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1 A LUTA DE CLASSES NO NORDESTE: UMA LEITURA DE O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, DE LEANDRO GOMES DE BARROS. 1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa destina-se a apresentar uma leitura da relação assimétrica entre pobres e ricos tomando como corpus o folheto de cordel O cavalo que defecava dinheiro, da autoria de Leandro Gomes de Barros. O texto trata das desigualdades sociais através do confronto entre as duas personagens centrais: um “pobre”, na função de protagonista, criativo e trapaceiro, que se revela capaz das piores atitudes para preponderar sobre o adversário e um “duque”, na função de coadjuvante/antagonista, ri co, cobiçoso e destituído de inteligência, assim como de princípios morais. Nesse aspecto, ambas as personagens se equivalem. Por constituírem personagens-tipo, representações genéricas do rico e do pobre na narrativa em estudo, sem nome, convencionamos designá-los como o Pobre e o Duque. A história consiste num tour de force, isto é, numa disputa pelo poder, na qual cada um dos contendores lança mão de seus recursos. O rico, dessa forma, fará uso do poder econômico, enquanto o pobre usará de sua inteligência e astúcia que, aliada à total falta de escrúpulos característica que comunga com o oponente lhe dará a vitória final, acrescida de uma vingança completa das ofensas recebidas do Duque. Quando se fala em vitória, em poder e em preponderância, no contexto dessa narrativa, é preciso que fique claro que não se trata apenas do Pobre conquistar a sobrevivência e alguma estabilidade, mas de exterminar, eliminar o Duque. Estará aí contida uma sugestão da impossibilidade da coexistência pacífica entre ricos e pobres? Deve-se ainda subentender que, se ambas as classes são desprovidas de uma moral e ética das ações, que sobreviva a classe menos danosa, tomando para si posições e haveres da classe derrotada? Se os novos poderosos também não têm moral, não seria questão de (pouco) tempo para se tornarem iguais aos outros ou piores do que eles? Estas e outras questões, para as quais propusemos as nossas respostas, que estão longe de ser definitivas, motivaram esta pesquisa. Buscando, portanto, oferecer uma leitura mais acurada da narrativa, pretendemos apontar para detalhes talvez inéditos no estudo da literatura de cordel que, de uma maneira geral, não segue interpretações de cunho ético ou

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A LUTA DE CLASSES NO NORDESTE: UMA LEITURA DE O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, DE LEANDRO GOMES DE

BARROS.

1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa destina-se a apresentar uma leitura da relação

assimétrica entre pobres e ricos tomando como corpus o folheto de cordel O

cavalo que defecava dinheiro, da autoria de Leandro Gomes de Barros. O texto

trata das desigualdades sociais através do confronto entre as duas

personagens centrais: um “pobre”, na função de protagonista, criativo e

trapaceiro, que se revela capaz das piores atitudes para preponderar sobre o

adversário e um “duque”, na função de coadjuvante/antagonista, rico, cobiçoso

e destituído de inteligência, assim como de princípios morais. Nesse aspecto,

ambas as personagens se equivalem. Por constituírem personagens-tipo,

representações genéricas do rico e do pobre na narrativa em estudo, sem

nome, convencionamos designá-los como o Pobre e o Duque.

A história consiste num tour de force, isto é, numa disputa pelo poder, na

qual cada um dos contendores lança mão de seus recursos. O rico, dessa

forma, fará uso do poder econômico, enquanto o pobre usará de sua

inteligência e astúcia que, aliada à total falta de escrúpulos – característica que

comunga com o oponente – lhe dará a vitória final, acrescida de uma vingança

completa das ofensas recebidas do Duque.

Quando se fala em vitória, em poder e em preponderância, no contexto

dessa narrativa, é preciso que fique claro que não se trata apenas do Pobre

conquistar a sobrevivência e alguma estabilidade, mas de exterminar, eliminar

o Duque. Estará aí contida uma sugestão da impossibilidade da coexistência

pacífica entre ricos e pobres? Deve-se ainda subentender que, se ambas as

classes são desprovidas de uma moral e ética das ações, que sobreviva a

classe menos danosa, tomando para si posições e haveres da classe

derrotada? Se os novos poderosos também não têm moral, não seria questão

de (pouco) tempo para se tornarem iguais aos outros ou piores do que eles?

Estas e outras questões, para as quais propusemos as nossas respostas, que

estão longe de ser definitivas, motivaram esta pesquisa.

Buscando, portanto, oferecer uma leitura mais acurada da narrativa,

pretendemos apontar para detalhes talvez inéditos no estudo da literatura de

cordel que, de uma maneira geral, não segue interpretações de cunho ético ou

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filosófico. Assim, a análise seguiu uma linha de raciocínio que leva em

consideração as posições dos estudiosos consultados, mas que dialoga com o

texto estudado mediante um questionamento das ações das personagens.

Esse questionamento toma corpo na pesquisa pela observação da interação

entre as personagens e os demais elementos da narrativa, principalmente o

narrador. Afinal, não podemos esquecer que é através dele que fala o autor e

que a literatura de cordel está intimamente associada às experiências

concretas de seus autores, leitores e ouvintes.

O cordel, como toda modalidade de literatura, trata do imaginário,

descortinando segredos, desejos, vontades, que podem, até de certo ponto, ser

tornadas realidade naquele momento em que lemos/ouvimos o texto. A função

maior da literatura, nessa perspectiva, é a de nos dar asas para viajarmos em

nossa imaginação e percorrermos caminhos até o momento nunca

experimentados. Foi exatamente o grau de identificação entre a literatura de

cordel e a nossa história particular de vida que nos motivou à escolha desse

tema para esta monografia. A isso aliamos a grande admiração que temos pelo

trabalho de Leandro Gomes de Barros.

