimento relativo, e
- assim como nos trens parece que estamos
parados e que o Sol e as outras estrelas é que se , movem no ceu.
. .. � . . . . . " . .. . . . . . � . . • •
• •
• •
• •
• •
\ .
• • • •
• •
• •
1 0 1
•
• •
..
1 02
Um famoso pensador chamado Wittgenstein (pronuncia-se o W como V) perguntou à sua amiga e pupila
Elizabeth Anscombe:
Por que dizem que era natural pensar que o Sol girava em torno da Terra e não que a Terra girava em torno de seu eixo?
A amiga respondeu:
Acho que porque parecia que o Sol girava em torno da Terra.
Ora, Wittgenstein replicou,
então como teria parecido a eles se parecesse que a Terra girava em torno de seu eixo?
Tente responder essa!
..
•
Se a Terra gira a 1600 km/h, então por que
quando damos um pulo em linha reta para cima
não caímos em um lugar diferente? Ora, se você
estiver num trem que corre a 1 60 km/h, ao saltar
para cima cairá no mesmo lugar no trem. Você •
pode se visualizar sendo empurrado para a fren-te pelo trem no momento em que salta, só que
não tem essa sensação porque tudo o mais está se
movendo para a frente à mesma velocidade que
você. Você pode jogar uma bola para o alto no
trem e ela cairá em linha reta na sua mão. Pode
jogar tênis de mesa no trem, desde que ele este
ja se movendo regularmente, sem acelerar, desa
celerar ou fazer curvas rápidas. (Mas só em um
vagão fechado. Se você tentar jogar tênis de mesa
num vagão aberto, a bola será levada pelo ven
to. Isso acontece porque o ar viaja com você no
vagão fechado, mas não em um vagão aberto.)
Quando você viaja a uma velocidade regular em
um vagão fechado, por mais rápido que o trem esteja andando, é como se você estivesse parado
em relação ao tênis de mesa ou a qualquer outra
coisa que está ocorrendo no vagão. Mas se o trem
acelerar (ou desacelerar) e nesse momento você der um pulo para cima, cairá em um lugar dif e
rente! E o tênis de mesa jogado em um trem que acelera ou desacelera seria bem estranho, ainda
que o ar no interior do vagão não se mova em
relação ao vagão. Voltaremos a esse assunto mais
à frente, quando falarmos sobre o que acontece
quando atiramos coisas em uma estação em ór
bita no espaço.
-
Turno de 24 horas e calendário
A noite sucede o dia e o dia sucede a noite con
forme a parte do mundo em que estamos fica de
frente para o Sol ou para a sombra durante o giro
do planeta. Mas quase tão marcante, pelo menos
para quem vive longe do equador, é a mudança
sazonal de noites curtas e dias longos e quentes
no verão para noites longas e dias curtos e frios •
no inverno.
A diferença entre noite e dia é drástica. O
contraste é tamanho que a maioria das espécies
de animais vive em plena atividade ou de dia ou de noite, mas não em ambos os períodos. Geralmente os animais dormem no período de inativi
dade. Os humanos e a maioria das aves dormem
à noite e cuidam da vida durante o dia. O porco
-espinho, a onça-pintada e muitos outros animais
trabalham de noite e dormem de dia.
Da mesma forma, os animais têm modos diferentes de lidar com as mudanças entre inverno e
verão. Muitos mamíferos adquirem uma pelagem
grossa e densa no inverno e a perdem no verão.
Muitas aves e alguns mamíferos migram, às vezes
por longas distâncias, para passar o inverno mais perto do equador, depois retornam às latitudes mais altas (mais ao norte ou mais ao sul) para o ve
rão, onde os dias longos e noites curtas significam
alimento farto. A andorinha-do-mar ártica, uma
ave marinha, é um exemplo extremo. Ela passa o
verão no hemisfério norte, no Ártico. Quando che
ga o outono, migra para o sul, mas, em vez de parar
1 03
nos trópicos, prossegue viagem até a Antártida. Al
guns livros dizem que a Antártida é o ((invernadouro',
da andorinha-do-mar ártica, mas é uma inexatidão:
quando a ave chega à Antártida, é verão no hemis
fério sul. Ela migra por uma distância tão longa que
aproveita dois verões; não tem ((invernadouro',
por-
que não se expõe ao inverno. Isso me lembra de um
amigo que vivia na Inglaterra durante o verão e de
pois viajava para a África tropical a fim de, como ele
dizia gracejando, ((enfrentar o inverno''.
Outros animais evitam o frio dormindo o inverno inteiro. Chamamos isso de ((hibernação
,: do latim
hibernus, que significa ('invernar,: Ursos e esquilos
estão entre os muitos animais que hibernam. Alguns
dormem continuamente o inverno todo; outros dor
mem a maior parte do tempo, despertam de vez em
quando para alguma atividade morosa, depois voltam
a dormir. Em geral sua temperatura corporal cai muito
durante a hibernação, e tudo no interior de seu corpo
desacelera até quase parar: seus motores internos quase não trabalham. Existe até uma rã no Alasca que se
mantém congelada dentro de um sólido bloco de gelo;
na primavera, ela se descongela e volta à vida.
Mesmo aqueles animais que, como nós, não
hibernam nem migram para evitar o inverno preci
sam se adaptar às mudanças das estações. As folhas
brotam na primavera e caem no outono, por isso as
árvores, viçosas no verão, ficam secas e murchas no
inverno. Os carneiros nascem na primavera e se be
neficiam das temperaturas amenas e da grama nova
durante seu crescimento. Nós não ganhamos pelagem
longa ou lã durante o inverno, mas usamos casacos
que os imitam . .
Portanto, não podemos deixar de notar as mu -
danças de estação, mas será que as compreendemos?
Muita gente não. Existem até pessoas que não enten
dem que a Terra leva um ano para orbitar o Sol e é
isso que significa ((ano''! Segundo uma pesquisa, 1 9% dos ingleses pensam que nosso percurso ao redor do
Sol leva um mês, e em outros países europeus foram
encontradas porcentagens semelhantes.
Mesmo entre os que entendem o que significa
um ano, muitos pensam que a Terra fica mais próxi-
ma do Sol no verão e mais distante no inverno. Vá
dizer isso a um inglês que em pleno mês de julho
está de bermuda e camiseta tomando limonada
debaixo de um guarda-sol! Quando lembramos
que no hemisfério norte é verão em julho e inver
no em dezembro, percebemos que as estações não
podem ser causadas por mudanças na distância
da Terra ao Sol. Tem que haver outra explicação.
Não conseguiremos avançar muito sem antes
entender o que faz corpos celestes orbitarem ou
tros corpos celestes. Vejamos o que acontece.
Em órbita
Por que os planetas se mantêm em órbita ao
redor do Sol? Por que uma coisa orbita outra? A
resposta veio no século XVII e foi dada por Isaac
Newton, um dos maiores cientistas de todos os
tempos. Ele demonstrou que todas as órbitas são
controladas pela gravidade a mesma força que
atrai para o chão uma maçã que se desprende da
árvore, só que em maior escala. (Sinto dizer que aquela história de que ele teve sua famosa ideia
quando uma maçã despencou em sua cabeça pro
vavelmente não é verdadeira. )
Newton imaginou um canhão no topo de
uma montanha muito alta, apontando horizon -
talmente para o mar (a montanha fica na costa).
Cada bala disparada parece começar um movi
mento na horizontal, mas ao mesmo tempo cai
na direção do mar. A combinação do movimento
para a frente acima do mar e para baixo em dire
ção à água resulta em uma graciosa curva descen -
dente que c�lmina num mergulho. É importante
entender que a bala cai o tempo todo, mesmo na parte inicial da curva, quando a trajetória é mais plana. Ela não se desloca horizontalmente por al
gum tempo e de repente muda de ideia, como um
personagem de desenho animado que percebe
que deveria estar caindo e só então despenca!
� ·
• • • ç f '.\
.;.! _r e.
• • • ... ..._,,._
• • •
• �� • .. -
�
. '
•
SOL brilha de maneira deslumbrante. É um
consolo nos climas frios, mas pode ser
abrasador e impiedoso nas regiões quentes.
Não admira que tantos povos o adorem como
se fosse um deus. O culto ao Sol costuma vir
junto com o culto à Lua, frequentemente
atribuindo sexos opostos a esses dois astros.
A tribo tiv, da Nigéria e de outras partes da África ocidental, acredita que o Sol e a Lua
são filhos de seu deus supremo, Awondo. A
tribo barotse, do sudeste africano, acha que o Sol é marido da Lua, e não seu irmão. Muitos
mitos tratam o Sol como masculino e a Lua como
feminina, mas em alguns casos é o contrário. No xin
toísmo, religião japonesa, o Sol é a deusa Amaterasu, e
a Lua é seu irmão Ogetsuno.
1 1 8
• • • ' .
.
. \ . "
"-.) .) , -
�
•
•
As grandes civilizações que floresceram na América Central e
do Sul antes da chegada dos espanhóis ao continente no sécu -
lo XVI adoravam o Sol. Os incas dos Andes acreditavam que o Sol e a Lua eram seus ancestrais. Os astecas do México tinham
muitos deuses em comum com civilizações mais antigas da
região, como os maias. Vários desses deuses estavam ligados
ao Sol, ou em alguns casos eram o próprio astro. Segundo
o mito asteca dos cinco sóis, existiram quatro mundos antes
• ..._.. •
do atual, cada qual com seu sol. Esses quatro mundos anteriores
desapareceram, um após o outro,
destruídos por catástrofes forja
das pelos deuses. O primeiro sol era o deus chamado Tezcatlipoca
Negro. Ele lutou com seu irmão,
Quetzalcoatl, que o derrubou do
céu com sua clava. Depois de um
negro período sem sol, Quetzal
coatl tornou-se o segundo sol.
Colérico, Tezcatlipoca transfor
mou todas as pessoas em maca
cos, mas Quetzalcoatl simples
mente soprou todos os macacos para longe e reinou como o se
gundo sol.
O deus Tlaloc tornou-se o
terceiro sol. Irritado porque Tez
catlipoca roubou sua esposa,
Xochiquetzal, ele se recusou a
mandar chuvas de birra, ocasio
nando uma terrível seca por toda
parte. O povo implorou e implo
rou por chuva, e Tlaloc ficou tão
farto das súplicas que enviou
uma chuva de fogo. O incêndio
consumiu totalmente o mundo,
e os deuses tiveram de começar
tudo de novo. •
1 1 9 '
o
o "-""""" .......
1 20
-. e •
•
O quarto sol foi a nova esposa de Tla
loc, Chalchiuhtlicue. Após um bom come
ço, Tezcatlipoca a aborreceu tanto que ela
chorou lágrimas de sangue por 52 anos sem parar. O mundo foi totalmente
inundado, e os deuses tiveram que recomeçar do zero. Não é
curiosa a exatidão com que os
mitos especificam meros deta
lhes? Como será que os astecas
decidiram que ela chorou por 52 anos, e não 5 1 ou 53?
-
0
O quinto sol, que na crença
dos astecas é esse que hoje ve
mos no céu, era o deus Tonatiuh, também conhecido como Huit
zilopochtli. Sua mãe, Coatlicue,
gerou-o depois que um feixe de
plumas a engravidou acidental
mente. Para nós é estranho, mas
coisas assim pareceriam bem normais a pessoas criadas ou -vindo mitos tradicionais (uma
cabaça, que é a casca seca de uma fruta semelhante à abóbora, en
gravidou outra deusa asteca). Os
quatrocentos filhos de Coatlicue
ficaram tão furiosos quando viram a mãe grávida mais uma
vez que tentaram decapitá-la.
Mas no último minuto ela deu
à luz Huitzilopochtli. Ele nasceu
totalmente armado e não per
deu tempo: matou todos os seus
meios-irmãos, exceto alguns que escaparam ('para o sul': Huitzilo-
pochtli assumiu então suas fun -
ções como o quinto sol.
Os astecas acreditavam que ti
nham de sacrificar vítimas humanas para apaziguar o Sol, do
contrário ele não apareceria toda
manhã. Pelo visto, não tiveram a
ideia de experimentar não fazer
sacrifícios para ver se o Sol não apareceria mesmo assim. Os sa
crifícios astecas têm a fama de
serem especialmente horripilan
tes. Quando essa civilização en
trou em declínio, com a chegada
dos espanhóis (que tinham seus
próprios procedimentos horri
pilantes), o culto ao Sol atingira
um clímax sangrento. Estima-se
que entre 20 mil e 80
mil pessoas tenham
sido sacrificadas •
para a reinaugu-ração do gran-de templo de
Tenochititlan
em 1487. Várias
oferendas eram
feitas para apa
ziguar o deus,
mas o que ele gos
tava mesmo era de
sangue e de corações
humanos ainda baten
do. Um dos prin
cipais objetivos das
guerras era conquistar muitos
prisioneiros para sacrificá-los,
arrancando seu coração do peito. A cerimônia normalmente
ocorria em terreno elevado (pa -
ra estar mais perto do Sol), por
exemplo no topo das magníficas
pirâmides que fazem a fama dos
astecas, maias e incas. Quatro
sacerdotes seguravam a ví
tima em cima do altar,
enquanto um quin-
to empunhava a fa
ca. Ele trabalha -va o mais rápido
possível para ti
rar o coração de
modo que pu
desse erguê-lo
ainda baten
do para o Sol.
Nesse meio-tempo, o cor
po ensanguen
tado e sem cora
ção rolava encosta
ou pirâmide abai
xo, onde era recolhi
do pelos anciões e en -
tão desmembrado, na
maior parte das vezes
para ser comido em
refeições rituais.
1 2 1
•
•
1 2 2
Também associamos as pirâ
mides a outra civilização antiga
- o Egito. Os antigos egípcios
também adoravam o Sol. Uma
de suas principais divindades era Ra, o deus-sol .
Uma lenda egípcia dizia que a
curva do céu era o corpo
da deusa Nut arquea
do sobre a Terra. Toda
noite a deusa engolia
o Sol, e na manhã
seguinte devolvia-o
à luz novamente .
•
•
Em outros mitos, o Sol não é um deus, mas
uma das primeiras criações de um deus. No m�it.=.º--------
--:;;:=:º
:-"°""!' da criação de uma tribo hebreia do de- -�.--à?-:��...,.___, serto do Oriente Médio, o deus
tribal YHWH criou a luz no
primeiro dos seis dias da criação
- mas, surpreendentemente, ele só
foi criar o sol no quarto dia! ''Fez Deus os dois grandes luzeiros: o maior para
governar o dia, e o menor para governar a noite; e fez também as estrelas:' De onde
vinha a luz no primeiro dia, antes
de existirem o Sol e as estre-
las, não nos é informado.
Agora é hora de voltar
à realidade e à verda -
<leira natureza do Sol,
confirmada por da-
dos científicos.
l t
1 23
O Sol é t1ma estrela i
rece muito e �
tra estrela, le nos a , dan · nosso
queima nossa pele se nos e?Kpuserm s demais
apenas um pouco mais
mais próximo. É difícil a
grande o espaço. a verdacle: ' wais que d.
Um livro fascinante, Earthsea�
de agnitudes
1 24
,
4
•
1 2 5
Como são as estrelas A diferença entre uma estrela e um planeta é que as estrelas são brilhantes, quentes e podem ser vistas graças à sua própria luz, enquanto os planetas são frios e só os vemos graças à luz que refletem, vinda
da estrela que orbitam. Essa diferença, por sua vez,
é resultado de uma diferença de tamanho. Vejamos.
Quanto maior é um objeto, mais forte a atração
gravitacional em direção a seu centro. Todo corpo
atrai outros corpos pela gravidade. Até você e eu exercemos atração gravitacional um sobre o outro.
No entanto, a atração só é forte o suficiente para ser notada quando um dos corpos é grande. A Terra é grande, por isso somos fortemente atraídos para ela, e quando derrubamos alguma coisa ela vai ''para bai
xo': ou seja, cai em direção ao centro da Terra.
Uma estrela é muito maior que um planeta, portanto sua atração gravitacional é mais forte. O centro de uma estrela está sob imensa pressão, pois
uma força gravitacional enorme atrai toda a matéria
em direção ao centro. E quanto maior a pressão no
interior de uma estrela, mais quente ela fica. Quando
a temperatura atinge níveis altíssimos, a estrela co
meça a se comportar como uma espécie de bomba
de hidrogênio de ação lenta, emitindo grandes quan
tidades de calor e luz, e nós a vemos brilhar no céu
à noite. O calor intenso faz a estrela inflar como um
balão, mas a gravidade a puxa novamente em direção ao centro. Existe um equilíbrio entre inflar pelo
calor e encolher pela gravidade. A estrela funciona como seu próprio termostato: quanto mais quente se
torna, mais infla; quanto maior fica, menos concen -
trada se torna a massa da matéria em seu centro, e
ela esfria um pouco. Com isso, começa a encolher
novamente, depois torna a se aquecer, e assim por
diante. O modo como contei dá a impressão de que a
estrela infla e encolhe rapidamente, como um cora
ção batendo, mas não é o que ocorre. Ela se acomoda
em um estado intermediário, que a mantém na tem
peratura exata para que permaneça assim.
1 26
•
•
• •
a vida Quero encerrar o capítulo falando da i1npor
tância do Sol na nossa vida. Não sabemos se há
vida em outras partes do universo (discutirei essa
questão em outro capítulo), mas sabemos que, se
existir, quase certamente é perto de uma estrela. Também podemos dizer que, se a vida por lá for
qualquer coisa pelo menos parecida com a vida
encontrada no nosso planeta, provavelmente es
tará em um planeta cuja distância aparente que
a separa de sua estrela é mais ou menos igual à
nossa distância do Sol. ((Distância aparente'' é a
distância como percebida pela própria forma de vida. A distância absoluta pode ser muito maior,
como vimos no exemplo da gigantesca estrela
Rl36a l . Mas, se a distância aparente for a mesma,
o sol dará a esses seres a impressão de estar mais
ou menos à mesma distância que o nosso está de
nós, o que significa que a quantidade de calor e
luz recebida dele é mais ou menos igual à nossa.
Por que a vida precisa estar próxima de
uma estrela? Porque toda forma de vida
requer energia, e a luz das estrelas é fonte de energia. Na Terra, as plantas
captam a luz do Sol e disponibilizam energia para os demais seres vivos. Po
deríamos dizer que elas se alimentam de
luz solar. Precisam de outras coisas também,
como dióxido de carbono do ar, água e minerais
1 36
do solo. Mas obtêm energia da luz do sol e a usam
para fabricar açúcares, que são um combustível
para as tarefas que executam.
Não se pode produzir açúcar sem energia. E
assim que se tem açúcar pode-se ((queimá-lo'' para obter energia de novo. Mas nunca se tem toda a
energia de volta: algo sempre se perde no processo.
E quando dizemos ((queimar'', não significa virar
fumaça. É ape11as um inodo de liberar a energia
de um combustível. Há modos de
deixar que a energia seja libera
da aos poucos, en1 ritmo lento,
para que possa ser utilizada.
Você pode pensar numa
folha verde como uma fábrica
cujo telhado plano é um grande
painel solar que capta a luz e a usa para mover as
rodas da linha de montagem sob o teto. É por isso
que as folhas são finas e achatadas. Isso lhes dá
uma vasta área na superfície onde a luz pode inci
dir. O produto final da fábrica são vários tipos de
açúcar. Eles são transportados pelas veias da f o
lha até as outras partes da planta, onde são usados
para produzir outras coisas, como o amido, que é um modo co11veniente de armazenar energia. Por fim, a energia é liberada do amido ou açúcar para fazer as demais partes da planta.
Quando as plantas são comidas por l1erbí
voros (((comedores de plantas'') como antílopes e
coelhos, a energia passa para esses animais e
novamente parte dela perde-se no processo. Os
herbívoros a usam para construir o
Alimentacão ,
Digestão
•
•
corpo e fornecer combustível aos músculos du -
rante suas atividades, que incluem pastar e comer
outras plantas. A energia que impele os músculos deles enquanto andam, mastigam, lutam e se aca
salam provém do Sol, por intermédio das plantas.
E então vêm outros animais, os carnívoros, e
comem os herbívoros. A energia passa mais uma
vez para outro corpo (e outra parte dela é perdida
na transição) e impele os músculos dos carnívoros enquanto fazem suas atividades, que incluem
caçar herbívoros para comer, acasalar-se, lutar,
subir em árvores e, no caso dos mamíferos, pro
duzir leite para os filhotes. Ainda assim, é o Sol
que fornece a energia, muito embora a essa altura
chegue até eles por um caminho bem indireto. A
cada etapa dessa rota indireta, uma boa fração da
energia é perdida em forma de calor, o que con
tribui para a inútil tarefa de aquecer o universo.
Outros animais, os parasitas, alimentam-se
de corpos vivos de herbívoros e carnívoros. Mais
uma vez, a energia que os impele provém do Sol,
e mais uma vez nem toda ela é usada porque uma
parte se perde em forma de calor.
Finalmente, quando qualquer criatura mor
re, seja planta, herbívoro, carnívoro ou parasita,
pode ser comida por animais que se alin1entam de matéria em decomposição, como os insetos
necróf oros, ou pode se decompor, servindo de
alimento para bactérias e fungos, que são apenas
Decomposição
-•
. .. '
, /
(
um tipo diferente de comedores de matéria em
decomposição. De novo a energia do Sol passa
adiante, e outra vez parte dela se perde em for
ma de calor. É por isso que as composteiras, ou
montes de lixo orgânico, são quentes. Todo o ca
lor presente nela provém do Sol, captado pelos
painéis solares das folhas. Existem aves australia
nas fascina11tes chamadas megapódidas que usam
o calor de composteiras para incubar seus ovos.
Ao contrário de outras aves, que se sentam sobre seus ovos para aquecê-los com o calor do corpo,
elas fazem uma grande pilha de composto orgâni
co e põem seus ovos ali, regulando a temperatura
pondo mais material no monte para torná-lo mais
quente ou removendo material para diminuir o
calor. Em última análise, todas as aves usam ener
gia solar para chocar seus ovos, seja por meio do
calor do corpo, seja numa composteira. Às vezes, plantas não são comidas, mas afun
dam em turfeiras, um tipo de jazida de matéria
vegetal morta. Com o passar dos séculos, são
comprimidas em camadas por novas quantidades
de turfa que se acumulam por cima. No oeste da
Irlanda e nas ilhas escocesas, as pessoas desenter
ram essa turfa, cortam-na em pedaços do tama
nho de um tijolo e a queimam para aquecer suas
casas no inverno. Mais uma vez, é a luz solar cap
tada, nesse caso séculos antes, que libera energia
nas lareiras· e nos fogões de irlandeses e escoceses.
' #
.... •
.. ' /
• • • •
• •
' 1 '
' -
� • • 1
1 37
Em certas condições, ao longo de milhões de anos a turfa pode se compactar e se transfor
mar em carvão, um combustível mais eficiente,
porque queima a uma temperatura muito mais
elevada. Fogueiras e fornalhas a carvão moveram
a Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX.
O calor intenso de uma usina siderúrgica, de
um alto-forno ou das fornalhas da era vitoriana
que impeliram as trovejantes locomotivas a va
por por trilhos de ferro ou os navios pelos mares
proveio originalmente do Sol, por intermédio das
folhas que viveram há 300 milhões de anos.
Algumas fábricas da Revolução Industrial
usavam a energia do vapor, mas muitas das pri
meiras indústrias de tecidos de algodão eram
movidas por roda-d'água. A fábrica ficava à beira
de um rio de correnteza forte, cujas águas eram
canalizadas para mover a roda hidráulica, que gi
rava um grande eixo, o eixo motor, que percorria a fábrica de ponta a ponta. Ao longo dele, correias
e engrenagens moviam máquinas de fiar, cardar e
tecer algodão. Até essas máquinas eram, em última análise, movidas pelo Sol. Vejamos como.
A água, atraída monte abaixo pela gravidade, move as rodas-d'água. Mas isso só funciona
porque existe um fornecimento contínuo prove
niente do terreno elevado, de onde ela pode cor-
rer para as terras mais baixas. Essa água é forneci
da em forma de chuva, que vem das nuvens e cai
sobre as colinas e montanhas. E as nuvens obtêm
água graças à evaporação de mares, lagos, rios e
poças na Terra. A evaporação requer energia, e
essa energia provém do Sol. Assim, a energia que
impelia as rodas-d'água que moviam as correias e
engrenagens das máquinas era fornecida pelo Sol. Mais tarde, as fábricas de algodão passaram a
ser movidas por máquinas a vapor usando carvão
como combustível em última análise, usando a energia do Sol. Mas antes de mudar totalmen
te para a energia do vapor, as fábricas passaram por um estágio intermediário. Nele, mantinham a grande roda-d'água para mover teares e lançadei
ras, mas usavam um motor a vapor para bombear
a água para um tanque, de onde caía sobre a roda
-d'água e voltava a ser bombeada para cima. Por
tanto, quer a água fosse levada para as nuvens pelo
calor do Sol, quer fosse impelida até um tanque por
uma bomba movida a vapor, a energia continuava
provindo do Sol antes de tudo. A diferença é que a
máquina a vapor é movida pela luz solar captada
por plantas milhões de anos antes e armazenada
no subsolo em forma de carvão, ao passo que a
roda-d'água à beira do rio é movida pela luz do Sol
disponibilizada apenas algumas semanas antes e
• ---.J •
Não faria bem para nós se literalmente quei
mássemos açúcar e outros combustíveis que ob
temos dos alimentos. Queimar é um modo de re
cuperar a energia solar armazenada que implica
desperdício e destruição. O que acontece em nos
sas células é um processo lento e regulado, como
água que flui devagar morro abaixo para mover uma série de rodas de moinho. A reação quími
ca movida a luz solar que ocorre nas folhas para
produzir açúcar faz o equivalente ao transporte
da água para a parte elevada do terreno. As rea -ções químicas nas células animais e vegetais que
usam energia obtêm a energia passo a passo, em
estágios cuidadosamente controlados. Os com
bustíveis com alto potencial açúcares ou outros
- são levados a liberar sua energia em estágios
através de uma cascata de reações químicas, cada
qual alimentando a subsequente, como uma correnteza que passa por uma série de pequenas que-
das d'água, fazendo girar uma roda após outra.
Todas as rodas-d'água, engrenagens e eixos
da vida são, em última análise, movidos pelo Sol. Talvez os povos antigos o adorassem com ainda
mais devoção se percebessem que a vida depen -
de dele. Mas me pergunto: quantas outras estrelas
impelirão os motores da vida em planetas que as
armazenada em forma de água nos montes. Esse orbitam? Isso terá de esperar outro capítulo.
tipo de luz solar armazenada é denominado ener
gia potencial, porque a água pode realizar um tra
balho ao correr morro abaixo.
