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1 A luz natural na Arquitetura Religiosa dezembro/2014 ISSN 2179-5568 Revista Especialize On-line IPOG - Goiânia - 8ª Edição nº 009 Vol.01/2014 dezembro/2014 A luz natural na Arquitetura Religiosa Luciana Mendes da Fonseca Viana [email protected] Iluminação e Design de Interiores Instituto de Pós-Graduação e Graduação IPOG Brasília, DF, 08 de abril de 2014 Resumo A arquitetura religiosa, desde os seus primórdios até a época atual, sempre representou a relação do homem com o sagrado, ou seja, a sua subordinação e respeito a um poder superior. Nesse contexto, a luz natural aparece como elemento magistral da simbologia arquitetônica. Na presente pesquisa, o tema é abordado visando desvendar até que ponto essa característica é parte de uma necessidade lumínica ou se, ainda hoje, mesmo com os recursos da iluminação artificial, a iluminação natural permanece sendo a essência do partido arquitetônico dessas edificações. Ao elucidar esse panorama da arquitetura religiosa, o objetivo é demonstrar como a luz natural segue imbuída de significados espirituais relativos à fuga das trevas e ao conforto da alma. Para isso, é apresentado um levantamento de obras icônicas ao longo da história e também de obras modernas e contemporâneas, que serviu de repertório para uma análise da linguagem luminosa nesses ambientes. Concluiu-se que a luz natural ainda é o alimento simbólico das almas que buscam nos templos religiosos a proximidade do sagrado. Palavras-chave: Arquitetura religiosa. Iluminação. Simbologia. Luz. Sagrado. 1. Introdução A arquitetura, em sua associação entre arte e técnica, é capaz de suscitar boas ou más sensações em seus usuários, de acordo com a intenção primordial do arquiteto e da relação do indivíduo com o espaço proposto por ele. A arquitetura religiosa, em particular, pela busca em materializar a cultura sacra de diversas sociedades, destacou-se continuamente através da história pelos enormes empreendimentos que sempre representou a subordinação e respeito humano a um poder superior. A centralização de todos os esforços e recursos disponíveis para a construção dos templos, igrejas e catedrais de todas as épocas e regiões do planeta reflete a importância da religião no cenário sociocultural. As imagens que nos cercam refletem aspectos da sociedade em que vivemos e, segundo o crítico de arte, historiador e romancista, John Berger (1999:10), “a maneira como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo que acreditamos”. Assim, carregada de intensa simbologia, a arquitetura dos ambientes de culto e de oração vem traduzindo de forma peculiar, ao longo de gerações, a relação do homem com o sagrado e, nesse interim, a luz opondo-se metaforicamente às trevas do mundo sempre foi forte elemento explorado pelo legado arquitetônico afim. Explícitas ou não, os signos à nossa volta nos transmitem mensagens e a arquitetura sagrada está repleta deles. Com o intuito de elucidar o desenvolvimento da arquitetura sagrada e sua relação com a luz natural, o presente artigo pretende apresentar um apanhado geral de edifícios religiosos, ao

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A luz natural na Arquitetura Religiosa dezembro/2014

ISSN 2179-5568 – Revista Especialize On-line IPOG - Goiânia - 8ª Edição nº 009 Vol.01/2014 dezembro/2014

A luz natural na Arquitetura Religiosa

Luciana Mendes da Fonseca Viana – [email protected]

Iluminação e Design de Interiores

Instituto de Pós-Graduação e Graduação – IPOG

Brasília, DF, 08 de abril de 2014

Resumo

A arquitetura religiosa, desde os seus primórdios até a época atual, sempre representou a

relação do homem com o sagrado, ou seja, a sua subordinação e respeito a um poder

superior. Nesse contexto, a luz natural aparece como elemento magistral da simbologia

arquitetônica. Na presente pesquisa, o tema é abordado visando desvendar até que ponto

essa característica é parte de uma necessidade lumínica ou se, ainda hoje, mesmo com os

recursos da iluminação artificial, a iluminação natural permanece sendo a essência do

partido arquitetônico dessas edificações. Ao elucidar esse panorama da arquitetura religiosa,

o objetivo é demonstrar como a luz natural segue imbuída de significados espirituais

relativos à fuga das trevas e ao conforto da alma. Para isso, é apresentado um levantamento

de obras icônicas ao longo da história e também de obras modernas e contemporâneas, que

serviu de repertório para uma análise da linguagem luminosa nesses ambientes. Concluiu-se

que a luz natural ainda é o alimento simbólico das almas que buscam nos templos religiosos

a proximidade do sagrado.

Palavras-chave: Arquitetura religiosa. Iluminação. Simbologia. Luz. Sagrado.

1. Introdução

A arquitetura, em sua associação entre arte e técnica, é capaz de suscitar boas ou más

sensações em seus usuários, de acordo com a intenção primordial do arquiteto e da relação do

indivíduo com o espaço proposto por ele.

A arquitetura religiosa, em particular, pela busca em materializar a cultura sacra de diversas

sociedades, destacou-se continuamente através da história pelos enormes empreendimentos

que sempre representou a subordinação e respeito humano a um poder superior. A

centralização de todos os esforços e recursos disponíveis para a construção dos templos,

igrejas e catedrais de todas as épocas e regiões do planeta reflete a importância da religião no

cenário sociocultural.