A proposta de trabalho aqui esboçada tem o objetivo mais amplo de

analisar, nos domínios da estrutura da narrativa e de sua relação com os

personagens e demais elementos constitutivos, a desigualdade social existente

entre ricos e pobres. Embora o texto de Leandro Gomes de Barros não se

prenda à representação de um espaço e de um tempo históricos, é possível,

pela sua leitura, detectar as semelhanças entre senhores de terras e

“cassacos” nordestinos. Interessa-nos observar, inclusive, até que ponto a

mesma situação reveste-se de atualidade, considerando que o texto metaforiza

a inversão da ordem vigente, numa espécie de “anti-darwinismo” social no qual,

ao contrário do que prefixaria a “natureza” das coisas, o fraco sobrepuja o mais

forte, mercê de sua inteligência e astúcia.

Para a construção desta possibilidade de leitura do folheto de cordel de

Leandro Gomes de Barros, O cavalo que defecava dinheiro, optamos pela

definição de três categorias de análise que consistem nos três eixos principais

em torno dos quais se articula a interpretação. As categorias de análise são

úteis no sentido de conferir especificidade e objetividade à perspectiva de

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análise adotada, evitando dispersão. Como afirma Eco (1997, p. 14), “quanto

mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança se trabalha.”

Dessa forma, utilizamos três categorias de análise, todas ligadas

diretamente ao plano do conteúdo da obra analisada. A primeira diz respeito ao

entorno sócio-histórico que informa a narrativa e estrutura a discussão do item

“A representação da desigualdade social”; a segunda diz respeito à ação das

personagens no contexto do universo ficcional e estrutura a discussão do item

seguinte, intitulado “A inteligência, a astúcia ou a falta delas”; a terceira diz

respeito aos desdobramentos possíveis da ação das personagens, cujo caráter

distancia o cordel analisado do didatismo da literatura moralizante, e estrutura

a discussão do último item da análise, intitulado “A ética e a moral das ações: o

bem em segundo plano”. Todas as considerações em torno dos princípios

composicionais do texto e dos elementos da narrativa ocorrem em função do

conteúdo que cada um desses itens contempla.

O trabalho estrutura-se da seguinte forma: Introdução, que caracteriza a

nossa proposta de trabalho e detalha as suas linhas gerais; Fundamentação

Teórica, que sintetiza o aporte teórico do qual nos valemos para discutir o tema

escolhido; Análise de Dados, que contém a nossa leitura, montada a partir de

três itens, a saber, “A representação da desigualdade social”, “A inteligência, a

astúcia ou a falta delas” e “A ética e a moral das ações: o bem em segundo

plano”; Considerações Finais, que reúnem as nossas principais constatações

resultantes da análise; Referências Bibliográficas, que listam as obras e

autores pesquisados, e Anexos, que incluem o texto integral do folheto de

cordel que nos serviu de corpus.

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 OS HERÓIS BAIXOS

De acordo com Kothe (1987), a literatura reproduz, pela via da

representação, certos aspectos da natureza que se refletem nas relações

humanas. A dinâmica do herói no texto não foge a esta perspectiva: transitando

entre o alto e o baixo, ressaltando, respectivamente a grandeza de uma

baixeza por outro lado, o herói institui-se como aquilo que o autor denomina de

a dominante do sistema em que a obra literária se constitui.

O herói, portanto, determina o sistema ao mesmo tempo em que na

dinâmica das relações sociais, resulta dele. Para Kothe, o herói pode ser

definido como categoria determinante da ação e ao mesmo tempo dela

decorrente, qualquer que seja a classe social, na qual se insere. O herói define-

se nesta visão marxista, a partir dos entrechoques causados pelas diferenças

entre as classes.

Considerando a dicotomia (alto X baixo), Kothe opõe o herói dito “alto”

(aquele vivencia em profundidade grandes dilemas da humanidade e vence a

adversidade pela prática da virtude) ao herói dito “baixo” (aquele que ás voltas

com os dilemas triviais da vida quotidiana, prescinde da moral e apela para a

inteligência na superação das dificuldades).

Tendo em vistas a adequação do herói de Leandro Gomes de Barros

aos domínios do baixo, vamos nos concentrar na divisão que o autor propõe

para este tipo de herói. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que os ditos

heróis “baixos”, banidos das tragédias, nas quais pontificam os heróis “altos” e

os deuses, tem no cômico e no tragicômico o seu domínio.

2.1.1 Os heróis “abaixo da crítica”: o cômico e o tragicômico

Khote (1987, p. 43 e ss.) apresenta, seguindo a linha bakhtiniana das

relações entre o alto e o baixo na literatura como reflexos da luta de classes,

uma interessante proposição tipológica dos heróis baixos no âmbito da sátira e

da comédia.

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A tragicomédia tipo de comédia antiga em que se fazia presente à figura

de deuses que, sempre colocamos em esfera superior, ridicularizava os

homens a todo o tempo, diante desta situação que imperava jamais poderia o

homem reverter este quadro. O gênero não obteve tanto sucesso como o

trágico e o cômico, uma vez que punha os deuses a humilhar e ridicularizar o

homem implacavelmente, sem oferecer a contra partida a situação altiva, ou

seja, a vingança dos homens contra os deuses através do rebaixamento pelo

mesmo.

A comédia é um gênero que mostra o personagem que pretende não só

ser alto, mas elevado, tornando-o baixo, ridicularizando-o pelas situações que

representa como também a posição social que ocupa. Na literatura existem

vários personagens que exprimem bem esta realidade de herói que de fato não

passam de fanfarrões, pessoas que apresentam grandes feitos aparentes,

porém não passam de medíocres que buscam elevar-se a partir do auto-

engrandecimento. A comédia, preferindo rebaixar o que é elevado sem

necessariamente elevar o que é baixo, oferece uma perspectiva diferenciada

da tragicomédia, uma vez que permite a “vingança” dos homens contra o que

os oprime.