É um bom modo de entender como a ener
gia da vida provém do Sol. O uso da luz solar pe
las plantas para produzir açúcar é comparável ao
bombeamento de água para o alto do morro ou
para o tanque no telhado de uma fábrica. Quando
as plantas (ou os herbívoros que as comem, ou os
carnívoros que os comem) usam o açúcar (ou o
amido que é feito dele, ou a carne que é feita de
amido), podemos considerar que ele está sendo
queimado, por exemplo, para mover músculos,
como o carvão é queimado para produzir o vapor
que impele um eixo numa fábrica. •
1 39 •
EPOPEIA DE Gilgamesh é uma
das mais antigas histórias já es
critas. Anterior às lendas gregas e judaicas, é o mito heroico da milenar
civilização sumérica, que floresceu
na Mesopotâmia (hoje Iraque) entre
5 e 6 mil anos atrás. Gilgamesh é o
grande rei do mito sumérico mais
ou menos como o rei Arthur da len -das britânicas, pois, como Arthur,
ninguém sabe se ele realmente
existiu apesar de haver inú
meras histórias a seu respeito.
Como o herói grego Odisseu
(ou Ulisses) e o herói árabe
Simbad, o Marujo, Gilga
mesh fez jornadas épicas e
encontrou muitas coisas e
pessoas exóticas. Como um
ancião (um homem mui-
to velho, de centenas de anos) chamado Utnapashtim, que contou a
Gilgamesh uma estranha história sobre si mesmo. Na verdade, ela pareceu estra-
nha a Gilgamesh, mas não vai parecer para você, que provavelmente já ouviu um conto
parecido, só que sobre outro ancião, com um nome diferente.
1 40
•
•
Utnapashtim contou a
Gilgamesh sobre uma
ocasião, muitos séculos antes, em que os deuses
ficaram zangados porque
a humanidade fazia
tanto barulho que eles
não conseguiam dormir.
O deus supremo, Enlil,
sugeriu mandarem uma
grande inundação para
destruir tudo e permitir
assim uma boa noite de
sono aos deuses. Mas o
deus da água, Ea, alertou
Utnapashtim e disse a ele
que desmontasse sua casa e construísse um barco.
•
Teria de ser um barco
bem grande, pois
Utnapashtim deveria
levar para lá ((a semente
de todos os seres vivos':
•
1 41
•
•
Ele co�s mu seu barco
· bem a tempo, árit�s de
chov�.- iP. r sei� dias e
seis n�it s sem pa a:ri·
Finalmente, ele soltou um corvo. A ave não
•
regressou, por isso
Utnapashtim deduziu
que devia haver terra
firme em alguma
parte e a ave a havia
encontrado.
1 42
. ,_ .
1 1 res taqte
en !ti a ter a e afogou Utnapashtim •
t dos aq eles que não
e6t�va.Qi salvo dentro do
Hairco. No sétimo dia, o
:vento amainou e as águas
se acalmaram.
abriu um alçapão no
barco hermeticamente
fechado e soltou
uma pomba. Ela saiu
voando à procura
••
de terra firme, não a encontrou e retornou.
O homem soltou então
uma andorinha, mas o
resultado foi o mesmo.
Depois de um tempo, o barco pousou no topo de uma montanha que
despontava nas águas. Outro deus, Ishtar, criou o primeiro arco-íris
como sinal da palavra dada pelos deuses de não enviar mais dilúvios ter
ríveis. E assim surgiu o arco-íris, segundo a antiga lenda dos sumérios.
Eu disse que a história pareceria conhecida. Todas as crianças de
famílias cristãs, judias ou islâmicas imediatamente reconhecerão que se
trata da mesma narrativa da Arca de Noé, menos antiga, com uma ou
outra diferença insignificante. O nome do construtor do barco é Noé, em
vez de Utnapashtim. Os muitos deuses da lenda sumérica são substituí
dos por um único deus. A <<semente de todos os seres vivos'' passa a ser
descrita como <<De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espé
cie'' ou, como diz uma canção inglesa, <'os animais foram entrando, dois a dois''. A epopeia de Gilgamesh
certamente quis transmitir uma ideia parecida. A
história judaica de Noé nada mais é do que a lenda
de Utnapashtim recontada. Trata-se de um conto
popular que se difundiu e atravessou os séculos. É
comum descobrirmos que lendas aparentemente an
tigas provêm de outras ainda mais antigas, em geral com alguns nomes e outros detalhes diferentes. E essa
lenda, em ambas as versões, termina com o arco-íris .
•
•
1 43
1 44
. . � •
Despencaram do arco-íris, I ca1ram no mar e se
O mito tem um
desfecho curioso .
•
Quando estavam
atravessando a ponte de arco-íris,
algumas das pessoas
barulhentas olharam
para baixo e ficaram
tão apavoradas com
a altura que tiveram
vertigem.
transformaram em golfinhos.
•
A ideia do arco-íris como ponte aparece
em outras mitologias. Em antigos mitos
nórdicos (vikings), ele era uma frágil ponte usada pelos deuses quando viajavam do mundo celeste para a Terra.
•
•
mu os povós da Pérsia, da Aftica ii� '1, da Malásia, da Austrália e
da Mrlérica, por exemplo, o arco-íris é
uma grande serpente qu� sobe do chão Rara beber a chuva.
•
Como começam essas lendas? Quem será que as inventa, e por que algumas pessoas acabam acreditando que coisas assim aconteceram mesmo? Essas questões são fascinantes e respondê-las não é fácil. Mas há uma pergunta a que podemos responder: o que é realmente um arco-íris?
•
•
1 45
/� -
, •
•
• • ,
Um prisma espalha os feixes de luz que o atra
vessam. E os feixes que emergem dele não são
mais brancos. São multicoloridos, como um
Quando um feixe luminoso viaja pelo ar e atinge
um vidro) ele muda de direção. Esse desvio chama-se refração. A refração não é causada apenas
torto quando introduzido no rio. Portanto, a luz
muda o ângulo de sua trajetória quando atinge o
vidro ou a água. Mas agora vem o mais importan
te. Esse ângulo é ligeiramente diferente conforme a
cor da luz. A luz vermelha desvia-se em um ângulo
mais agudo do que a azul. Assim, se a luz branca
realmente for uma mistura de luzes coloridas, como
Newton supôs, o que acontecerá quando você des-
arco-íris. Isaac Newton deu um nome ao arco- íris que obteve em seu experimento: espectro.
Vamos ver como ele funciona.
pelo vidro, mas também pela água, e essa infor
mação será importante quando voltarmos a falar do arco-íris. É a refração que faz um remo parecer
viar a luz através de um prisma? A luz azul se in
clinará mais do que a vermelha, portanto elas se
separarão uma da outra quando emergirem do ou
tro lado. E as luzes amarela e verde sairão em ângulos intermediários aos das outras duas. O resultado
é o espectro de Newton: todas as cores do arco-íris,
dispostas na mesma ordem: vermelho, laranja,
amarelo, verde, azul e violeta.
1 49
Newton não foi o primeiro a obter um arco
-íris com um prisma. Outros já haviam chegado
ao mesmo resultado. Mas muitos pensaram que o prisma, por alguma razão, ((coloria'' a luz bran-
ca, como se lhe acrescentasse uma tinta. A ideia de Newton foi bem diferente. Ele supôs que a luz
branca era uma mistura de todas as cores e que o
prisma apenas as separava. Newton estava certo,
e provou isso com dois experimentos. Primeiro,
pegou seu prisma e pôs uma estreita abertura no
caminho dos feixes coloridos que saíam dele, de
íl 50
•
modo que apenas um feixe digamos, o de luz
vemelha passasse através dessa fenda. Em se
guida, pôs outro prisma no caminho desse estreito feixe de luz vermelha. O segundo prisma des
viava a luz, como de hábito. Mas o que saiu dele
foi apenas luz vermelha. Nenhuma outra cor foi
adicionada, o que teria acontecido caso o papel
dos prismas fosse adicionar cor. O resultado que Newton obteve foi exatamente o que havia suposto, confirmando sua teoria de que a luz branca é
uma mistura de luzes de todas as cores.
•
•
O segundo experimento ficou conhecido como o Experimentum Crucis de Newton (o que em latim significa ((experimento crucial'') mas poderíamos também chamá-lo de ('o experimento que acaba com a discussão''. Era ainda mais
engenhoso que o primeiro, e nele Newton usou A •
tres prismas. À esquerda, na figura acima, vemos luz
branca saindo de uma fresta na cortina de Newton e atravessando o primeiro prisma, que a divide em todas as cores do arco-íris. Essas co-
res passam então por uma lente que as aproxi
ma antes que atravessem o segundo prisma de
Newton. Ele tem o efeito de fundir novamente
as cores do arco-íris numa luz branca única. Só
isso já provava a hipótese do cientista. Mas, para
ter certeza, ele fez o feixe de luz branca atraves
sar um terceiro prisma, que por sua vez tornou
a dividir o branco nas cores do arco-íris! Uma .
demonstração mais completa é impossível, e ela
prova definitivamente que a luz branca é mesmo
uma mistura de todas as outras cores.
1 5 1
- -
l
-
•
1 52
• •
- - - -- -
Muito bem, então os prismas fazem
tudo isso, mas quando a gente vê um I • , IY • • arco-1r1s no ceu nao existe um pris-
ma gigante lá em cima. Mas existem
milhões de gotas de chuva. Então
cada gota age como um minúsculo
prisma? Mais ou menos.
-.... -
--- - -
Para ver um arco-íris, é preciso que o sol esteja atrás de você
quando olhar para a chuva. Cada
gota parece mais uma bolinha do que
um prisma, e a luz, quando atinge uma bola,
se comporta de modo diferente do que quan
do incide em um prisma. O lado oposto da
gota d'água acaba agindo como um minúscu
lo espelho, e é por isso que precisamos do sol
atrás de nós se quisermos ver um arco-íris. A
luz dá um salto mortal dentro de cada gota
de chuva e é refletida obliquamente para bai
xo, chegando então aos nossos olhos.
- - - -... ...
• .,.
•
.- --
_.
Vejamos como funciona. O sol está atrás e para cima de
você, que olha para a chuva caindo à distância. A luz solar atinge
uma gota (é claro que ela atinge muitas outras também, mas che
garemos a essa parte). Vamos chamar essa gota específica de A. O feixe de luz branca atinge A na superfície superior mais
próxima de você e ali sofre uma inclinação, exatamente como
aconteceu na superfície mais próxima no prisma de Newton.
Como você já sabe, a luz vermelha se inclina menos que a azul,
e assim o espectro vai se f armando. Todos os feixes coloridos passam pela gota até chegar ao outro lado dela. Mas, em vez de atravessá-la e chegar ao ar, eles são refletidos na direção do lado que está voltado para você, em sua parte inferior. Confor
me atravessam esse lado, sofrem nova inclinação. Mais uma vez
a luz vermelha se inçljna em um ângulo mais agudo que a azul.
-- -
-
-_. -
- .-- -
... � -
--
•
•
Assim, quando o raio de luz solar
sai da gota de chuva, ele foi devida
mente distribuído em um pequenino
espectro. Os raios separados de luz co
lorida que mudaram de direção dentro
da gota de chuva voltam agora para onde você se encontra. Se seus olhos
estiverem no caminho do feixe de luz
verde, por exemplo, você verá luz ver
de pura. Já alguém mais baixo do que
você poderá ver apenas o feixe verme
lho proveniente de A. E alguém mais alto que você poderia ver unicamente
o feixe azul.
1 53 •
•
Ninguém vê o espectro inteiro a partir de uma tà de
chuva. Cada um de vocês veria; apenas uma cor pura. No -
tanto, todos afirmariam estar vendo um arco-íris, com odas
as cores. Por quê? Bem, até agora falamos de uma única gota
de chuva, que chamamos de A. Existem milhões de outras go
tas, e todas se comportam de modo parecido. Enquanto você
olha para o feixe de luz vermelha de A, existe outra gota, B,
que está mais abaixo. Você não vê o feixe vermelho saído dela
porque ele está na altura do seu estômago, mas o feixe azul
está no lugar exato para atingir seus olhos. Há outras gotas
abaixo de A e acima de B, e seus feixes amarelo ou verde inci
dem em seus olhos. É desse modo que muitas gotas de chuva
juntas fornecem um espectro completo, de cima a baixo. -- -
-- --
- --- --
- -
-- -
-- -
-- --
A - - -
-- --- - -
- -
- --- --- --- -
-- -
- --
- --
- --- -
-- -- -
-- --- --- -
- --- -
- -- _.--.. - -
- - -
'-�� - - -- --
...-... _ -_ _
-- - -
- -
- - -
- - -- - - ----
- - - -- -
B - --
- -- -
-- --
- -
Mas uma linha completa não é um arco-íris. De onde vem o resto? Não se esqueça de que há outras gotas de chuva espalhadas por toda a área onde a chuva cai, em todas as altu -
ras. Elas completam o arco-íris para você. A propósito, cada
arco-íris que vemos está tentando ser um círculo completo,
com nossos olhos no centro dele como aquele arco-íris cir
cular que você às vezes vê quando está regando o jardim com uma mangueira e o sol atravessa a água borrifada. A única
razão de geralmente não vermos o círculo completo é que o
chão fica no caminho.
1 54
- - -
-- - -
-:::::----._ - ----
- -
- -- �"
- --- --- -
-- --- --
- -- - --- -
-- --- -
-- --- -
-
- --- --- -
-- --- --- -- --- --
- --- --
- --
- -- - --
- --- --- -
-- - -..____
- --- --
---- --
•
- --
- -
-- -
- -
- --
- -
- --
- -
•
É por isso que você vê um arco-íris diferente a cada fração
de segundo. Na fração seguinte, todas as gotas de chuva caem
numa posição. A caiu para onde estava B, portanto você vê o
feixe azul de A em vez de seu feixe verde; você não pode ver
nenhum dos feixes de B (mas o cachorro a seus pés pode); uma
nova gota (C, cujos feixes você antes não podia ver) caiu para o
lugar onde estava A, e você enxerga seu feixe vermelho.
- --
- --- -
-- -
-- --
- --- -
-- -
-- -
- -- -
- --
- --
- --
- --
- --
- --
- -
-
--
- -- -
-- -
-- -
-- -
-- -
-- -
-
-- ...
-- -
-- -
-- -
-- -
- --
- --
- --
-
- --
- --- -
-- -
-- -
-- -
-
-
-
-
-
-- -
- - -- - -
- --
- --
- -
� - - -- -
-- --
- --
- - -
•
É por isso que um arco-íris parece
estar parado, embora as gotas d'água que
o produzem estejam sempre em queda .
Com pri mentos Vejamos agora o que realmente é o espectro, a
série de cores na seguinte ordem: vermelho, la -ranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. O que
faz a luz vermelha ser refratada em um ângulo
mais fechado que a luz azul?
Podemos imaginar a luz como ondas. As
sim como o som é causado por vibrações do
ar, a luz consiste no que chamamos de vibra
ções eletromagnéticas. Não tentarei explicar o
que são porque demoraria muito (e não tenho
certeza de que entendo bem disso). O impor
tante aqui é que, embora a luz seja muito dife
rente do som, podemos falar em vibrações de
alta frequência (comprimento de onda curto)
e de baixa frequência (comprimento de onda
longo) para ambos. O som agudo a voz de
uma soprano é produzido por vibrações de
alta frequência e comprimento de onda curto.
Os sons de baixa frequência e comprimento de
onda longo são graves, como a voz do baixo.
No caso da luz, o vermelho (comprimento de onda longo) é o baixo; o amarelo é o barítono;
o verde é o tenor; o azul é o contralto; o violeta
(comprimento de onda curto) é a soprano.
Existem sons (chamados de ultrassom)
que são agudos demais para podermos ouvir.
Os morcegos podem ouvi-los e usam os ecos
para se localizar. Também há sons (chamados de infrassom) que não podemos ouvir porque
são baixos demais. Elefantes, baleias e outros
animais usam sons desse tipo para se comuni
car. As notas mais baixas em um grande órgão de igreja são tão graves que quase não pode
mos ouvi-las. Temos a impressão de ''senti-las''
em vibrações por todo o corpo. O conjunto dos
sons que nós, humanos, podemos ouvir está
situado em uma faixa de frequência interme
diária, entre o ultrassom, que é alto demais
para nós, e o infrassom, que é grave demais.
1 56
lf 11111n11n111nn111m
O mesmo vale para a luz. Nas co
res, o equivalente a um guincho de mor
cego em ultrassom é o ultravioleta, que
significa ''além do violetà: Não podemos
ver a luz ultravioleta, mas os insetos po
dem. Para atrair os responsáveis por sua
polinização, certas flores têm listras ou
outros padrões que só podem ser vistos
na faixa ultravioleta de comprimento de
onda. Os olhos dos insetos podem ver
esses desenhos, mas nós precisamos de
instrumentos que os ''traduzam'' para a parte do espectro que somos capazes de
enxergar. A flor à direita parece amarela
para nós, lisa. Mas se a fotografarmos à
luz ultravioleta veremos listras. O padrão
da figura inferior na verdade não é bran -
co, mas ultravioleta. Já que não podemos
vê-lo, temos de representá-lo com uma
cor que conseguimos enxergar. A pessoa que fez a foto decidiu usar preto e bran
co, mas poderia ter escolhido azul.
O espectro prossegue em frequên
cias cada vez mais altas, muito além do
ultravioleta, muito além até do que os
insetos enxergam. Os raios X podem ser
imaginados como ''luz'' ou mesmo como
um ''tom'' mais alto que o ultravioleta. E
os raios gama são ainda mais altos.
Do outro lado do espectro, os inse
tos não enxergam o vermelho, mas nós,
sim. Abaixo dele há o ''infravermelho':
que não enxergamos, embora possamos
sentir seu calor (algumas cobras são es
pecialmente sensíveis a ele, e o usam para detectar presas) . Suponho que uma
abelha possa chamar o vermelho de ''in
fralaranjà: ''Notas mais graves'' são mi
cro-ondas, que usamos para cozinhar. As ondas de rádio são ainda mais ''graves''
(comprimentos de onda mais longos) .
•
• � ..
•
1 5 7
l
.1.--
(
-.....(
)
)
)
)
/ É surpreendente que a luz que os humanos
podem enxergar o espectro ou ''arco-íris'' de
cores visíveis entre o relativamente '<agudo'' vio-
leta e -o relativamente <<grave'' vermelho seja
e uma minúscula faixa de um imenso espectro que
vai dos raios gama no extremo agudo às ondas
de rádio no extremo grave. Quase todo o espec-
tro é invisível aos nossos olhos.
----. ,) O Sol e as estrelas bombardeiam raios ele
tromagnéticos em todas as faixas de frequência
ou �<tons': das ondas de rádio na ponta do ('baixo''
até os raios cósmicos na ponta da '<soprano': Em -hora não enxerguemos fora da pequena faixa de
----.i(_ luz visível do vermelho ao violeta, temos instru-
)
)
---� mentos capazes de detectar esses raios. A foto da
___ ( supernova no capítulo 6 foi tirada usando raios X emitidos por ela. As cores na foto são falsas,
como a que usamos para mostrar o desenho da
flor. Na foto da supernova, falsas cores foram
escolhidas para designai· diferentes comprimen -tos de ondas de raios X. Os cientistas chamados radi0astrônomos tiram <'fotografias'' de estrelas
usando ondas de rádio em vez de ondas de luz
•
ou raios X. O instrumento que eles empregam chama-se radiotelescópio. Outros cientistas fo
tografam o céu da outra ponta do espectro, na
faixa dos raios X. Aprendemos coisas diferentes
sobre as estrelas e sobre o universo recorrendo a partes distintas do espectro. O fato de que nos
sos olhos só podem ver através de uma minús
cula fresta no meio do vasto espectro e de que
só podemos ver uma estreita faixa da imensa va
riedade de raios que os instrumentos científicos
detectam é uma esplêndida ilustração do poder
da ciência para despertar nossa imaginação, um
magnífico exemplo da magia da realidade.
No próximo capítulo aprenderemos algo
ainda mais fascinante a respeito dos arco-íris.
Separar em um espectro a luz proveniente de
uma estrela distante pode nos dizer não só do
que essa estrela é feita, mas também que idade
ela tem. E são dados desse tipo evidências que
resultam do arco-íris que nos permitem cal
cular a idade do universo e quando tudo come
çou. Pode parecer improvável, mas no próximo
capítulo você verá que não é. •
1 5 9
•
-I •
' -, .... , ,..
- '
• \, \ ......
""' -
L... , .., I _, L / I -
\ • ./
OMECEMOS COM um mito
.__... africano de uma tribo banta
do Congo, os boshongos. No prin
cípio não havia terra, apenas escu
ridão, água e, muito importante, o deus Bumba. Esse deus começou a
se sentir mal e vomitou o sol. A luz·
do astro dissipou as trevas e seu
calor secou boa parte das águas,
aparecendo então a terra firme.
Bumba, ainda passando mal, vo
mitou a lua, as estrelas, os animais
e as pessoas.
Muitos mitos de origem chi
nesa envolvem um personagem
chamado Pan Gu, às vezes retra
tado como um gigante peludo
com cabeça de cão. Vejamos um dos mitos envolvendo Pan Gu. No
princípio, não havia distinção en
tre céu e terra: era tudo uma massa
gosmenta em volta de um grande
ovo preto. Encolhido dentro desse
ovo estava Pan Gu, que dormira
ali por 18 mil anos. Quando finalmente acordou, ele quis escapar,
então pegou seu machado, que
brou a casca do ovo e saiu. Parte
do conteúdo do ovo era pesada,
afundou e acabou se tornando a terra. Outra parte era leve, subiu
flutuando e se tornou o céu. A ter
ra e o céu então incharam numa
proporção de três metros por dia
dos 18 mil anos em que Pan 'Gu
dormiu.
A D o
Q
D o
•
•
1 6 1
•
•
Em algumas versões da história, Pan Gu em -
purrou o céu e a terra para separá-los, ficou
exausto com o esforço e morreu. Vários pedaços
dele transformaram-se então no universo que
conhecemos. Sua respiração tornou-se o vento; sua voz, o trovão; seus olhos tornaram-se a lua
e o sol; seus músculos viraram terra cultivável
e suas veias se tranf armaram em estradas. Seu
suor tornou-se a chuva; seus cabelos, as estre
las. Os humanos descendem das pulgas e dos
piolhos que viviam em seu corpo.
Essa história de Pan Gu é bem parecida
com o mito grego de Atlas, que também segu
rava o céu (curiosamente, as imagens e estátuas
de Atlas costumam representá-lo carregando a
Terra inteira em vez do céu) .
1 62 •
• Agora, um dos muitos mitos indianos sobre
a origeni do mundo. Antes do princípio do tem
po, havia um imenso vazio em forma de um ocea -no escuro, com uma serpente gigantesca enrolada
na superfície. Nas espirais da serpente dormia o
senhor Vishnu. Um dia, Vishnu acordou com um
zumbido grave vindo do fundo do vazio oceânico,
e um pé de lótus cresceu do seu umbigo. No meio
da flor estava sentado Brahma, seu servo. Vishnu ordenou a Brahma que criasse o mundo,
e ele obedeceu. Sem problemas! E, já que
estava com a mão na massa, criou todos
os seres vivos também. Moleza!
O que me decepciona em todos
esses mitos sobre a origem é que eles
começam pressupondo a existência de algum tipo
de ser vivo antes que o próprio universo surgis
se Bumba, Brahma ou Pan Gu, Unkulukulu (o
criador dos zulus), Abassie (Nigéria) ou ''O Ve
lho no Céu'' (da tribo de nativos americanos do Canadá salish). Você não acha que algum tipo de
universo teria de vir primeiro, para fornecer um
lugar para o espírito criador poder trabalhar? Ne-
nhum desses mitos explica como foi que o cria
dor do universo (e geralmente é um criador, e não uma criadora) veio a existir.
Com isso, ficamos na mesma. Vejamos então o que sabemos a respeito
da verdadeira história de como o uni
verso começou .
• º º o
Oº
•
•
Outra coisa importante é que podemos
medir a distância que nos separa de cada galá
xia. Como? Aliás, como sabemos a distância en
tre as coisas no universo? Para as estrelas mais
próximas, o melhor método que temos usa o que
chamamos de ((paralaxe': Erga seu dedo diante do rosto e olhe para ele com o olho esquerdo fecha
do. Agora abra o olho esquerdo e feche o direito.
Continue trocando os olhos e notará que a po
sição aparente do seu dedo fica saltando de um
lado para outro. Isso se deve à diferença entre os pontos de vista dos dois olhos. Aproxime mais o dedo do rosto e os saltos serão maiores. Afaste os
dedos e eles diminuirão. Tudo o que você precisa
saber é a que distância estão seus olhos, e poderá
calcular a distância dos olhos ao dedo pelo tama -nho dos saltos. É assim que se usa o método da
paralaxe para estimar distâncias.
Agora, em vez de olhar para o dedo, olhe
para uma estrela no céu, fechando ora um olho,
ora outro. Ela não saltará. Está distante demais.
Para fazer uma estrela ((saltar'' de um lado para o outro, seus olhos teriam de estar separados por
milhões de quilômetros! Como podemos obter
um efeito equivalente ao de alternar olhos sepa
rados por milhares de quilômetros? Aproveitan
do o fato de a órbita da Terra em torno do Sol
ter um diâmetro de aproximadamente 300 mil
quilômetros. Medimos a posição de uma estre
la próxima, tendo outras estrelas como pano de
fundo. Seis meses depois, quando a Terra estiver do lado oposto de sua órbita, voltamos a medir a posição aparente da estrela. Se for uma estrela
bem próxima, sua posição aparente terá ((saltado':
A partir do comprimento do salto, é fácil calcular a que distância a estrela se encontra.
•
Infelizmente, o método da paralaxe só fun
ciona para estrelas próximas. Para estrelas distan -
tes, e certamente para outras galáxias, seria preci
so que nossos dois ((olhos'' estivessem separados por muito mais que 300 mil quilômetros. Temos de encontrar outro método. Um jeito seria medir
a intensidade do brilho da galáxia: uma galáxia
mais distante não deveria ser menos brilhante
do que uma mais próxima? O problema é que as
duas galáxias poderiam diferir muito na intensidade de brilho. É como estimar a que distância está uma vela acesa. Algumas chamas de vela são
mais brilhantes que outras. Como saber, então, se
estamos olhando para uma vela brilhante e dis
tante ou para uma menos brilhante e próxima?
