À luz dos olhos o racionamento de energia … · reestruturação e progressiva reprivatização...

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À LUZ DOS OLHOS O RACIONAMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA E SUAS JUSTIFICATIVAS NOS ANOS 1951 E 2001. Por Michele Christina Durães do Carmo I – INTRODUÇÃO A indústria de energia elétrica, concentrando as atividades de geração, transmissão e distribuição, atinge em graus diferenciados a quase totalidade da população. A análise acurada das peculiaridades do Setor Elétrico expõe conflitos em torno da utilização de recursos naturais vitais, e embates entre modelos hegemônicos e propostas alternativas de desenvolvimento. O Setor Elétrico pode ser caracterizado em quatro principais períodos: De 1890 a 1934 - presença crescente de empresas monopolistas estrangeiras e inexistência de um arcabouço jurídico propriamente formado. De 1934 a 1962 - o Estado estabelece os princípios de regulamentação e inicia investimentos diretos na geração. De 1962 a 1990 - expansão e consolidação do monopólio público do Setor. E a partir de 1990 – início dos debates que resultaram no desmonte, reestruturação e progressiva reprivatização do Setor. No desenrolar desse processo os racionamentos foram acontecimentos historicamente recorrentes, marcados por crises periódicas da relação oferta e demanda de energia elétrica. Esses déficits são gerados por diversas razões, por exemplo, o aumento do consumo nas classes (residencial, comercial, industrial), falta de investimentos, custo e tempo de maturação das obras, monopólio de exploração dos recursos energéticos. A conjugação de um ou mais vetores pode agravar tanto as medidas de racionamento quanto o debate sobre as suas verdadeiras causas. As características de determinadas crises, a profusão e intensidade da discussão suscitada, os impasses, as propostas de equacionamento, bem como, as soluções implementadas são fundamentais e

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À LUZ DOS OLHOS

O RACIONAMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA

E SUAS JUSTIFICATIVAS NOS ANOS 1951 E 2001.

Por Michele Christina Durães do Carmo

I – INTRODUÇÃO

A indústria de energia elétrica, concentrando as atividades de geração, transmissão

e distribuição, atinge em graus diferenciados a quase totalidade da população. A análise

acurada das peculiaridades do Setor Elétrico expõe conflitos em torno da utilização de

recursos naturais vitais, e embates entre modelos hegemônicos e propostas alternativas de

desenvolvimento.

O Setor Elétrico pode ser caracterizado em quatro principais períodos:

De 1890 a 1934 - presença crescente de empresas monopolistas estrangeiras

e inexistência de um arcabouço jurídico propriamente formado.

De 1934 a 1962 - o Estado estabelece os princípios de regulamentação e

inicia investimentos diretos na geração.

De 1962 a 1990 - expansão e consolidação do monopólio público do Setor.

E a partir de 1990 – início dos debates que resultaram no desmonte,

reestruturação e progressiva reprivatização do Setor.

No desenrolar desse processo os racionamentos foram acontecimentos

historicamente recorrentes, marcados por crises periódicas da relação oferta e demanda de

energia elétrica. Esses déficits são gerados por diversas razões, por exemplo, o aumento do

consumo nas classes (residencial, comercial, industrial), falta de investimentos, custo e

tempo de maturação das obras, monopólio de exploração dos recursos energéticos.

A conjugação de um ou mais vetores pode agravar tanto as medidas de

racionamento quanto o debate sobre as suas verdadeiras causas. As características de

determinadas crises, a profusão e intensidade da discussão suscitada, os impasses, as

propostas de equacionamento, bem como, as soluções implementadas são fundamentais e

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marcam profundamente o desenrolar dos fatos sendo importante vetor para a observação

do devir histórico.

O presente trabalho tem por objetivo o estudo comparado das justificativas para os

racionamentos de energia elétrica de 1951 e 2001.

Para o racionamento de 1951, destaca-se a utilização do Fundo Arnaldo Guimarães

doado ao Arquivo Nacional e, para o estudo do racionamento de 2001, além de muita

pesquisa em matérias virtuais foram utilizadas as súmulas de notícias da Eletrobrás

consultadas no Centro de Memória da Eletricidade.

Mais especificamente, o corte temporal compreende as crises de abastecimento de

1951 e 2001, distantes cinqüenta anos, as mais intensas observadas na cidade do Rio de

Janeiro. Da escala local à regional e da esfera estadual à federal procura-se entender quais

são as razões mormente apresentadas pelo governo e empresa concessionária, para

justificar o racionamento de energia elétrica perante a sociedade do Rio de Janeiro dos

anos de 1951 e 2001? É possível classificá-las ou atribuir-lhes alguma lógica outra que não

a defendida por seus locutores? Na iminência do racionamento são acelerados os processos

de estudo, instalação e operação de novos empreendimentos? E a que custo?

É provável o não equacionamento dessas perguntas, mas À luz dos Olhos1 oferece

contribuições relevantes desenvolvidas entre os capítulos

É importante salientar que esse trabalho é uma síntese da monografia de final do

curso de história. Apresenta uma visão das marchas e contra-marchas do processo de

desenvolvimento do Setor Elétrico, mas dista do esgotamento da discussão ou da sua

reprodução tout court.

1 À luz dos olhos apareceu primeiramente como retórica, depois como poesia ou música, por fim a encontrei nas fontes, numa matéria do Correio da Manhã de 9/11/47, “Torquato Tasso e os faiscantes olhos de gato”, em que em um fragmento o autor confessa, à falta de luz, ter escrito à luz dos olhos de seu gato. Na capa, o Salto de Lajes, foto de Guilherme Gaensly e Augusto Malta (IMS). À luz dos olhos é uma homenagem às cachoeiras ora inexistentes.