As imagens que nos cercam refletem aspectos da sociedade em que vivemos e, segundo o

crítico de arte, historiador e romancista, John Berger (1999:10), “a maneira como vemos as

coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo que acreditamos”. Assim, carregada de intensa

simbologia, a arquitetura dos ambientes de culto e de oração vem traduzindo de forma

peculiar, ao longo de gerações, a relação do homem com o sagrado e, nesse interim, a luz –

opondo-se metaforicamente às trevas do mundo – sempre foi forte elemento explorado pelo

legado arquitetônico afim. Explícitas ou não, os signos à nossa volta nos transmitem

mensagens e a arquitetura sagrada está repleta deles.

Com o intuito de elucidar o desenvolvimento da arquitetura sagrada e sua relação com a luz

natural, o presente artigo pretende apresentar um apanhado geral de edifícios religiosos, ao

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longo da história até algumas de suas expressões mais contemporâneas, todos de extrema

relevância no cenário da humanidade. Antes, porém, necessário se faz entender a

religiosidade inerente ao ser humano de qualquer época e, como o estudo da simbologia sacra

revela que a luz simboliza a vida, a salvação e a felicidade, enquanto as trevas são, por

conseguinte, símbolo do mal, da infelicidade, do castigo, da perdição e da morte.

Assim, a iluminação de ambientes sagrados, não só cumpre uma função técnica, mas,

essencialmente, uma função espiritual.

2. Religião

2.1. Definição

Segundo o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986), a religião pode ser assim

apresentada: 1. Crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como

criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s). 2. A

manifestação de tal crença por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em

geral, preceitos éticos. 3. Restr. Virtude do homem que presta a Deus o culto que

lhe é devido. 4. Reverência às coisas sagradas. 5. Crença fervorosa; devoção,

piedade. 6. Crença numa religião determinada; fé, culto. 7. Vida religiosa. 8.

Qualquer filiação a um sistema específico de pensamento ou crença que envolve

uma posição filosófica, ética, metafísica, etc. 9. Modo de pensar ou de agir;

princípios.

Diante dessa definição, podemos colocar que a Religião é um dos campos da cultura humana

mais tradicional da humanidade. Presente nas diversas civilizações desde os primórdios da

história, ela pode ser definida como o conjunto de crenças relacionadas ao sobrenatural, ou

seja, aquilo que se encontra além do entendimento do que é humano.

De fato, tudo o que se apresenta como desconhecido e, até dado momento da história, como

não desvendado pela ciência, sempre é alvo de perguntas sequiosas por respostas. É inerente

ao homem a constante investigação a respeito de sua essência, seja ela material ou, no caso

em debate, espiritual. Constantemente requisitada, o papel da religião nesse contexto e em sua

essência, portanto, é explicar os questionamentos do ser humano sobre sua própria existência:

de onde viemos, por que estamos aqui e para onde vamos depois da morte. Por esse motivo, a

religião se desenrola num sentimento natural que busca, na reverência a um Ser Supremo, a

resposta a essas indagações.

O fato é que o ser humano sempre buscou acreditar em algo que lhe fosse superior,

expressando essa crença na relação de submissão para com o que se acha acima dele. Muito

por temer o que lhe espera depois da morte, o homem incessantemente procurou pertencer a

alguma religião e traçar sua conduta dentro dos padrões morais e éticos estabelecidos, seja ela

qual for.

Assim, o respeito pela Inteligência Divina, pelo “sagrado” e pelo “divino” se manifesta na

forma de rituais, seitas, cultos, códigos morais, fé e doutrina que, juntos, almejam dirigir o ser

humano a uma conduta melhor. O fim da religião é, por assim dizer, a salvação da alma. Os

homens a buscam tendo em vista a garantia da consciência tranquila, do dever cumprido, do

bem estar advindo da prática constante do amor ao próximo.

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2.2. Origem

Segundo afirma Ambrogio Donini, “a religião não nasceu com o homem” (DONINI, 1965,

p.19). Durante milhares de séculos, no primeiro período da Pré-História, o homem

experimentou uma vivência muito próxima da animalidade: não havia divisão do trabalho,

nem chefes, nem laços sociais; reinava a promiscuidade sexual; o instrumento de trabalho

eram as próprias mãos; alimentavam-se do que a natureza os oferecia; a comunicação era

realizada por sinais. Assim, pela inconsciência de sua relação com outros homens e com a

própria natureza, o homem primitivo se mostrou incapaz de fazer qualquer relação de sua

existência com qualquer tipo de crença religiosa.

Necessário se fazia que o homem tivesse uma base social mais sólida para que a religião

pudesse nascer. Na medida em que os grupos humanos passaram a se organizar em

comunidades numa forma de vida mais sedentária, possibilitada pelo domínio da caça e da

pesca e, posteriormente, do fogo, as primeiras manifestações religiosas surgiram, inicialmente

associadas à idéia de sonho, morte, ritual e magia.

Mircea Eliade, filósofo e historiador das religiões, em seu livro Tratado de História das

Religiões, afirma que “todas as definições do fenômeno religioso apresentadas até hoje

mostram uma característica comum: à sua maneira, cada uma delas opõe o sagrado e a vida

religiosa ao profano e à vida secular” (ELIADE, 1993: 7). Trata-se da crença e submissão do

homem a um Poder Supremo em contraposição a uma experiência de vida unicamente

material.