Felizmente, os astrônomos têm evidências de que certas estrelas são o que chamam de ''vela padrão': Eles têm dados suficientes sobre elas para
saber qual é a intensidade do seu brilho antes que
comece sua longa jornada até nossos telescópios
- não o brilho que enxergamos, mas sua lumi
nosidade real, a intensidade de sua luz (poderia ser de seus raios X ou qualquer outro tipo de ra -
diação que conseguimos medir). Também sabem
como identificar essas ''velas'' especiais. Assim,
sempre que são capazes de encontrar pelo menos
uma delas numa galáxia, os astrônomos podem
usá-la, com a ajuda de cálculos matemáticos, para
estimar a que distância a galáxia se encontra.
Temos, portanto, o método da paralaxe para
medir distâncias bem curtas e uma ''escadà' de
vários tipos de velas-padrão que podemos usar
para medir um conjunto de distâncias cada vez
maiores, chegando a galáxias muito distantes.
•
Arco-íris e deslocamento
Agora sabemos o que é uma galáxia e como cal
cular a que distância de nós está. Para a próxima
etapa, precisamos usar o espectro luminoso, des
crito no capítulo 7. Uma vez, pediram que eu es
crevesse um texto para um livro em que cientistas
convidados deveriam dizer qual achavam que era
a invenção mais importante de todos os tempos.
Foi divertido, mas, como cheguei atrasado, todas
as invenções óbvias já haviam sido escolhidas: a
roda, a prensa tipográfica, o telefone, o computa
dor etc. Decidi então falar sobre um instrumento
que provavelmente ninguém teria escolhido e que
sem dúvida é importantíssimo, muito embora
poucas pessoas já o tenham usado (confesso que
nunca o usei): o espectroscópio.
O espectroscópio é uma máquina de arco
-íris. Quando acoplado a um telescópio, ele cap
ta a luz de uma estrela ou galáxia e a separa em
um espectro, como Newton fez com o prisma. Só
que ele é mais refinado que isso, pois permite fa
zer medições exatas ao longo do espectro da luz
estelar. Medições do quê? O que há para medir
em um arco-íris? Pois agora é que começa a ficar
realmente interessante. A luz de diferentes estre-
las produz ''arcos-íris'' que diferem de modos
muito característicos, e isso pode nos
revelar muito a respeito das estrelas.
Quer dizer que a luz das estrelas possui cores
que nunca vimos na Terra? Não. Você já viu aqui na Terra todas as cores que seus olhos são capa
zes de enxergar. Ficou decepcionado? Eu fiquei,
quando me dei conta disso pela primeira vez. Na
infância, eu adorava os livros de Hugh Lofting
com as histórias do Doutor Dolittle. Em um de
les, o doutor voa para a Lua e vê, encantado, uma enorme variedade de cores novas, jamais vistas
por olhos humanos. Eu achava o máximo. Para
mim, era um símbolo da suposição emocionante
de que a Terra podia não ser um exemplo típico de tudo o que há no universo. Infelizmente, em
bora a ideia fosse interessante, não era verdadeira - não podia ser. Sabemos disso graças à desco
berta de Newton de que as cores que vemos estão
contidas na luz branca e são reveladas quando ela
é separada por um prisma. Não existem cores fora
do conjunto a que estamos habituados. Os artistas podem criar um sem-número de tons e matizes,
mas são combinações das cores básicas que com
põem a luz branca. As cores que vemos em nossa •
•
cabeça são, na verdade, apenas rótulos criados
pelo cé.rebro para identificar a luz de diferentes
comprimentos de onda, e encontramos todo o
conjunto de comprimentos de onda aqui na Terra. Nem a Lua nem as estrelas têm surpresas a nos
oferecer no departamento das cores. Uma pena.
Então o que eu quis dizer quando afirmei que as estrelas produzem arcos- íris com dif eren -
ças que podemos medir com um espectroscópio?
Acontece que, quando a luz de uma estrela é se
parada pelo espectroscópio, estranhos padrões de linhas pretas e finas aparecem em lugares mui
to específicos no espectro. Ou às vezes as linhas não são pretas, e sim coloridas, e o fundo é preto
(uma diferença que explicarei daqui a pouco). O
padrão de linhas lembra um código de barras,
como aqueles que vemos nas lojas para identifi
car as mercadorias quando passamos no caixa. As estrelas têm arcos-íris iguais. O que difere é o
padrão das linhas vistas no espectro de cada uma. E esse padrão é um tipo de código de barras, pois
nos diz muito a respeito da estrela e de que é feita.
Não é só a luz das estrelas que possui esse
((código de barras''. As luzes da Terra também, por isso conseguimos investigar em laboratório
o que o produz e descobrimos que são diferentes
elementos. O sódio, por exemplo, apresenta linhas
destacadas na parte amarela do espectro. A luz de
sódio (produzida por um arco elétrico em vapor
de sódio) é amarelada. Os cientistas físicos enten-
dem o porquê, mas eu não, pois sou um cientista
biólogo que não compreende a teoria quântica.
Quando eu era menino e estudava em Sa
lisbury, no sul da Inglaterra, fascinava-me ver o
boné vermelho de meu uniforme escolar se trans
formar quando eu passava sob a luz amarela das
lâmpadas de rua. Ele se tornava marrom amare
lado. O mesmo acontecia com os ônibus verme
lhos. Isso porque, como muitas cidades inglesas
da época, Salisbury usava lâmpadas de vapor de
sódio na iluminação das ruas. Esse tipo de lâmpa -da emite luz apenas nas estreitas regiões do espec
tro abrangidas pelas linhas características do só
dio, e suas linhas mais brilhantes aparecem mais
na faixa amarela. Para todos os efeitos, as luzes de
sódio brilham com uma luminosidade amarela,
muito diferente da luz solar ou da luz vagamen -te amarelada de uma lâmpada elétrica comum.
Como quase não havia vermelho na luz forneci
da por aquelas lâmpadas, nenhuma luz vermelha
podia ser refletida no meu boné. Se você agora
está se perguntando o que é que faz um ônibus
ou um boné ser vermelho, saiba que as moléculas
da tinta absorvem a maior parte da luz de todas as cores, exceto vermelho. Assim, sob a luz bran
ca, que contém todos os comprimentos de onda,
a luz vermelha é a mais refletida. Sob as lâmpadas
de vapor de sódio da iluminação de rua não há
luz vermelha a ser refletida daí a cor marrom
amarelada.
•
1 7 1
O sódio é apenas um exemplo. Você deve se lem
brar, do capítulo 4, de que cada elemento tem seu
número atômico exclusivo, dado pelo número de
prótons em seu núcleo (que também é o número
de elétrons em sua órbita). Pois bem: por razões
ligadas às órbitas dos elétrons, cada elemento tem seu efeito exclusivo sobre a luz, exclusivo como
um código de barras . . . De fato, um código de
barras é uma ótima comparação para o que é o
padrão de linhas no espectro da luz estelar. O jei
to de saber quais dos 92 elementos que ocorrem na natureza estão presentes em uma estrela é se
parar a luz dela com o espectroscópio e examinar
as linhas do código de barras do espectro.
Na internet, há um site onde você pode es
colher qualquer elemento e ver seu código de
barras espectral: <http://bit.ly/MagicofReality2>.
Basta selecionar na barra deslizante o elemento
que deseja ver. Eles estão dispostos na ordem dos
números atômicos, a partir do hidrogênio.
Por exemplo, no alto da página vemos a
imagem do hidrogênio, o elemento 1 (porque tem
apenas um próton). Você pode ver que ele produz
quatro barras, uma na parte violeta do espectro,
uma na parte azul-escura, uma na azul-clara e
uma na vermelha (os comprimentos de onda das
cores ficam na parte superior da figura).
Para entender as figuras nesse site, precisa
mos esclarecer dois detalhes que poderiam gerar
confusão. Primeiro, repare nos dois modos como as barras aparecem: como linhas coloridas sobre
um fundo preto (na parte superior da figura) e
como linhas pretas sobre um fundo colorido (na
parte inferior da figura). São chamados espectro
de emissão (as linhas coloridas sobre fundo pre
to) e espectro de absorção (pretas sobre colorido).
Qual deles obteremos depende de o elemento em
questão estar luminoso (como quando o elemento sódio brilha em uma lâmpada de sódio na rua)
ou barrando a passagem da luz (como frequente
mente ocorre quando um elemento está presente
numa estrela). Não discutirei aqui essa distinção.
O importante é que as barras aparecem nos mes
mos lugares ao longo do espectro em ambos os casos. O padrão de código de barras é o mesmo,
para qualquer elemento, independentemente de
as linhas serem pretas ou coloridas.
Outro detalhe complicador é o fato de algu
mas barras serem muito mais proeminentes do
que outras. Quando olhamos a luz de uma estrela
com um espectroscópio, geralmente vemos ape
nas as barras que se destacam muito. Esse site, no entanto, mostra todas as linhas, inclusive as
mais tênues, que podemos ver no laboratório mas
normalmente não se evidenciam na luz estelar. O
sódio é um bom exemplo. Para fins práticos, a luz
dele é amarela, e suas barras proeminentes apare
cem na parte amarela do espectro: você pode esquecer as outras barras, embora seja interessante
que elas estejam lá, pois tornam o padrão ainda
mais parecido como de um código de barras.
Eis o espectro de emissão do sódio, mos
trando as três linhas mais destacadas do código
de barras. Veja como o amarelo predomina.
Portanto, como cada elemento tem um pa
drão distinto de código de barras, podemos saber
quais estão presentes numa estrela examinando
sua luz. Isso é difícil, tenho de admitir, pois os có
digos de barras de elementos distintos tendem a
se amontoar. Mas há modos de separá-los. Que
ferramenta maravilhosa é o espectroscópio!
Fica ainda melhor. O espectro do sódio ao
pé da página oposta é o que você vê se olhar para
a luz de uma lâmpada de rua em Salisbury ou para uma estrela não muito distante. A maioria das estrelas que vemos por exemplo, as estrelas das
constelações do zodíaco estão em nossa galá
xia. E a figura aqui mostrada do espectro da luz
do sódio é o que você verá se olhar para qualquer
uma delas. Mas, se olhar o espectro do sódio vin -
do de uma estrela de outra galáxia, obterá uma imagem diferente. No alto desta página vemos o
padrão do código de barras da luz do sódio prove
niente de três lugares: da Terra (ou de uma estrela
próxima), de uma estrela distante em uma galáxia
próxima e de uma galáxia muito distante.
Observe primeiro o padrão de código de barras da luz de sódio da galáxia distante (ima
gem inferior) e compare com o produzido pela
luz de sódio na Terra (imagem superior). Você vê
o mesmo padrão de barras, separadas pela mesma
distância. Só que o padrão está mais próximo do
extremo vermelho do espectro. Então como sabemos que se trata do sódio? Porque o padrão das
distâncias entre as barras é o mesmo. Isso pode
não parecer totalmente convincente se aconteces
se apenas com o sódio. Mas é assim com todos
os elementos. Vemos o mesmo padrão de espa
çamento, característico do elemento escolhido,
porém deslocado como um todo no espectro em
direção à ponta vermelha. E mais: para qualquer galáxia, todos os códigos de barras mudam a mes
ma distância ao longo do espectro.
Observe agora a imagem do meio, que mostra o código de barras do sódio na luz de uma
galáxia mais próxima de nós do que as galáxias
muito distantes de que falei no parágrafo anterior,
porém mais distante do que as estrelas na Via Lác
tea. Você verá um deslocamento intermediário. O
padrão de espaçamento é o mesmo, pois ele é a
assinatura do sódio, mas não está tão deslocado.
A primeira linha está deslocada no espectro para
mais longe do azul-escuro, mas não vai até o ver
de, só até o azul-claro. E as duas linhas no amarelo (que se combinam para produzir a cor das lâm
padas de rua em Salisbury) estão deslocadas na
mesma direção, no sentido da ponta vermelha do
espectro, porém não alcançam a faixa vermelha.
Vão apenas até o começo da laranja.
O sódio é só um exemplo. Qualquer elemento mostra o mesmo deslocamento em direção ao
vermelho no espectro. Quanto mais distante a galáxia, maior o deslocamento. É o ''deslocamen -
to de Hubble'', descoberto pelo grande astrôno
mo americano Edwin Hubble (que também deu
nome, após sua morte, ao telescópio Hubble o qual foi usado para fotografar as galáxias muito
distantes mostradas na página 167) . Também é
chamado de ''deslocamento para o vermelho'',
pois o deslocamento ocorre na direção dessa cor. •
1 73
Voltando até o Big Bang
O que significa esse deslocamento para o verme
lho? Felizmente, os cientistas entendem bem essa
questão. É um exemplo do chamado ((desvio Dop
pler': O desvio Doppler pode ocorrer sempre que
houver ondas. E a luz, como vimos no capítulo
anterior, consiste em ondas. Ele também é cha
mado de ((efeito Doppler': e estamos mais fami
liarizados com ele no contexto das ondas sono
ras. Quando você está na beira da estrada vendo
os carros passarem em alta velocidade, o som do
motor de cada um parece tornar-se mais grave à
medida que ele se afasta. Você sabe que o tom do
1 74
•
motor do carro é constante. Então, por que parece se tornar mais grave? Por causa do efeito Doppler.
E a explicação para isso vem a seguir.
O som viaja pelo ar em forma de ondas de
mudança da pressão do ar. Quando você ouve a
nota de um motor de carro ou de um clarim, que
é mais agradável que o som de um motor, as on
das sonoras viajam pelo ar em todas as direções a partir da origem do som. Sua orelha está numa
dessas direções e capta as mudanças na pressão
do ar produzidas pelo clarim, que seu cérebro
ouve como um som. Não imagine moléculas de •
•
ar flutuando do clarim até sua orelha. Não é nada
disso. Isso seria vento, e o vento viaja em uma
única direção, ao passo que as ondas sonoras se
propagam em todas as direções, como as ondas
na superfície de um lago quando você joga uma
pedra na água.
O tipo de onda mais fácil de compreender é a ''ola'' (acima): nas arquibancadas de um grande
estádio de futebol, cada pessoa se levanta e senta
imediatamente depois de a pessoa que está de um dos lados (o esquerdo, por exemplo) ter feito o
mesmo. Uma onda de gente se levantando e sen-
tando dá rapidamente a volta por todo o estádio.
Ninguém sai do lugar, mas a onda viaja. Aliás, ela
se desloca mais depressa do que uma pessoa poderia conseguir correndo.
O que se propaga no lago é uma onda de
mudanças de altura na superfície da água. Ela se
constitui uma onda porque as moléculas de água
em si não se afastam da pedra. Elas apenas sobem
e descem, como as pessoas nos estádios. Nada
viaja para longe da pedra. Apenas parece ser assim porque o sobe e desce da água acontece de dentro para fora, com o centro na pedra.
•
1 75 •
•
•
Com as ondas sonoras é um pouco diferen
te. Nesse caso, o que viaja é uma onda de mudança na pressão do ar. As moléculas de ar movem
-se um pouquinho, para a frente e para trás em
relação ao clarim ou seja qual for a fonte do som.
Ao fazer isso, colidem com moléculas de ar vizi
nhas e desencadeiam nelas o mesmo movimento.
Por sua vez, elas colidem com suas vizinhas, e o
resultado é que uma onda de colisão de molécu -
las ou seja, uma onda de mudança de pressão
- viaja a partir do clarim em todas as direções.
E é a onda, e não as moléculas de ar, que viaja do
clarim até sua orelha. Ela viaja a uma velocidade fixa, independentemente de a fonte do som ser
um clarim, uma voz ou um carro: no ar, a aproxi
madamente 1200 km/h (quatro vezes mais rápi
do debaixo d'água e até mais depressa em alguns
sólidos). Se você tocar uma nota mais aguda no
clarim, a velocidade à qual a onda viaja permane
ce a mesma, porém a distância entre as cristas de
onda (o comprimento de onda) diminui. Tocando
uma nota grave, as cristas tornam-se mais espa
çadas, mas a onda continua viajando à mesma ve
locidade. Portanto, notas mais agudas têm com -
primento de onda mais curto que notas graves. É isso que as ondas sonoras são. Agora, o
efeito Doppler. Imagine que um clarim, numa
encosta de montanha coberta de neve, toca uma nota longa. Você passa sentado em um trenó em
alta velocidade (escolhi um trenó porque é silen
cioso e assim você pode ouvir o clarim) . O que
ouvirá? As sucessivas cristas de onda se afastam
do clarim a uma distância definida umas das ou -
tras, dada pela nota que o clarim toca. Mas, quan
do você se aproxima rápido do clarim, sua orelha
vai ''engolindo'' depressa as sucessivas cristas de
onda, a uma velocidade maior do que se estivesse
1 76
parado na encosta. Por
isso, a nota tocada pare
cerá mais aguda do que real
mente é. Depois que você passar
pelo clarim e se afastar, seu ouvido escutará as sucessivas cristas de onda a
uma velocidade menor (elas parecerão mais espaçadas porque viajam na mesma direção que seu trenó), e assim o tom da nota parecerá mais
grave do que é. O mesmo ocorre quando sua ore
lha está parada e a fonte do som se move. Dizem
que, para demonstrar sua teoria (não sei se é ver
dade, mas é uma história interessante), o cientista austríaco que descobriu o efeito, Christian Dop
pler, contratou uma banda de metais para tocar
• • •
. ' '
•
•
1 77
..
-
•
' 1.
' -
..
J , ...
1 78
•
-
, •
""' •
� ..
' .,/'
•
•· • p
•
•
•
num vagão de trem aberto. A música caiu subita
mente de tom quando o trem passou pelos ouvin
tes impressionados.
As ondas de luz são diferentes em mais de um aspecto. Não são bem como uma ola, nem como as ondas sonoras, mas também têm sua versão do
efeito Doppler. Lembre-se de que a ponta verme
lha do espectro tem comprimento de onda mais
longo do que a ponta azul, e o verde está no meio.
Suponha que os músicos da banda de Doppler •
estejam todos de uniforme amarelo. Conforme o trem vem na sua direção, seus olhos ((engolem'' as cristas de onda a uma velocidade mais alta do que
se ele estivesse parado. Ocorre, assim, uma ligeira
mudança na cor do uniforme em direção à pa1·te
verde do espectro. Mas, quando o trem passa por
você e se afasta, o oposto acontece, e o uniforme
da banda lhe parecerá um pouco mais avermelha
do que antes.
Há apenas uma falha nesse exemplo. Para que
você notasse a mudança em direção ao azul ou ao vermelho, o trem teria de estar viajando a milhões de quilômetros por hora. Nenhum trem é veloz o bastante para que o efeito Doppler sobre a cor seja
notado. Mas as galáxias são. A mudança em dire
ção ao extremo vermelho do espectro, que você
pode ver claramente nas posições das linhas de
código de barras do sódio na página 172, demons
tram que galáxias muito distantes estão se afastan
do de nós a centenas de milhões de quilômetros
por hora. E, quanto mais distantes estão (distância
que é medida pelas ((velas padrão'' já menciona
das), maior a velocidade desse afastamento (maior
o deslocamento para o vermelho). •
•
•
TÉ ONDE SEI, mitos antigos sobre vida em
outras partes do universo são raros, se é que existe algum. Talvez porque a própria ideia da
existência de um universo imensamente maior do
que o nosso mundo seja recente. Só no século xv1
cientistas entenderam direito que a Terra orbita o
Sol e existem outros planetas. Mas as distâncias e o número de estrelas, sem falar nas outras galá
xias, eram desconhecidos até há pouco . . Também
demoramos a perceber que ((para cima'' em uma
'Ç '\'-... � o ---===-::.:·-:::..-.- 7 V �
4 • . .. ... �
parte do mundo (por exemplo, Bornéu) é ''para baixo'' em outra parte (neste caso, o Brasil). Antes disso, pensava-se que ''para cima'' era a mesma direção em qualquer lugar, a
direção da morada dos deuses, ''lá no céu''.
•
Há muito tempo existem lendas e crenças sobre estranhas
criaturas inumanas em nosso meio: demônios, espíritos, gênios, fantasmas. . . uma lista e tanto. Mas, quando pergunto ''Estamos
sozinhos?': o que estou indagando é ''Existem formas de vida extra
terrestres, vida em outros mundos, em outras partes do universo? ''.
Como eu disse, histórias de alienígenas entre tribos primitivas são di
fíceis de encontrar. Já entre habitantes da cidade, são bem comuns. Es
ses mitos modernos são interessantes porque, ao contrário dos antigos,
podemos vê-los começar. Mitos são inventados diante dos nossos olhos. Por isso, neste capítulo todos os mitos serão modernos.
Na Califórnia, em março de 1997, um culto religioso chamado Heaven's
Gate [Portal do céu] teve um triste fim quando seus 39 membros tomaram ve
neno. Eles se mataram porque acreditavam que um disco voador viria do espaço
e levaria suas almas para outro mundo. Na época, um cometa brilhante cha
mado Hale-Bopp estava bem visível no céu, e os seguidores desse cul-
to acreditavam porque seu líder espiritual lhes dissera que uma espaçonave alienígena o acompanhava. Compraram um
telescópio para observá-la, mas o devolveram à loja porque
''não funcionava''. E como sabiam que não funcionava? Ele
não mostrava a nave espacial!
. e:-
'1�---l
___ •. --��--- ---��
•
• •
•
•
--
• •
Será que o líder do culto, um sujeito chamado Marshall Ap
plewhite, acreditava na bobagem que ensinou a seus seguidores? Provavelmente sim, já que também tomou veneno. Portanto, parece
\ -
que estava sendo sincero! Muitos líderes de culto só estão inte
ressados em se apossar das mulheres de sua congregação,
mas Marshall Applewhite era um dos vários membros
do grupo que tempos antes haviam se submetido à castração. Então o sexo não estava entre suas prin-
. . '""
c1pa1s preocupaçoes.
-
\ \
•
/ ....... . ' ' , '
-
-
-
/ /
J \
• • ' 1
•
-
•
Uma coisa que gen
te assim parece ter em
comum é o gosto pela
ficção científica. Os mem
bros do Heaven's Gate eram obcecados pela série Jornada nas
estrelas. Evidentemente, o que não
falta são histórias de ficção científica so
bre criaturas de outros planetas, mas a maioria
de nós sabe que se trata apenas disso: ficção, his
tórias imaginadas, inventadas, e não relatos de coisas que realmente aconteceram. No entanto, existem muitas pessoas que têm
certeza absoluta e inabalável de que foram
capturadas (abduzidas) por alienígenas.
Tamanha é sua ânsia por acreditar nisso
que se convencem com base nas mais insignifi
cantes <<evidências': Um homem, por exemplo, acreditava ter sido abduzido só porque sofria
sangramentos nasais constantes. Sua teoria era que
extraterrestres haviam instalado um radiotransmis
sor no seu nariz para espioná-lo. Ele também pensava ser
parte alienígena porque era um pouco mais moreno que seus
pais. Um número surpreendentemente grande de americanos,
muitos deles normais em todo o resto, acredita sinceramente que
homenzinhos cinzentos de olhos e cabeças grandes os levaram
para bordo de um disco voador e os submeteram a experimentos
horríveis. Existe toda uma mitologia sobre ((abdução por alienígenas'',
· tão rica, imaginosa e detalhada quanto a mitologia da Grécia Antiga com os
deuses do Olimpo. Só que esses mitos sobre abdução são recentes, ·e podemos conversar com gente que acredita ter sido abduzida. São pessoas aparentemente normais, equilibradas, sensatas, que afirmam ter visto alienígenas com seus
próprios olhos. Descrevem como eram os extraterrestres e o que disseram en
quanto faziam seus perversos experimentos e enfiavam agulhas nas vítimas
(os alienígenas sempre falam a língua dos terráqueos abduzidos, é claro !) .
1 84
•
Susan Clancy é uma entre muitos psicólogos que fizeram estudos deta
lhados ·sobre pessoas que dizem ter sido abduzidas. Nem todas têm uma re
cordação clara do evento, ou mesmo algum tipo de recordação. Explicam isso
alegando que os extraterrestres devem ter empregado alguma técnica diabólica
para apagar suas memórias depois de terminar os experimentos em seu corpo.
Algumas procuram um hipnotizador ou um psicoterapeuta para ajudá-las a
''recuperar as memórias perdidas':
A propósito, essa história de ''recuperar memórias per
didas'' é interessante. Às vezes, podemos pensar que nos
recordamos de um incidente real, mas estamos apenas
lembrando outra memória . . . e assim por diante, voltando até uma memória que se refere a um incidente que pode ou não ter sido real. Memórias de memó-rias de memórias podem se tornar progressivamente
distorcidas. Há boas evidências de que algumas das
nossas mais vívidas recordações são falsas memó
rias. E falsas memórias podem ser deliberadamente inseridas por ''terapeutas'' inescrupulosos.
A síndrome da falsa memória nos ajuda a enten
der por que alguns dos que pensam ter sido abduzidos
dizem ter uma recordação muito vívida do incidente. O
que em geral ocorre é que a pessoa fica obcecada por ex-
traterrestres de tanto ver notícias sobre outras ''abduções''. Fre-
quentemente, como eu já disse, essas pessoas são fãs de Jornada nas
estrelas ou de outras histórias de ficção científica. Em geral, os alie
nígenas que pensam ter visto são parecidíssimos com os retratados
nos programas de televisão sobre seres extraterrestres e fazem o
mesmo tipo de ''experimentos'' vistos na tevê.
Uma coisa que também pode ocorrer é a pessoa passar
por uma aterrorizante experiência chamada paralisia do
sono. Não é incomum. Talvez você mesmo já tenha sen
tido isso, e nesse caso espero que seja menos assustador
da próxima vez que acontecer. Normalmente, quando
estamos adormecidos e sonhando, nosso corpo fica
paralisado. Talvez seja para impedir que os múscu
los funcionem de acordo com os sonhos e an-
demos dormindo (embora isso aconteça
às vezes) . Normalmente, quando acor-
damos e o sonho desa-
parece, a paralisia some e podemos mover os
músculos de novo.
1 85
•
•
Às vezes, porém, o retorno da mente ao es
tado consciente acontece antes de os músculos •
voltarem à vida, e essa situação é chamada de
paralisia do sono. É assustador, como você pode
imaginar. A pessoa está desperta, pode ver seu
quarto e tudo o que há em volta, mas não consegue se mexer. Muitas vezes essa paralisia vem
acompanhada de apavorantes alucinações. A pes
soa se sente cercada por um terrível perigo que não sabe definir. As vezes chega a ver coisas que
não estão presentes, como em um sonho. E, como
nos sonhos, para ela tudo parece real. Ora, se urna pessoa sofre uma alucinação
enquanto está com paralisia do sono, de que tipo
poderia ser? Um fã de ficção científica poderia
muito bem ver homenzinhos cinzentos de olhos
e cabeças grandes. Em outros séculos, antes do
surgimento da ficção científica, as pessoas talvez vissem assombrações, lobisomens, vampiros ou
até (se tivessem sorte) belos anjos.