2.1.2 O satírico

A sátira tradicionalmente considerada “altiva” é um gênero que tende a

voltar-se contra os poderosos numa espécie de vingança dos fracos. Neste

caso, aparece a figura do herói que se manifesta como o intelectual que só

detém o poder da fala. O cômico procura mostrar o alto como baixo, mas

centralizando a visão no baixo. Para rastrear o percurso do cômico, é preciso

rastrear qual o grupo social que ele representa.

Neste sentido, Kothe define os parâmetros do herói cômico, que é

perfeitamente relacionável ao herói satírico:

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O herói cômico , assim como qualquer outro herói, participa da luta entre diferentes interesses sociais: a rigor, a luta da qual todos os heróis participam é a luta de classes, ainda em geral tudo seja feito, em termos de deslocamentos, deformações e escamoteamentos, para que este nível profundo não apareça enquanto tal. [...] Quando alguém ri, numa comédia, ele sempre ri de alguém; quando alguém está rindo, sempre há alguém chorando: só que a comédia escamoteia o chora e a dor. A comédia está aí para diluir os problemas no riso (KOTHE, 1987, p. 45).

2.1.3 O picaresco

É o tipo de herói que mostra o baixo como inferior (inclusive moralmente,

o que, aliás, é irrelevante para ele). Em sua atuação, tende a rebaixá-lo cada

vez mais, expressando um espírito crítico em relação a um tipo ou classe

social. Quanto mais central o personagem, menos se coloca a moral como o

cerne da questão para obtenção do ele deseja. Sua atuação sempre foge da

ingenuidade; ele manipula os outros e o ambiente sempre com mil truques,

visando a conseguir o máximo com o mínimo de esforço. Embora se mostre

avesso ao capitalismo, sobretudo quando provém de camadas sociais

inferiores, o herói cômico, demonstrando sempre utilitarismo, inscreve-se

paradoxalmente na mesma ordem de ação dos detentores do poder

econômico, o que não é incoerente com a prioridade que ele elege em

qualquer situação: a sobrevivência, em primeiro lugar e, se possível, a

vantagem sobre o outro.

O pícaro procura obter o máximo trabalhando o mínimo possível, enquanto o capitalista procura extrair do operário o máximo de trabalho pagando o mínimo possível. O pícaro é a criatura avessa do capitalista. A sua louvação da preguiça e da vagabundagem carrega em si um implícito protesto contra o trabalho alienado. Mas ele não tem qualquer consciência nem organização política. A sua iniciativa é apenas privada, como o próprio empresário da livre iniciativa. Ele é a caricatura do capitalista – a começar pelo fato de ele não ter capital -, o protesto impotente contra um sistema que o torna marginal, mas a partir de cuja marginalidade ele desvenda e desvela o cerne do sistema. Ele não valoriza

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o trabalho, mas também não discerne a possibilidade histórica de o trabalho vir a ser valorizado. (KOTHE,1987, p. 48)

Semelhantemente ao herói cômico-satírico, o pícaro também elegerá a

lei do menor esforço e a aversão aos donos do poder econômico (embora

nunca desdenhe eventualmente tornar-se um deles). A vagabundagem, ele a

leva em si como protesto contra qualquer forma de atividade que o torne

escravo de um sistema em relação ao qual ele não encontra qualquer

satisfação ou vontade. O seu desejo é essencialmente o de ser valorizado, não

pelo que faz, mas sim pelo que é. A caricatura do capitalismo representada no

herói satírico funciona como critica do sistema econômico: suas iniciativas, de

uma maneira geral, são sempre “privadas”, visando ao lucro próprio, e podem

eventualmente, guindá-lo ao topo da pirâmide social, mercê de suas astúcia e

audácia. Para ele, não é pessoal a questão que move a usar de meios ditos

amorais para prevalecer: é uma questão de sobrevivência, para a qual a vida

dura a que está ambientado o prepara continuamente.

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2.2 OS ELEMENTOS DA NARRATIVA

De acordo com Gancho (1991), toda narrativa se estrutura em cinco

elementos, sem os quais ela não existe. São eles: fatos ou enredo,

personagens, tempo, lugar e narrador. Uma visão panorâmica destes

elementos os distribui da seguinte forma: enredo é o conjunto de fatos de uma

história conhecido de muitos nomes: fábula, intriga, ação, trama, história. A

verossimilhança é a parte lógica do enredo. Nada deve; segunda a autora, ser

tão fantasioso que beire a fuga do leitor. O enredo deve ser bem elaborado

para dar credibilidade ao fato narrado. Para entender a organização dos fatos

no enredo, não basta perceber que a história tem começo, meio e fim; é

necessário compreender o elemento estruturado que é o conflito. Este pode ser

representado por qualquer componente da história: “personagens, fatos,

ambiente, idéias, emoções” que se opõe a outro, criando uma tensão que

organiza os fatos e prende a atenção do leitor.

O enredo constitui-se nas seguintes partes: exposição (introdução ou

apresentação), cuja função é situar o leitor diante da história; complicação

(desenvolvimento); parte em que se desenvolvem os conflitos; clímax é o ponto

de referência para as outras partes do enredo, que existem em função dele.

Consiste no ponto alto da complicação, quando os conflitos em pleno

desenrolar, desencadeiam fatos que conduzem à sua solução, seja ela “boa ou

má”; desfecho (desenlace ou conclusão) é a solução dos conflitos. No enredo

de natureza psicológica, há uma supervalorização das análises sentimentais

dos personagens, baseadas em seus estados mentais, que são ao mesmo

tempo determinantes de suas tendências e por elas determinados.

O segundo elemento da narrativa é o personagem ser fictício que é

responsável pelo desempenho do enredo, na performance da ação.

Classificam-se para melhor sistematização do assunto, algumas modalidades

de personagem, protagonista é o personagem principal, que pode ser herói,

isto é com características superiores às do grupo que integra o fato narrado;

anti-herói, protagonista que tem características físicas e psicológicas iguais ou

inferiores às de seu grupo, mas que, por algum motivo está na posição de

herói, embora não tenha competência para tanto; o antagonista é o

personagem que se opõe ao protagonista; seria o vilão da história. Os

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personagens secundários são menos importantes na história, tendo uma

participação menor ou menos freqüente no enredo. Podem ou não estar no

centro dos acontecimentos, protagonizando-os ou testemunhando-os.