Maurilio Adriani, em História das Religiões, afirma acerca desse mesmo assunto que

ainda in illo tempore, delineou-se, pela primeira vez, a separação violenta e quase

incolmatável entre a estirpe dos Imortais, dos deuses – assim chamados porque

imunes ao pesado destino da morte – chefiados pelo Céu-pai e pela Terra-mãe, e a

linhagem dos mortais – não por acaso assim chamados devido ao seu inelutável

destino –, da decadência, da corrupção e da dissolução; daí, da consciência desta

separação imensa, o “temor de Deus”, a admiração, a reverência e o medo, a

submissão, a oração e todo o conjunto de gestos que tem como resultado as formas

ainda rudimentares do rito, isto é, o culto pelos homens das Potências divinas

superiores. E já temos, neste esboço, a fisionomia da religião “primitiva”.

(ADRIANI, 1988: 12).

2. Arquitetura religiosa

2.1. Arquitetura como fenômeno cultural

A cultura pode ser definida como a expressão do comportamento social de um povo. Ela

traduz e exprime o conjunto de hábitos e aptidões do homem enquanto membro de uma

sociedade, baseada num complexo de características que compreende a moral, as crenças, as

leis, os costumes e os conhecimentos que ditam, de certa forma, a conduta do indivíduo no

grupo ao qual pertence, segundo Tylor (apud LARAIA, 2002: 25).

O homem, em sua relação com o mundo, não responde unicamente a instintos, mas sim, e

essencialmente, a seu aprendizado como reflexo dos padrões culturais da sociedade em que

vive. E, na arquitetura, essa abordagem segue a mesma lógica. Um edifício nada mais é do

que uma realização humana que materializa o conceito de determinada cultura.

Diferentemente dos animais, que também ordenam o ambiente, criam lugares, e estabelecem

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limites, mesmo que abstratos, aos seus territórios, o homem, além disso, imprime em suas

construções atributos socioculturais próprios, inerentes ao seu modo de ver o mundo e, por

isso, passíveis de alterações conforme a evolução de cada grupo em seu meio cultural.

Assim, o fenômeno arquitetônico é genuinamente uma manifestação cultural, pois reflete em

sua concretização o modo de vida, as idéias e os sentimentos de um povo, mais do que

simplesmente circunstâncias de necessidades físicas e materiais. A arquitetura, por assim

dizer, no dizer de Rapoport (1984), torna tangível os significados ao concretizar os ideais e

crenças de um grupo.

E, nesse contexto, o significado espiritual, entre os aspectos culturais presentes nas

sociedades, sempre apresentou grande relevância e ênfase especial nas manifestações e

realizações de qualquer período histórico.

Para Amos Rapoport, também sobre as origens culturais da arquitetura, o ambiente construído

representa a expressão física dos sistemas e esquemas de ordenação de qualquer cultura

específica. E, nesse ponto, o sagrado teria papel central na articulação de suas prioridades.

Em todas as situações tradicionais e particularmente naquelas que estão nas origens

da arquitetura, os esquemas de ordenação são frequentemente baseados no sagrado,

uma vez que a religião e o rito são o centro (embora outros esquemas também

desempenhem seu papel). Se os meios ambientes construídos são humanizados,

locais onde se pode viver, então, para a maioria dos povos tradicionais, eles devem

ser, por definição, consagrados ou santificados. Uma vez que o mundo tem uma

visão religiosa das sociedades tradicionais, o meio ambiente construído – que

engloba as idéias – deve englobar o sagrado já que isso representa o significado mais

importante. (RAPOPORT, 1984: 33).

Logo, a manifestação do sagrado através da simbologia, dos rituais, do misticismo e da

religião, enquanto expressões da crença de determinado povo e sua subordinação a um poder

maior, são diretrizes fortíssimas que induzem o comportamento social e, consequentemente,

suas prioridades construtivas.

A arquitetura, nesse cenário, sempre foi instrumento-chave utilizado desde épocas remotas

para expressar, através de significativas construções, o destaque da religião em inúmeras

civilizações por todo o mundo. Devido ao seu papel central na cultura da grande maioria dos

povos, desde sempre se buscou conferir à arquitetura religiosa os melhores recursos, as

maiores proporções, a melhor localização e os materiais mais resistentes.

Tudo isso porque as construções ligadas ao misticismo e à religiosidade eram, ao contrário

das demais construções, feitas para durarem, ou seja, para resistir aos efeitos do tempo. A

intenção era a de se preservar, através da arquitetura, as suas tradições e crenças para as

gerações futuras.

Com vistas à perenidade, portanto, a arquitetura religiosa sempre foi alvo dos maiores

esforços e das melhores tecnologias e materiais disponíveis. A hierarquia construtiva em

questão se revela nitidamente pelos exemplares que resistiram ao passar do tempo em toda a

história da arquitetura, de tal modo que sua própria divisão remete às edificações do campo

religioso. Tanto é verdadeiro que o ícone representativo das arquiteturas egípcia, grega,

romana, gótica, barroca, dentre outras, não são, senão, os templos, igrejas ou catedrais de cada

caso.