O importante é que as imagens vistas duran
te a paralisia do sono não são de coisas ali pre
sentes, mas são conjuradas pela mente a partir
de temores passados, lendas ou ficções. Mesmo
quando não ocorre alucinação, a paralisia do sono
é tão assustadora que muitas das vítimas, quando
finalmente acordam, acreditam que algo horrível
aconteceu com elas. Se uma pessoa foi induzida a
acreditar em vampiros, talvez desperte acreditando piamente que um sugador de sangue a atacou. Quem foi induzido a acreditar em abduções por
extraterrestres pode acordar acreditando que foi
sequestrado por alienígenas e teve memória apa -
gada por eles .
O que costuma acontecer em seguida com
as vítimas de paralisia do sono é que, mesmo se
nessa ocasião não tiverem sofrido alucinações com alienígenas e experimentos medonhos, sua
reconstituição do que suspeitam ter aconteci
do pode, influenciada pelo medo que sentiram,
consolidar-se como uma falsa memória. Muitas
vezes esse processo é auxiliado por amigos e pa
rentes, que querem arrancar mais detalhes do que aconteceu e até dão a deixa com perguntas como
((Havia alienígenas? De que cor eles eram? Cin
za? Tinham olhos imensos corno nos filmes?'� Até
perguntas podem ser suficientes para implantar
ou consolidar uma falsa memória. Por isso, não ·
é de surpreender que uma pesquisa feita em 1992 tenha concluído que quase 4 milhões de america
nos diziam ter sido abduzidos por extraterrestres.
A psicóloga Sue Blackmore, minha amiga,
diz que a paralisia do sono também foi a mais
provável causa de horrores imaginados no passa
do, antes que a ideia dos extraterrestres se difun -
disse. Na época medieval, pessoas afirmavam ter
sido visitadas no meio da noite por um ('íncubo''
( demônio masculino que aparecia para fazer sexo
com uma mulher) ou um ('súcubo'' ( demônio f e
minino que aparecia para fazer sexo com um
homem). Um dos efeitos da paralisia do sono , , . e que, se a v1t1ma tentar se mover,
•
tem a impressão de que um peso segura seu corpo na cama. Isso facil
mente poderia ser interpretado pela vítima apavorada como uma agres
são sexual. Uma lenda norte-americanaa fala de uma ''velha megera''
que visita as pessoas durante a noite e se senta sobre o peito delas. Na
Indochina, há uma lenda sobre um fantasma cinzento que visita as pessoas à noite e as paralisa.
Portanto, temos dados para entender por que certas pessoas acre
ditam ter sido abduzidas por extraterrestres e podemos associar os mi
tos modernos sobre abduções aos mais antigos sobre íncubos e súcubos
lascivos ou vampiros com longos caninos que apareciam à noite para sugar sangue. Não existe evidência confiável de que nosso planeta algu
ma vez tenha sido visitado por seres do espaço (nem por íncubos, súcu
bos e outros demônios). Mas resta a questão de se existem ou não seres
vivos em outros planetas. O fato de não nos terem visitado não significa
que não existam. Será que o mesmo processo de evolução, ou quem
sabe um processo muito diferente, está em curso em outros planetas?
1 89
•
Quando um planeta se interpõe entre nós e sua
estrela, ela brilha um pouco menos, e às vezes
nossos instrumentos são sensíveis o bastante para
detectar essa diminuição de luminosidade. Até
agora, 1 1 0 planetas foram descobertos assim. E
existem ainda outros métodos, que permitiram detectar 35 planetas. Alguns foram detectados
por mais de uma dessas técnicas, e atualmente temos um total de 5 19 planetas detectados em ór
bita de estrelas, exceto o Sol, na galáxia.
Descobrimos que em nossa galáxia há planetas na maioria das estrelas onde procuramos.
Assim, supondo que nossa galáxia seja típica,
provavelmente a maioria das estrelas do univer
so tem planetas em sua órbita. O número aproxi
mado de estrelas em nossa galáxia é 1 00 bilhões,
e o número de galáxias no universo também é
aproximadamente esse. Isso significa um total
de estrelas por volta de 1 O mil bilhões de bilhões.
Cerca de 1 0% das estrelas conhecidas são desig
nadas pelos astrônomos como ''estrelas do tipo
solar': Estrelas que diferem muito do Sol, mesmo
quando têm planetas, provavelmente não susten -
tam vida por várias razões. Por exemplo, estrelas
1 90
muito maiores que o Sol tendem a não durar o su
ficiente antes de explodir. Mesmo se nos limitar
mos aos planetas em órbita de estrelas do tipo so
lar, provavelmente estaremos falando de bilhões
de bilhões e essa é uma estimativa por baixo. Mas quantos desses planetas em órbita do
('tipo certo de estrela'' têm probabilidade de ser
adequados à vida? A maioria dos planetas extras
solares descobertos até agora são ''Júpiteres': ou
seja, ((gigantes gasosos': compostos principalmen
te de gás sob alta pressão. Isso não surpreende, já que nossos métodos de detectar planetas em
geral não são sensíveis o bastante para apontar nada menor que Júpiteres. E os gigantes gasosos
não são adequados à vida como a conhecemos. É
claro que isso não significa que a vida como a co
nhecemos seja o único tipo de vida possível. Pode
ser que haja vida em Júpiter, embora eu duvide.
Desconhecemos que proporção desses bilhões de bilhões de planetas são corpos rochosos pareci
dos com a Terra, em vez de gigantes gasosos como
Júpiter. Mas, mesmo se a proporção for muito pe
quena, o número absoluto ainda será alto, pois o
total é imenso.
1 9 1
1 92
•
Cachinhos Dourados
A vida como a conhecemos depende da
água. Repito que devemos ter cuidado ao
fixar nossa atenção sobre a vida como a
conhecemos, mas por enquanto os exo
biólogos (cientistas que procuram vida fora da Terra) consideram a água essen
cial. Por isso, dedicam boa parte de seus
esforços a vasculhar o céu em busca de sinais dela. É muito mais fácil detectar água do
que vida. Achar água não significa que sem dúvida
haverá vida, mas é um passo nessa direção.
Para que vida como a conhecemos exista,
pelo menos parte da água tem de estar em forma líquida. Gelo não serve, nem vapor. Um exame
atento de Marte mostra indícios de existência de
água líquida no passado, talvez até no presente.
Vários outros planetas contêm ao menos um pou
co de água, ainda que não em forma líquida. Europa, uma das luas de Júpiter, é coberta de gelo,
e supõe-se que sob ele exista um mar de água lí
quida. Antes pensava-se que Marte era o melhor
candidato para a vida extraterrestre no sistema
solar, e um famoso astrônomo, Percival Lowell, até desenhou o que seriam canais entrecruzando
a superfície do planeta. Agora que naves espaciais
fotografaram Marte minuciosamente e pousaram
em sua superfície, descobrimos que esses canais
existem apenas na imaginação de Lowell. Hoje,
Europa tomou o lugar de Marte como principal
candidato à vida extraterrestre em nosso sistema
solar. A maioria dos cientistas, porém, acha que
devemos procurar mais longe. Dados sugerem
que a água não é rara em planetas extrassolares . •
1 93
Estrela
•
E quanto ao tamanho do planeta? Existe um
tamanho Cachinhos Dourados, nem grande nem
pequeno demais? A massa do planeta, para ser
mais rigoroso, tem grande impacto sobre a vida, por causa da gravidade. Um planeta com o mesmo diâmetro da Terra feito de ouro maciço teria
massa mais de três vezes maior. A atração gravi
tacional dele seria três vezes mais forte que aque
la à qual estamos habituados. Tudo pesaria mais
que o triplo, inclusive os seres vivos. Pôr um pé
na frente do outro seria um esforço imenso. Um
animal do tamanho de um camundongo precisa
ria de ossos grossos para sustentar seu corpo, e
seu andar seria pesado como o de um rinoceronte
em miniatura. Já um animal do tamanho de um
rinoceronte poderia sufocar sob o próprio peso.
Assim como o ouro é mais pesado que o ferro, o níquel e outras coisas de que a Terra é feita,
o carvão é muito mais leve. Um planeta de carvão do tamanho da Terra teria uma atração gravita
cional com apenas um quinto da força à qual es
tamos acostumados. Um animal do tamanho de
um rinoceronte poderia andar levemente, com
pernas finas e longas como as de uma aranha. E
animais muito maiores que dinossauros poderiam evoluir sem problemas, se o planeta correspondesse às outras condições. A gravidade da Lua
é aproximadamente um sexto da terrestre. É por
isso que os astronautas andavam daquele jeito es
quisito, aos pulos, e seus trajes volumosos davam
um efeito cômico. Se um animal evoluísse em um
planeta com gravidade tão fraca, seu físico seria muito diferente. A seleção natural garantiria isso.
Se a atração gravitacional fosse forte demais,
como em uma estrela de nêutrons um tipo de
estrela que sofre um colapso gravitacional , não
poderia existir vida. Como aprendemos no capí
tulo 4, toda matéria consiste sobretudo em espa
ço vazio. A distância entre os núcleos atômicos é enorme comparada ao tamanho deles. Mas, em
uma estrela de nêutrons, o <<colapso'' significa que o espaço vazio desapareceu totalmente. Ela pode
ter tanta massa quanto o Sol, mesmo com o ta -
manho de uma cidade, por isso sua força de atra -
ção gravitacional é tremenda. Se você fosse posto
numa estrela de nêutrons, pesaria cem bilhões de
vezes o que pesa na Terra. Seria achatado. Não
poderia se mover. Um planeta só precisaria
ter uma minúscula fração da força gravi
tacional de uma estrela de nêutrons para
ficar fora da zona Cachinhos Dourados - não só para a vida como a conhece
mos, mas para qualquer tipo de vida que • •
se possa imaginar.
1 97
l •
Olho vivo
Se existirem seres vivos em outros
planetas, como serão eles? Mui
ta gente pensa que os autores de
ficção científica fazem seus extra
terrestres parecidos com os hu -•
manos por preguiça, com pequenas
diferenças: cabeça maior, mais olhos,
talvez asas. Mesmo quando não são
humanoides, os alienígenas fictícios costumam
ser versões modificadas de criaturas conhecidas, como aranhas, polvos ou cogumelos. Mas talvez
não seja preguiça ou falta de imaginação. Talvez
haja boas razões para supor que os extraterres
tres, se existirem (e eu acho que devem existir),
não nos causem grande estranheza. Os alieníge
nas fictícios são descritos como monstros com
olhos de inseto, por isso usarei os olhos em meu exemplo. Poderia ter escolhido pernas, asas ou
orelhas (ou até indagado por que nenhum animal
tem rodas! ) , mas ficarei nos olhos e tentarei mos
trar que não é preguiça supor que os extraterres
tres, caso existam, podem muito bem ter olhos.
Ter olhos é muito útil, e isso é verdade na
maioria dos planetas. A luz, para fins práticos,
viaja em linha reta. Sempre que há luz disponí
vel, como nas vizinhanças de uma estrela, é tec
nicamente fácil usar raios luminosos para loca
lizar-se, orientar-se, encontrar objetos. Qualquer
1 98
•
planeta que tenha vida deve estar perto de uma
estrela, pois essa é a fonte óbvia de energia de que
toda forma de vida precisa. Portanto, é bem pro
vável que haja luz sempre que existir vida. E, onde
existe luz, é muito provável que evoluam olhos, já que eles são muito úteis. Não é de surpreender
que olhos tenham evoluído independentemente
em nosso planeta.
Há modos limitados de fazer um olho, e acho que todos evoluíram em nosso reino ani
mal. Existe o olho-câmera (acima, à esquerda),
que, como uma máquina fotográfica, é uma câ
mara escura com um pequeno orifício frontal por
onde a luz entra através de uma lente que foca
liza a imagem de cabeça para baixo sobre uma tela no fundo, a retina. Essa lente não é essencial.
Um simples orifício, se for pequeno o bastante, dá
conta da tarefa. Mas isso significa que pouca luz penetra, por isso a imagem é muito obscura -
a menos que o planeta receba muito mais luz de
•
sua estrela do que recebemos do Sol. Isso é pos
sível, e nesse caso os extraterrestres poderiam ter
olhos sem lente do tipo ''buraco de alfinete''. Os
olhos humanos (ao lado, à direita) possuem uma lente que aumenta a quantidade de luz focalizada
sobre a retina. A retina, ao fundo, é revestida de
células sensíveis à luz e manda para o cérebro as
informações luminosas que recebe pelos nervos.
Os vertebrados têm esse tipo de olho, e o olho-câ
mera evoluiu independentemente em muitos ou
tros tipos de animal, inclusive o polvo. Também
foi desenvolvido por inventores humanos, claro.
As aranhas saltadoras ( embaixo, à esquerda)
possuem um olho ''escaneador': É parecido com
um olho-câmera, só que a retina, em vez de ser um vasto tapete de células sensíveis à luz, é uma
faixa estreita. Ela tem forma de tira e está ligada
•
a músculos que a movimentam para que ''esca
neie'' a cena que a aranha tem à sua frente. Um
dado interessante: isso é mais ou menos o que faz
uma câmera de televisão, pois ela possui apenas
um canal para enviar uma imagem inteira. A câ
mera escaneia em linhas, lateralmente e para baixo, mas faz isso tão depressa que a imagem que recebemos parece única. Os olhos das aranhas
saltadoras não escaneiam tão rápido e tendem a
concentrar-se na partes ''interessantes'' da cena, • ' • I como uma mosca, mas o pr1nc1p10 e o mesmo.
Existe também o olho composto ( embaixo,
à direita), encontrado em insetos, camarões e ou
tros animais. Consiste em centenas de tubos que
irradiam do centro de um hemisfério. Cada um
aponta em uma direção diferente e termina em
uma pequena lente, então podemos imaginá-lo
como um olho minúsculo. Mas a lente não forma
uma imagem aproveitável, ela apenas concentra a
luz no tubo. Como cada tubo recebe luz de uma
direção diferente, o cérebro combina as informa
ções para reconstituir uma imagem. É imperfeita,
mas boa o suficiente para permitir que uma libé
lula apanhe uma presa que passa voando .
1 99
1
I ...... -
- - - - -
•
Nossos maiores telescópios usam um espe
lho curvo em vez de lente, e esse princípio tam -
bém é encontrado em olhos de animais, especifi
camente nas vieiras, um tipo de molusco. O olho delas usa um espelho curvo para focalizar uma
imagem na retina, que fica em frente ao espelho.
Isso fica no caminho de parte da luz, como ocorre nos telescópios refletores, mas não atrapalha
muito, pois a maior parte da luz chega ao espelho.
Essa lista praticamente esgota os olhos que os cientistas podem imaginar, e todos eles evo
luíram em animais neste planeta, a maioria mais
de uma vez. Aposto que, se existirem em outros planetas criaturas capazes de enxergar, será com
olhos de um tipo que nos pareceria familiar.
Exercitemos um pouco mais a imaginação.
No planeta dos nossos extraterrestres hipotéticos, a energia que irradia de sua estrela provavelmente
abrangerá desde ondas de rádio no extremo das
/
I
., -
•
200
ondas longas até raios X no extremo das ondas
curtas. Por que os extraterrestres deveriam limi
tar-se à estreita banda de frequências que chama
mos de ''luz''? Talvez possuam olhos de rádio? Ou
olhos de raios X? Uma boa imagem depende de alta resolução.
O que isso significa? Quanto mais alta a resolu
ção, mais próximos dois pontos podem estar e
ainda ser distintos. Como seria de esperar, com
primentos de onda longos não permitem boa re
solução. Os comprimentos de ondas luminosas
são medidos em diminutas frações de milímetro
e permitem excelente resolução, mas os compri
mentos de ondas de rádio são medidos em me
tros. Portanto, as ondas de rádio não formariam
uma boa imagem, embora sejam ótimas para a
comunicação porque podem ser moduladas, ou seja, mudadas, com extrema rapidez e
controle. Pelo que sabemos, nenhum
' . . .- ·/, I -: ' •
\
•
•
ser vivo em nosso planeta adquiriu pela evolução
um sistema natural para transmitir, modular ou
receber ondas de rádio. A tecnologia humana fez isso. Mas quem sabe se em outros planetas exis
tem seres que a evolução dotou de uma radioco
municação natural?
E quanto às ondas mais curtas que as lumi
nosas, como os raios X? Eles são difíceis de foca
lizar, e é por isso que nossos aparelhos de raios X
produzem sombras em vez de boas imagens. Mas não é impossível que formas de vida em outros planetas possuam visão de raios X.
A visão, seja do tipo que for, depende de
raios viajando em linhas retas ou pelo menos
previsíveis. De nada adianta se os raios se espa -
lharem para todo lado, como a luz na neblina.
Um planeta permanentemente envolto em névoa
densa não favoreceria a evolução de olhos. Pode
ria, em vez disso, favorecer o uso de um sistema
b d (( )) d asea o em ecos, como o sonar os morcegos e
golfinhos e dos submarinos. Os golfinhos de água
doce são peritos no uso do sonar, pois as águas
em que vivem são cheias de detritos, que acabam
equivalendo à neblina. O sonar evoluiu pelo me
nos quatro vezes em animais da Terra (em mor
cegos, baleias e em dois tipos de aves que habitam
cavernas). Não seria surpresa se descobríssemos que a evolução do sonar ocorreu em outro plane
ta, sobretudo se ele for permanentemente envol-I to em nevoa.
Se órgãos capazes de usar ondas de rádio
para comunicação tiverem evoluído nos extrater
restres, talvez tenha evoluído também um radar
para que se localizem (e os radares funcionam na
neblina) . Em nosso planeta existem peixes que
a evolução dotou da capacidade de se orientar
usando distorções em um campo elétrico gerado
por eles próprios. Aliás, isso ocorreu indepen
dentemente duas vezes: em um grupo de peixes africanos e em um grupo distinto de peixes sul
-americanos. O ornitorrinco tem sensores elétri
cos no bico que captam as perturbações elétricas
na água provocadas pela atividade muscular das
presas que espreitam. É fácil imaginar uma forma
de vida alienígena em que a sensitividade elétrica
tenha evoluído nas mesmas linhas que nos peixes
e no ornitorrinco, em nível mais avançado.
Este capítulo é diferente porque ressalta o
que não sabemos em vez do que sabemos. Embo
ra ainda não tenhamos descoberto vida em outros
planetas (e pode ser que nunca venhamos a des-
•
cobrir) , espero que você tenha percebido o quan
to a ciência pode nos dizer a respeito do universo,
e que isso o tenha inspirado. A busca por vida em
outros lugares não é feita a esmo. Os conhecimentos de física, química e biologia nos equipam para
procurar informações significativas sobre estrelas e planetas distantes e para identificar planetas que sejam pelo menos candidatos a abrigar vida. Mui
ta coisa permanece envolta em mistério, e não é
provável que um dia desvendemos todos os segredos de um universo vasto como o nosso. Porém,
armados com a ciência, podemos pelo menos fa
zer perguntas sensatas e significativas e reconhe
cer respostas dignas de crédito quando as vir. Não
precisamos inventar histórias implausíveis. Te
mos o prazer e o entusiasmo da verdadeira investigação e descoberta científica para manter nossa
imaginação na linha. E isso, no fim das , . .
contas, e mais emocionante
que a fantasia .
MAGINE que você está sentado tran
quilamente na sala, lendo um livro,
vendo televisão ou jogando no com
putador. De repente, você ouve um es
trondo aterrador, e a sala toda começa a tremer. A luminária balança no teto, os objetos caem das estantes, os mó
veis são jogados de um lado para o outro e você é derrubado da cadeira.
Depois de uns dois minutos, tudo se
acalma e um silêncio confortador so
brevém, rompido apenas pelo choro de uma criança assustada ou pelo latido
de um cão. Você se recompõe e pensa que teve muita sorte porque sua casa não de
sabou. Em um terremoto muito forte, isso
poderia ter acontecido.
Quando comecei a escrever este livro,
uma ilha do Caribe, o Haiti, foi atingida por um terremoto devastador, e sua capi
tal, Porto Príncipe, foi quase toda destruí
da. Estima-se que 230 mil pessoas tenham
morrido e muitas outras, entre elas crian
ças que ficaram órfãs, ainda vagueiem pe-
204
• --
;.. • ....
•
• "'
... ... , .
,.
las ruas, vivendo em acampamentos provi-, .
sor1os ou sem teto.
Mais tarde, quando eu fazia a revisão
deste livro, um terremoto ainda mais forte ocorreu sob o mar na costa nordeste do
Japão. Provocou uma onda gigantesca, um tsunami que causou destruição inimaginá
vel quando se abateu sobre a costa, varren
do cidades inteiras, matando milhares de
pessoas e deixando milhões de desabriga -
dos, além de desencadear perigosas explo-
ay l rrw• W�Lla ' a • 1
, _ _
... ,,., , .,. " ,.
, .•. ,......
sões em uma usina nuclear que já estava
danificada pelo terremoto.
Terremotos, assim como os tsunamis
que eles causam, são comuns no Japão. A
própria palavra tsunami tem origem japo
nesa. Mas nada parecido com isso, pelo que
as pessoas vivas hoje se lembrem, jamais acontecera no país. O primeiro-ministro
afirmou que foi a pior tragédia desde a Se
gunda Guerra Mundial, quando bombas atômicas destruíram as cidades japonesas
•
de Hiroshima e Nagasaki. Terremotos são
comuns em toda a orla do oceano Pacífico. Christchurch, uma cidade da Nova Zelân
dia, havia sofrido danos terríveis e perdera
muitas vidas em um tremor de terra ocor
rido apenas um mês antes da catástrofe ja
ponesa. Esse <<anel de fogo'' inclui boa parte
da Califórnia e do oeste dos Estados Unidos, onde aconteceu um famoso terremoto em 1 906, na cidade de San Francisco. Los
Angeles, que é maior, também é vulnerável.
205
PODEMOS ter uma ideia de como seria um
grande terremoto nas proximidades de Los Angeles vendo uma simulação por computador. Trata-se de uma espécie de previsão visual de algo que
não aconteceu, mas poderia acontecer, baseada
em ciência: um tipo de filme ''virtual'' gerado pelo
computador. Ele mostra um evento que não ocor
reu na realidade, para que possamos saber como seria se ocorresse - já que, um dia, provavelmen -te ocorrerá.
As imagens nestas páginas mostram duas
sequências de fotos da simulação. A tira estreita
à esquerda em cada página mostra a área vista de
cima, do sul para o norte, com a cidade de Los Angeles marcada como em um mapa. A mancha
vermelha e amarela nos dois primeiros quadros
indica onde o terremoto começa: o epicentro. A
fina linha vermelha que serpenteia o mapa é a
Falha de San Andreas. Por enquanto, pense nela
apenas como uma fenda no chão, uma linha de fragilidade na superfície da Terra.
A sequência mais larga à direita não é um
mapa, e sim a imagem de uma paisagem como se fosse vista de um avião, só que agora no sen
tido oposto, a partir de Los Angeles na direção
sudeste, onde estão as montanhas e o epicentro
do terremoto (marcado em vermelho).
Se rodássemos a simulação no computador,
teríamos uma visão aterradora. No mapa, vería
mos o centro do terremoto em vermelho alas
trando-se velozmente para o norte pela Falha de
San Andreas, com ondas em azul, verde e amare
lo representando tremores de várias intensidades
que se difundem em leque para os lados. Depois de uns oitenta segundos, o centro vermelho che
ga a um trecho da orla de Los Angeles, e ondas
amarelas e verdes já estão perpassando a cidade. Mais dez segundos e as ondas vermelhas atingem
206
o centro de Los Angeles. Nessa altura, podemos
olhar para a imagem da direita, a ''vista do avião': e observar o que está acontecendo ali. É uma cena
extraordinária. A paisagem inteira se comporta
como um líquido. Parece um mar cheio de ondas.
Terra seca, sólida, movendo-se em ondas como
num oceano! Isso é um terremoto.
Se estivéssemos no chão, não veríamos as
ondas, pois estaríamos muito próximos e sería
mos pequenos comparados a elas. Apenas senti
ríamos o chão mover-se e tremer sob nossos pés,
como descrevi na primeira cena deste capítulo. Se
o tremor fosse bem forte, a casa poderia desabar.
• • •
• • •
Ow •l)t9-Vfn ..
• •
'
..
...r:i.<'.' • •
'� -'--1 • Ili "' " V1 V1I �
1 U RI 1'11 V V1 VII �-
�-' �li Ili rv V 'Ili V11 YiEJ
li lb IY Y VI Vll ·-�-�
M itos de terremotos Comecemos com dois mitos que talvez tenham
sido inspirados por terremotos específicos que realmente aconteceram em determinados momentos da história.
,.,� Uma lenda judaica diz que duas cidades, Sodoma e Gomorra, foram destruídas pelo deus hebreu porque se\1$
A única pessoa boa que
havia por lá era um homem chamado Ló.
habitantes eram perversos.
O deus mandou que dois anjos o
avisassem para sair de Sodoma enquanto ainda era tempo.
Ló e sua família foram para um monte pouco antes de o
deus começar a fazer chover fogo e enxofre sobre Sodoma.
Eles haviam recebido a ordem de não olhar para trás,
mas infelizmente a mulher de Ló desobedeceu
ao deus, virou-se e espiou. O deus então a
transformou numa estátua de sal, que, dizem
alguns, pode ser vista até hoj .
Arqueólogos encontraram indícios de que
um terremoto abalou a região em que Sodoma e
Gomorra teriam existido, há 4 mil anos.
Se isso for verdade, a lenda da destruição das duas cidades pode entrar para a nossa lista
de mitos de terremoto. •
208 •
Outro mito bíblico que pode ter começado
com up:i terremoto específico é a história da que
da de Jericó. Situada ao norte do Mar Morto, no atual território de Israel, trata-se de uma das mais
antigas cidades do mundo.
Jericó foi abalada por terremotos até recen
temente. Em 1 927, esteve próxima do centro de
um deles, fortíssimo, que assolou a região e matou centenas de pessoas em Jerusalém, a 25 quilômetros de distância.
A história heb ·ca conta que .Josué, um herói lendário,
queria conquistar o povo que vivi\ em Jericó havia mi
lhares de anos.
Jericó era protegida por fortes muralhas, e o povo fechou-se
dentro da cidade para não ser atacado. Os soldados de Josué
não conseguiam transpor essas muralhas, então ele ordenou
a seus sacerdotes que tocassem suas trombetas e fez com que
todos os seus homens gritassem o máximo possível. O barulho
foi tanto que as muralhas tremeram e desabaram. Os soldados de Josué invadiram a cidade e massacraram seus habitantes,
fossem mulheres, crianças, bois, ovelhas ou jumentos.