Quanto à caracterização, de uma maneira geral os personagens são

colocados em dois grandes grupos: podem ser planos, caracterizando-se por

um número pequeno de atributos e pela manutenção de características,

tendências e comportamento mais marcantes, como por exemplo, o

personagem-tipo, reconhecido por características típicas, invariáveis, quer

sejam morais, sociais, econômicas ou de qualquer outra ordem, em função das

quais desenvolve sua relação com o enredo, destinam-se à apologia ou a

critica de determinados modelos comportamentais e/ou dos códigos culturais

que os condicionam. Os personagens-caricatura são reconhecidos por

características fixas consideradas ridículas, que estilizam hiperbolicamente

particularidades sociais e psicológicas nelas representados.

Os personagens redondos são mais complexos que os planos,

apresentando uma variedade maior e mais volátil de características. São

representados segundo particularidades físicas (corpo, voz, gestos, roupas);

psicológicas (estados mentais e/ou de espírito); sociais (classe social,

profissão, atividades sociais); Ideológicas (modo de pensar filosófico, político,

religioso); morais (julgamento, bem, mal, ética, valores).

O terceiro elemento da narrativa é o tempo, que consiste, em linhas

gerais, numa utilização da época em que se passa a história constituindo o

pano de fundo para o enredo. O conto, de um modo geral, apresenta uma

duração curta do fato narrado em relação ao romance. O tempo cronológico

tem o percurso linear, isto é, do começo para o final; o tempo psicológico tem

um percurso determinado pelo desejo ou imaginação do narrador ou

personagem.

O quarto elemento está dividido em duas categorias: espaço, que é o

lugar físico onde se passa a ação e tem a função principal de situá-la e

estabelecer com os outros elementos uma interação; e ambiente, que se

constitui no espaço carregado de características socioeconômicas, morais,

religiosas, psicológicas, em que vivem os personagens. O ambiente tem uma

função especifica: situar os personagens no tempo, no espaço, no grupo social,

ser a projeção dos conflitos por eles vividos.

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O quinto e último elemento da narrativa é o narrador, que estrutura

história: sem ele não há narrativa. Compreende dois tipos, o de primeira e o de

terceira pessoas. O narrador de terceira pessoa, conhecido também por

narrador observador, tem como características distintas a onisciência (ele sabe

tudo sobre a história); a onipresença (está presente em todos os lugares da

história). Existem também variantes de narrador na terceira pessoa, que é o

intruso, que fala com o leitor ou julga diretamente o comportamento dos

personagens; o parcial, que é o narrador que se identifica com um determinado

personagem e, mesmo não o defendendo explicitamente, permite que ele

tenha um maior destaque na história.

O narrador na primeira pessoa, ou narrador-personagem, é aquele que

participa diretamente do enredo inserido no fato narrado, dele participando.

Portanto, tem o seu campo de visão limitado. As variantes são: narrador-

testemunha, que geralmente não é o personagem principal, porém narra os

acontecimentos dos quais participou, ainda que perifericamente; narrador-

protagonista, que também é o personagem principal. O narrador não é autor, e

sim uma entidade ficcional; portanto, só existe no texto.

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2.3 NARRADOR NÃO É AUTOR

2.3.1 A tipologia do narrador de Norman Friedman

Segundo Leite (1993), a análise da instância do narrador suscita

questões de fundamental importância:

Norman Friedman começa por se levantar as principais questões a que é preciso responder para tratar do narrador 1) quem conta a historia? Trata-se de um narrador em primeira pessoa ou em terceira pessoa? De uma personagem em primeira pessoa? Não há ninguém narrando?; 2) De que posição ou ângulo em relação a historia o narrador conta? (por cima? na periferia? No centro? De frente? Mudando?) 3) Que canais de informação o narrador usa para comunicar a historia ao leitor (palavras? Pensamentos? Percepções? Sentimentos? Do autor? Da personagem? Ações? Falas do autor? Da personagem? Ou uma combinação disso tudo?; 4) a que distancia ele coloca o leitor da historia (próximo? Distante? Mudando?? (LEITE, 1993, p. 25).

A autora procura fornecer, por intermédio da classificação do foco

narrativo de Friedman, elementos para responder a tais questões. Friedman

oferece uma visão amplificada das possibilidades de relacionamento entre

narrador e fato narrado.

O narrador onisciente intruso este coloca-se acima do fato narrado; tem

um ponto de vista “divino”, que vai além dos limites de tempo e espaço. Seu

traço característico é a intrusão: fala sobre a vida, os costumes, os

pensamentos e desejos mais secretos, as características físicas e morais das

personagens. Pode não estar participando diretamente do fato narrado, mas

dele, assim como dos que o vivem, conhece todos os pormenores.

O narrador-onisciente neutro fala na terceira pessoa, com características

semelhantes às do narrador intruso, do qual se distingue apenas pela ausência

de instruções e comentários gerais ou mesmo sobre o comportamento dos

personagens, embora a sua presença, interpondo–se entre o leitor e a história,

seja sempre muito clara.

O narrador-testemunha dá um passo adiante rumo à apresentação do

fato narrado sem a mediação ostensiva de uma voz exterior. Ele narra na

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primeira pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa, que vive os

acontecimentos ai descritos como personagem secundária que pode observar,

desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá ao leitor de modo mais direto,

uma perspectiva mais verossímil da situação.

O narrador-protagonista ou personagem central, não tem acesso ao

estado mental dos demais personagens. Narra de um ponto fixo, limitado

quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos.

Na onisciência seletiva múltipla não há propriamente narrador. A história

vem diretamente, através da mente dos personagens, das impressões que

fatos e pessoas deixam nelas, utilizando-se o narrador pressuposto do discurso

indireto livre.