Não que as outras tipologias arquitetônicas, como a residencial, comercial ou pública, não

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tivessem importância ou relevância enquanto expressão cultural, mas a intenção de

continuidade e durabilidade para as gerações futuras era de tal forma evidente nas construções

religiosas que comumente se dedicou todos os meios e recursos disponíveis em cada época

para esse fim.

Essas edificações de cunho místico, ritual ou religioso, independentemente de seu período

histórico ou localização geográfica, por conseguinte, sempre foram as mais notáveis e podiam

ser distinguidas pelo tamanho, pela forma, pela tecnologia, pelos materiais, pela localização

e/ou pela decoração adotadas. Todo esse conjunto de características era abordado com

tamanha primazia e tenacidade que a construção sagrada ocupou tradicionalmente a posição

de figura representativa da arquitetura ao longo da história.

2.2. A luz no desenvolvimento da arquitetura religiosa

As realizações humanas, intelectuais ou concretas, sempre expressaram e, igualmente,

continuam e continuarão expressando a cultura de determinada sociedade. Fazendo parte da

manifestação cultural através da história, a arquitetura não deixaria de imprimir em seus feitos

os atributos inerentes à tradição, aos costumes e às crenças do povo a qual pertencia.

Nesse contexto, tal como a arte, a economia, a filosofia e a ciência, a religião, como já

destacado anteriormente, é parte integrante e inseparável da cultura humana. Através do

tempo, as formas religiosas predominantes demonstraram sempre seu poder. Nos diversos

estágios culturais de qualquer povo, o vínculo da religião ao poder político e social permitiu a

ela designar expressiva importância aos temas religiosos, assim como destinar os maiores

esforços para a edificação dos espaços associados ao seu fim.

Dessa forma, a arquitetura e a engenharia, por meio de sua arte e técnica, respectivamente,

sempre foram instrumentos fortíssimos de promoção e reafirmação do poder detido pela

religião.

Considerado a forma mais primitiva de construção ligada à crença religiosa, os stonehenges

(2800-1100 a.C.) são enormes estruturas megalíticas de pedra localizadas no sul da Inglaterra.

Dispostos de maneira a formar um círculo, os famosos blocos de pedra, verticalmente

posicionados, foram erguidos há aproximadamente 4000 anos e, apesar da ação das

intempéries, permanecem de pé ainda hoje.

Os stonehenges são, provavelmente, a primeira manifestação construtiva humana em que a

forma circular aparece. Associada aos ciclos lunares e à trajetória solar, o posicionamento

desses círculos de pedra, erigidos numa época em que as forças necessárias para levantar

blocos de pedra de cerca de 20 toneladas se limitavam ao trabalho humano e manual, revela a

força do misticismo sobre a luz solar que levaram à sua construção. Pesquisas sugerem seu

uso simultâneo para observações astronômicas e para rituais e sacrifícios, revelando, portanto,

sua função religiosa.

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Da mesma forma, as pirâmides egípcias (2.500 a.C) exigiram grande dedicação e habilidade

humana para transportar, arrastar e levantar grandes pedras de modo a compor estruturas

monumentais. Associadas à crença na vida após a morte, as pirâmides tinham a finalidade de

abrigar e proteger o corpo mumificado do faraó e todos os seus pertences, riquezas e objetos

de uso pessoal. Quanto às pirâmides, é o alinhamento das mesmas, fiel aos pontos cardeais,

que demonstra também uma relação com o Sol e com a trajetória da luz ao longo do dia.

Partindo para a Grécia Antiga, Bruno Zevi (1978), ao abordar a história das concepções

espaciais da arquitetura, ressalta a glória da escala e das proporções humanas dos edifícios

gregos, mas considera as construções religiosas gregas meramente escultóricas, ao passo que

não eram concebidas como espaço para os fiéis, mas sim como morada dos deuses, e os ritos

aconteciam do lado de fora, de forma a propiciar a contemplação da obra-prima plástica à

distância. O Parthenon, por exemplo, localizado na Acrópole (“cidade alta”), em Atenas,

Grécia, foi orientado de modo a receber a luz do Sol da manhã a iluminar as estátuas em seu

interior.

Figura 1: Stonehenge, sul da Inglaterra

Fonte: http://www.sacred-destinations.com/england/stonehenge

Figura 2: Parthenon, Atenas, Grécia

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Partenon

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Já na análise da arquitetura romana, Zevi (1978) afirma que o espaço interior aparece de

maneira grandiosa e altamente cenográfica. A arquitetura resultante da composição de

elementos tornados tão característicos, como frontões, colunas e cúpulas, marcou a produção

edilícia desse período. Tido por ele como estático, o espaço das construções da Antiga Roma

são caracterizados pela simetria, escala monumental e grandiosidade.

A grande cúpula do Panteão (125 d.C.), na Itália, Roma, propõe uma iluminação zenital que

traz a luz para dentro da edificação. Essa proposta romana permitia a incidência direta da luz

do Sol em estátuas de divindades localizadas em seu interior, conferindo um misticismo ímpar

ao politeísmo da Roma Antiga. Sua arquitetura interior é ainda mais maravilhosa do que se

pode supor pelo lado externo e tem sua natureza técnica descrita pelas seguintes palavras do

historiador de arte, E. H. Gombrich:

Seu interior é uma gigantesca rotunda com teto em abóboda e uma abertura circular

no topo, através da qual se vê o céu aberto. Não tem janelas, mas do alto todo o

recinto recebe luz abundante e uniforme. Conheço poucos edifícios que transmitam

uma impressão de tão serena harmonia. Não existe a menor sensação de peso

opressivo. O enorme zimbório parece pairar livremente sobre nós como uma

segunda abóboda celeste. (GOMBRICH, 1999:121).