Os soldados queimaram
tudo, exceto a prata e o ouro,
reservados para seu deus,
como ele havia mandado.
Do modo como o mito é
contado, isso foi bom: o deus
do povo de Josué queria que isso
acontecesse para que seu povo se apoderasse
de todas as terras que haviam pertencido aos
habitantes de Jericó.
Como Jericó é um lugar muito sujeito a terremotos, su
põe-se hoje que essa lenda tenha começado com um terre
moto verdadeiro, ocorrido muito tempo antes, que teria aba
lado violentamente a cidade e derrubado suas muralhas. Você
pode imaginar como uma lembrança popular remota sobre
um terremoto desastroso pode ter sido exagerada e distorcida através dos tempos conforme foi sendo transmitida oralmente J por gerações que desconheciam a escrita, até por fim se trans
formar na lenda do grande herói tribal Josué e de seu escarcéu de
berros e toques de trombeta.
•
Os dois mitos descritos nas páginas ante
riores podem ter começado com terremotos es
pecíficos, que realmente aconteceram. Em todo o
mundo encontramos outras histórias que surgi
ram com a tentativa de entender os terremotos . •
Como o Japão já sofreu inúmeros
terremotos, não é de surpreender que
ali tenham nascido mitos sobre es
ses desastres.
2 1 0
Um deles diz que a Terra flutuava nas costas
de um bagre gigante chamado Namazu. Toda vez
que ele balançava a cauda, a Terra tremia.
Milhares de quilômetros ao sul do Japão, os
maori da Nova Zelândia, que ali chegaram em canoas e se estabeleceram alguns séculos antes da
•
che.gada dos navegadoress europeus, acreditavam •
•
que a Mãe Terra estava grávida do deus Ru. Toda
vez que o bebê se mexia ou se espreguiçava den -
tro do útero da mãe, ocorria um terremoto .
•
2 1 1 •
2 1 2
•
Mais ao norte, algumas tribos da Sibéria acredita
vam que a Terra se assentava sobre um trenó puxado por
cães, conduzido por um deus chamado Tull. Os pobres cachorros tinham pulgas e quando se coçavam provoca
vam um terremoto .
•
Em uma lenda da África Ocidental, a Ter
ra é um disco sustentado de um lado por uma
grande montanha e do outro por um gigante
cuja esposa segura o céu. De vez em quando, o
gigante e sua mulher se abraçam; então, como
você já deduziu, a Terra se move.
•
•
-
..
J
Outras tribos da África Ocidental
acreditavam que viviam em cima da
cabeça de um gigante. A floresta era o
cabelo dele, e as pessoas e animais eram
como pulgas andando sobre sua cabeça.
•
•
v • "
-
-
•
- ,,
-
'
-
• • • • '
...
, .. ..
..
...
Os terremotos aconteciam
quando o gigante espirrava. Pelo
menos se supõe que eles acreditavam nisso, embora eu não
ache provável.
. ...
,
• •
•
( . . . ...
. . ... " .
•
.. ... ?
•
• •
' .
.. -
•
••
.. , .. • • • • '4 ,
• •• � - - . . I
•
.. .
Hoje sabemos o que realmente é um ter
remoto, e está na hora de
deixar os mitos de lado e
apresentar a verdade .
.. •
.. . .. J " "'
' '
• •
�
• .J .... .
•
• •
• . ..
I ,
. " ... '
... . • • •
• • • • •
- .. .. -
-
..
2 1 3
•
•
Primeiro precisamos conhecer a extraordinária
história das placas tectônicas. Todo mundo sabe como é um mapa-múndi.
Conhecemos a forma da África e a da América
do Sul, e sabemos que esses continentes são sepa
radas pelo vasto oceano Atlântico. Identificamos
facilmente a Austrália, e sabemos que logo a su -
doeste fica a Nova Zelândia. Imaginamos que a
Itália lembra uma bota prestes a chutar a cebola de
futebol'' que é a Sicília, e há quem ache a Nova
Guiné parecida com um pássaro. Reconhecemos
O m u ndo hoje Nova Guiné T
, _
2 1 4
facilmente os contornos da Europa, ainda que
dentro dela as fronteiras vivam mudando. Im -
périos vêm e vão, fronteiras entre os países mudam frequentemente ao longo da história, mas
o contorno dos continentes permanece igual. É
mesmo? Na verdade, não. Eles se movem, embo
ra muito lentamente, devemos admitir. E as posi
ções das cadeias de montanhas, como os Alpes,
o Himalaia, os Andes e as Rochosas, também se
movem. É verdade que esses grandes marcos geo
gráficos se mantêm fixos na escala temporal da
Nova Guiné
\
•
história humana. Mas, se a Terra fosse capaz de pensar, para ela nossa escala temporal seria insig
nificante. A história escrita começou há cerca de
5 mil anos. Se voltássemos no tempo 1 milhão de
anos (duzentas vezes a existência da história), os continentes teriam quase as mesmas formas de hoje, se vistos pelos nossos olhos. Mas, se voltás
semos 100 milhões de anos, o que veríamos? .
Dê uma olhada no mapa abaixo. Nele, o
oceano Atlântico sul é um canal estreito compa
rado ao que é hoje, e temos a impressão de que
daria para ir nadando da África à América do Sul. O norte da Europa está bem perto da Groenlândia, que por sua vez quase gruda no Canadá. Olhe
onde está a Índia. Não faz parte da Ásia, está lá
embaixo, perto de Madagascar, inclinada. A Áfri
ca se inclina para o mesmo lado, em comparação
com sua posição mais aprumada de hoje.
Pensando bem, ao olhar um mapa moder
no, você já reparou que o leste da América do Sul
é estranhamente parecido com o oeste da Áfri
ca, como se fossem peças de um quebra-cabeça
1 00 m ilhões de a nos atrás T
que ((quisessem" se encaixar uma na outra? Pois,
se voltássemos um pouco mais no tempo (se vol
tássemos 50 milhões de anos, mas isso é pouco na
imensa e lenta escala de tempo geológica), des
cobriríamos que elas realmente se encaixam. O
mapa abaixo à direita mostra como eram os con
tinentes meridionais 1 50 milhões de anos atrás. A África e a América do Sul eram totalmen
te unidas, não só uma à outra, mas também a
Madagascar, Índia e Antártida, além de Austrá
lia e Nova Zelândia, do outro lado da Antártida,
embora não seja possível vê-las na ilustração. Era
tudo uma grande massa de terra que chamamos de Gondwana (é claro que não se chamava assim na época; os dinossauros que viviam lá não da
vam nome a nada). Gondwana mais tarde se frag
mentou, gerando um continente após outro.
Que história mais estranha, não? Parece absurdo que algo tão imenso quanto um continente
possa mover-se por milhares de quilômetros. Mas
hoje sabemos que isso aconteceu, e mais: enten
demos como.
1 50 milhões de anos atrás T
• o
,
t
2 1 5
•
� .
1 e.; •
•
•
-.....
..
._,...
,.
' ! 1
•
-
•
t
... l
-
-
•
Como a Terra se move
Também sabemos que os continentes não apenas
se afastam uns dos outros: eles às vezes colidem, e
quando isso ocorre gigantescas cadeias de monta -
nhas são empurradas na direção do céu. Foi assim que a cordilheira do Himalaia se f armou: quando a Índia trombou com a Ásia. Na verdade, como logo
veremos, o que trombou com a Ásia foi algo muito
maior, uma ''placà' em cima da qual estava a Índia.
Todos os continentes se assentam sobre essas pla
cas, e logo trataremos delas, mas primeiro vamos
pensar mais um pouco sobre essas colisões e o afas-
r), tamento dos continentes.
• 1
Quando você ouve falar em colisão, talvez
pense em um choque súbito, como uma trombada
de um caminhão com um carro. Não foi assim que
aconteceu (e acontece) . O movimento dos continentes ocorre muito, muito lentamente. Alguém já
disse que é a mesma velocidade com que as unhas
crescem. Se você ficar olhando suas unhas, não as
verá crescer. Mas, se esperar algumas semanas, verá
que estão compridas e precisam ser cortadas. Da
mesma forma, não podemos ver a América do Sul se afastando da África. Mas, se esperarmos uns 50
milhões de anos, notaremos que os dois continen
tes se distanciaram bastante um do outro.
A velocidade de crescimento das unhas é a ve
locidade média do deslocamento dos continentes.
Só que as unhas crescem a uma velocidade constan-.
te, e os continentes movem-se aos arrancas. Entre
os arrancos, há uma pausa de uns cem anos, na qual
se acumula a pressão para um novo deslocamento.
Será que você já deduziu o que são realmente
os terremotos? Isso, um terremoto é o que sentimos
quando um desses arrancos acontece.
Afirmo isso como um fato, mas como desco
brimos isso, e quando? Essa é uma história fascinante, e devo contá-la agora.
Vários povos no passado notaram o formato de encaixe entre a América do Sul e a África,
mas não sabiam como explicá-lo. Há cerca de cem
•
1
... •
('.' 1
•
anos, um cientista alemão chama
do Alfred Wegener apresentou
uma hipótese ousada. Ela era
tão ousada que muita gente o
julgou louco. Wegener supôs
que os continentes tinham
ficado à deriva no mar como gigantescos navios. A Áfri-
ca e a América do Sul, bem
como as demais grandes massas
de terra meridionais, na hipótese
dele, tinham sido um único bloco 11,lili.I no passado. Desmembraram-se de
pois e se deslocaram pelo mar em
direções distintas. Essa era a ideia
� de Wegener, e riram dele por \
\
• '
isso. Mas descobriu -se que
o cientista alemão esta-
va certo ou quase certo, e seguramente
muito mais certo do que
os que riram dele.
A atual teoria das placas tectônicas,
que se sustenta em uma quantidade enorme de evi
dências, não é exatamente igual à teoria de Wegener.
Ele tinha mesmo razão quando disse que África,
América do Sul, Índia, Madagascar, Antártida e
Austrália um dia haviam sido unidas e depois se
separaram. Mas o modo como isso aconteceu,
segundo a teoria da tectônica das placas, é um
pouco diferente do que Wegener pensava. Ele
supunha que os continentes tinham se des
locado lentamente pelo mar flutuando não
na água, mas em camadas moles, derretidas
ou semiderretidas da crosta terrestre. A mo
derna teoria da tectônica das placas vê toda
a crosta da Terra, incluindo o fundo do mar, como um conjunto completo de placas interliga
das. Portanto, não são apenas os continentes que
se movem, mas também as placas onde eles se assen
tam, e não existe nenhum pedacinho da superfície do
planeta que não faça parte de uma delas.
2 1 7
•
•
Pri nci pais placas
A maior parte da área da maioria das
placas tectônicas está submersa. As
massas de terra que conhecemos como
continentes são o terreno elevado dessas
placas e despontam na superfície dos ocea-
nos. Portanto, a África é apenas o topo da placa
africana, que é muito maior e se estende até a metade
do Atlântico sul. A América do Sul é o topo da placa
sul-americana, que se estende pela outra metade do
Atlântico sul. Entre outras placas temos a indiana e
a australiana, a euro-asiática, que abrange toda a Eu-ropa e a Ásia, exceto a Índia, a arábica, que
é bem pequena e se encaixa entre a
placa euro-asiática e a africana,
e a placa norte-americana, que
inclui a Groenlândia e a Amé
rica do Norte, e se estende até a metade do oceano Atlântico nor
te. Existem ainda algumas placas
que quase não contêm terra firme,
como a enorme placa do Pacífico, por exemplo.
•
, PLACA DO PACIFICO
,
, PLACA JU DE FUCA
ocos
PLACA DE NAZCA
, · PLACA DA ANT ARTIDA
2 1 8 \ ��.
\
\_ • �� � ' ·Y: · � 'L'.:.l.!..'------�------�-------�-------
CANA
PLACA DO CARIBE
.. ( ) ,)
•PLACA DE SCOTIA
•
'
...
PLACA A� CANi �
•
·'
� ... f; 1: \
\ '� 't ' (J 1 l
'
PLÂ:CA ARÁBicÁ
( J::
/ ;r
•
'
....
INDI
o
• •
, .,..,
, l
• •
'
• •
o '1 o •
•
;
•
,.
PLACA FILIPINA
•
PLACA AUST�LIANA \
•
•
. '
V
•
Podemos ver na ilustração abaixo que a divi
são entre a placa sul-americana e a placa africana
percorre longitudinalmente o meio do Atlântico sul, a quilômetros de distância de cada um desses
continentes. Lembre-se de que as placas incluem
o fundo do mar, e isso significa rocha dura. Mas
então como é que a América do Sul e a África se
encaixavam 1 50 ffiilhões de anos atrás? Wegener
não teve problemas com isso, pois pensava que os
próprios continentes ficavam à deriva. Mas, se a
América do Sul e a África um dia foram unidas,
como a tectônica das placas explica toda a rocha
dura submarina que hoje separa esses continen
tes? Será que as partes submersas das placas ro
chosas cresceram?
O assoalho oceâ nico
Sim. A resposta está no espalhamento do assoa
lho oceânico. Sabe as esteiras rolantes que a gente vê em grandes aeroportos para ajudar as pessoas a percorrer o longo caminho entre a entrada, o
terminal e o salão de embarque? Em vez de andar,
elas sobem numa esteira e são levadas até algum
ponto onde precisam andar de novo. A esteira
rolante do aeroporto tem largura suficiente para
duas pessoas ficarem lado a lado. Mas agora ima
gine uma esteira rolante que tenha milhares de
quilômetros de largura, estendendo-se por quase todo o caminho do Ártico à Antártida. E imagi-
•
,___.,;. ___ __.._��;_,;;;;; -- �
PLACA SU L-AMERICANA + ESTEIRA ROIANTE
ne que, em vez de mover-se numa velocidade de
caminhada, ela se mova à velocidade com que as
unhas crescem. Sim, você já adivinhou. A Améri
ca do Sul, assim como toda a placa sul-americana, está sendo levada para longe da África e da placa africana em algo parecido com uma esteira ro
lante que jaz nas profundezas do leito marinho
e vai do extremo norte ao extremo sul do oceano
Atlântico, movendo-se muito lentamente.
E quanto à África? Por que a placa africana
não se move na mesma direção, e por que ela não
alcança a placa sul-americana? •
2 2 1
•
Porque a África está sobre outra esteira rolante,
que s� desloca na direção oposta. A esteira rolante
africana segue de oeste para leste, enquanto a sul
-americana vai de leste para oeste. Então o que está acontecendo no meio? Da próxima vez que
você for a um grande aeroporto, pare um pou
co antes de subir na esteira rolante e observe. Ela
emerge de uma fenda no chão e se move para
longe de você. É um cinturão que rola sem parar,
seguindo para a frente acima do chão e para trás,
vindo na sua direção, sob o chão. Agora imagine outra esteira, aparecendo pela mesma fenda, mas seguindo na direção oposta. Se você puser um
PLACA SUL-AMERICANA + ESTEI RA ROIANTE
pé em cada esteira, será forçado a abrir as pernas
como um ginasta.
No fundo do oceano Atlântico, o equivalen
te dessa fenda no chão é a chamada dorsal mesoa -
tlântica, que percorre o leito oceânico do extremo
sul ao extremo norte.
As duas ((esteiras'' emergem pela dorsal me-
soatlântica e seguem em direções opostas, uma
levando a América do Sul para oeste, outra levan
do a África para leste. E, assim como as esteiras
dos aeroportos, as gigantescas esteiras que mo
vem as placas tectônicas fazem meia-volta e re
tornam através das profundezas da Terra.
A
P LACA AF RI CANA ESTEIRA ROIANTE +
DORSAL MESOATLANTICA
Corrente de -
convecçao MANTO
---222
•
Da próxima vez que você for a um aeroporto, suba na estei
ra rolante e deixe que ela o leve enquanto você imagina que é a África (ou a América do Sul, se preferir). Quando chegar à outra
ponta da esteira e descer, observe-a mergulhar no subsolo, pronta para fazer o caminho de volta até o lugar onde você embarcou nela.
A esteira rolante do aeroporto é movida por motores elétricos.
O que move as esteiras rolantes que levam as imensas placas da Terra
com sua carga de continentes? Muito abaixo da superfície da Terra existe
o que chamamos de correntes de convecção. E o que é uma corrente de
convecção? Talvez você tenha em casa um aquecedor convector elétrico. Vejamos como ele aquece um ambiente. O aparelho aquece o ar. O ar quente
sobe porque é menos denso que o ar frio (é assim que funcionam os balões
de ar quente) . O ar quente sobe até atingir o teto, então não pode subir
•
Corrente de -
convecçao
mais e é forçado lateralmente pelo novo ar quente
que vem em seguida. Conforme se move para os
lados, o ar resfria e desce. Chegando ao chão, tor
na a mover-se para os lados, até ser captado pelo
aquecedor e tornar a subir. Essa explicação é sim
plificada demais, porém é a ideia básica que im
porta aqui: sob condições ideais, um aquecedor
convector mantém o ar em circulação. Esse tipo
de circulação é chamada ((corrente de convecção''.
Acontece a mesma coisa com a água. Aliás,
isso pode acontecer com qualquer líquido ou gás.
Mas como é possível existirem correntes de con
vecção sob a superfície da Terra? Por acaso é lí
quido lá embaixo? É líquido, sim bem, mais ou
menos. Não líquido como água, mas como o mel
ou um melado grosso. Devido ao calor que provém das profundezas, tudo ali está derretendo. O
centro da Terra é extremamente quente, e conti
nua muito quente mesmo bem mais próximo da
superfície. Ocasionalmente esse calor irrompe
nos ares em lugares que convencionamos chamar
de vulcões.
2 23
224
Placas contit1entais
MANTO
Núcleo exter110
de metal derretido
Núcleo interno
de metal sólido
\
-
•
se afastem, mergulhem umas sob as outras ou
raspem umas nas outras. E não é de admirar que
essas forças titânicas se façam sentir trituran-do, arrancando, rugindo, raspando em forma
de terremoto. Os terremotos são terríveis, mas é admirável que não sejam ainda mais terríveis.
Às vezes uma placa, ao se mover, entra em -
baixo de uma placa vizinha. É a chamada ''sub
dução': Parte da placa africana, por exemplo, está
deslizando para baixo da placa euro-asiática. Essa
é uma das razões de acontecerem terremotos na
Itália, e foi por isso que o monte Vesúvio entrou
em erupção na Roma Antiga e destruiu as cida
des de Pompeia e Herculano (isso porque vulcões
tendem a emergir na orla das placas). A cordi
lheira do Himalaia, que inclui o monte Everest,
brotou do chão e atingiu toda aquela altura forçada pela subdução da placa indiana em relação à placa euro-asiática.
?r · -
-.. -
• •
-
-
· - -
-
. , ---
Já que começamos com a Falha de San An
dreas, terminemos com ela. Trata-se de um longo
''deslizamento': em linha razoavelmente reta, en -tre a placa do Pacífico e a placa norte-americana.
As duas movem-se para noroeste, mas a do Pa
cífico é muito mais rápida. A cidade de Los An -
geles está sobre a placa do Pacífico, e não sobre a
norte-americana, e se aproxima inexoravelmente
de San Francisco, que se encontra, em sua maior
parte, sobre a placa norte-americana. Podemos esperar terremotos frequentes em toda essa re
gião, e os especialistas preveem que haverá um deles, de grande intensidade, em cerca de dez
anos. Felizmente, ao contrário do Haiti, a Califór
nia está bem preparada para lidar com as terríveis
consequências para as vítimas dos terremotos.
Um dia, partes de Los Angeles podem aca
bar em San Francisco. Mas vai demorar muito, e
nenhum de nós estará vivo para ver isso.
,
I
1 •
• ••• •
•
,
s Angeles
' '
•
• r
•
• f
•
,,; -
•
, .
-..
•
. � I
I
-
•
•
'
226
OR QUE coisas ruins acontecem? Depois de um
desastre pavoroso, um terremoto ou furacão, ou -• I • •
vimos comentarios assim:
''É uma injustiça. Eles realmente não
mereciam isso!''
Se um bom sujeito contrai uma doença dolorosa e morre, enquanto uma pessoa má goza de ótima saúde, novamente lamentamos:
''Que injustiça!''
Ou protestamos:
''Que tipo de justiça , ".> ,, e essar
. 1 É difícil resistir ao sentimento de que deve
existir algum tipo de justiça natural. Coisas boas
deveriam acontecer a pessoas boas. Coisas ruins,
se tiverem de acontecer, que seja às pessoas más.
Na divertida peça A importância de ser prudente,
de Oscar Wilde, uma governanta idosa chamada
srta. Prism conta que muito tempo atrás escreveu um romance. Quando lhe perguntam se a história tem final feliz, ela responde: ''Os bons acabam bem
e os maus acabam mal. É este o sentido da ficção':
A vida real é diferente. Coisas ruins acontecem, e
•
tanto para gente boa como para gente má. Por quê? Por
que a vida real não é como a ficção da srta. Prism? Por
que coisas ruins acontecem?
Muita gente acredita que seus deuses tencionavam
criar um mundo perfeito, mas, infelizmente, algo saiu
errado e há muitas ideias do que exatamente saiu er
rado. A tribo dogon, da África ocidental, acredita que
no começo do mundo havia um ovo cósmico do qual
nasceram gêmeos. Tudo estaria bem se esses gêmeos ti
vessem saído do ovo ao mesmo tempo. Por azar, um de
les saiu cedo demais e estragou o plano de perfeição dos deuses. Segundo os dogon, essa é a razão por que coisas
ruins acontecem.
;
•
;_ -""" '
Existe uma profusão de lendas sobre o sur
gimento da morte no mundo. Em toda a África,
diferentes tribos acreditam que um camaleão re
cebeu a notícia da vida eterna e a ordem de le
vá-la aos humanos. Infelizmente, ele andava tão devagar (e eles andam mesmo, eu sei porque tive
um camaleão de estimação quando era menino
na África chamado Hookariah) que a notícia da
morte, levada por um lagarto ligeirinho (ou um
animal mais veloz em outras versões da lenda)
chegou primeiro. Em uma lenda da África oci
dental, a notícia da vida foi levada por um sapo
lerdo, ultrapassado por um cão veloz que levava a notícia da morte. Não entendo por que a ordem
em que a notícia chega deveria ter importância.
Má notícia é sempre má, chegue quando chegar.
•
A doença é um tipo de coisa ruim que deu
origem a uma profusão de mitos. Uma das razões
disso é que, por muito tempo, elas foram um mis
tério. Nossos ancestrais enfrentavam outros peri
gos leões, tigres, tribos inimigas, f orne , mas
eles eram visíveis e podiam ser compreendidos. Já a varíola, a Peste Negra e a malária provavelmente
lhes pareciam surgidas do nada, sem aviso, e nin
guém sabia como se proteger desses ataques. Era
um mistério aterrador. De onde vinham as doen
ças? O que fizemos para merecer uma morte do
lorosa, uma torturante dor de dente ou manchas
horríveis pelo corpo? Não admira que as pessoas
apelassem para a superstição em suas tentativas
desesperadas de entender as doenças e proteger
-se delas. Em muitas tribos africanas, até bem
pouco tempo atrás, qualquer pessoa que adoeces
se ou tivesse um filho enfermo automaticamente
pensava em culpar um bruxo ou uma bruxa. Se
o filho tinha febre, devia ser porque um inimigo
'
- '1', -
228
pagara a um feiticeiro para botar um feitiço nele.
Talvez fosse porque o pobre pai não teve recursos
para sacrificar uma cabra quando o bebê nasceu,
ou porque uma lagarta verde atravessou seu caminho e ele se esqueceu de cuspir o mau espírito.
Na Grécia Antiga, peregrinos adoentados
passavam a noite em um templo dedicado a Es
culápio, o deus da cura e da medicina. Acredita
vam que ele os curaria ou lhes revelaria a cura em
um sonho. Até hoje, um número surpreendente
mente grande de pessoas doentes viajam a luga
res como Lourdes, onde mergulham em um lago sagrado na esperança de que a água santa as cure
(o mais provável é que peguem uma doença da
multidão que se banhou na mesma água). Cerca
de 200 milhões de pessoas fizeram a peregrina
ção a Lourdes nos últimos 140 anos, esperando se
curar. Em muitos casos a doença não é tão grave,
e a maioria felizmente melhora teria melhora
do mesmo sem a peregrinação.
Hipócrates, o médico e filósofo da Gré
cia Antiga que é considerado pai da medicina e dá seu nome ao juramento de boa conduta feito
por todos os médicos ainda hoje (o juramento
de Hipócrates), pensava que os terremotos eram
importantes causas de doenças. Na Idade Média,
muitos acreditavam que elas eram provocadas
pelo movimento dos planetas em relação ao pano de fundo formado pelas estrelas. Essa crença é
parte de um sistema chamado astrologia, o qual,
por mais ridículo que pareça, ainda tem muitos
seguidores na atualidade. .
2 2 9
O mais persistente dos mitos sobre saúde e
doença o mito dos quatro ''humores'' durou
do século v a.C. até o século XVIII d.C. Quando
dizemos ''Hoje ele está de bom humor': é daí que
vem o termo, embora agora as pessoas não acre
ditem mais na ideia por trás dessa expressão.
Os quatro humores eram bile negra, bile
amarela, sangue e fleuma. Pensava-se que uma .
boa saúde dependia de um bom ''equilíbrio'' en -
tre esses quatro humores, e ainda hoje podemos
ouvir coisas parecidas de ''terapeutas'' charlatães que passam as mãos por cima de
você para ''equilibrar suas ener-
gias'' ou seus ''chacras':
A teoria dos quatro hu
mores certamente não podia
ajudar os médicos a curar
doenças, mas talvez não fizes
se grande mal se não levas
se à prática da sangria, que envolvia abrir uma veia do
paciente com um instru
mento afiado chamado
lanceta e tirar grandes
quantidades de sangue,
despejadas em uma va
silha especial. É claro que isso deixava o po-
•
bre paciente ainda mais M-· enfermo (tendo contri-
buído para a morte do
presidente americano
George Washington ) .
Mas os médicos acredita
vam tanto no milenar mito
dos humores que usavam o
tratamento vezes sem con
ta. E mais: as pessoas não
se submetiam a sangrias apenas quando estavam doen-
230
tes. De tempos em tempos, pediam a um médico
que lhes fizesse sangrias como prevenção.
Quando eu era criança, certa vez o prof es
sor pediu que pensássemos qual era a razão de as
doenças existirem. Um menino levantou a mão
e respondeu que coisas ruins aconteciam porque pecamos. Ainda hoje, muita gente pensa que algo
assim causa as coisas ruins. Alguns mitos suge
rem que elas acontecem porque nossos ancestrais
fizeram algo perverso muito tempo atrás. Já men-
• •
cionei o mito judaico de Adão e Eva, antecessores da humani
dade. Se você se lembra, os dois
fizeram uma coisa simplesmente
terrível: deixaram-se persuadir pela serpente e comeram o
fruto da árvore proibida. Esse crime mítico reverberou por ·
eras e ainda hoje é considerado por muita gente o respon
sável pelas coisas ruins que acontec�m no mundo .