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II – SOBRE O SETOR

Se no início dos anos 30, as empresas Light e Amforp faziam campanhas e

lançavam anúncios incentivando o consumo de energia com os novos produtos eletrônicos.

Ao final da década, a situação já havia se invertido: a capacidade excedente de geração de

eletricidade se esgotara.

O racionamento de energia elétrica como política de Estado foi experimentado pela

primeira vez em 1942, considerando a necessidade de jurisdição especial para os períodos

de quebras de fornecimento de energia elétrica. Antes disso, o Código de Águas de 1934,

promulgado por Vargas, foi o primeiro arcabouço jurídico sobre as gestões de água e

energia. Contudo, não fora respeitado e suas atribuições ficaram restritas. Para fiscalizar o

cumprimento das determinações desse Código e à resolução da crise energética que

assolava o país, em 1939, era criado o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica

(CNAEE).

À época, a reprodução de discursos sobre a escassez de água muito contribuiu para

a inevitabilidade de projetos que, segundo BRANCO (1975), eram verdadeiras “heresias

técnicas” implementadas pela concessionária privada de energia elétrica (LIGHT). Um

triste exemplo da incúria dessa empresa, o polvo canadense2, é o da cidade de São João

Marcos, ora tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).

Mesmo as inúmeras cartas do camponês Manuel Teixeira Campos Junior (Manequinho)

não foram suficientes para impedir o projeto. 3 Em reportagem de Joel Silveira no Diário

de Notícias de 7/10/51 a luta contra a Light é comparada a de Davi e Golias.

Um cabo partido, em outubro de 1949, foi justificativa para a falta de luz que se

prolongou agora na cidade do Rio de Janeiro, na área de concessão da Rio Light, por nove

horas, atingindo especialmente o centro sul da cidade, que experimentava valorização

imobiliária a partir de Copacabana.4

2 Assim a Light era conhecida por toda sociedade, apelido que representava sua inserção em diversos setores estratégicos. Halliday (1987, p.9) esclarece que as multinacionais são freqüentemente questionadas em termos de legitimidade, um problema retórico que elas procuram resolver “construindo simbolicamente a sua realidade por meio da importação/exportação de significados no ambiente onde vivem e operam”. 3 Logo, as águas refluíram, por erro de engenharia ou providência divina, e sobram lá, hoje, ruínas que testemunham a ingerência e é destino de antigos moradores peregrinos. (SOARES, 1997) 4 A responsabilidade pela desagradável eventualidade foi atribuída aos chamados “papagaios”, “soltos pela garotada dos morros durante a tarde” (AAG, 1949). Este evento serviu como inspiração para Dora Vivacqua, a mulher que dançava com cobras, precursora do naturalismo no Brasil, conhecida como Luz Del Fuego, lançar o Trágico Black Out, livro em que expunha suas visões sobre o “blecaute social” existente.

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Nesse mesmo ano foram veiculadas propagandas de alerta para a redução do

consumo, em que um sisudo Saci aparecia proferindo versos aos leitores consumidores:

“Gaste a luz que entender/Prá que economizar?/Quando tudo escurecer/Basta um fósforo

riscar!”. A Light, já recorria, então, a racionamentos velados e retardava o atendimento a

novos consumidores.

A chamada “Vingança do Saci” - como ficou conhecido o racionamento da

primeira parte da década de 50 - estava próxima.

“Na verdade nos anos 1950, os recursos hidráulicos dentro das

áreas de concessão da São Paulo Light, cuja capacidade instalada estava centrada em Cubatão, e os da Rio Light, em Lajes, encontravam-se virtualmente esgotados. Esse quadro de crise era agravado nos períodos de estiagem mais severa, como a ocorrida em 1953, 1954 e 1955. Nesses anos, o racionamento foi uma constante. Os cortes no fornecimento de energia chegaram a ser de 5 a 7 horas diárias no Rio de Janeiro. Em São Paulo, os cortes sem aviso prévio ao público eram bastante comuns. Convém frisar, porém, que essas e outras iniciativas não eram tomadas apenas nos momentos de índices pluviométricos reduzidos. As restrições na oferta ocorriam, em graus variados, inclusive nos anos em que a quantidade de chuvas era satisfatória, deixando claro que a capacidade instalada das usinas da Light não era suficiente. Nem mesmo nos anos em que houve acréscimos significativos na potência instalada, as medidas restritivas foram totalmente dispensadas.”5

As razões normalmente apresentadas para a crise mencionam a política de restrição

de investimentos internos e externos, bem como os efeitos adversos da segunda guerra

sobre o comércio. O Código de Águas, embora não respeitado pelas maiores

concessionárias do Setor, era veemente e reiteradamente apontado como responsável para a

crise setorial por seus adversários – entre os quais, claramente, as próprias concessionárias,

Light e AMFORP. Em palestra do sr. H. B. Style, presidente das Companhias Associadas

da Light no Brasil, realizada em outubro de 1949, no Rotary Club, descreve um minucioso

quadro da escassez em países como Argentina, Portugal, França, Itália, Canadá e Estados

Unidos da América, seguindo na direção da legitimação da crise a nível nacional.6

Mitas eram as propostas de mitigação da crise: no final de 1950, a Light adquiriu

uma usina termelétrica flutuante (Piraquê) – originalmente de propriedade das forças

armadas americanas – para auxiliar no suprimento do sistema Rio e São Paulo. Embora, a

5 Id, 1988, p. 171. 6 AAG, 1949.

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termoeletricidade não tivesse estimulo algum por parte das agêncais governamentais.7

Mas, a proposta mais polêmicas foi, sem dúvida, a contratação de um especialista francês

em fazer chover. As chuvas eram ansiosamente esperadas e esse episódio não tardou por

ser ridicularizado.8 “Chove em toda parte, só não chove na represa!” era slogan popular.