O declínio do Império Romano, advindo de eventos comerciais e econômicos, foi

acompanhado pelo avanço do cristianismo e, a ascensão desse último significou o fim do

mundo antigo. Logo, os Imperadores que detinham o poder, agora convertidos à nova fé,

começaram a autorizar a construção de igrejas, mais uma vez domados pelo tradicional intuito

de produzirem empreendimentos de arquitetura e engenharia ainda maiores do que os

construídos no passado. Só que agora, segundo Gombrich (1999), havia um novo propósito:

construir espaços internos maiores a fim de que toda a congregação que se reunia pudesse

“assistir ao serviço religioso”. E o trabalho com a luz, nesse contexto e seguindo a

classificação da História da Arquitetura proposta pelo célebre estudioso do assunto Leonardo

Benevolo (1972), variou de acordo com os sucessivos valores figurativos das escolas

bizantina, românica e gótica que exprimiram em seus edifícios religiosos íntima vinculação

Figura 3: Cúpula e óculo do Panteão, Roma, Itália

Fonte: Do autor (2011)

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com a realidade da crença à qual pertenciam. Rica e temida, a Igreja detinha também, grande

poder político, e usava essa faculdade para demonstrar, através da arquitetura de suas igrejas,

catedrais e basílicas, sua imponência e destaque na sociedade da época.

A Igreja de Santa Sofia (532-37), construída sob o domínio de Justiniano, é o mais grandioso

exemplo da arquitetura bizantina. De arquitetura espaçosa e monumental, Santa Sofia aborda

o uso característico da abóboda, e seu interior é cuidadosamente decorado com mosaicos cuja

qualidade cromática é o “objeto imediato das percepções sensíveis” (BENEVOLO, 1972, p.

78). Procópio assim descreve a manifestação da luz em seu interior:

A Igreja tornou-se um espetáculo de grande beleza, estupenda para aqueles que a

veem, e também inacreditável para aqueles que ouvem falar dela, pois se eleva a

uma altura que alcança o céu... ao mesmo tempo em que olha para o restante da

cidade baixo... Ela sutilmente combina sua massa com a harmonia de suas

proporções, não havendo nela nenhum excesso ou deficiência... É

consideravelmente mais nobre do que aquelas igrejas que são monumentais, e aluz e

os reflexos dos raios solares emitidos pelo mármore são abundantes. De fato, você

poderia dizer que, apesar de o espaço não ser iluminado pelo sol que vem de fora, a

radiância gerada dentro dele é tão grande que banha todo o santuário. (PROCOPIUS

apud ADDIS,2009:66).

Assim, a profusão da luz nas igrejas bizantinas garantiria que os mosaicos, as esculturas de

mármore em seu interior, as refulgentes paredes douradas, e todos os demais elementos

decorativos que visualmente narravam os ensinamentos da igreja e de sua verdade sagrada

fossem “divinamente” iluminados às mentes dos fiéis.

A arquitetura românica também veio a se estabelecer por meio de grandiosas construções

religiosas. A igreja românica passou a adotar, ainda que não em todos os casos, a forma de

uma cruz em planta pelo acréscimo de uma galeria transversal (transepto), marcando de

maneira acentuada a simbologia do Cristianismo. Tanto o interior quanto o exterior das

igrejas românicas transmitem ainda, de acordo com Gombrich (1999), a sensação de

“robustez compacta”. Com poucas janelas, mal iluminadas e obscuras, suas possantes e

Figura 4: Santa Sofia, Constantinopla (atual Istambul).

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bas%C3%ADlica_de_Santa_Sofia

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pesadas paredes lembram muito as fortificações medievais. A iluminação interior ficou

comprometida por um significado maior, ou seja, a ideia de que a Igreja deveria cumprir, aqui

na Terra, o papel de combater as forças das trevas. Daí o aspecto de fortaleza das imensas

montanhas de pedra erigidas pela Igreja em terras de camponeses e guerreiros, assim como o

coloca Gombrich (1999). No entanto, a decoração dessas igrejas com esculturas que

representavam símbolos cristãos ou fatos extraídos da bíblia passaram a ocupar não somente o

seu interior, mas também as suas fachadas, aproveitando a luz do sol presente do lado de fora

para dar dramaticidade e destaque para a mesma, pois, no entender do mesmo historiador de

arte, essas imagens perduravam nos fiéis de modo mais poderoso do que as palavras do

pregador. E essa realmente era a intenção.

A arquitetura gótica, por sua vez, abandonou as estruturas pesadas e maciças, características

do período românico, e buscou sistemas estruturais mais leves e graciosos. A verdade é que,

segundo Gombrich (1999), se os pilares e os arcos eram suficientes para sustentar a

edificação, as imensas paredes de pedra do período românico foram tidas, como enchimento

supérfluo.