Na onisciência seletiva o ângulo de visão é central, isto é, os canais de

observação estão limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções do

personagem central, sendo mostrados diretamente (alternativamente, o

narrador pode inserir-se na mente de personagens periféricas, para um

enriquecimento da perspectiva em relação ao fato narrado).

No modo dramático busca-se eliminar do texto a figura do autor e,

depois, a do narrador; elimina-se a descrição dos estados mentais, típica da

onisciência do narrador, e limita-se a informação ao que os personagens falam

ou fazem. O ângulo de observação é frontal e fixo, e a distância entre a história

e o leitor é pequena, já que o texto se faz por uma sucessão de cenas.

O narrador-câmera é a última categoria da classificação do foco

narrativo de Friedman e significa o máximo de exclusão do autor em relação ao

texto. Esta categoria serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da

realidade, como se fossem apanhados por uma câmera, arbitrária e

mecanicamente. Não se deve esquecer, no entanto, que o narrador ainda

controla quais imagens que serão mostradas ao leitor, de modo que pode-se

afirmar que a objetividade perfeita não passa de um mito...

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2.4 APONTAMENTOS GERAIS SOBRE A LITERATURA DE CORDEL

De acordo com Pinheiro e Lúcio (2001, p.11), o cordel, no Brasil,

representa a poesia popular versificada, compreendendo um vasto universo

temático que engloba “histórias de batalhas, amores, sofrimentos, crimes, fatos

políticos e sociais do país e do mundo”.

Embora atualmente existam poetas cordelistas espalhados por todas as

partes do Brasil, no século XIX e início do século XX, informa o autor, o cordel

era parte da vida dos nordestinos que habitavam a zona rural, vivendo da

agricultura e da pecuária de subsistência, ou sob o raio de influência das

cidades, sustentando pequenos comércios.

Com a crise econômica mundial que teve lugar no final da segunda

década do século XX, mudanças significativas inclusive nas relações de

trabalho ocorreram, sobretudo na vida dos trabalhadores do campo,

ocasionadas pela necessidade daqueles de se transferirem para as cidades em

busca de dias melhores. Vários setores da sociedade desestabilizaram-se,

evidenciando a situação de exclusão e de desfavorecimento em que as

camadas mais pobres eram obrigadas a viver. Assim, no ambiente conturbado

das cidades, os primeiros cordelistas (ou como viriam a ser conhecidos

posteriormente, os “poetas de bancada”) egressos do campo trouxeram para o

papel as narrativas de influência marcadamente medieval sobre “príncipes e

princesas, reinos distantes, homens valentes e mocinhas indefesas”,

acrescidas das canções e desafios dos violeiros e repentistas que levavam a

sua arte de uma para outra fazenda (PINHEIRO e LÚCIO, 2001, p. 12).

O autor aponta que, além destes fatores, a memória contribuiu

fundamentalmente para a constituição da identidade do cordel como produção

cultural:

Além dos cantos e cantorias de viola, estavam guardados na memória o som dos maracatus, dos reisados, do coco, da embolada. É essa cultura, influenciada pelos ritmos afro-brasileiros, pela mistura entre rituais sagrados e profanos, que faz do cordel uma produção cultural distinta das outras. A mistura de vozes e ritmos da cultura transforma-se em música nos folhetos (Idem).

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O cordel passa a ser vendido nas ruas e praças das cidades por

nordestinos pobres e semi-analfabetos. Ora declamando os versos, ora

cantando-os à moda dos repentistas e suas toadas, esses autores penetraram

dessa forma no mundo da escrita, levando a poesia popular, antes oral e

restrita a grupos sociais marginalizados (agricultores pobres, ex-escravos,

pequenos comerciantes), a ultrapassar uma fronteira até então impensável,

colocando-se ao lado dos “escritores e homens de letras do país” (ibidem, p.

13).

A designação “folheto de cordel” foi inicialmente empregada pelos

estudiosos para referir os folhetos vendidos nas feiras, como se fazia em

Portugal. Lá, de acordo com Abreu (1999, p. 23), os cordéis eram livros

baratos, impressos em papel de baixa qualidade, pendurados em barbantes,

escritos e lidos por pessoas integrantes da classe média como advogados,

professores, militares, médicos, funcionários públicos, etc. O cordel português

abarca as formas do auto, da pequena novela, da farsa, dos contos fantásticos

e de cunho moralizante, da sátira, da notícia, da peça teatral, podendo ser

escrito ainda em versos. Segundo Pinheiro e Lúcio (2001, p. 14), antes que a

expressão “folheto de cordel” se generalizasse, os poetas e editores durante

muito tempo usaram para as suas produções a denominação de folhetos.

Câmara Cascudo a eles se refere em Cinco livros do povo (1953) como “as

brochurinhas em versos”, que assim se chamavam por serem postas à venda

“cavalgando um barbante” (GALVÃO, 2006, p. 27).

O final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX definem

as características gerais dos folhetos. Leandro Gomes de Barros, em 1893;

Francisco das Chagas Batista, em 1902, e João Martins de Athayde, em 1908,

estabeleceram as regras gerais de composição e comercialização de seus

trabalhos e são, por essa razão, considerados os pioneiros da literatura de

cordel entre nós, brasileiros.

Tais características podem ser assim definidas: 8 a 16 páginas para as

pelejas (desafios) e folhetos de circunstâncias (histórias de época) – para o que

se fazem necessárias apenas duas folhas de papel tamanho ofício, dobradas

em quatro faces; 24 a 56 páginas para os ABCs e romances. De acordo com

Ayala (1988, p. 103), existem vários pontos de contato entre o folheto de cordel

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BARROS.

(escrito) e a literatura oral, ou seja, o repente. Isso se verifica principalmente

quanto ao tipo de estrofe mais usado, a sextilha, que contém seis versos.