Realmente, nos jornais da época do longo racionamento, notícias de enchentes e

transbordamentos são encontradas junto às notas informativas da redução do volume de

águas do reservatório. Nessa máquina infernal de propaganda, “as chuvas eram

excepcionais, como não ocorria desde 70 anos; concomitantemente, as secas eram também

excepcionais, como não ocorria há mais de décadas.” (BRANCO, 1975) 9

Em julho de 1951, o jornal Última Hora publica com destaque a manchete: “O povo

economiza energia em benefício dos cavalos de corridas - no momento em que as donas de

casa fazem toda a sorte de economia...o jóquei clube vai iluminar feericamente o seu

prado”. Muitas são as referências à incidência de assaltos, o desenvolvimento de atividades

ilícitas nas apreensivas noites sem lua. No Diário da Noite de 17 e novembro de 1951, uma

foto de um casal de namorados às escuras acompanha a nota: “Nem todos se zangam com

o black-out. para muitos a simples redução na luz já serviu de pretexto para muita coisa...e

se vier, realmente, o black-out total?”

O racionamento de energia elétrica teve como característica, nesses primórdios, a

longa duração escamoteada. Depois de quebras de fornecimento nos anos seguintes à

Guerra, em 48 e 49, seguiu-se o biênio de racionamento (50-52). Depois de um intervalo

de 4 meses, o racionamento foi novamente retomado. Um ano depois, outro racionamento

foi imposto na área de concessão da Rio Light, desta vez por ocasião do agravamento da

crise no sistema São Paulo. Em virtude do desenvolvimento das técnicas de interligação

dos sistemas, foi instituída uma espécie de racionamento solidário, quando outras áreas de

concessões tiveram seu consumo energético reduzido em favor das áreas deficitárias.

7 Memória da Eletricidade, 1996, p. 79-80. 8“O nome do mês de fevereiro vem do latim Februaris, que segundo alguns, deriva de Februare, fazer ligações, purificar-se, pois que este mês, entre os romanos, era consagrado aos sacrifícios expiatórios em honra aos mortos. Entre gregos, com o calendário sucessivamente corrigido, com a inserção de um mês intercalar e mudanças de ciclos, fevereiro correspondia aproximadamente ao anthesterion, que tinha 29 dias. No calendário republicano francês, ficaria entre os meses pluvioso, começando em 22 de janeiro e chuvoso – o que entre nós, traria esperanças para o Ribeirão das Lajes...” (Diário de Notícias, fev. 1950) 9 Marchinha de época composta por Paquito e Romeu Gentil “Tomara que chova/Três dias sem parar/A minha grande mágoa/É lá em casa não ter água/Eu preciso me lavar/De promessa eu ando cheio/Quando eu conto/A minha vida/Ninguém quer acreditar/Trabalho não me cansa/O que me cansa é pensar/Que lá em casa não tem água/Nem para cozinhar.” (MIS)

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No Estado de São Paulo, a crise já era observada em 1950. Adoniran Barbosa não

resistiu e compôs:“Luz da Light/Lá no morro, quando a luz pifa/A gente apela pra vela,/Que

alumeia também, quando tem/Se não tem, não faz mal/A gente samba no escuro, que é muito mais

legal/E ao natural.”. 10

No Globo de 23 de janeiro de 1954, a cidade do Rio de Janeiro que “...de dia falta

água de noite falta luz.” Assistiu a seguinte nota:

“Felizmente, parece que vamos ter um carnaval bem iluminado.

Entretanto, o carioca ainda não está plenamente convencido, e a prova disso é o interesse que vem despertando a marcha lançada por Orlando Silva, “Dona Light”, de autoria de Pereira Mattos, Helio Malta e Bola Sete, e que, tudo leva a crer, será uma das mais cantadas este ano. Esta é a letra de “Dona Light”:

Pode cortar a luz/Da rua e do salão/Que no carnaval/Eu tenho que brincar/Nem que eu tenha de sambar/Na maior escuridão/Ou bancar o vagalume/Dentro do salão/O carnaval/A noite no escuro/Pra muita gente/Vai dar futuro/Dona Light, pra que tanta economia/No carnaval nós precisamos de energia.”

10 SOLNIK, 2001, p. 29.

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Mais tarde a política de desenvolvimento galopante implementada por Juscelino,

com o lema de 50 anos em 5, impulsionou novo ritmo de crescimento e, diante de um

cenário externo mais favorável, garantiu investimentos estrangeiros para aplicar em seu

Plano de Metas e dotar o país de uma nova Capital da República, estradas, indústrias e,

sobretudo, barragens.11

A Eletrobrás como holding representou um novo divisor de águas na evolução do

setor elétrico. Os investimentos do Estado passavam a ser prementes, incorporando

atribuições de planejamento, financiamento, expansão e interligação dos sistemas, além do

controle de diversas empresas.