•
•
Muitos mitos falam sobre um conflito entre deuses
bons e deuses maus (ou demônios). Os deuses maus são responsáveis pelas coisas ruins que acontecem no mundo.
Ou então há um único espírito maligno, chamado Diabo ou
coisa parecida, que luta contra um deus bom (ou deuses).
Se não houvesse essa disputa entre demônios e deuses, ou
deuses bons e deuses maus, coisas ruins não aconteceriam.
•
•
•
• •
u e co isas ru i ns
POR QUE alguma coisa acontece? Essa é uma
questão complicada de responder, mas é mais
sensata do que ''Por que coisas ruins acontecem?''.
Não há razão para dar atenção especial às coisas
ruins, a menos que ocorram com mais frequência
do que o acaso pode explicar ou que se pense que
deve existir algum tipo de justiça natural, e nesse
caso as coisas ruins só deveriam acontecer com , pessoas mas.
Será que acontecem coisas ruins com mais frequência do que deveríamos esperar em razão
do acaso? Se for assim, então realmente aí está
algo que pede explicação. Talvez você já tenha
ouvido alguém gracejar sobre a ''Lei de Murphy':
Diz essa lei: ''Quando você deixa cair uma torra
da, o lado da geleia sempre acaba para baixo': Ou,
de modo mais geral: ''Se algo pode dar errado,
dara: Muita gente faz graça com isso, mas às ve
zes temos a sensação de que essas pessoas pensam que é mais do que uma piada. Parecem mesmo
acreditar que o mundo está contra elas.
Faço alguns documentários para a televisão, e uma das coisas que podem dar errado em filmagens externas é o barulho indesejado. Quando
um avião ronca à distância, temos de parar de filmar e esperar que ele passe, e isso pode ser muito
irritante. Filmes ambientados em séculos passa-
232
•
? •
dos são arruinados pelo menor vestígio de ruído
de avião. Os cineastas têm a superstição de que os
aviões escolhem os momentos em que o silêncio é
mais importante para sobrevoar a área, e invocam
a Lei de Murphy para explicar isso.
Recentemente, uma equipe de filmagem com a qual eu trabalhava escolheu um local onde
tínhamos certeza de que o barulho seria o menor
possível: uma vasta campina perto de Oxford.
Chegamos de manhã bem cedo, para garantir
ainda mais a paz e o silêncio e demos de cara com um escocês solitário praticando com sua gaita de foles (provavelmente porque
sua mulher o tinha enxotado
de casa). ''Lei de Murphy!':
proclamamos. A verdade,
claro, é que existe baru
lho a maior parte do tem
po, mas o notamos apenas
quando ele nos irrita, por
exemplo quando interfere
nas filmagens. A probabili
dade de notarmos o que nos
incomoda é altíssima, e isso
nos leva a pensar que o mundo está contra
nós de propósito.
No caso da torrada, não é uma surpresa que caia com a geleia para baixo com mais frequência do que para cima.
Como as mesas não são muito altas, a torrada começa com
a geleia para cima e em geral só há tempo para meia rotação
antes de chegar ao chão. Mas o exemplo da torrada é apenas
um modo pitoresco de expressar a pessimista ideia de que
''Se algo pode dar errado, dará!''
O exemplo a seguir pode ser mais representativo da Lei de Murphy:
((Quando você joga uma moeda, quanto mais desejar cara, maior a probabilidade de sair coroa':
Essa, pelo menos, é a visão pessimista. Há otimistas que pensam
que, quanto mais queremos cara, maior a probabilidade de obtê-la.
Talvez se possa chamar isso de ((Lei de Poliana'': a crença otimista de •
que as coisas geralmente acontecem do melhor modo. Ou então ((Lei
de Pangloss': lembrando um personagem do grande escritor francês
Voltaire. Seu dr. Pangloss achava que tudo de melhor havia de acon
tecer neste que é o melhor dos mundos possíveis.
Dito assim, fica fácil ver por que a Lei de Murphy e a Lei de
Poliana são bobagens. Moedas e torradas não têm como conhecer a
força dos nossos desejos, muito menos vontade própria para frustá
-los ou realizá-los. Além disso, o que é ruim para uma pessoa pode
ser bom para outra. Tenistas adversários rezam fervorosamente pela
vitória, mas um deles tem de perder! Não há razão especial para per
guntar por que acontecem coisas ruins. Ou, analogamente, por que
acontecem coisas boas. A verdadeira questão por trás dessas duas
perguntas é: por que alguma coisa acontece?
- · -
-.,. . - � · --- · - ·
, ... _ ...... ._ . . ··· � - -
.. _ ... _
,. ___ _.. -,.-., ... __ _ -
� -- · · � · ·· ··· - · ··- __ _ _..
.. . - . ... . ._ . .... .. .....
� .._ ._ _ __ _ _ _ .. � .-. - - .. -· ..
· - · - .,� ........... _
233
•
•
•
Sorte, acaso e ca usa •
.... · - � - - ·- -- - · � -... .... -.. .....
- ·---�- -·--·--..... . . . ..... -.. " _.._ .. . ...._ _.
.. ._ _, .. .... ....... .. . -- .. _., ,.... _,.. .... . .. .. . ...... . . _..., ,,...., -
- - . ..... ···•e-.· e •
-- -
-' - .. . , ...... ::- - · · · · -
- .. · ·· - ---- ---- · -
L-. .. . ::- llT . Mil
I I •
--------
' rt• • • ,_
....... .... ;...... ..... .
.. ... .. _ · - · · ------ -
.. . .. ..,_ . ... . .._ . · · ·----�;.__::..:.;;.;:==-�=----_;...=.·-=-.J..:.z-�:-�
•
Há quem diga que tudo acontece por uma razão .
Em certo sentido, é verdade. Tudo o que
acontece tem uma razão, ou seja, os A eventos tem causas, e a causa sempre
vem antes do evento. Os tsunamis
ocorrem devido a terremotos no fundo
do mar, e os terremotos acontecem como
consequência do deslocamento das placas tectôni
cas da Terra, como vimos no capítulo 10. Esse é o
verdadeiro sentido da ideia de que tudo acontece
por uma razão: ''razão'' significa ''causa anterior''.
Mas algumas pessoas usam ''razão'' em um sentido
muito diferente, querendo dizer ''propósito''. E di-•
zem coisas como
''O tsunami foi um castigo pelos nossos pecados''
ou
''O tsunami veio para destruir boates, danceterias,
bares e outros lugares pecaminosos''.
É espantoso que tantas pessoas apelem a dispara
tes desse tipo.
Talvez seja um vestígio da infância. Os psi
cólogos infantis concluíram que, quando per
guntam a crianças por que uma pedra é pontu -
da, elas rejeitam uma explicação que lhes mostre
as causas científicas e preferem respostas como:
''Para que os animais possam usá-las para se co
çar': A maioria delas descarta mais tarde esse tipo de explicação para as pedras pontudas. Mas mui
tos adultos parecem incapazes de se desvencilhar
desse tipo de hipótese quando se trata de um in
fortúnio, como ser vítima de um terremoto, ou
de boa sorte, como escapar vivo de um .
E quanto ao azar? Isso existe realmente? E a sorte? Algumas pessoas são mais sortudas do que
outras? Às vezes ouvimos dizer que alguém es
tá numa maré de azar. Ou então uma pessoa
comenta: ''Tanta coisa ruim anda acontecendo
comigo que chegou a hora de eu ter sorte': Ou ainda: ''Fulano é azarado, parece que tudo dá errado para ele':
''Está na hora de eu ter sorte'' é um exem -plo do frequente erro de interpretação da lei
das médias. No jogo de críquete, geralmente faz
grande diferença para um time poder começar
o jogo rebatendo. Os capitães das duas equipes
jogam cara ou coroa para decidir quem terá
essa vantagem, e a torcida vibra quando seu capitão acerta. Recentemente, antes de uma partida entre Índia e Sri Lanka, em uma pá
gina do Yahoo havia a seguinte pergunta:
''Dhoni [o capitão indiano] terá
sorte novamente no cara ou coroa?''
Entre as respostas recebidas foi escolhida
como melhor (não sei por quê) a seguinte:
''Acredito plenamente na lei das médias,
por isso aposto que Sangakkura [o
capitão do Sri Lanka] terá sorte e
ganhará o cara ou coroa''.
Percebe a bobagem? Em uma série de par
tidas anteriores, Dhoni ganhara no cara ou co
roa. Moedas não têm preferência por uma pessoa
ou outra. E a mal compreendida lei das médias
deveria, então, garantir que Dhoni, por ter tido
sorte nas outras ocasiões, agora perdesse para com
pensar. Em outras palavras, a ideia era que chegara
a vez de Sangakkura ganhar no cara ou coroa. Ou que seria injusto Dhoni ganhar de novo. Mas a rea
lidade é que, independentemente de quantas vezes
Dhoni ganhara no cara ou coroa antes, a probabi
lidade de ele vencer nesse jogo sempre é de 50%.
''Vez'' e ''justiçá' não têm absolutamente nada a ver
com isso. Nós podemos nos importar com justiça ou injustiça, mas uma moeda não está nem aí. E o universo também não.
É verdade que, se você jogar uma moeda mil
vezes, provavelmente obterá cerca de quinhentas
caras e quinhentas coroas. Mas suponha que você
jogou a moeda 999 vezes e até agora só te-
nha dado cara. Qual seria sua aposta para a última jogada? Segundo a sempre mal
entendida lei das médias, você de-. , veria apostar em coroa, porque e a
vez da coroa, e seria uma enorme
injustiça dar cara de novo. Mas eu
apostaria em cara, e você tam -
bém, se for esperto. Uma sequên
cia de 999 caras sugere que essa moeda está viciada ou que há
um truque no modo de jogá
-la. A má compreensão da
lei das médias é a ruína de muitos apostadores.
•
235 •
•
\
' J
•
•
•
•
236
,
É verdade que, depois de tudo já ter acontecido,
podemos dizer: ''Sangakkura teve azar por perder no
cara ou coroa, porque com isso a Índia, sem ter errado
nenhuma rebatida, conseguiu marcar muitos pontos''.
Não há nada de errado nisso. Estamos simplesmente
comentando que desta vez ganhar no cara ou coroa real
mente fez diferença, por isso quem acertou o resultado
da moeda nesta ocasião específica teve sorte. O que não
devemos dizer é que, como Dhoni já havia ganhado no
cara ou coroa tantas vezes antes, agora era a vez de San -
gakkura. E jamais devemos dizer coisas como: ''Dhoni é
um bom jogador, mas a verdadeira razão pela qual deve
ser escolhido para capitão é que ele tem muita sorte no cara ou coroa': Sorte em jogar moedas não é uma qua
lidade que alguém possa ter. Podemos dizer que um jo
gador rebate ou lança bem. Mas não podemos dizer que •
ele é bom ou ruim no cara ou coroa .
Por essa mesma razão, é tolice alguém achar que
pode melhorar sua sorte usando um amuleto pendu
rado no pescoço. Ou fazendo figa atrás das
/
'
costas. Coisas assim não têm como in
fluenciar o que acontece com você,
exceto no modo como você se
sente dando-lhe mais con-
fiança e assim acalmando seus
nervos antes de um saque numa
partida de tênis, por exemplo.
Mas não têm nada a ver com sor
te. Isso é psicologia.
Algumas pessoas são
consideradas ''propensas a
acidentes': Tudo bem se isso
significar que elas são estaba
nadas ou tendem a tropeçar
ou a sofrer outros acidentes.
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • -
•
• • • • • • • • • • •
• • • • • • • • •• • •
• • • • •
• • •• ,. ·•.. .
. . . . . . . . . . . . � · · · · · · · · · · · · · · · · · · · �
Se quiser ver um exemplo muito engraçado de propensão
para acidentes, assista ao
hilariante filme A Pantera
Cor-de-Rosa, com Peter
Sellers no papel do inspetor Jacques
Clouseau. O personagem vive sofrendo
acidentes embaraçosos e cômicos, mas
isso porque ele é um sujeito ·
atrapalhado, e não por ser
sempre azarado, como
alguns dizem.
•
(A propósito, assista ao filme
original, e não sequências in- . ..
feriores com títulos pareci- :
dos, como O filho da Pantera
Cor-de-Rosa, A vingança da
Pantera Cor-de-Rosa etc.)
• • • • • • • • • • li
.. . .. .. ... . . .... .:._ ,.. . . . . . . . � . . . .
�·· · · · ·
··· • •··· ·· ·
·
·· ·
·· ·
· · -· · . . .. •••• • • • • •• ••• • •• •
•· ··
··
• • • • •• • • • • •• • •••• • •• • • • •••• • . . . . .. . . . . .. ..
··
·· ·� . . . . • • ......_ . .. . . . �··· .... . . ... • •••• • ••• •• •••••• • •• •••
•• . .. • • • • •• . . . .. . . . .. . . . ,. . .. •• • • • •• . . .. . .
• • • • • •
•• • • ... •••••• •• •• •• • •• •• • • ....
. .. . ... •• •• ••
•
••
•• • •• • •• • •• • •• •• • • • • •• • • •• • • ••• • •• • ..,. . •
• •
• • ,,. .
... ···" •• ... •• ••
••
•
•
•
Doença e evolução - um processo em anda mento?
Como eu disse, os predadores não são os únicos
que querem nos pegar. Os parasitas, que sobre
vivem alimentando-se do nosso corpo, são uma
ameaça mais furtiva, mas igualmente perigosa.
Entre eles incluem-se os vermes (como a tênia e
a lombriga), as bactérias e os vírus. Predadores
como o leão também se alimentam de corpos,
mas em geral é clara a distinção entre eles. O para -
sita se alimenta de uma vítima que ainda está viva
(embora ele possa acabar matando-a), e em geral
é menor que ela. O predador é maior que sua ví
tima (como o gato, que é maior que o camundon -
go); se for menor (como o leão é menor do que a
zebra), a diferença de tamanho não é tão grande.
Os predadores matam as presas de uma vez e as devoram. Os parasitas matam suas vítimas mais
devagar, e elas podem continuar vivas por muito
tempo enquanto eles se alimentam dentro delas.
Muitos parasitas atacam em grande núme
ro, como quando temos uma forte infecção por
causa do vírus da gripe ou do resfriado. Os pa
rasitas que são pequenos demais para ser vistos a
olho nu em geral são chamados de <'germes': um
termo impreciso. Entre eles incluem-se os vírus,
que são muito pequenos, as bactérias, que são
maiores que os vírus, mas ainda assim são dimi
nutas (alguns vírus parasitam bactérias) e outros
organismos unicelulares, como o parasita da ma
lária, muito maior que as bactérias, mais ainda
pequeno demais para ser visto sem microscópio.
A linguagem não possui uma denominação geral
para esses parasitas unicelulares maiores. Alguns
são chamados de protozoários, porém esse termo está ultrapassado. Outros parasitas importantes
são os fungos, como o que causa o pé de atleta
(seres grandes como os cogumelos dão uma falsa
ideia de como a maioria dos fungos é).
Exemplos de doenças bacterianas são: tuber
culose, alguns tipos de pneumonia, coqueluche,
cólera, difteria, lepra, escarlatina, furúnculo e tifo. Entre as doenças virais estão sarampo, catapora,
cachumba, varíola, herpes, hidrofobia, poliomielite, muitas variedades de gripe e o que chamamos
de <<resfriado comum': Malária, disenteria ame
biana e doença do sono são doenças causadas por
protozoários. Outros parasitas importantes, que
podem ser vistos a olho nu, são os vários tipos de
vermes, como os platelmintos e os nematelmin
tos. Quando eu era garoto, morei numa fazenda, I • • • •
e varias vezes encontrei animais mortos, como
8("",;_\ , J'.'"-1\,0 �=======================-=====-�=-::::;..==-�-=-=-======-:--========- ==�-
•
,
,
•
- •
242 !'-- - -:::::::::=::::::::=:::=::::====j
•
. (_ JJ ( I J -
doninhas e toupeiras. Estava aprendendo biologia
na escola, de modo que passei a dissecar os pe
quenos cadáveres que encontrava. O que mais me
impressionava era a imensa quantidade de vermes
vivos que fervilhavam nos corpos (vermes redon -dos tecnicamente chamados de nematódeos). Eu
nunca via isso nos ratos e coelhos domesticados
que nos davam para dissecar nas aulas.
O corpo tem um sistema muito engenhoso e
geralmente eficaz de defesa natural contra parasi
tas, o sistema imunológico. Ele é tão complexo que
precisaríamos de um livro inteiro para explicá-lo.
Em poucas palavras, quando o corpo percebe um
parasita perigoso ele se mobiliza para produzir
células especiais, que são levadas pelo sangue
para a batalha, como um exército, fabricadas sob
medida para atacar os parasitas específicos que
estão atacando. Em geral, o sistema imunológico
vence, e a pessoa se recupera. Depois disso, ele
se ((lembrà' do equipamento molecular que criou
para aquela batalha específica, e qualquer infec
ção subsequente pelo mesmo tipo de parasita é
rechaçada tão rápido que nem notamos. É por isso que, depois de contrair uma doença como
sarampo, cachumba ou catapora, é provável que
nunca mais a tenhamos. Antigamente se achava
bom que uma criança pegasse cachumba, por
exemplo, porque assim a ((memórià' do sistema
imunológico a protegeria dessa doença na idade
adulta (a cachumba é ainda mais desagradável
para os adultos, especialmente os homens, pois
ataca os testículos) . A engenhosa técnica da vacinação produz um efeito parecido. Em vez de nos
fazer pegar a doença em si, o médico nos dá uma
versão mais fraca dela, ou uma injeção com ger
mes mortos, para estimular o sistema imunológi
co sem que sejamos atacados pela doença de fato. A versão mais fraca é muito menos prejudicial do que a doença real. Aliás, é comum nem notarmos
efeito nenhum. Mas o sistema imunológico se
('lembrà' dos germes mortos ou da infecção com
a versão branda da doença e fica armado para
combater a doença real se algum dia ela aparecer.
O sistema imunológico tem uma tarefa difí
cil: ((decidir'' o que é ((estranho'' (e deve ser comba-
tido) e o que deve ser aceito como parte do corpo.
Isso pode ser bastante complicado quando uma
mulher está grávida, por exemplo. O bebê dentro
dela é ((estranho'' (nenhum bebê é geneticamente
idêntico à mãe, pois metade dos genes provém do
pai). Mas é importante que o sistema imunológi
co não o combata. Esse foi um dos grandes pro
blemas que ocorreu quando a gravidez evoluiu
nos ancestrais dos mamíferos. Ele foi resolvido -
�---------- ------ -- - - -- --- - -·-------. - ----· --- --- -- -- ---------·-----
•
•
- -/ �
/
1 1
•
e -0
•
•
-
-----------�
•
•
•
•
• ..
•
--
•
,
•
.
c:.)J
-
afinal, muitos bebês conseguem sobreviver no úte
ro o tempo necessário para nascer. Mas também
acontecem muitos abortos, o que talvez indique
que a evolução teve muito trabalho para solucio
nar esse problema e a solução ainda é imperfeita.
Mesmo hoje, muitos bebês só sobrevivem graças
à ajuda médica por exemplo, eles têm o sangue
trocado quando nascem, nos casos extremos de
reação do sistema imunológico.
O utro modo de o sistema imunológico
((errar'' é lutando com força exagerada contra um
suposto ''atacante'� As alergias são isto: o sistema
imunológico luta contra coisas inofensivas, com
desperdício e até dano. Por exemplo, o pólen no
ar costuma ser inofensivo, mas o sistema imuno
lógico de algumas pessoas reage a ele com muita
intensidade. Nesse caso, ocorre a reação alérgi
ca chamada febre de feno: a pessoa espirra, seus
olhos lacrimejam, e o incômodo é enorme. Certas
pessoas são alérgicas a gatos ou cães: seu sistema
imunológico reage com exagero a moléculas ino
fensivas no pelo desses animais. Existem alergias
muito perigosas. Uma minoria de pessoas é alér
gica a amendoim, e comer um só pode matá-las. Às vezes, a reação do sistema imunológico é
tão descomunal que a pessoa tem alergia a si mes-
• •
•
Gotícula de muco
ma! Isso causa as doenças autoimunes, como a
alopecia (cabelos ou pelos caem em tufos porque
o corpo ataca os folículos) e a psoríase (manchas
rosadas e escamosas aparecem na pele).
Não admira que às vezes o sistema imuno
lógico reaja com exagero, pois é muito fácil errar,
deixando de atacar quando seria preciso ou ata
cando sem necessidade. É o mesmo tipo de pro
blema que vimos no caso do antílope que tenta
decidir se deve ou não correr quando o mato far
falha. Será um leopardo? Ou apenas um ventinho
inofensivo agitando o capim? Será uma bactéria
perigosa ou um grão de pólen inócuo? Fico pen
sando se as pessoas que têm um sistema imuno
lógico hiper-reativo e desenvolvem alergias e até
doenças autoimunes não seriam menos propen -
sas a sofrer com certos tipos de vírus e parasitas.
Esses problemas de ((calibragem'' são muito
comuns. É possível ser excessivamente ''avesso ao
risco'': muito sobressaltado, tratando cada farfa
lhar do mato como um perigo ou desencadeando
uma forte resposta do sistema imunológico contra
um inocente amendoim ou os próprios tecidos do
corpo. E é possível ser confiante em demasia, dei
xar de reagir a um perigo quando ele é real ou não
dar uma resposta imunológica quando existe mes-
Como o sistema imunológico lida com o ataque do vírus da gripe (à direita)
Primeira sequência: ataque bem-sucedido
( 1 ) O vírus da gripe se aproxima de uma célula. (2) A chave do vírus se encaixa na fechadura da célula (receptor na superfície celular) (3) permitindo a entrada do vírus na célula, onde se replica. (4) Centenas de vírus emergem da célula infectada.
Segunda sequência: corpo combate o ataque
( 1 ) Células-T do sistema imunológico se aproximam do vírus (2) e aderem a ele. (3) O vírus não se encaixa na fechadura da célula e não consegue mais adentrá-la.
mo um parasita perigoso. Distinguir é difícil, e há
penalidâdes para ambos os tipos de erro.
O câncer é um caso especial de coisa ruim
que acontece: é uma coisa estranha, mas impor
tante. Um câncer é um grupo de células que pa
raram de fazer o que deveriam fazer no corpo e
se tornaram parasitas. Em geral, as células cance
rosas se agrupam em um tumor, que cresce des
controladamente, alimentando-se de uma parte
do corpo. Os casos mais graves de câncer se espa
lham para outras partes do corpo (num processo
chamado metástase) e acabam matando o pacien -te. Esses tumores são chamados de malignos.
O câncer é tão perigoso porque suas célu
las derivam diretamente de células do corpo. São
células nossas, ligeiramente modificadas. Isso
significa que o sistema imunológico tem dificuldade em reconhecê-las como estranhas. Também
significa que é muito difícil encontrar um trata
mento que mate o câncer, pois qualquer método
terapêutico que possamos imaginar um vene
no, por exemplo tende a matar também nossas
células sadias. É muito mais fácil matar bactérias,
pois as células bacterianas diferem das nossas. Venenos que matam as células bacterianas, mas não
as nossas, são chamados de antibióticos. A qui-
1
1
mioterapia envenena células cancerosas, mas faz o
mesmo com o resto do corpo, pois nossas células
são muito semelhantes às cancerosas. Se a dose
do remédio for excessiva, poderá matar o câncer,
mas matará antes o pobre paciente.
Voltamos ao mesmo problema de decidir entre atacar inimigos verdadeiros (células cance
rosas) e não atacar amigos (células normais): vol
tamos ao problema do leopardo no mato.
Quero encerrar este capítulo com uma espe
culação. Será que as doenças autoimunes são um
subproduto de uma guerra evolucionária contra o
câncer, ao longo de muitas gerações ancestrais? O
sistema imunológico vence muitas batalhas con
tra células pré-cancerosas, suprimindo-as antes
que tenham chance de se tornar plenamente ma
lignas. Minha suposição é que, em sua constante
vigilância contra células pré-cancerosas, o sistema
imunológico às vezes exagera e ataca tecidos ino
fensivos e, com eles, as células do próprio corpo
- e chamamos isso de doença autoimune. Será
que a explicação para as doenças autoimunes é
que elas são um indício de um processo evoluti
vo em andamento para produzir uma arma eficaz
contra o câncer?
O que você acha?
245
o •
O PRIMEIRO capítulo deste livro falei sobre magia e mostrei a distinção entre a
magia sobrenatural (um feitiço para transformar
um sapo num príncipe ou esfregar uma lâmpada
e conjurar um gênio) e os truques de mágica (o
ilusionismo que transforma lenços num coelho
ou serra uma mulher ao meio). Hoje, ninguém acredita na magia dos contos de fadas. Todo mundo sabe que só em Cinderela uma abóbora
se transforma em carruagem e que tirar um coe
lho de uma cartola que parece vazia é um truque.
Mas existem histórias sobrenaturais que ainda são levadas a sério, e muitos chamam de milagre os ((eventos'' que relatam. Diferentemente dos contos de fadas, nos quais ninguém acredita, e
dos truques de mágica, que sabemos ser ilusão,
este capítulo tem como tema os milagres, aque
las histórias de acontecimentos sobrenaturais em que muita gente ainda crê.
Algumas dessas histórias são fantasmagóricas, outras são lendas urbanas ou impressio
nantes coincidências. Por exemplo: ccSonhei com
uma celebridade em quem não pensava havia
muitos anos, e na manhã seguinte fiquei sabendo
que ela morrera durante a noite''. Há numerosos
relatos de centenas de religiões do mundo que são considerados milagre. Por exemplo, uma lenda
conta que, há cerca de 2 mil anos, um pregador
judeu itinerante chamado Jesus estava em uma
festa de casamento quando o vinho acabou. Ele
pediu água e usou seus poderes milagrosos para
transformá-la em vinho um vinho excelente,
diz a história. Pessoas que ririam da ideia de que
uma abóbora pode se transformar em carruagem e que sabem perfeitamente que lenços não viram
coelhos, acreditam que um profeta transformou
água em vinho ou, como creem devotos de outra
religião, voou para o céu em um cavalo alado.