Produzidos inicialmente em tipografias de jornal, os folhetos depois de

algum tempo passaram a ser confeccionados em prensas tipográficas

pertencentes aos próprios poetas, que viviam da venda de suas produções. Um

dado interessante a esse respeito, trazido por Pinheiro e Lúcio (2001, p. 15),

revela que Francisco das Chagas Batista viajava pela Paraíba e vários dos

estados do Nordeste, vendendo folhetos e miudezas, tendo criado em 1913 a

“Livraria Popular Editora”, que editou e vendeu os folhetos de muitos poetas da

região. Ainda segundo os autores, nas décadas de 20 e 30 do século XX, cerca

de 20 tipografias chegaram a funcionar na Paraíba e em Pernambuco

(PINHEIRO e LÚCIO, idem; TAVARES, 2005, p. 123-126).

A memória é um aspecto fundamental para o cordel. Para Câmara

Cascudo (1988), utilizar o canto poético para conservar a memória dos fatos

ocorridos é uma prática milenar e universal entre as culturas, sendo já no

século XVI utilizada no Brasil, não somente pelos colonizadores europeus, mas

também pelos indígena e registrada por Fernão Cardim e Gabriel Soares de

Souza (GALVÃO, 2006, p. 29). Os primórdios da literatura de cordel estariam

então, de um lado, ligados à literatura de crônicas de viagens dos portugueses,

e, do outro, aos ritos indígenas de memória.

A literatura de cordel portuguesa, que já mencionamos, forneceu, desde

os primeiros exemplares chegados à Colônia, por volta dos séculos XVI e XVII,

uma variedade de temas tradicionais que, de mistura com os aspectos

histórico-culturais locais, forneceram uma grade de temas mais ou menos

recorrentes. Esses temas tradicionais seriam as narrativas da Donzela

Theodora, da Imperatriz Porcina, da Princesa Magalona, do Imperador Carlos

Magno e os Doze Pares de França. Em levantamento realizado em 1888 sobre

o assunto, o crítico literário Sílvio Romero apontava estes temas como os mais

lidos principalmente nas cidades do interior (GALVÃO, 2006, p. 33). Isso

significa que os poetas de cordel inspiraram-se muitas vezes em histórias

tradicionais de origem européia para escrever os folhetos.

Os temas tratados nos folhetos são amplamente diversificados, sendo os

principais: religião e misticismo, com significativa presença de Jesus, do Diabo,

dos santos e de beatos como Antônio Conselheiro, o Padre Cícero e Frei

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BARROS.

Damião; relatos de acontecimentos históricos e políticos; descrição de

fenômenos naturais, como as grandes secas ou enchentes, ou sociais, como o

cangaço ou a decadência dos costumes; histórias tradicionais; aventuras de

heróis e anti-heróis (idem, p. 36). Câmara Cascudo (1994) arrola as seguintes

temáticas: devotos, cangaceiros, milagres de santos, prisão de bandidos

famosos, fugas espetaculares, sonhos e visões relativos ao Padre Cícero do

Juazeiro. Para o autor, as histórias tradicionais mais reeditadas nos folhetos

seriam Alonso e Marina, Zezinho e Mariquinha, A Filha do pescador e Cancão

de fogo.

De acordo com Galvão (2006), Manuel Cavalcanti Proença divide a

literatura popular em três grandes grupos: a poesia narrativa, a didática e a de

forma convencional:

No primeiro grupo o autor inclui os contos (motivos mitológicos, animais, tabus, magia, morte, milagres, maravilhas, ogros, adivinhações, sabedoria e tolice, decepções, reversão da sorte, previsão do futuro, [...], cativos e fugitivos, crueldade exagerada, sexo [...], humor [...]; as gestas ou sagas (heróis humanos [ciclo de Carlos Magno, ciclo de cangaceiros, ciclo de valentes e ciclo de beatos/patriarcas], heróis animais [ciclo do boi], anti-heróis pícaros [ciclo do Cancão de Fogo, ciclo de Pedro Malasartes, ciclo do soldado]. No grupo da poesia didática, o autor inclui a doutrinária (ensinamentos e profecias), a satírica (social, religiosa e política) e a por competição (pelejas e discussões). Finalmente, no grupo dos poemas de forma convencional, Ivan (sic) Proença inclui os padre-nossos, ao testamentos, as glosas, os A.B.C., [...] e os “pé-quebrado”

(GALVÃO, 2006, p. 36).

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2.5 A LITERATURA DE CORDEL E LEANDRO GOMES DE BARROS: VIDA

E OBRA

O autor nasceu em Pombal – PB, em 19.11.1860, onde residiu até aos

nove anos. Após o falecimento do pai, Jose Gomes de Barros Lima e de

Adelaide Gomes de Barros Lima, mudou-se com a família para a cidade de

Teixeira-PB e lá morou até os 15 anos, provavelmente até 1875, sendo criado,

segundo a tradição, por seu tio, o Padre Vicente Xavier de Farias, que se

tornou tutor da família após a morte de Jose Gomes de Barros Lima. Dessa

forma, Leandro passou a viver em sua companhia e por ele foi educado.

O Padre Vicente Xavier de Farias era professor de Latim e

Humanidades, o que lhe conferia o título de padre-mestre, tendo como alunos

vários personagens ilustres da época no Sertão da Paraíba. Leandro teve

acesso aos livros de grandes historiadores; basta ler alguns de seus folhetos e

podemos verificar a “transliteração” para o leitor popular que não tinha acesso

aos livros. Provavelmente leu poetas eruditos como Castro Alves, Gonçalves

Dias, Camões ou Álvares de Azevedo, além de ter convivido com homens

cultos e era um homem do seu tempo.

Por volta de 1890, Leandro vai morar em Vitória de Santo Antão – PE.

Lá casa-se com Venustiniana Eulália Aleixo provavelmente em 1892-1893,

nascendo no ano de 1894 sua filha mais velha, Rachel de Barros Lima.