Zevi (1978) considera a abordagem gótica de negação das paredes como a realização de uma

continuidade espacial entre exterior e interior. Partindo para uma construção de pouco peso, o

ideal dos arquitetos góticos era inteiramente novo e propunha um tipo de igreja de pedra e

vidro, cujas grandes aberturas traziam luz e cor para o recinto interno, antes caracterizado

como sombrio e escuro nas antigas igrejas.

É difícil imaginar a impressão que esses edifícios devem ter causado àqueles que só

tinham conhecido as pesadas e sombrias estruturas do estilo românico. Aquelas

igrejas mais antigas, em sua força e poder, talvez transmitissem algo da “Igreja

Militante” que oferecia abrigo e proteção contra as investidas do mal. As novas

catedrais propiciavam aos fiéis o vislumbre de um mundo diferente. [...] As paredes

Figura 5: Igreja de St-Trophime, Arles, França

Fonte: http://www.panoramio.com/photo/743334

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das novas igrejas não eram frias nem assustavam. Eram formadas de vitrais

policromos que refulgiam como rubis e esmeraldas. Os pilares, nervuras e

rendilhados despediam cintilações douradas. Tudo o que era pesado, terreno ou

trivial fora eliminado. Os fiéis que se entregavam à contemplação de tanta beleza

podiam sentir que estavam mais próximos de entender os mistérios de um reino

afastado do alcance da matéria. (GOMBRICH,1999:188-189).

Ao lado dos vitrais e rosáceas, que transformaram radicalmente o interior das catedrais

conferindo iluminação e misticismo às mesmas, a verticalidade e majestade de suas estruturas

exibiam a tentativa de proximidade com Deus. Apoiada, assim, em forte simbolismo

teológico, as catedrais góticas se voltam para o alto, projetando-se na direção do céu. A luz

penetra o seu espaço interior, banhando os fiéis do efeito místico da mesma, como é nítido

observar nos vitrais de Sainte-Chapelle (1248), em Paris, França.

Enquanto na Idade Média a vida do homem era centrada em Deus, no período posterior, que

ficou conhecido como Renascença, o homem passa a ser a figura principal

(antropocentrismo). O expressivo desenvolvimento artístico, científico e intelectual do

período fez com que o movimento do humanismo se estabelecesse através da valorização das

ações e capacidades humanas ao passo que a religião perdeu a centralidade que outrora

detinha.

Nos séculos XII e XIII das grandes catedrais, a Europa era um continente de pequenos

povoados de arquitetura humilde que contrastava com as catedrais e castelos que

representavam o centro do poder e da religiosidade da época. Entretanto, a partir do século

XIV, os burgos e as cidades se desenvolveram e foram convertidos em grandes centros de

comércio.

E, conforme ocorriam mudanças na sociedade, elas também foram absorvidas pela arquitetura

das cidades em permanente expansão. “Conforme as cidades se tornavam mais prósperas e os

Estados diminuíam seus vínculos com a igreja estabelecida, edificações específicas foram

sendo criadas” (ADDIS, 2009: 158-159). As igrejas passaram a não mais ser as principais

Figura 6: Vista interna dos vitrais de Sainte-Chapelle, Paris

Fonte: http://www.sacred-destinations.com/france/paris-sainte-chapelle

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tarefas dos arquitetos, pois outros edifícios urgiam ser projetados e construídos nesse novo

contexto: palácios, universidades, teatros, portos, prefeituras, prédios públicos em geral.

Addis (1999) afirma que, durante o Renascimento (1400-1630), resultante da “prosperidade

econômica combinada com uma revolução cultural”, o crescimento do comércio gerou um

excedente de capital que financiou empreendimentos construtivos cada vez maiores. Para o

autor, cidades italianas, como Veneza, Milão, Gênova e Florença, competiam entre si usando

os edifícios como meio de exibir suas habilidades e de demonstrar seu orgulho cívico

(ADDIS, 2009: 117).

Apesar da nova postura mais racional e antropocêntrica da arte renascentista, influenciada

pelo humanismo, a arquitetura mais importante continuou cristã, porém assumiu um novo

estilo, distinto do gótico. Como o próprio significado da palavra “renascença” (nascer de novo

ou ressurgir), a idéia de um renascimento nas artes pretendia “ressuscitar” a grandeza da idade

clássica. Por esse motivo, Brunelleschi, arquiteto pioneiro do renascimento, buscou nas

formas da arquitetura clássica a referência para criar novos modos de harmonia e beleza. Seu

trabalho atingiu notabilidade e reconhecimento especialmente pelo projeto e execução da

cúpula da Catedral de Santa Maria Del Fiore (1420-36), em Florença.

Assim, os principais traços da arquitetura religiosa renascentista foram o repertório clássico

da Antiguidade greco-romana, a funcionalidade, a racionalidade e a busca da beleza pelo

gerenciamento harmonioso das proporções. A reflexão matemática desenvolvida sobre a

métrica espacial explora formas geométricas e relações de ordem e disciplina, desenvolvendo

uma nova espacialidade do ambiente interior. Para Zevi (1978), o homem possui agora o

segredo do edifício, prevalece a consciência de uma arquitetura que não oculta mistérios

Figura 7: Vistas de Santa Maria Del Fiore, Florença, Itália

Fonte: http://www.sacred-destinations.com/italy/florence

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religiosos, mas que pode ser apreendida de maneira precisa e racional

O estilo que sucedeu à Renascença é conhecido como Barroco. Gombrich (1999) afirma que a

maneira pela qual os elementos clássicos eram fundidos num novo padrão nas fachadas das

igrejas barrocas era visto pelos críticos como falta de gosto, daí terem usado a expressão

“barroco” (que significa absurdo ou grotesco) para definir esse estilo.