247
Boato, coi ncidê ncia e histórias que vão sendo au mentadas
Em geral, quando ouvimos um relato sobre milagre, ele não vem de uma testemunha ocular, mas de
alguém que ouviu outra pessoa contar, que ouviu
de outro alguém, que por sua vez ouviu do primo
da sogra da irmã . . . E qualquer história que passe
de boca em boca acaba sendo deturpada. Muitas
vezes, a fonte original é um boato que começou a se espalhar tempos atrás e foi sendo recontado até
ficar tão distorcido que é quase impossível adivi
nhar que evento real lhe deu origem se é que houve um evento real original.
248
Após a morte de alguém famoso, seja he
rói ou vilão, quase sempre histórias de que essa
pessoa foi vista viva começam a correr o mundo.
Foi assim com Elvis Presley, Marilyn Monroe e
até Adolf Hitler. É difícil saber por que as pessoas gostam de passar adiante tais boatos quando os
ouvem, mas o fato é que gostam, e essa é boa par
te da razão porque os boatos se espalham.
Vejamos um exemplo recente de como um
boato assim começa a se espalhar. Logo depois que o célebre cantor Michael Jackson morreu, em 2009, uma equipe de televisão norte-americana
foi autorizada a filmar o interior de sua famosa
mansão, chamada Neverland. Em uma ·cena do
•
filme resultante disso, algumas
pessoas pensaram ter visto o
fantasma do cantor no fim de
um longo corredor. Assisti ao
filme, e essa cena não é na
da convincente. No entan
to, bastou para desencadear boatos desvairados que se
alastraram depressa. O fan -
tasma de Michael Jackson
está andando por aí! Logo apareceram visões imitan-
do a primeira. Por exem -
plo, na página ao lado
vemos a fotografia que
um homem tirou da su
perfície polida de seu
carro. Para você e para
mim, especialmente se cc )) compararmos o rosto
com as imagens dos
dois lados, trata-se ob
viamente do reflexo de
uma nuvem. Mas, para a excitada imaginação
de fãs devotos, só poderia ser o fantasma
de Michael Jackson, e o filme no YouTube foi
acessado mais de 1 5 mi-
lhões de vezes!
Na verdade, algo interessante acontece em
casos assim que vale a pena
mencionar. Os seres huma -,.., . . . . .
nos sao an1ma1s soc1a1s, por isso
nosso cérebro é programado para
ver rostos de outros humanos mesmo
onde não existem. Isso explica por que com tanta frequência pessoas imaginam ver
rostos em padrões aleatórios formados por.nu
vens, torradas ou manchas de umidade na parede.
249
• •
•
••
• • •
•
•
•
•
� . • •
•
• •
•
•
•
• •
•
•
•
•
É divertido contar histórias arrepiantes de fantasmas, ainda,_ mais quando afirmamos que
.
são casos reais. Quando eu tinha oito anos, mi-
nha família morou por uns tempos numa casa
chamada Cuckoos, que tinha quatrocentos anos
e vigas de madeira negra antiquíssimas. Previsi
velmente, havia uma lenda sobre ela: vagava por
lá, escondido numa passagem secreta, um padre
que morrera fazia muito tempo. Contava-se que
era possível ouvir os passos dele na escada, mas
havia um detalhe: eles sempre soavam por um de
grau a mais, porque, explicavam, a escada tivera
um degrau extra no século xvr! Eu me lembro de
que adorava contar essa história aos meus colegas na escola. Nunca me ocorreu perguntar se as evi
dências eram confiáveis. A casa era antiga, e isso bastava para que eles ficassem impressionados.
As pessoas sentem prazer em passar adiante
histórias de fantasma. O mesmo vale para mila
gres. E se um rumor sobre um milagre for escrito
em um livro, torna-se difícil refutá-lo, principal
mente se o livro for antigo. Quando o rumor é
•
• •
•
•
•
• •
•
•
•
suficientemente antigo, começa a ser chamado de
tradição, e as pessoas acreditam nele ainda mais.
Isso é muito estranho. Como não percebem que
os rumores antigos tiveram mais tempo para ser
distorcidos do que os rumores sobre eventos mais
recentes? Elvis Presley e Michael Jackson viveram até há pouco, não houve tempo para o desenvolvi
mento de tradições, por isso raras são as pessoas que acreditam em histórias como ''Elvis foi visto
em Marte''. Mas, daqui a 2 mil anos, quem sabe?
E quanto àquelas histórias estranhas de
pessoas que dizem ter sonhado com alguém que não viam havia muitos anos e quando acordaram
encontraram uma carta dessa pessoa na caixa do
correio? Ou que, ao acordar, ouviram ou leram
que a pessoa morrera durante a noite? Você mes
mo talvez já tenha vivido uma experiência desse
tipo. Como explicar essas coincidências?
Ora, a explicação mais provável é que são
apenas isso, coincidências, nada mais. A questão
é: só nos damos ao trabalho de contar uma história quando acontece alguma coincidência estra -
nha. De outra maneira, não a contamos. Ninguém
comenta: ''Esta noite sonhei com um tio em quem
não pensava havia muitos anos, e quando acordei
descobri que ele não morreu durante a noite!':
Quanto mais fantasmagórica a coincidência,
é mais provável que a notícia sobre ela se espalha
rá. Às vezes, a pessoa acha o caso tão notável que o
relata em uma carta para o jornal. Por exemplo, ela
sonha, pela primeira vez na vida, com uma atriz que foi famosa no passado e está esquecida, e ao
acordar descobre que ela morreu durante a noite.
Uma visita de despedida em um sonho que so
brenatural! Mas pensemos um pouco no que realmente aconteceu. Para que uma coincidência seja
noticiada em jornal, basta que ela aconteça para uma única pessoa entre seus milhões de leitores. Tomando como exemplo apenas a Grã-Bretanha,
cerca de 2 mil pessoas morrem por dia, e devem
acontecer uns cem milhões de sonhos por noi
te. Analisando esses dados, é mesmo de esperar
que de vez em quando alguém acorde e descubra
que a pessoa com quem sonhou morreu durante
a noite. E só esse alguém mandaria sua história
para o jornal. •
2 5 1
•
Outro detalhe é que as histórias vão sendo
aumentadas conforme são recontadas. As pessoas
gostam tanto de uma história que acrescentam
uns floreios para melhorá-la um pouquinho. É
tão divertido fazer os outros se arrepiarem exa
gerando um relato ! Só um tantinho, para torná
-lo mais interessante. E o próximo a repassar a
história também exagera um pouco e assim por
diante. Por exemplo, você acorda, descobre que
alguém famoso morreu durante a noite e resol
ve investigar quando foi a morte exatamente. A
resposta poderia ser: ('Ah, deve ter sido mais ou
menos às três da madrugada': Aí você calcula que
poderia muito bem ter sonhado com essa pessoa
por volta das três da manhã. E, antes que se dê
conta, o ccmais ou menos'' e o ''por volta de'' já foram eliminados da história quando ela é reconta
da, tornando-se: c'A pessoa morreu exatamente às três da madrugada, e foi exatamente nessa hora
252
I
1
que o primo de um amigo da neta da minha sogra
sonhou com ela''. Às vezes podemos identificar com precisão
a causa de uma coincidência estranha. Um grande cientista americano chamado Richard Feynmam perdeu tragicamente a mulher, que morreu
de câncer, e o relógio no quarto dela parou bem
no momento da morte. Frio na espinha! Mas o
doutor Feynman não era considerado um grande cientista à toa. Ele foi averiguar e descobriu a verdadeira explicação. O relógio estava com de
feito. Se o inclinassem, ele parava. Quando a sra.
Feynman morreu, a enfermeira precisou saber a
hora da morte para informar no atestado de óbi
to. O quarto do hospital estava escuro, por isso ela pegou o relógio e o inclinou na direção da janela
para enxergar o mostrador. Foi nesse momento
que o relógio parou. Nada de milagre, apenas um
mecanismo defeituoso. •
Mesmo que não houvesse uma explicação assim, mesmo se a mola do relógio realmente ti
vesse parado justo no minuto em que a sra. Feynman morreu, não deveríamos nos impressionar
demais. Sem dúvida a qualquer minuto de todos
os dias e noites numerosos relógios param no país
todo. E muita gente morre a cada dia. Repetindo
meu argumento: ninguém se dá o trabalho de es
palhar ((notícias'' como ('Meu relógio parou exata -
mente às 4h50 e ninguém morreu''.
Um dos charlatães que mencionei no ca
pítulo sobre magia fingia que era capaz de fa
zer relógios voltarem a funcionar pelo poder do
pensamento. Ele convidava seus milhares de te
lespectadores a pegar qualquer relógio velho e
quebrado que tivessem em casa e segurá-lo nas mãos enquanto ele tentava fazê-los funcionar à
distância. Quase imediatamente o telefone tocava no estúdio de televisão, e uma voz ofegante anun-
ciava no maior espanto que seu relógio realmente
começara a funcionar.
Parte da explicação pode ser parecida com o caso do relógio da sra. Feynman. Isso é menos
provável com os relógios digitais modernos, mas,
na época em que os relógios tinham mola, sim
plesmente pegar um na mão podia fazê-lo fun
cionar, pois o movimento súbito ativava a mola
que sustentava o balancim. Isso acontece mais
facilmente se o relógio estiver aquecido, e o calor
das mãos pode ser suficiente não com muita
frequência, mas isso não é necessário quando há
1 O mil telespectadores segurando relógios para -
dos, talvez chacoalhando-os e depois retendo-os
nas mãos quentes. Bastava que um desses 1 O mil
relógios começasse a tiquetaquear para que seu
dono telefonasse todo empolgado à emissora e
impressionasse o público. E ninguém falava nada
dos outros 9999 que não voltaram a funcionar. •
2 53
Pensando sobre os m i lagres
Um famoso pensador escocês do século
XVI I I chamado David Hume apresentou um sagaz ponto de vista sobre os milagres. Ele come
çou definindo milagre como uma transgressão de
uma lei da natureza. Andar sobre as águas, trans
formar água em vinho, fazer um relógio parar ou
funcionar com o poder do pensamento ou trans
formar um sapo num príncipe seriam bons exem
plos de transgressão de uma lei da natureza. Mi
lagres assim seriam muito perturbadores para a
ciência, pelas razões que expus no capítulo sobre
magia. Isso se alguma vez acontecessem, é claro.
Então como devemos responder às histórias de
milagres? Essa foi a questão abordada por Hume,
e sua resposta foi o tal ponto de vista sagaz.
Se você quiser saber quais foram as palavras
exatas dele, aqui estão, mas lembre-se de que foram escritas há mais de dois séculos, então o estilo pode soar estranho:
254
•
•
Nenhum testemunho é suficiente para
comprovar um milagre, a menos que
o testemunho seja de tal natureza que
sua falsidade seria mais milagrosa que
o fato que ele procura comprovar.
Tentarei expressar esse argumento de Hume
em outras palavras. Se João lhe contar uma his
tória de milagre, você só deverá acreditar se for
mais milagroso a história ser mentira (ou um en
gano, ou uma ilusão). Por exemplo, você pode
ria dizer ''Eu confiaria minha vida ao João, pois
ele nunca mente, seria um milagre se alguma vez
ele dissesse uma mentira': Mas Hume diria: ''Por
mais improvável que possa ser João dizer uma
mentira, ela é mais improvável que o milagre que
João afirma ter visto?''. Suponha que João diga ter
visto uma vaca pular até a Lua. Por mais confiá
vel e honesto que ele fosse normalmente, a ideia
de que ele está mentindo (ou tendo uma aluci
nação honesta) seria menos milagrosa q�e o fato
de uma vaca pular até a Lua. Assim, deveríamos
preferir a explicação de que John está mentindo
(ou se enganou).
Esse foi um exemplo extremo e imaginário.
Vejamos agora algo que aconteceu de verdade,
para verificar se a ideia de Hume funciona na prática. Em 1 9 17, duas primas, as inglesas Frances
Griffiths e Elsie Wright, supostamente f otogra -
faram fadas. Acima, vemos uma dessas fotos, na
qual Elsie posa com essas ''fadas''.
Você pode achar que essa foto é uma falsi
ficação óbvia, mas, naquela época, quando a fo
tografia ainda era novidade, muita gente caiu no
logro, inclusive o grande escritor sir Arthur Co
nan Doyle, criador do famoso e muito inteligente
detetive Sherlock Holmes. Anos depois, quando Frances e Elsie já estavam velhinhas, decidiram
pedir desculpas e admitiram que as ''fadas'' nada
mais eram que figuras de papelão recortadas. Agora pensemos como Hume, e vejamos como
Conan Doyle e outros poderiam ter deduzido que
era um truque. Qual dessas possibilidades, na sua
opinião, seria mais milagrosa se fosse verdadeira:
1 . Existem realmente fadas, pessoas peque
nas com asas que voam no meio da flores.
2. Elsie e Frances inventaram tudo e falsifi
caram as fotos.
Não há dúvida, não é mesmo? Crianças ado
ram fazer de conta, e isso é muito fácil. Mesmo se
fosse difícil, mesmo se você achasse que conhecia Elsie e Frances muito bem e elas sempre tivessem sido meninas confiáveis, que jamais sonhariam
em pregar uma peça, mesmo se alguém tivesse
dado a elas o soro da verdade e elas tivessem se
submetido a um detector de mentira e passado
com nota dez, mesmo se tudo isso, somado, in -clicasse que seria um milagre elas contarem uma mentira, o que Hume diria? Ele diria que o ''mi
lagre'' de elas mentirem seria um milagre menor
que a existência de fadas.
255
•
Elsie e Frances não causaram graves danos
com sua travessura, e é até engraçado que tenham
conseguido enganar o grande Conan Doyle. Mas
às vezes peças pregadas por jovens não têm graça
nenhuma, para dizer o mínimo. No século xvrr,
em um vilarejo da Nova Inglaterra chamado Sa
lém, um grupo de meninas adquiriu uma obses
são histérica por bruxas e começou a imaginar, ou
inventar, uma série de coisas. Infelizmente, os su
persticiosos adultos da comunidade acreditaram
nelas. Muitas mulheres idosas e também alguns homens foram acusados de bruxaria, ligação com
o Demônio e de lançar feitiços contra essas me
ninas, que disseram tê-los visto voar e fazer ou
tras coisas estranhas que se pensava que os bru
xos faziam. As consequências foram gravíssimas:
o testemunho das meninas mandou quase vinte
pessoas para a forca. Um homem chegou a ser
esmagado sob pedras, uma coisa medonha que . , aconteceu para uma pessoa inocente so porque
umas garotas inventaram histórias sobre ele. Por
256
que será, eu me pergunto, que elas fizeram aquilo?
Estariam tentando impressionar umas às outras?
Teria sido algo nas linhas do cruel bullying ciber
nético, que vemos hoje em e-mails e nas redes
sociais? Ou será que elas acreditavam mesmo em
suas histórias mirabolantes?
Voltemos às histórias de milagres em geral e como elas começam. Talvez o mais famoso exem
plo de dar credibilidade a crianças que disseram
coisas estranhas seja o chamado ((milagre de Fá
timà: Em 1 9 1 7, na cidade portuguesa de Fátima,
uma pastora de dez anos de idade chamada Lúcia, acompanhada por dois primos menores, Francisco e Jacinta, disse ter tido uma visão numa colina.
As crianças contaram que uma mulher chamada
((Virgem Marià: a qual, embora estivesse morta
havia muito tempo, tornara-se uma espécie de
deusa da religião local, apareceu na colina. Segun -
do Lúcia, o espírito de Maria disse a ela que as três
crianças deveriam voltar àquele local no dia 1 3 de
cada mês até 1 3 de outubro, quando ela realizaria •
um milagre para provar que era quem dizia ser. Rumores sobre o esperado milagre espalharam-se
por Portugal, e no dia marcado uma multidão de
70 mil pessoas, segundo se afirma, reuniu-se no
local. Quando aconteceu, o milagre estava rela
cionado ao Sol. Os relatos sobre o que exatamente
o Sol teria feito são variados. Algumas testemu
nhas disseram que ele pareceu ((dançar': outras
garantiram que ele girou como uma roda de fogo.
A descrição mais dramática dizia:
. . . o Sol pareceu se descolar do céu e
vir esmagar a multidão apavorada [ . . . ]
Justamente quando parecia que a bola
de fogo cairia e nos destruiria, o milagre
chegou ao fim e o Sol reassumiu seu
lugar, brilhando pacífico como nunca.
Pois bem. O que realmente deve ter acon-
venientemente, ela ficou invisível a todos exceto
três crianças, por isso não precisamos levar muito
a sério essa parte da história. Mas o milagre do
Sol que se moveu, segundo se diz, foi visto por
70 mil pessoas. Como explicar isso? Será que o Sol se moveu de verdade? Ou a Terra se moveu para perto dele, fazendo assim parecer que ele se
aproximou? Pensemos como Hume. Temos três
possibilidades a examinar.
1 . O Sol realmente se moveu no céu e des
pencou em direção à multidão apavorada antes de reassumir sua posição costumeira. (Ou a Terra mudou seu padrão de rotação de modo que pareceu que o Sol se moveu.)
2. Nem o Sol nem a Terra se moveram, e 70 mil pessoas tiveram uma alucinação coletiva.
tecido? Houve mesmo um milagre em Fátima? 3. Nada aconteceu, e o relato do incidente é O espírito de Maria apareceu de verdade? Con- falso, exagerado ou simplesmente inventado .
•
257
•
• • - •
'
•
• •
• •
• •
•••
• . .
•
•
Qual dessas possibilidades você acha mais
plausível? Todas parecem bem improváveis. Mas
sem dúvida a terceira é a menos delirante, a que
menos merece o título de milagre. Para aceitar
a possibilidade 3, só precisamos acreditar que
alguém deu a notícia mentirosa de que 70 mil
pessoas viram o Sol se mover e que essa mentira
foi repetida e espalhada, exatamente como tantas
lendas urbanas que se alastram velozmente pela
internet hoje em dia. A possibilidade 2 é menos
provável. Exigiria que acreditássemos que 70 mil
pessoas tiveram uma alucinação com o Sol ao
mesmo. Algo fantástico. Porém, por mais impro
vável e quase milagrosa que a possibilidade 2 pos
sa parecer, ainda assim seria um milagre menor
que a possibilidade 1 .
O Sol é visível ao mesmo tempo em metade do mundo, onde é dia, e não só em uma cidade
portuguesa. Se ele realmente se movesse, milhões
de pessoas no planeta, e não apenas quem estava
em Fátima, ficariam apavoradas. Mas o argumento
258
,
• •
•
•
•
•
•
•
•
• •
•
•
•
•
• •
•
,
• •
•
• •
• •
• •
•
• •
•
-
...
•
contra a possibilidade 1 é ainda mais forte. Se o
Sol realmente tivesse se aproximado à velocidade
relatada, despencando em direção à multidão, ou
se algo houvesse acontecido, mudando a rotação
da Terra o suficiente para dar a impressão de que
o Sol se deslocara a essa velocidade colossal, ora, esse teria sido o catastrófico fim de todos nós. A Terra teria sido jogada para fora de sua órbita e
hoje seria uma rocha gelada e sem vida investindo pelo vácuo escuro, ou teríamos ido em direção ao
Sol e fritado. Lembre, do capítulo 5, que a Terra
gira à velocidade de muitas centenas de quilômetros por hora ( 1600 km/h, medidos na linha do
equador), e apesar disso o movimento do Sol não
é visto, pois ele está muito distante. Se o Sol e a
Terra de súbito se movessem um em direção ao
outro com velocidade suficiente para uma multidão ver o Sol ''despencar'' em cima das pessoas, o
movimento real deveria ter sido milhares de vezes
mais veloz que o normal, e isso seria literalmente
o fim do mundo. •
•
•
• •
•
•
•
•
•
•
•
•
Conta-se que Lúcia disse às pessoas para
olharem o Sol. Isso é uma tremenda estupidez,
pois pode lesionar permanentemente os olhos. E
também pode induzir uma alucinação de que o Sol está bambaleando no céu. Mesmo se apenas
uma pessoa tivesse a alucinação ou mentisse que
o Sol se movera, então contasse para alguém, que
contasse para outra pessoa, que contasse para um
monte de gente, e assim por diante, isso bastaria
para dar início a um rumor popular. Por fim, uma
das pessoas que ouviu o rumor provavelmente es
creveria a respeito. Mas, para Hume, se isso acon -
teceu ou deixou de acontecer não importa. O que
importa é que, por mais implausível que possa ser
70 mil testemunhas se enganarem, é menos im
plausível que o Sol se mova do modo descrito. Hume não afirmou diretamente que mila
gres são impossíveis. Ele nos pediu para definir
milagre como um evento improvável cuja improbabilidade possamos estimar. A estimativa
não precisa ser exata. Basta que a improbabili-
dade de um alegado milagre seja situada de um
modo aproximado em algum tipo de escala, e
então comparada a alternativas como uma aluci
nação ou uma mentira.
Voltemos ao jogo de cartas do capítulo 1 .
Você deve lembrar que quatro jogadores recebe
ram uma mão perfeita: só paus, só copas, só es
padas e só ouros. Se isso realmente acontecesse,
o que deveríamos pensar? Há três possibilidades.
1 . Um milagre sobrenatural aconteceu, rea
lizado por um mago, uma bruxa, um feiticeiro ou
um deus com poderes especiais que violou as leis da ciência e transformou todos os desenhos de
naipes no baralho de modo a deixá-los posicionados para a mão perfeita.
2. É uma coincidência impressionante. As
cartas foram embaralhadas e produziram uma
mão perfeita por acaso.
3. É um truque. Alguém deve ter substituído
as cartas que vimos sendo embaralhadas por um
260
baralho previamente ordenado, que estava escon
dido na sua manga.
Agora, tendo em mente o conselho de Hume, o que você acha? É difícil acreditar em
qualquer uma das possibilidades. Mas acreditar
na 3 é muito mais fácil. A possibilidade 2 po
deria acontecer, mas já calculamos as chances:
536 447 737 765 488 792 839 237 440 000 contra 1 . Não podemos calcular as chances da 1 com a mesma precisão, mas pense: uma força que nunca foi adequadamente demonstrada e que ninguém
entende manipulou desenhos em tinta vermelha
e preta em dezenas de cartas ao mesmo tempo.
Você pode relutar em usar uma palavra forte como
''impossível': mas Hume não pede isso. Ele queria
apenas que comparássemos as alternativas, que, nesse caso, consistem em um truque de ilusionismo e em um colossal golpe de sorte. Por acaso já
•
•
não vimos truques (em geral envolvendo cartas) ,..., , . ,.,, . .
que sao no min1mo tao 1mpress1onantes quanto
esse? É claro que a explicação mais provável para a mão perfeita não é sorte pura, menos ainda uma
interferência milagrosa nas leis do universo, e sim
um truque perpetrado por um ilusionista ou um
espertalhão desonesto e habilidoso com as cartas.
Vejamos outra famosa história de milagre, o
já mencionado relato do pregador judeu chama
do Jesus que transformou água em vinho. Nova
mente podemos listar três explicações possíveis.
1 . Realmente aconteceu. A água se transformou em vinho.
2. Foi um truque hábil.
3 . Nada aconteceu. É só uma história, um re
lato fictício, que alguém inventou. Ou houve um
\ I � \ ' " ,..
mal-entendido envolvendo alguma coisa muito
menos notável que realmente aconteceu.
Creio que não há dúvida sobre a ordem ou as
probabilidades. Se a explicação 1 fosse verdadei
ra, violaria alguns dos mais arraigados princípios
científicos que conhecemos, pelas mesmas razões
que vimos no primeiro capítulo quando falei de
abóboras e carruagens, sapos e príncipes. Molé
culas de água pura precisariam ter sido transformadas em uma complexa mistura de moléculas,
incluindo álcool, taninos, vários tipos de açúcar e
muitas outras. As alternativas teriam que ser mui
to improváveis para que preferíssemos essa.
Um truque é possível (truques muito mais
impressionantes costumam ser feitos no palco e
na televisão), porém menos provável do que a ex
plicação 3. Por que nos dar ao trabalho de supor
um truque, se não existem evidências de que o in
cidente aconteceu? Por que até mesmo pensar em
2 6 1
-
--:: - ... •
um truque quando, em comparação, a explica
ção 3 é tão provável? Alguém inventou a história.
Histórias inventadas são muito comuns. Ficção é
isso. Sendo tão plausível que esse relato seja fic
ção, não precisamos nos dar ao trabalho de supor
truques, muito menos milagres reais que violem
as leis da ciência e virem do avesso tudo o que sabemos a respeito de como o u·niverso funciona.
Aliás, sabemos que muita ficção foi inventa
da em torno do tema desse pregador chamado Je
sus. Por exemplo, existe uma graciosa canção em
inglês chamada ''Cherry tree carol'' [cântico da
262
cerejeira] que fala de uma ocasião em que Jesus
ainda estava no ventre de sua mãe, Maria (a mes
ma da história de Fátima). Ela estava andando
com José, seu marido, quando encontraram uma
cerejeira. A mulher quis cerejas, mas elas estavam
no alto da árvore, fora de alcance. José não queria
subir na árvore, e a canção conta:
Disse então Jesus menino
Lá do ventre de Maria:
''Desce tu, galho mais fino,
E dá o que ela queria,
Desce tu, galho mais fino,
E dá o que ela queria''.
Desce o galho até a mão
de Maria, que espantada,
Diz : 'José, olha que bom,
ter cerejas comandadas''.
Diz : '1osé, olha que bom,
ter cerejas comandadas''.
Você não vai encontrar a história da cerejeira
em nenhum livro sagrado milenar. Ninguém que
seja minimamente informado e instruído pensa
que ela aconteceu. Muita gente acha que a história da água que virou vinho é verdadeira, mas todos
concordam que a da cerejeira é ficção. Essa histó
ria foi inventada faz apenas uns quinhentos anos.
Já a da água em vinho é mais antiga. Aparece em
um dos quatro evangelhos da religião cristã (o
Evangelho de João e em nenhum dos outros
três !) . Mas não há razão para acreditar que seja algo além de uma história inventada. A diferença
é que foi inventada alguns séculos antes da histó
ria da cerejeira. Aliás, os quatro evangelhos foram
escritos muito tempo depois dos eventos que ale
gam descrever, e nenhum tem por autor uma tes
temunha ocular. Podemos concluir com seguran -
ça que a história da água transf armada em vinho é ficção, exatamente como a história da cerejeira.
O mesmo pode ser dito sobre todos os pre
tensos milagres, todas as explicações ''sobrenatu-
rais'' para alguma coisa. Suponha que ocorra algo que não entendemos e que não somos capazes de descobrir como poderia ser uma fraude, um
truque ou uma mentira. Seria então correto con
cluir que, por isso, tem de ser sobrenatural? Não!