Durante os longos anos de ditadura, muitas mudanças ocorreram na configuração

do cenário energético do país12. Na década de 70, principalmente pós-choque do petróleo,

os militares verdadeiramente seduzidos pelas duas maiores vedetes, as meninas dos olhos

de engenheiros, políticos e industriais, aderiram à magia das grandes usinas hidrelétricas e

as centrais geradoras nucleares. Ambas, somadas, são responsáveis por grande parte da

dívida financeira, social e ambiental contraídas pelo regime.

No fim dos anos de regime militar, em 1984, Itaipu e Tucuruí foram inauguradas

estourando o orçamento. A primeira, binacional, situada em uma região de disputa

fronteiriça com o Paraguai, inundou uma área de 1.350 Km² e gera, hoje, 12.600 MW de

potência. Tucuruí, na região Amazônica, vizinha de comunidades privadas de luz elétrica e

infestadas de mosquitos - impactos adversos do empreendimento - inundou uma área de

preservação de 2.875 km² para a geração de 8.000 MW.

Apesar da recente difusão de pesquisas sobre impactos de grandes projetos,

especialmente aqui se tratando de grandes barragens, a aplicabilidade e assimilação desses

estudos em forma de novas práticas por parte do governo, ou mesmo da opinião pública,

dos consumidores distantes dos canteiros de obras, ainda é irrelevante.13

11 A capacidade instalada passa de 1882 MW em 1950, dos quais 1.536 de origem hidráulica, para 55.000 MW em 1986, dos quais 92% de origem hidráulica. (Vainer, 2003, p.76) 12 Em 1968, o CNAEE foi extinto e suas funções incorporadas pelo DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica). Hoje, Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). 13 O conceito de impacto é palco de debates para diversos especialistas. Sabe-se que nenhuma matriz energética é nula nesses termos. Os impactos ou riscos de ordem social, ambiental, econômica ou outra são dados segundo a fonte que, por sua vez, pode ser nuclear, hídrica, térmica, solar, eólica, etc. A questão das centrais nucleares é uma das mais polêmicas e de conseqüências mais drásticas. Emissões de gases poluentes tanto por usinas térmicas quanto por hidrelétricas, inundação de terras férteis, expulsão de famílias do campo, perdas econômicas e sociais no locus da obra são alguns dos incontáveis impactos adversos.

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Uma grande barragem, antes de gerar energia, é instrumento de legitimação política

por trás da ideologia desenvolvimentista. Os grupos dominantes envolvidos nas diversas

fases de planejamento e construção de um projeto dessa monta fazem uso de retóricas

especiais para alcançarem seus objetivos mais materiais. A filosofia faraônica é perseguida

e a força simbólica, representativa, da inauguração de uma barragem é, em geral, tão eficaz

quanto maior for a altura da barragem, ou a extensão de seu espelho d`água.

Impactos não são propagados, muito pouco mitigados, mas recorre-se sempre às

retóricas de progresso, desenvolvimento, interesse nacional, estratégico, como sintetiza

Vainer:

[...] O argumento tem como premissa, não enunciada, nem justificada, que o interesse nacional está expresso, sem qualquer mediação, no plano setorial. Em outras palavras, é como se o simples reconhecimento da necessidade de energia elétrica impusesse o reconhecimento de que: é do interesse nacional produzir o máximo de energia elétrica ao mínimo custo financeiro; os grandes empreendimentos são o formato mais adequado à concretização desse interesse (...) a lógica setorial expressa um conjunto de interesses cuja projeção é nacional (também internacional) e cuja hegemonia é consistente com um modelo de crescimento econômico – e, conseqüentemente, um padrão de geração e distribuição de energia – que tem concentrado espacial e socialmente os benefícios do desenvolvimento. (Vainer, 1992, p. 63)

A crise de financiamento que impulsionaria para as re-privatizações já se delineava

no horizonte a partir da década de 80. O controle da espiral inflacionária era feito mediante

a manipulação dos preços e tarifas das concessionárias de energia elétrica. Com o aumento

dos juros no mercado internacional e a dívida externa setorial, que em 1980 situava-se em

torno de 10 bilhões de dólares, adiou-se uma série de investimentos. De todo modo, o

sistema dispunha de folga, em conseqüência da recessão e da conclusão de vários

empreendimentos de grande porte.

A empresa concessionária do Rio de Janeiro, LIGHT, que já vinha galgando

posições no ranking das piores empresas de serviço público - especialmente após a

privatização em função da progressiva deterioração dos serviços – teve, depois do “verão

do apagão”, um aumento em 500% de reclamações dos usuários em agências do Procon.

Diversos transformadores queimaram, deixando várias regiões no escuro e atormentando a

vida de cidadãos que tiveram seus equipamentos danificados na retomada do fornecimento.

Nesse caso, o fator natural foi o dos que mais se destacou entre as possíveis causas dos

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transtornos. A intensidade excepcional do calor era sensível à pele contrariamente aos

argumentos difusos e mais contestáveis de ordem técnica ou econômica.

O blecaute de março de 1999, famoso pela hipótese de um raio ter atingido a

estação de Bauru, não foge a tendências de justificativas de ordens naturais e

meteorológicas. Esse evento atingiu diretamente a credibilidade da atuação do Operador

Nacional de Sistema, ainda que a descarga elétrica tenha sido repetitivamente utilizada

como bode expiatório de sistema que já operava há muito tempo em alto risco.