As fachadas da Igreja de Il Gesù (1575-7) e da Igreja de Santa Inês (1652), ambas em Roma,

na Itália, claramente rompe com as normas clássicas gregas e romanas, e mesmo com as

regras renascentistas. A duplicação das colunas, juntamente com o uso de volutas, curvas e

espirais, revela a intenção de imbuir o edifício de maior riqueza e variação através do

ornamento. Evitando a monotonia, os arquitetos barrocos queriam se libertar da geometria

elementar e da estaticidade. A dinâmica volumétrica explorada pelo uso de paredes

onduladas, assim como a decoração e os efeitos de luz que conferiam dramaticidade, dentro e

fora das igrejas, caracteriza, de acordo com a análise espacial de Zevi (1978), o movimento e

a interpenetração própria do barroco.

De um modo geral, a partir do século XVI, com o início do processo de reformas religiosas

que vieram questionar os abusos cometidos pela Igreja Católica, uma mudança na visão de

mundo foi proposta. Addis (2009) afirma que, desde então, com o surgimento do

Protestantismo após a Reforma da Igreja, a riqueza excedente deixou de ser destinada à

arquitetura religiosa e se direcionou para a construção de prédios públicos e mercados

públicos. Como coloca Addis (2009), era chegada a Era da Razão.

Embora a Igreja Católica nunca tenha interrompido a construção de igrejas como forma de

expansão de sua crença e preservação de seus fiéis, na medida em que ela deixava de ser a

força motriz da sociedade, outros edifícios também tiveram sua arquitetura ressaltada e

procuraram se destacar no cenário urbano, fazendo com que as construções religiosas cristãs

perdessem a supremacia que possuíam antes. A partir do século XVII, não mais somente os

espaços religiosos seriam edificados visando à grandiosidade e à expressão, mas também

aqueles de função política, administrativa, institucional e mesmo residencial.

Figura 8: Igreja de Santa Inês, Praça Navona, Roma

Fonte: http://www.gothereguide.com/piazza+navona+rome-place/

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Gradativamente, a Igreja foi perdendo parte de sua importância cultural na sociedade. A

diminuição da escala de seus edifícios e sua dispersão no meio urbano são fatores que

confirmam essa condição.

Com o Movimento Moderno, o ornamento foi questionado em favor de uma arquitetura mais

funcional e com fachadas mais limpas. Para os modernistas, o princípio de que “a forma

segue a função” levou-os à defesa de que o funcionalismo/formalismo eram os geradores da

expressão estética e, “ao eliminarem todos os ornamentos, os arquitetos modernos romperam,

de fato, com a tradição de muitos séculos” (GOMBRICH, 1999: 559).

A premissa de racionalidade e aversão ao ornamento, juntamente com a negação das

referências históricas, também teve repercussão na arquitetura religiosa. As construções

voltadas a atender à religião passaram por profundas transformações. Aqueles que se

interessavam pelas idéias e propostas dos modernistas financiaram uma arquitetura cada vez

mais livre das tipologias pré-estabelecidas de cada religião, primando cada vez mais pela

expressão através da simplicidade.

No modernismo, as formas passaram a se desvincular dos padrões predominantes. Não mais

existiria a clareza na associação do espaço religioso à identidade de determinada crença, como

antes acontecia. Os templos, igrejas, e lugares sagrados estariam agora marcados pela

arquitetura de obras cada vez mais singulares e inusitadas.

A capela de Notre-Dame-du-Haut (1950-1955), em Ronchamp, na França, de Le Corbusier, é

um exemplar dessa nova abordagem. Diferenciado da arquitetura religiosa tradicional,

Ronchamp se localiza no alto de uma colina e se destaca por sua plasticidade formal e pela

abordagem da luz em seu interior. De aspecto robusto externamente, a capela em seu interior

revela uma linha de luz que separa suas paredes da sua cobertura, que parece flutuar. Além

disso, as nuances cromáticas produzidas pela luz que atravessa as suas aberturas cria uma

interessante atmosfera introspectiva, revelando mais uma vez a presença simbólica da luz

natural no ambiente religioso.

Na Catedral Metropolitana de Brasília (1959-1970), em Brasília, Brasil, de Oscar Niemeyer, a

estrutura composta por dezesseis colunas de concreto cria vãos que são fechados com vitrais

coloridos. Além disso, para se acessar a nave da catedral, foi construída uma passagem

subterrânea, já que seu piso principal situa-se a três metros do chão. Pensada como ambiente

sombrio e escuro, a passagem precede e contribui para o contraste gerado pela intensa

iluminação natural do interior da nave: o “espetáculo religioso” (BOTEY,1996: 164).