Posteriormente, mudou-se para Jaboatão dos Guararapes - PE, na Rua da

Colônia. Leandro estaria então com prováveis 33 anos, pois há um lapso de

tempo quanto à sua data de nascimento, variando entre 1860-1865. No final da

década de 1870, a família da prima de sua mãe mudou-se para Palmares e

logo depois, mudaram-se todos, ficando em Teixeira com a família do Padre

Vicente.

Leandro começou a escrever a partir de 1893. Viveu e sustentou a

família unicamente de escrever e vender suas obras. Antes disso, sobreviveu

fazendo de tudo.

Leandro era um homem do seu tempo. Escreveu fazendo uma critica

sobre política, sobre a história, sobre a mulher, sobre os religiosos (atacou

principalmente a figura dos clérigos). Denunciou os abusos dos coronéis,

criticou as eleições, nas quais os votos “de cabresto” eram uma constante;

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escreveu sobre os impostos, sobre o abuso de poder dos chamados “agentes

da lei”; abordou vários episódios sobre o surgimento da República em 1889, a

Guerra de Canudos durante o período de 1893-1897; registrou a passagem do

Cometa Halley, que assustou o mundo inteiro, com a possibilidade de colisão

com o planeta em 1910; enfocou a ação do Padre Cícero e a revolta de

Juazeiro em 1914, etc. Em seus escritos, inseriu frases de Castro Alves e

Gonçalves Dias.

Em 2007, houve a comemoração dos 140 anos do nascimento de

Leandro Gomes de Barros, com grande festa em Pombal - PB, ocasião em que

se fez a divulgação de um vídeo sobre a Fazenda Melancia em Paulista-PB.

Em março de 2008 comemoraram-se os 90 anos da morte de Leandro Gomes

de Barros.

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3 ANÁLISE DE DADOS

O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, DE LEANDRO GOMES DE BARROS: AS RELAÇÕES DE PODER E A INTELIGÊNCIA

3.1 A HISTÓRIA

O cordel O cavalo que defecava dinheiro, lançado há quase 100 anos

(não há identificação da data exata), trata de um tema tão antigo quanto à

humanidade: o abismo social entre ricos e pobres. O texto estrutura-se em 77

estrofes com seis linhas métricas de sete sílabas (redondilha maior). As

estrofes são rimadas nos versos 2, 4 e 6, com acentos na terceira e na sétima

sílaba poética.

A narrativa demonstra que as relações sociais continuam com as

mesmas características de assimetria das gerações passadas. Entretanto, este

relato vai muito além das nossas expectativas, pois toma o pobre como o herói,

usando de meios bastantes escusos para a solução de seus problemas. Na

realidade, nós o qualificamos como um anti-herói, que se dá bem em uma

situação na qual conflitam a astúcia, a ambição, o reto proceder e a

necessidade imperiosa de sobreviver.

Não que ele ou o seu antagonista registrem qualquer espécie de

desconforto íntimo diante de um agir anti-ético; o fosso entre meios e fins

emerge da leitura, surpreendendo-nos, inclusive, pela sua crueza, pois ambos

não recuam diante de nada (mesmo que isso signifique vitimar pessoas

inocentes) no afã de vencer. Na vida? – alguém poderia perguntar – não, cedo

descobrimos que a motivação principal é a destruição (sim, este é o termo

adequado) do oponente.

A história relata o confronto entre duas personagens sem nome, como

as demais que integram a narrativa: um “Duque velho invejoso” (1,3) 1 e um

“Pobre muito atrasado” (2,2). Leandro Gomes de Barros, de forma muito

apropriada, faz a sua própria leitura de uma situação muito comum no período

do coronelismo no interior do Nordeste brasileiro. Criando um panorama

1 Leia-se: estrofe 1, verso 3. O protagonista e seu coadjuvante serão designados no decorrer do texto como o

“Pobre” e o “Duque” respectivamente, seguindo o critério do autor.

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A LUTA DE CLASSES NO NORDESTE: UMA LEITURA DE O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, DE LEANDRO GOMES DE

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contextualizado, apresenta ao leitor a saga de um trabalhador premido pela

necessidade, e que, para sobreviver, precisa deixar a sua família e buscar em

trabalhos temporários longe de casa recursos para o sustento de todos.

Após um logo período de privação e uma jornada de trabalho árduo num

engenho das redondezas, o que lhe rendeu de soldo foi um cavalo velho e

magro, de pouca ou nenhuma serventia. Armando-se de esperteza e motivado

pelo desejo de mudar de vida – e dando vazão a um impulso de vingança

contra os ricos e desonestos –, o Pobre combinou com sua mulher que iria se

beneficiar da situação, aproveitando-se da inveja e da cobiça do Duque, seu

patrão e compadre, declarando que o cavalo oferecido a ele como pagamento

simplesmente... Defecava dinheiro. Nada mais absurdo, mas, para o Duque,

qualquer novidade parecia muito interessante, principalmente se se tratasse de

algo que viesse a aumentar os seus já abarrotados celeiros e cofres. Para ele,

o Pobre não poderia jamais possuir um objeto tão extraordinário que o fizesse,

inclusive (e, sobretudo) mudar de classe social. Ele desejava na verdade que o

Pobre se mantivesse onde estava: em sua pobreza.

Entretanto, o Pobre não desiste fácil; após ser descoberto o embuste do

“cavalo que defecava dinheiro”, ainda impinge ao compadre a “gaita que

ressuscita os mortos”, levando-o a matar a esposa ao testar o instrumento

mágico.

Jurado de morte, o mentiroso é preso e colocado dentro de um surrão de

couro, por dois capangas a soldo do Duque, para ser lançado de um precipício.

Uma vez que na literatura picaresca as fraquezas humanas funcionam como

elementos propulsores da ação, não se deve estranhar o fato de que ambos os

jagunços tenham decidido parar para tomar um trago de cachaça antes de

terminar o serviço, ficando o Pobre a esperar ensacado, aguardando o

cumprimento de seu destino inexorável.