“Em março de 1999 houve um apagão nacional. A versão oficial foi um raio que caiu em uma subestação em Bauru [SP]. O argumento foi ruim. É muito raro um raio cair em uma subestação, protegida por pára-raios. Concluímos que não havia caído raio. Mostrei ao governo que o que poderia ter acontecido era ter caído um raio em linha a, pelo menos, 50 km de distância da subestação e se propagado até lá. Era o prenúncio da crise. Mostrava que o sistema está precário.” 14

Em janeiro e fevereiro de 2000, choveu extraordinariamente. Graças a essas chuvas

excepcionalmente fartas, ultrapassamos 2000 sem crise energética aparente. São Pedro

então não nos faltou. Em outubro do mesmo ano publicava-se previsões meteorológicas

mais otimistas para a primavera de 2001 em relação a 1999 (Estado de São Paulo -

20.10.2000).

Alardeava-se um futuro incerto para o setor elétrico, cada vez mais, e mais uma

vez, vulnerável ao que ultrapassa os limites da razão e da ação humana, a simples vazão

dos rios, a precipitação...castigos de São Pedro.

“Somos um povo goetheano: queremos luz, luz, mais luz. Luís da

Câmara Cascudo, o maior brasileiro entendido em psicologia popular, refere-se ao hábito de carregar um tição nas mãos para afugentar os fantasmas. Lampião de querosene. Luz trêmula é sinal de espectro além-túmulo. Horror de casa sem fogo, lume, fogão, flama, brasa. Fogo morto é decadência, dizia José Lins do Rego. Para o povo brasileiro, que traz Dante Alighieri na alma, o céu é permanentemente iluminado como o dia. Paraíso. Enquanto o inferno é o reino das trevas e o purgatório, penumbra”15

Uma sensação de déjà vu transcorre em diversos momentos na história do Setor

Elétrico, especialmente no que tange aos episódios de racionamento e às cirandas de

14 PINGUELLI, Folha de São Paulo, junho de 2001. 15 VASCONCELLOS, 2001.

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privatizações. Alguém sempre poderá dizer “já vi isso antes...”. Aqui a história

definitivamente se repete. O racionamento de energia elétrica demonstra com clareza o

eterno retorno a que está reduzida a evolução do Setor Elétrico. Note bem, a reportagem

animada elaborada por Darcy em anexo. É bem curiosa a relação estabelecida entre os anos

aqui trabalhados de 1951 e 2001, e mais ainda o tom irônico com que o autor parece prever

a atual situação de déficit energético.

Nos últimos vinte anos, com o crescimento do consumo e o processo de

privatizacão que desestruturou os setores elétricos, os blecautes entraram na lista das

grandes ameaças contra a humanidade, como enchentes, incêndios, tempestades,

terremotos e outras adversidades. O mundo fica à mercê da aplicação de inovações

tecnológicas profundas ou mudanças radicais nas cadeias de produção, transmissão e

consumo de energia elétrica, quase como à espera de milagres na busca de maior

sustentabilidade e distribuição eqüitativa dos recursos do planeta.

As justificativas para estes impactos de maiores proporções nos sistemas

energéticos mundiais podem ser encontradas na conjunção de diferentes fatores de ordem

técnica, natural, financeira, política, administrativa, ou outra, variando entre panes de

sistemas, tempestades naturais (fortes ventos, raios, tempestades solares), incúria e etc.

Na tentativa de reduzir a vulnerabilidade a esses contratempos, programas de

conservação de energia elétrica são formulados estabelecendo estratégias diversas, seja no

setor de tecnologia e seu desenvolvimento; na difusão de informações sobre conservação;

captação de investimentos; mudanças na legislação e preços de tarifas.

De fato as campanhas publicitárias utilizadas em um primeiro momento com

personalidades famosas na TV e no rádio alertando a crise sortiram melhor efeito que as

multas e sobretaxas utilizadas na seqüência àqueles que ultrapassassem as respectivas cotas

de consumo, Mais efeito que os 18 anos do Programa Nacional de Conservação (PROCEL)

É fato que o déficit de energia elétrica era tema de alerta de técnicos e

pesquisadores ligados ao setor desde 1992. Embora o presidente Fernando Henrique tenha

declarado estar “surpreendido”. A procura por argumentos incontestáveis de ordem natural

é marca recorrente desses episódios de pane de sistema ou apagões.16

16 O relatório final da Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico, pronto em maio de 2001, aponta que a falta de chuva, por si só, não foi principal causa do racionamento; o crescimento do consumo de energia ocorreu dentro do previsto e não teve qualquer influência sobre a crise; a implementação de novas usinas hidrelétricas e a manutenção do cronograma de obras evitaria o racionamento; houve falha no sistema de informações entre o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), ANEEL e Ministério de Minas e Energia e a Presidência da República, dentre outras.

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César Benjamim, em o porquê do apagão, vislumbra que um extraterrestre

preocupado com o destino do Brasil no ano de 1998 procuraria as autoridades perguntando

o que cada um estava fazendo diante da aproximação do colapso. Conjetura:

“Do Operador Nacional do Sistema: ‘Mais do que ninguém, eu

vejo a aproximação da crise, pois sou responsável pela operação física do sistema. Mas, na nova divisão de tarefas, minha responsabilidade é otimizar a oferta de energia em cada momento, atendendo a demanda que cresce. Sem investimentos, sem novas usinas geradoras, sem linhas de transmissão, resta-me esvaziar os reservatórios, para cumprir minha missão presente, e enviar relatórios ao governo, alertando-o para a situação. É o que tenho feito.’