Figura 10: Interior da Capela de Notre-Dame-du-Haut, em Ronchamp, França

Fonte: http://www.archdaily.com.br/br/01-16931/classicos-da-arquitetura-capela-de-ronchamp-slash-le-corbusier

Figura 9: Capela de Notre-Dame-du-Haut, em Ronchamp, França

Fonte: http://www.greatbuildings.com/buildings/Notre_Dame_du_Haut.html

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Com o questionamento do Movimento Moderno, em fins da década de 1960, a padronização e

a mesmice foram criticadas num cenário em que prevaleceu uma produção arquitetônica

diversificada e heterogênea, movimento denominado Pós-Modernismo. Os arquitetos pós-

modernos assumiram rumos diversos e de clara intenção de produzir algo distinto e de notório

destaque.

Essa valorização da aparência, expressa na criação de cenários de formas arquitetônicas

heterogêneas, celebra a arquitetura contemporânea como manifestação do espetáculo. A busca

pela evidência e pela produção de algo nunca antes visto fez com que as construções

religiosas assumissem volumetrias e composições formais de significativo destaque. É o que

podemos observar na Igreja na Água (1985-88), em Hokkaido, no Japão, de Tadao Ando.

Nesse projeto, Tadao Ando propõe um parede por detrás do altar trabalhada com a

transparência do vidro, que permitiu um panorama do ambiente externo da igreja. Assim, as

paredes laterais, piso e teto que juntos emolduram um cenário composto pela vegetação

circundante, pelo lago artificial criado por um riacho das proximidades, e pela cruz que

emerge de suas águas e tem sua imagem refletida na mesma superfície. A água, em especial,

mas também a luz incidente e os seus consequentes reflexos nos espaços interno e externo,

induzem à reflexão sobre a limpeza e purificação propiciada pelo exercício da prece e da

submissão do homem a um Deus que lhe é superior.

Figura 11: Nave da Catedral Metropolitana de Brasília

Fonte: http://brasiliabsb.com/foto_catedral_wide.htm

Figura 12: Igreja na Água

Fonte: http://www.flickr.com/photos/ellens_album/225870495/in/set-72157594233789919/

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Analisando o produção arquitetônica da década de 90 até os dias atuais, temos a Arquitetura

Religiosa Contemporânea sendo marcada por arquitetura proeminente e heterogênea, num

cenário em que concorre por magnitude e excelência, de modo a propiciar no ser humano o

interesse para os assuntos espirituais e sagrados através do convite arquitetônico à meditação.

E, na maioria dos casos, esse convite é reforçado pelo apelo simbólico da luz natural em seus

recintos, fonte inesgotável de possibilidades e de experiências sensitivas, como pode ser

observado na Igreja do Jubileu (2003), em Roma, na Itália, de Richard Meier; e no Templo da

Paz (2002), em Curitiba, Brasil, de Manoel Coelho.

Figura 14: Vista lateral do Templo da Paz

Fonte: http://www.arcoweb.com.br/arquitetura/manoel-coelho-arquitetura-amp-design-templo-ecumenico-.html

Figura 13: Igreja do Jubileu

Fonte: http://www.arcoweb.com.br/arquitetura/richard-meier-igreja-e-18-03-2004.html

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Nesses dois exemplos, a luz natural é filtrada por elementos construtivos ou é encaminhada

por eles. A antiga cúpula é reinterpretada de modo a permitir a participação da abóboda

celeste no espaço interno, banhando de luz e feixes luminosos a experiência sensorial de

quem por ali estiver, transmitindo um sentido de iluminação que afasta as trevas e nos

aproxima, assim, do poder divino.

No entender de Brandston (2010), “a luz é a mais veloz viajante no tempo”. E o autor

prossegue afirmando que:

A luz permite ver não somente através dos nossos sentidos, mas também através da

nossa alma. É uma palavra que evoca uma grande gama de sentimentos, que variam

de pessoa para pessoa. Para um filósofo, luz é uma metáfora para conhecimento;

para o cientista, um componente fundamental de seu trabalho; para um artista

cênico, uma ferramenta para manipular emoções. Ela foi definida por Maxwell e

pintada por Caravaggio. Para o resto de nós, que enxergamos, a luz é o principal

meio pelo qual adquirimos informação. Luz é energia – e é através dela que toda a

vida é medida. (BRANDSTON, 2010:23).

Assim, podemos compreender como a luz, no âmbito da arquitetura, define crenças e culturas,

tendo o poder de acalmar, inspirar, confortar e sensibilizar quando explorada para esse fim.

3. Conclusão

Como foi possível observar, a luz é elemento chave na produção arquitetônica de uso

religioso. Na célebre antítese entre o bem e o mal, a luz sempre triunfa como representante

das divindades benignas e do poder em geral se contrapondo às trevas que remetem ao seu

oposto. E, assim, diversos monumentos, templos, igrejas, capelas e santuários trazem na sua

essência o trabalho místico da luminosidade.

A luz é entendida como manifestação divina e é reconhecida ao longo do tempo como

símbolo religioso e assim permanece até os nossos dias. Corretamente explorada, ela é capaz

de dotar a arquitetura dos edifícios religiosos de significado, emoções e sensações, de modo a

traduzir na Terra a busca do ser humano por sua aproximação a um poder que lhe é superior.

Ainda que as possibilidades de iluminação com as diversas fontes de luz artificial disponíveis

atualmente sejam infindáveis, a luz natural ainda é vista como fenômeno natural purificador e

sublime: insubstituível portanto.

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Bookman, 2009.

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