Como expliquei no primeiro capítulo, isso encer
raria as discussões e investigações. Seria preguiça e até desonestidade, pois fazer tal coisa equivale a afirmar que nenhuma explicação natural jamais
será possível. Se você afirma que alguma coisa es
tranha tem de ser sobrenatural, não está apenas
dizendo que não a entende no momento. Está
desistindo de entendê-la e afirmando que nunca
poderá ser compreendida.
M ilagre de hoje, tecnologia de amanhã
Existem coisas que nem os melhores cientis
tas atuais conseguem explicar. Mas isso não signi
fica que devemos bloquear todas as investigações
apelando para ''explicações'' falsas que invocam
a magia ou o sobrenatural e não explicam coisa
nenhuma. Imagine como um homem da Idade
Média mesmo o mais instruído de sua época
reagiria se visse um avião, um computador, um
celular ou um GPS. Provavelmente diria que eram
coisas sobrenaturais. Mas hoje esses aparelhos são
comuns, e sabemos como funcionam, pois foram
construídos segundo os princípios da ciência.
Nunca foi necessário apelar para a magia, o mila
gre ou o sobrenatural, e agora sabemos que o ho
mem da Idade Média estaria errado se o fizesse.
Não precisamos voltar aos tempos medie
vais para sustentar nosso argumento. Um século atrás, se uma gangue de criminosos tivesse celula -res, conseguiria coordenar suas ·atividades de um
modo que pareceria telepatia a Sherlock Holmes.
Nos tempos desse famoso detetive, um suspeito de assassinato que pudesse provar que estava em
Nova York na noite seguinte a um assassinato co
metido em Londres teria um álibi perfeito, pois no século XIX era impossível estar nas duas cida
des num mesmo dia. Quem dissesse o contrário
pareceria estar apelando para o sobrenatural. No
entanto, hoje, com os aviões, isso é fácil. O renomado escritor de ficção científica Arthur C. Clarke resumiu essa ideia em sua Terceira
Lei: Qualquer tecnologia suficientemente
avançada é indistinguível de magia.
Se uma máquina do tempo nos levas-
se a um século futuro, veríamos coisas fantásti
cas que nos pareceriam impossíveis milagres. Mas não quer dizer que qualquer coisa que ache
mos impossível hoje acontecerá no futuro. Os es
critores de ficção científica podem imaginar uma
máquina do tempo, uma máquina antigravidade,
um foguete mais veloz que a luz. Mas o simples
fato de sermos capazes de imaginar não é razão
para supor que máquinas assim um dia serão rea -
lidade. Certas coisas que podemos imaginar hoje
serão reais. A maioria não.
Quanto mais refletimos, mais percebemos
que a própria ideia de um milagre sobrenatural
não tem sentido. Se acontecer algo que pareça
inexplicável pela ciência, podemos, com seguran
ça, concluir uma dentre duas coisas. Ou não acon -
teceu realmente (o observador se enganou, mentiu
ou foi logrado por um truque) ou estamos diante
de algo que a ciência ainda não sabe explicar. Se
a ciência atual encontra uma observação ou um
264
resultado experimental que não consegue enten -
der, não devemos descansar até que ela
evolua o suficiente para encontrar a ex
plicação. Se para isso for preciso um tipo
radicalmente novo de ciência, uma ciência
revolucionária, tão estra-
nha que os cientistas mais
velhos quase não a reconhe-
çam como ciência, tudo bem.
Isso já aconteceu antes. Mas
não sejamos preguiçosos, derro-
tistas, a ponto de dizer ''Só pode
ser sobrenatural'' ou ''Só pode ser milagre'� Em vez disso, digamos que é
. , um enigma, que e estra-
nho, um desafio que devemos enfrentar. Seja questionando
a verdade da observação, seja
expandindo a ciência em no-
vas e fascinantes direções, a
resposta apropriada e corajosa a qualquer desafio desse tipo
é: vamos enfrentá-lo! E, enquanto
não tivermos encontrado uma resposta
apropriada para o mistério, não há proble-
ma em dizer simplesmente: ((Isso é algo que ainda
não entendemos, mas estamos trabalhando para entender'� De fato, é a única coisa honesta a fazer.
Milagres, magia e mitos podem ser divertidos, e nos deleitamos com eles ao longo deste livro. Todo mundo adora uma boa história, e espero
que você tenha gostado dos mitos que contei para •
iniciar a maioria dos capítulos. Espero ainda mais
que, em cada capítulo, você tenha gostado das ex -
plicações científicas que vieram depois dos mitos.
E que concorde comigo: a verdade tem sua própria
magia. Ela é mais mágica no melhor e mais fas-
•
- ' •
•
•
.,
• · '
•
cinante sentido dessa palavra do que qualquer
mito, mistério ou milagre inventados. A ciên -
eia tem sua própria magia: a magia da
•
-· - - ,
� lt� q,.,. ·� 7.L-1
'1 .t ? g -� t ·· , ... � .. ,. �{ � �1 �
- , - ·1· •11 • t ,... r•· ti,� ,... r,, ,�,'(
"'f:· .. t··L : J .. < f..--"' . .tu � ' -r"i"-9 .>'
� / .. ., + "b. .. �,� tr �t ? .....
2 6 5
• - ,. .... >--
·- '" .. f I- .... J
....... . - ' li�
aborígines australianos, 96-8 ácaros, 94 acaso, 26-7, 234-5 açúcar, 1 36, 1 39 Adão e Eva, 34-5, 57, 58, 23 1 afélio, 1 1 1 , 1 1 4, 1 1 7 agricultura, 45 água em outros planetas, 1 92-3,
194 alergias, 244 alucinações, 1 96 anã branca, 1 30 anã vermelha, 194; ancestrais, 38-43, 45-9, 5 1 -2, 7 1 Andersen, Hans Christian, 20 andorinha-do-mar-ártica, 1 03-4 anfíbios, 49 Anguilla, 66, 67 Applewhite, Marshall, 1 83 aranhas: saltadoras, 199; teias de,
238, 240 Arca de Noé, 142-3 arco-íris: mitos, 142-5; magia real,
1 47; espectro, 1 48-9, 1 53-4, 1 56-9
areia, 80 asteca, religião, 1 1 9-21 asteroides, 1 34 astrologia, 229 Atlas, 1 62 átomos: compostos, 78, 80; conhe
cimento do, 1 6, 77 -8; cristais, 79-80; desintegração, 82-3; elementos, 78; interior do átomo, 82-9 1; isótopos radioativos, 43-4; massa, 89-90; modelos, 83-4; núcleo, 83-5, 87, 89-91
ausência de peso, 1 07-8 aves, 48, 1 03-4, 201
bactérias, 1 3, 64, 95, 1 37, 242 baleias, 1 9, 52, 57, 7 1 , 1 56, 20 1
• •
baralho, embaralhar e dar as car-tas, 26-7, 260- 1
Barotse, tribo, 1 1 8 Beagle, navio, 67 big bang, modelo, 165, 180 Blaclunore, Sue, 1 86 Bohr, Niels, 83 Boshongo, mito, 1 6 1 Brahma, 163 Brown, Derren, 2 1 Buckyballs e Buckytubes, 92-3
caçadores-coletores, 45 Cachinhos Dourados, zona, 1 94,
1 9 6 cães, 19, 58, 1 55, 2 1 2 camaleão, 227 camundongos, 50- 1 , 7 1 câncer, 245 cara ou coroa, 235 carbono, 79, 84, 90- 1 , 92-3 carbono- 1 4, 44, 9 1 carnívoros, 1 3 7, 1 39 carruagens, 24- 5, 3 1 , 247 carvão, 1 38, 1 96 Cassini, sonda espacial, 1 1 2 chimpanzés, 19, 46, 50- 1 , 7 1 Chumash, povo, 1 43-4 chumbo, 78, 79, 82, 85-9, 90- l , l 3 1 chumbo-206, 43 ciclos lunares, 1 1 7 Círculo Mágico, 2 1 Clancy, Susan, 1 8 5 Clarke, Arthur C., 264 cloro, íons de, 80 Coatlicue, 1 20 coincidência, 252-3, 260 coisas ruins, 226-7, 23 1 -4, 238 comedores de matéria em decom -
posição, 1 3 7 Cometa Halley, 1 1 2 - 1 3 cometas, 1 1 1 , 1 1 2 - 1 3
•
Conan Doyle, Sir Arthur, 255-6 continentes, 2 1 4- 1 7 cores, 88, 1 56-9, 1 70- 1 correntes de convecção, 223 Crick, Francis, 1 7 - 1 9 críquete, 235-6 cristais, 79-80, 84 cromossomos, 1 7, 50 cruzamento: cavalos e jumentos,
4 1 , 58, 64; entre espécies diferentes, 4 1 , 46-7, 58, 64; experimentos de Mendell, 1 6- 1 7; in -tercruzamento, 45-7, 58; seleção natural, 30- 1 ; reservatórios gênicos, 72-5; seletivos, 28-9
Darwin, Charles: desenho da árvore, 60; estada em Galápagos, 66-7; sobre evolução, 27, 30- 1 ; sobre seleção natural, 30- 1 , 7 4, 238, 240
datas, 43-4, 91 De1neter, 98-9 Demócrito, 77 deriva continental, 2 1 7, 220 ''deslocamento para o vermelho''
(''red shift'') , 1 73-4, 1 79, 1 89 Diabo, 23 1 dialetos, 63, 7 1 diamante, 79, 84- 5 dia-noite, ciclo, 96-8, 1 03 dinossauros, 1 2, 14, 48, 1 3 5 distância, medição de, 1 68-9 diversidade, 54-7 DNA, 16- 19, 50- 1 , 64-8, 72 doença, 228-30, 242 Dogon, tribo, 227 Doppler, Christian, 1 77, 1 79
Éden, 34-5 efeito Doppler, 1 74, 1 76-9, 1 89 Egito, religião, 122
•
267 •
elementos, 77, 78, 1 72 elétrons, 83-5, 89-9 1 elipses, 1 1 0- 1 2 emoções, 1 9 energia potencial, 1 39 energia, 1 36-9 Esculápio, 228 espalhamento do assoalho oceâni
co, 22 1 - 5 espécies, 58-9, 64, 7 1
·
espectro, 1 48-9, 1 53-4, 1 56-9, 1 70-3
espectroscópio, 1 70-3, 1 80, 1 89 espelhos, 88 estação espacial, 1 07 -8 estações, 98-9, 103-5, 1 1 5 - 1 7 estado estacionário, modelo, 1 65 estrelas: atração gravitacional, 1 26;
estrelas cadentes, 1 34-5; de nêutron, 1 96; distâncias de, 12, 1 68-9; galáxias, 1 5, 165; história de uma estrela, 1 29-30; órbitas planetária, 1 32-3; supernovas, 1 3 1 ; tamanho, 1 28; temperatura, 126
Eta Carinae, 1 28, 1 3 1 Europa, 1 93 evaporação, 1 38 evolução: desenho da ávore, 60;
doenças autoimunes, 245; gradual, 27-8; gravidez, 244; ilhas Galápagos, 66- 7 1 ; línguas, 55, 63-4, 7 1 , 74; reprodução seletiva, 28-9; reservatórios gênicos, 72-4; ; seleção natural, 30- 1 , 74, 238, 340
extraterrestres: abdução por, 1 84-7; na ficção, 1 98; mitos e lendas, 1 82-3, 1 86-7; vida em outros planetas, 1 5, 1 88, 1 90, 1 93-7; visão, 198-20 1
fada madrinha, 24- 5 fadas, fotografias de, 255-6 falsa memória, síndrome, 1 85 fantasmas, histórias de, 250 Fátima, milagre de, 256-9 ferro, 77, 78, 79, 82, 85, 1 3 1 , 1 96 Feynman, Richard, 252-3 fluxo gênico, 64, 65, 72
268
•
folhas, 1 36, 1 39 formiga-leão, 238, 240 fósseis, 14, 42-3, 9 1 f ótons, 88, 1 1 7 Franklin, Rosalind, 1 7 fungos, 13 7, 242
Galápagos, ilhas, 66-71 galáxias, 1 5 , 1 65-9, 1 73, 1 80 gases, 78, 80- 1 , 82, 87 gênero, 58-9 genes, 16- 1 7, 50-2, 64, 7 1 , 72-5 gigante vermelha, 1 30 gigantes gasosas, 1 90 Gilgamesh, 1 40-3
· Gliese, 1 94 golfinhos, 20 1 Gondwana, 2 1 5 gotas de chuva, 1 52-5 grandes símios, 46-7, 59 gravidade, 1 26, 1 38, 196 gravidez, 243-4 gregos: medicina, 228-9; mitos, 98-
9, 1 26, 1 62 Griffiths, Frances, 255-6 Grimm, irmãos, 20
Hades, 98-9 Haiti, terremoto, 204 Hale-Bopp, cometa, 1 83 Heaven's Gate, culto, 1 83-4 hélio (gás), 1 29, 1 30, 1 3 1 Hélio, 1 1 1 , 123, 1 29 herbívoros, 1 36-7, 1 39 hereditariedade, 1 7 hibernação, 1 04 hidrogênio: átomo, 90, 1 72; código
de barras espectral, 1 72; elemento, 78; estrelas, 126, 1 29-30, 1 3 1 ; octano, 92
Himalaias, formação, 2 1 6, 224 Hipócrates, 229 Homo erectus, 41 -2, 59 Homo sapiens, 41 -2, 58-9 Hopi, povo, 55-6 Hubble, deslocamento, 1 73 Hubble, Edwin, 1 73 Hubble, telescópio, 1 73 Huitzilopochtli, 1 20
•
•
Hume, David, 254-5, 257, 259, 260 humores, quatro, 230
iguanas, 66, 67-9 ilhas, 65-71 ilusionistas, 20- 1 , 260, 26 1 - 2 Inca, religião, 1 1 9, 1 2 1 íncubo, 1 86-7 insetos, 56, 68, 1 57, 1 99 inverno, 96, 98-9, 1 03-5, 1 1 4- 1 7 íons, 80 isótopos, 43-4, 9 1
Jackson, Michael, 248-9, 25 1 Japão: terremoto e tsunami, 20 1 ,
204-5; terremoto em mitos, 2 10 Jericó, muralhas de, 209 Jesus, 247, 26 1 -2 Jornada nas Estrelas, 1 84, 1 85 Júpiter, 1 26, 1 34, 1 89, 1 9 1
Kepler, Johannes, 1 1 0, 1 3 1
lagos, 65, 68 Lear, Edward, 76 ((lei das médias': 235 Lei de Murphy, 232-3, 238, 240- 1 Lei de Poliana, 233, 241 lêmures, 47, 59 lendas da África ocidental, 2 1 2 - 1 3 línguas, 54-5, 6 1 -4, 7 1 , 74 líquidos, 8 1 -2, 87 Los Angeles, simulação de terre-
moto em, 206-7 Lourdes, 228-9 Lowell, Percival, 1 93 Lua, 1 1 7, 125, 196 luz: comprimento de onda, 1 57-9,
200; espectro, 148-9, 1 56-9; estelar, 170- 1 ; feixes, 88; ondas, 1 79; velocidade da, 1 4- 1 5
macacos, 57, 5 1 , 59 magia: de palco, 1 9, 20- 1 ; poética,
1 9, 22; sobrenaural, 1 9, 20, 23-7, 247
Maia, religião, 1 1 9, 1 2 1 rnamíferos, 48, 50- 1 , 59, 7 1 , 1 03 máquina do tempo, 44-9
•
máquinas a vapor, 1 38 Marte, 1 26, 1 93 massa, 89-90 Mayr, Ernst, 55 memórias, falsas, 185 Mendel, Gregor, 1 6- 1 7, 1 9 mercúrio, 82 metais, 78, 82, 83 metano, 82 meteoros, 1 34-5 microscópios, 19, 82, 94, 242 migração, 103 -4 milagres: definição, 254; exemplos,
254-5, 26 1 -3; Fátima, 256-9; fotografias de fadas, 255-6; de Jesus, 24 7, 26 1 -2; jogando cartas, 200- 1 ; julgamentos de bruxas, 256; magia sobrenatural, 20, 24 7; rumores e tradições, 250- 1 ; tecnologia e, 263-5
mioglobina, 93 mito de origem tasmaniano, 32-3 mito zulu da criação, 1 63 mitos chineses, 1 6 1 mitos hebreus ver mitos judeus mitos indianos, 1 63 mitos judeus: Adão e Eva, 34-5,
23 1 ; Arca de Noé, 1 42-3; criação, 123; nomeação dos animais, 57-8; Sodoma e Gomorra, 208; Torre de B abel, 54-5
mitos maoris, 2 1 1 mitos nigerianos, 1 63 mitos nórdicos, 36-7, 123, 145 mitos norte-americanos, 98 mitos siberianos, 2 1 2 mitos sumérios, 1 40-2 modelos, 1 6- 1 7, 83, 165 moléculas: atómos em, 78; Bucky-
balls e Buckytubes, 92-3; cores, 1 7 1 ; cristal de diamante, 79, 84; fósseis, 43; milagres, 26 1 ; movimento, 80- 1 ; ondas, 1 7 5-6; sistema imunológico, 243, 244
molibdênio, 78 morcegos, 2 0 1 morte, 227 movimento relativo, 1 00 multiverso, 165
•
naftaleno, 92-3 Navajo, povo, 56-7 nêutrons, 89-91 Newton, Sir Isaac, 1 05, 148- 5 1 , 1 70 Nova Guiné, 55 Nova Zelândia: mitos de terremo
to, 2 1 1 ; terremotos, 205 núcleo, núcleos, 83, 84-5, 87, 89-9 1 número atômico, 90, 1 72 nuvens, 138
oásis, 65, 68 octano, 92 olhos, 198-202 onda mexicana (ola), 1 7 5 ondas de rádio, 1 3, 1 59, 200-2; mo
duladas, 20 1 órbitas: cometas, 1 1 1 , 1 1 2- 1 3; elip
ses, 1 10- 1 1 ; estação espacial em, 1 07-8; órbita da Terra, 1 00- 1 , 1 04-7, 1 1 1 , 1 1 4, 1 32, 1 82; planetas, 1 05-7, 1 1 1 - 1 2, 1 32-3; satélites, 107
ornitorrinco, 202 ouro, 77, 78, 79, 80, 196 ozônio, 78-9
Pan Gu, 1 6 1 -2 Pantera Cor-de-Rosa, A, 23 7 paralaxe, método, 1 68-9 paralisia do sono, 1 85 -7 paranoia, 241 parasitas, 1 37, 240, 242-3 pecado original, 35 peixes, 40-2, 48-9, 65, 202 Penn e Teller, 2 1 peregrinação, 228-9 periélio, 1 1 1 - 12, 1 1 4, 1 1 7 Perséfone, 98-9 pirâmides, 1 2 1 , 1 22 placas tectônicas, 2 1 4, 2 1 7-20,
222-5 planetas: astrologia, 229; atração
gravitacional, 1 26, 196; detectando, 1 89-90; distância de estrela, 1 94; extrassolar, 1 89; massa, 1 96; órbitas, 105-7, 1 1 1- 12, 1 32-3, 1 65; tamanho, 126, 1 96;
temperatura, 194; vida em outros planetas, 1 88
Plutão, 1 1 1 , 1 1 2, 1 1 4, 1 3 5 poeira de estrela, 1 3 1 Pompeia e Herculano, 224 predadores, 240, 242 Presley, Elvis, 248, 25 1 prismas, 148-53, 170 ((propensão a acidentes': 236-7 prótons, 89-91 Proxima Centauri, 125, 128 Pueblo, povo, 56-7
quarks, 9 1 Quetzalcoatl, 1 1 9
radar, 202 radiotelescópio, 1 3, 1 59 raios X, 1 3, 1 59, 200, 20 1 Randi, James, ('O Incrível': 2 1 relógios radioativos, 43-4 relógios, 252-3 reprodução seletiva, 28-9 répteis, 48 reservatório gênico, 72-5 rios, 1 38 rochas: dureza, 85-7; idade de, 43-
4; ígneas, 42-3; opacidade, 88; pontudas, 234; sedimentares, 43, 80; tipos, 42-3
rodas d'água, 1 38-9 rostos, 249 Rowling, J. K., 20 rumores, 248-5 1 Rutherford, Ernest, 82, 83
sal, 80 Salem, julgamento de bruxas em,
256 •
Salish, tribo, 163 San Andreas, falha, 206, 207, 225 San Francisco, terremoto, 205 sapos, 24, 28-3 1 , 49, 5 1 , 65 satélites, 1 O7 Saturno, 82, 1 1 2, 1 34 saúde, 230 seleção natural, 30- 1 , 7 4, 238, 240- 1 simulação em computador, 1 6 sistema imunológico, 243-5
•
269 •
sódio, íons de, 80; luz de, 1 7 1 - 3 Sodoma e Gomorra, 208 Sol: atração gravitacional, 1 26; cul
to ao, 1 1 8-23; dia e noite, 1 00-3; estrela, 124, 128, 129; história de uma estrela, 129-30; importância para a vida, 1 36-9; mitos, 96-8; órbitas planetárias, 105-7, 1 1 1 , 1 1 2, 132-3; vento solar, 1 1 3; verão e inverno, 1 00, 1·03-5
sólidos, 8 1 -2, 87 som: comprimento de onda, 1 56,
1 59; ondas, 1 74-9; velocidade, 14
sonar, 201 sonhos, 247, 2 5 1 -2 sorte, 234-5 Star Trek ver Jornada nas Estrelas Stubblebine, general Albert, 86-7 subdução, 225 súcubo, 1 86-7 supernovas, 1 3 1 , 1 32, 1 59
Tahltan, povo, 98 tectônica de placas, 2 1 4, 2 1 7 -20,
222-5 telescópios: como máquinas do
tempo, 14- 1 5 ; de raios X, 1 3 , 1 59; detectando a realidade, 1 9; espelho curvo, 200; fotografias,
270 '
1 59, 1 66-7; 1 73; Hubble, 1 73 ; observando estrelas, 1 30; radiotelescópios, 1 3, 1 59
Tempo do Sonho, 96 tempo: começo do, 1 65; medição
do, 43-4, 9 1 Terra: centro, 82, 223 -4; corren
tes de convecção, 223-4; órbita, 1 00- 1 , 1 04-7, 1 1 1 , 1 14, 1 32, 1 82; eixo, 1 0 1 , 1 1 4-1 7; espalhamento do assoalho oceânico, 22 1 -5; placas tectônicas, 2 1 6-20, 224-5; rotação, 1 O 1 -3
terremotos: causas, 2 1 6, 224-5, 234; doenças, 229; episódios de, 204-5; mitos, 208- 13; simulação, 206-7
Tezcatlipoca, 1 1 9-20 Thomson, J. J., 83 Tiv, tribo, 1 1 8 Tlaloc, 1 19-20 Torre de Babel, 54-5, 6 1 tradição, 2 5 1 tritão, 29-3 1 , 49 tsunami, 204-5, 234 turfa, 1 3 7 -8
universo: big bang, 1 65, 1 80; distâncias, 1 68; em expansão, 1 80; formas de vida extraterrestres,
•
•
1 82-3; leis do, 261 -2; mitos de origem, 1 62-3; observável, 165
urânio, 90, 1 3 1 urânio-238, 43-4 Utnapashtim, 1 40-2
vacina, 243 velas-padrão, 1 69, 1 79 vento solar, 1 1 3 vento, 87, 1 75 Vênus, 1 1 2, 1 30 verão, 96, 98, 99, 1 03-5, 1 1 4- 1 7 Vesúvio, erupção, 225 Via Láctea, 1 66, 1 73 vidro, 8 1 vieira, 200 vírus, 238, 242, 244-5 visão, 1 98-20 1 Vishnu, 163 vulcões, 24, 43, 67-9, 223, 225
Watson, James, 1 7 - 1 9 Wegener, Alfred, 2 1 7, 220 Wilde, Oscar, 226-7 Wilkins, Maurice, 1 7 Wittgenstein, Ludwig, 102 Wright, Elsie, 255-6
Xintoísmo, 1 1 8
zulus ver mito zulu da criação
•
Richard Dawkins agradece a: Lalla Ward, Lawrence Krauss, Sally Gaminara, Gillian Somerscales,
Philip Lord, Katrina Whone, Hilary Redmon; Ken Zetie, Tom
Lowes, Owen Toller, Will Williams e Sam Roberts da St. Paul's
School, Londres; Alain Townsend, Bill Nye, Elisabeth Cornwell,
Carolyn Porco, Christopher McKay, Jacqueline Simpson, Rosalind
Temple, Andy Thomson, John Brockman, Kate Kettlewell, Mark
Pagel, Michael Land, Todd Stiefel, Greg Langer, Robert Jacobs,
Michael Yudkin, Oliver Pybus, Rand Russell, Edward Ashcroft,
Greg Stikeleather, Paula Kirby, Anni Cole-Hamilton e a equipe e os
alunos da Moray Firth School.
Dave Mckean agradece a: Christian Krupa (modelos em computador); Ruth Howard
(consultoria em química) ; Andrew Hills (consultoria em física) e
Cranbrook School; Clare, Yolanda e Liam McKean.
Galáxias, p. 1 67, © NASA/Getty
Espectroscópio, p. 1 70, © Museu da História da Ciência, Oxford
Aranha, p. 1 99, © Thomas Shahan
Simulação de terremoto, p. 206, © U. S. Geological Survey e
Southern California Earthquake Center
Michael Jackson no capô do carro, p. 248, © KNS News
''Jesus numa frigideira'', p. 249, © Caters News
''Jesus numa torradà', p. 249, © Chip Simons/Getty
Fadas de Cottingley, p. 255, © Glenn Hill/sSPL/Getty
Fizemos o possível para encontrar os detentores dos direitos
autorais e obter sua permissão para o uso do material protegido,
tanto no corpo do livro como na capa. Os editores pedem
desculpas por eventuais erros ou omissões e serão gratos pela
notificação sobre quaisquer correções que devam ser incorporadas
em futuras reimpressões ou edições.
•
•
2 7 1
RICHARD DAWKINS nasceu em Nairóbi, Quênia, em 194 1 , e
cresceu na Inglaterra. Formou-se pela Universidade de Oxford e foi
o primeiro titular da cadeira de Compreensão Pública da Ciência,
criada para dar a um pesquisador a oportunidade de se dedicar à divulgação da ciência além da pesquisa. É autor de O gene egoísta, O maior espetáculo da Terra, Deus, um delírio, entre outros livros.
DAVE McKEAN nasceu em Berkshire, Inglaterra, em 1963. É designer, ilustrador e diretor de cinema e trabalhou no departamen
to de arte de Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban. Criou inúme
ras capas de álbuns, quadrinhos e livros, mas ficou conhecido prin
cipalmente pelas ilustrações da cultuada HQ Asilo Arkham e por sua
longa colaboração com Neil Gaiman.
273
•
ISBN 978-85-359-2054-3
9 788535 920543