Do Ministério das Minas e Energia: ‘Não posso liberar os investimentos das empresas ainda estatais de energia, pois elas estão submetidas ao Conselho Nacional de Desestatização, comandado pelo pessoal da Fazenda. Informei o presidente sobre o risco de déficit, apontado os relatórios do ONS. O presidente está atado pelos acordos com o FMI, mas apoiou o programa emergencial que concebi, que prevê a construção de 49 usinas térmicas, dando aos investidores garantias sobre o preço futuro do gás.’

Das distribuidoras (parte totalmente privatizada do sistema): ‘Eu também sei que a crise está em curso, mas por favor compreenda minha situação. Neste momento, estou coberta por meus contratos com as geradoras. Se eu contratar mais energia agora, para proteger meus consumidores, terei de estabelecer contratos de vinte a 40 dólares o mWh, pois o gás está muito caro. Sei que esse preço tende a cair. Não poderei repassar o sobrepreço atual aos consumidores, pois a ANEEL não me deixa. Mesmo que deixasse, não resolveria o problema, pois meus consumidores ficarão livres para escolher outras distribuidoras em 2005. contratar agora energia nova, induzindo investimentos em geração, me levará à falência. Prefiro ficar parada onde estou. Se, pelo menos, eu pudesse fazer contratos mais curtos...’

Dos investidores privados em geração (novos agentes do sistema): ‘Eu também sei que se aproxima uma crise. Mas, por favor, não venha a Aneel tentar me impor contratos mais curtos com as distribuidoras, pois eles não garantem o retorno do investimento que eu deveria fazer. Por outro lado, esse súbito aumento no preço do gás importado reforça a necessidade de proteção cambial, pois minha moeda de referência é o dólar. Fiquei muito inseguro com esse novo câmbio flutuante. Não posso assinar, sem proteção, contratos de vinte anos, comprometendo-me a entregar uma energia que depende de um gás cujo preço não sei qual será. Além disso, o governo de vocês está preparando a privatização de Furnas, que é uma galinha gorda, pronta para dar uma bela canja, enquanto por aqui o governo americano também está iniciando um programa de termelétricas. Prefiro esperar para escolher, na hora certa, a opção mais segura e rentável. Com a aproximação da crise, talvez as autoridades brasileiras fiquem mais sensíveis...’

Da agência reguladora (ANEEL): ‘Sei que todos esperam que eu defina o valor normativo, ou ‘referência externa’, da energia, de modo a estimular os contratos, mas não tenho nenhum critério objetivo

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para fazer esse cálculo. A Fazenda não me deixa soltar um valor alto demais, pelo impacto da inflação. Os investidores não aceitam contratos longos em energia térmica, pois o preço atual do gás está muito alto. Com contratos cursos, os investidores não investem. Como posso regular essa mixórdia?’

Do Ministério da Fazenda: ‘não estou seguro de que se aproxime uma crise energética, isso é coisa do tempo dos nossos avós. Nem me lembro quando tivemos a última. Essas incertezas são naturais, fazem parte do processo de alteração da matriz energética e da transição para o mercado. Quanto às ameaças de colapso, são apenas lobby. Querem hedge cambial, querem tarifas indexadas, querem mexer em contratos já assinados, isso cheira mal. Sou responsável por três tarefas consideradas prioritárias pelo presidente da República: garantir superávit fiscal, manter a inflação dentro das metas e concluir a privatização do setor elétrico. Todas elas reforçam minha posição de reter recursos no caixa do governo. Grandes investimentos, feitos por empresas estatais, são coisa do passado. Além disso, ninguém gosta de comprar empresas que estejam iniciando projetos vultosos, pois isso imobiliza muito capital e dificulta uma rápida distribuição de dividendos. Se o mercado funcionar, tudo se arranja.’”17

O racionamento começou efetivamente no primeiro dia do mês de junho de 2001,

dois meses antes da criação efetiva da Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica –

CGCE pela MP n° 2.198-5 de 24 de agosto de 2001. Tudo isso em meio a uma série de

discussões acerca da constitucionalidade de algumas medidas. De caráter preventivo ou

corretivo, as reduções atingem, preferencialmente, a iluminação pública, casas de diversão,

indústria ou o comércio de artigos considerados de luxo e, finalmente, o consumo

domiciliar.

A primeira comissão do governo para tratar do racionamento não tinha um

programa emergencial pronto para contornar a crise. As medidas apresentadas eram

demasiadamente impopulares constando apagões alternados de até quatro horas diárias em

dias consecutivos. O desgaste do governo Fernando Henrique Cardoso, já no seu segundo

mandato, fora inevitável. Por fim, fica estabelecida a redução mensal em 20% do consumo

residencial e comercial de energia elétrica, sobretaxa caso a meta de consumo seja

ultrapassada e cortes de fornecimento nos casos de reincidência. É inaugurada a idéia de

bônus aos que reduzissem em mais de 20% o consumo, o que não obviamente não

beneficiava àqueles que já faziam uso estreito da energia elétrica.

Consumidores de tensão menor ou igual a 100 Kw/h por mês ficaram isentos das

medidas de contenção. Já os altos consumidores tiveram metas de redução de consumo 17 BENJAMIM, 2001.

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estipuladas em 15% e 25%, com cobrança de sobretaxas de impostos no preço de venda de

produtos eletrointensivos. Essa medida gerou crise em alguns setores que demitiram parte

de seus funcionários. Resultado: aumento do desemprego e protestos nas ruas.

A população, de uma forma geral, reagiu de maneira solidária e responsável, a

demanda mensal de energia caiu de 56.000 MW em abril para 43.000 MW em agosto.

(GLOBO, 20/08/01). No entanto, o debate sobre a responsabilidade pela crise energética se

alastrava. A veiculação incisiva de campanhas contra as ligações clandestinas, os

chamados “gatos”, fortaleceu a argumentação do governo e de concessionárias atribuindo

responsabilidades à população, ao desperdício e diretamente aos moradores de áreas

periféricas ou favelas que cultiva os famigerados “gatos”.18

O governo chegou a suspender a aplicação dos artigos 12, 14, 22 e 42 do Código de

Defesa do Consumidor (CDC) 19 e agilizar os processos de licenciamento ambiental nas

diferentes instâncias, fixando prazos menores para os estudos de impactos ambientais.20

Por fim estabelece acordos favoráveis às concessionárias, como o Seguro Apagão,

ressarcindo as perdas das empresas com recursos do BNDES e de toda a população.

Na sessão de cartas de leitores da revista Caros Amigos de junho de 2001, Vinicius

Carvalho ilustra: “Encontrei a alternativa para os problemas do apagão. Enquanto o

ministro Parente pergunta com todas as letras se é melhor parar a Votorantim ou um circo,

sem pensar que trapezistas e palhaços também têm família para sustentar, eu, sem mil

reuniões, sem consultoria externa e sem tirar o emprego dos palhaços (senão seríamos

muitos os desempregados), tenho a solução para o país apagar e não parar: vamos voltar à

Roma antiga e decretar um mês para jogos e festividades” Em vez de proibir o circo,

vamos intensificá-lo. Todo dia, durante duas horas, com luz natural, todas as empresas

cessam as suas atividades e os funcionários participam de atividades culturais e esportivas.

18 O instituto de pesquisas Datafolha saiu às ruas entre os dias 25 e 28 de junho e constatou que, de um universo de 12.602 brasileiros entrevistados, 54% desaprovaram o plano de racionamento de energia, chegando a 77% a rejeição aos apagões programados. O governo federal e as empresas que administram o sistema foram apontados como os principais responsáveis pela crise energética, respectivamente, por 63% e 57% do total de entrevistados. 19 Os respectivos artigos diziam respeito: a) dever de indenizar o dano causado por acidentes de consumo; b) responsabilidade do fornecedor de serviços que causem danos aos consumidores por defeitos relativos à prestação, informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição; c) obrigação de serviços públicos adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos; por fim, d) não cobrança de débitos ao consumidor ou qualquer outro tipo de constrangimento ou ameaça. LEMOS, [2001]. 20 ELETROBRÁS, Súmula 104.

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Seriam duas horas de economia de energia e de enriquecimento cultural. E a Votorantim?

Oras, o Antônio Ermírio também não escreve peças teatrais?”

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III – CONSIDERAÇÕES FINAIS

São levantadas algumas das especificidades do Setor Elétrico, caracterizada por ser

um tipo de indústria industrializante que, assentada em bases monolíticas e conduzida por

políticas totalizantes, centralizadas e centralizadoras, em vários momentos da segunda

metade do século XX, não se mostrou capaz de responder à evolução da demanda. Observe

abaixo uma síntese, o quadro da crise:

1925 “Sobreveio então a primeira grande crise de energia elétrica(...)as secas

inesperadas eram as responsabilizadas. Nenhuma penalidade imposta à

Companhia(...)antes ao contrário, enormes concessões”

1945-1949 Atraso de obras e acidentes com transformadores foram responsáveis por

racionamento de energia elétrica na capital e no interior do Estado do Rio

de Janeiro e de São Paulo, prejudicando as atividades industriais.

1950-1954 Período mais crítico de racionamento no Estado do Rio de Janeiro

1952-1955 Período mais crítico de racionamento no Estado de São Paulo

1957 O presidente Kubitscheck autoriza criação de furnas sem a aprovação

congresso

1959 Racionamento em Belo Horizonte

1963-1965 Início de operação da usina de Furnas “evitando um iminente corte no

fornecimento de energia ao parque industrial do Rio de Janeiro e São

Paulo”

1967 Severo racionamento que durou cinco meses imposto devido a uma forte

tromba d`água que se abateu sobre o Estado do Rio em 23 de janeiro deste

ano.

1986-1988 O atraso de obras prioritárias como os mega-projetos de Itaparica, Tucuruí

e Itaipu resultaram em decretos de racionamento na região Sul e Nordeste.

1997

“As condições de atendimento energético, antevistas com alguma

preocupação, no final do ano anterior, foram asseguradas pela ocorrência

de chuvas torrenciais em janeiro e por afluências elevadas ao parque

hidrelétrico ao longo do primeiro semestre”.

1999 Apagão que atingiu vasta área do Sistema Interligado.

2001-2002 Racionamento que marcou a era FHC

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A produção e a circulação de discursos são fortemente vinculados aos grupos

detentores de saber e poder. O que contribui na conservação da estrutura, não é abalada

senão por propostas de mudanças pouco expressivas, retoricamente tratadas como soluções

renovadoras, mas que na prática têm efeitos apenas paliativos.

Ideais de desenvolvimento, progresso, ou mesmo de incentivo às concentrações

industriais e geração de emprego e turismo. Esses discursos são assimilados quase sem

contestação, embora na maior parte dos casos trata-se da oferta de empregos temporários,

de um turismo incomparável ao crescente potencial de ecoturismo se conservadas as

cachoeiras, por exemplo, e quanto ao desenvolvimento...esse é alcançado nos centros

consumidores e não no lócus do empreendimento que por sua vez tem sua estrutura

devastada.

Em conseqüência, diversos conflitos são gerados e mal gerenciados. O uso múltiplo

dos reservatórios em período de crise pode nos oferecer um cenário em que amortecer os

efeitos drásticos da seca implica necessariamente no comprometimento do fornecimento de

energia elétrica aos centros de consumo. São comprometidas, cada qual à sua maneira,

empresas concessionárias, consumidores e comunidades ribeirinhas freqüentemente

atingidas por toda unilateralidade do processo decisório.

O racionamento de energia elétrica, além do abalo econômico, social e produtivo

que provoca, ameaça sobremaneira os direitos do consumidor e a já tão atribulada

legislação ambiental. Em nome da soberania nacional, do progresso e desenvolvimento, em

contexto de crise, as barreiras de proteção ambiental, em ritmo de urgência, são

rapidamente extirpadas.

No que concerne às diferenciações entre as classes de consumo, os consumidores

residenciais foram historicamente penalizados: em primeiro lugar, pela política de

subsídios aos grandes consumidores e, depois, pelas regras de reduções e cortes de

consumo que visam minimizar impactos no setor produtivo de grande escala.

Em diferentes contextos a deflagração do racionamento resultou em conseqüências

negativas para a prática ambientalmente sustentável e para o planejamento democrático.

São fortalecidos grupos de empresários concessionários e toda uma cadeia produtiva ligada

a projetos dominantes que beneficiam apenas determinadas classes e relações.

É preciso suplantar a visão de curto prazo no planejamento, bem como essa gestão

centralizada e centralizadora que mantém a má distribuição e utilização das fontes

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energéticas. Mais do que aumentar a produção e racionar recursos é imperativo

racionalizar os usos.

“Na conferência Mundial de Energia, em Madri, o painel presidido pelo Banco Mundial mostrou que na média dos países em desenvolvimento a tarifa de energia não cobre 40% do seu custo. Se a energia elétrica economizada tem um custo de três a cinco vezes menor que o da energia ofertada, poríamos chegar no horizonte do planejamento do setor elétrico (que é o do plano 2015) a uma economia de 45 bilhões de dólares, ou seja, evitar o investimento de 60 bilhões em geração elétrica, investindo 15 em conservação”. (ROSA, 1995, p. 93-94)

A conservação de energia, a política de redução das perdas no sistema de

transmissão, o incentivo à modernização técnica dos produtos em busca de menor

consumo, dentre outras medidas, carecem ainda de importância no plano político e

administrativo na gestão da crise.

As energias renováveis, antes da revolução industrial e da utilização dos

combustíveis fósseis, eram largamente difundidas em diversos usos humanos: da tração

animal, ao moinho de água e de vento ou à queima de madeira. Hoje em dia, energia

renovável parece um conceito lúdico. Os discursos sobre o tema giram em torno do

elevado custo de produção, precariedade das pesquisas na área e etc, mas a mitigação dos

impactos da ação humana sobre a natureza é de primeira ordem, assim como a

diversificação da matriz energética utilizada, com incentivo para as atividades não

agressivas ou poluentes competirem no mercado.

Os argumentos mais utilizados para justificar o racionamento de energia elétrica

são diferenciados: se, caso sejam, representantes da empresas concessionárias e das

instâncias do governo as justificativas são de ordem natural (falta de chuva) e conjuntural

(crises mundiais e aumento do consumo).

Caso contrário, constata-se uma gama de críticas de cunho político à condução das

questões ligadas ao modelo de desenvolvimento dessa indústria e do país de uma forma

geral. Pesquisadores e especialistas do setor ligados a setores regionais ou de caráter mais

autônomo direcionam o ataque ao governo e às empresas sob acusação de incúria e

submissão aos interesses estrangeiros e espúrios.

O argumento da ausência de planejamento e regulamentação aparece com mais

freqüência que as razões de ordem financeira, restrições de investimentos, etc. As

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observações de problemas de ordem técnica são especificas e mais ocasionais, mas nada

incomum.

Se o longo racionamento da década de 50 foi utilizado como forte argumento para a

nacionalização do Setor nas décadas seguintes, o racionamento de 2001 – que seguiu à re-

privatização de parte do Setor – foi, por uns, acionado como prova da ineficiência da

política de privatização iniciada e, por outros, como resultado acumulado dos anos de má

gestão do poder público.

Conclui-se que os conflitos gerados na iminência de crises decorrem menos dos

recursos momentaneamente escassos, que das condições jurídicas-políticas específicas de

regulação e das formas culturais de apropriação de recursos subjacentes.

Não podemos desconsidera que os recursos hidráulicos passíveis de consumo

humano estão se exaurindo no mundo todo e o Brasil detêm uma das maiores reservas de

água e biomassa do planeta. A maior parte dos reservatórios d`água que geram energia

abastecem também cidades. Privatizados imbricam novos valores aos usos múltiplos e

acirram conflitos diversos.

Resta acreditar no alvorecer da era do hidrogênio de que fala Capra (2000) ou,

quem sabe, em outra nova coisa de bruxo que suplante as matrizes ora existentes e seja

capaz de nos afastar do modelo matrix – energívoro – de desenvolvimento pautado por

crises prolongadas e cíclicas de escassez.

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IV - BIBLIOGRAFIA

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