Nos domínios do cômico, todavia, nada é definitivo ou inapelável.

Sempre há de aparecer uma alternativa salvadora para o protagonista,

livrando-o da adversidade – mas, bem entendido: isso sempre acontece

mediante a ação consciente da personagem. Dessa forma, o Pobre faz crer a

um boiadeiro que passava, tocando o seu gado, e o ouve gritar “não caso! não

caso!”, que estava sendo levado contra a vontade para casar-se com uma

moça rica. O vaqueiro, cego pela cobiça e crendo-se arguto, esperto, entrega

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ao “herói” o seu rebanho (para que precisaria de suas vacas?) e com ele troca

de lugar, prazerosamente, assumindo sem saber a condenação.

O Duque, inteirado do malogro de sua tentativa de livrar-se do incômodo

compadre, é por ele novamente enganado: ostentando aparência de riqueza, o

que se devia à venda do gado adquirido do boiadeiro, o pilantra faz crer ao

Duque que a sua prosperidade se deve ao ouro encontrado no fundo do

mesmo precipício em que aquele o atirara. Para obtê-lo, seria necessário então

atirar-se também. Com este estratagema, o trabalhador, valendo-se das

principais fraquezas de seu oponente, a cobiça e a ganância, aliada à

insensatez, vence-o em definitivo, destruindo-o enfim.

3.2 A REPRESENTAÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL

Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, (1986, p. 565)

“desigualdade é a qualidade ou estado do que é desigual; [...] relação entre os

membros de um conjunto que envolve os sinais „maior que‟ e „menor que‟”.

Partindo deste conceito, podemos ressalvar no cordel “O cavalo que defecava

dinheiro” uma visão clara da preocupação de Leandro Gomes de Barros, em

sua narrativa, com a situação da desigualdade social no contexto espacial e

histórico nela retratado.

O cordel em análise relata uma realidade muito comum não apenas à

sociedade nordestina: a desigualdade. O rico, com todas as suas

necessidades, mesmo as fictícias, supridas, mas ao mesmo tempo consumido

por um desejo insaciável de adquirir tudo o que vê; o pobre, por outro lado,

privado de satisfazer as necessidades mais básicas, encontra-se relegado à

conjuntura de suprimi-las por não ter os recursos para saciá-las. Na narrativa,

em um enfoque mais sutil de seu caráter “de tese”, ou seja, da defesa de um

ponto de vista a ser provado como válido, podemos declarar que a falta, ao

contrário do que se poderia esperar, não se constitui em descrença e

desânimo, mas impulsiona a esperança de um futuro melhor (excelente,

poderíamos dizer, considerando os resultados obtidos pelo Pobre), visualizada

através da ação do homem em favor de si mesmo.

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O texto evidencia de várias formas os paradoxos sociais representados

na figura do rico, dono de terras, que “impera” sobre o pobre, arrendatário

explorado das mesmas, que é seu “vassalo”. A relação de vassalagem entre

rico e pobre, anacrônica embora historicamente justificável, nem por isso deixa

de ser material de crítica, conduzindo o leitor a considerar o absurdo de tal

assimetria de posições entre as personagens. É interessante ainda notar que,

por paradoxal que possa parecer, a desigualdade funciona como uma das

facetas da identidade de tais personagens. Nesse sentido, o narrador, já na

abertura do texto, as apresenta como “duque” (1,3) e “pobre atrasado” (2,2),

sem lhes atribuir nomes, como se as suas posições sociais dissessem por si

próprias quem as ocupa, funcionando como adendos indispensáveis às

características psicológicas mencionadas no texto (“invejoso”, para o Duque;

“bicho do quengo lixado” (26,2), isto é, inteligente, para o Pobre). Eis a

apresentação das duas personagens principais nas estrofes 1 a 4:

Na cidade Macaé Antigamente existia Um duque velho invejoso Que nada o satisfazia Desejava possuir Todo objeto que via

Esse duque era compadre De um pobre muito atrasado Que morava em sua terra Num rancho todo estragado Sustentava seus filhinhos Na vida de alugado. Se vendo o compadre pobre Naquela vida privada Foi trabalhar nos engenhos Longe da sua morada Na volta trouxe um cavalo Que não servia pra nada Disse o pobre à mulher: ─ Como havemos de passar? O cavalo é magro e velho Não pode mais trabalhar Vamos inventar um "quengo" Pra ver se o querem comprar.

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Já na abertura do folheto, a desigualdade apresenta-se como a base do

conflito entre as duas personagens. A situação descrita reproduz o modelo

feudal – daí o anacronismo de semelhante relação de trabalho na

modernidade: o Duque mantém em suas terras, na qualidade de arrendatário, o

Pobre com a sua numerosa família, “num rancho todo estragado” (2,4).

Como funcionava o modo de produção feudal? Simples: o lavrador, que

não tinha onde morar e nem recursos para obter e cultivar o seu próprio trato

de terra pagava ao suserano, isto é, ao nobre latifundiário, o arrendamento de

um lote, geralmente feito pelo prazo de cinco anos, no valor de um quinto da

colheita obtida. Considerando uma série de fatores, entre os quais o clima, as

doenças, as privações, a má alimentação, compreende-se a dificuldade da

parte do lavrador de perfazer essa quota. Justifica-se o Pobre ter que afastar-

se de casa para buscar trabalho longe, recebendo qualquer coisa como

pagamento, até mesmo um cavalo magro, velho e inútil. O que se colhia

simplesmente não era suficiente para pagar o tributo, alimentar-se e alimentar

a família adequadamente.

Um dado interessante é apresentado pelo narrador: o Duque e o Pobre

são compadres. O compadrio, na civilização ocidental, é um compromisso de

proteção assumido em relação ao filho ou filha de outrem. O padrinho

compromete-se a acompanhar o(a) afilhado(a) paralelamente aos pais,

encarregando-se, na eventual falta destes ou de seu arrimo, de sua educação

e encaminhamento na vida. Durante a Idade Média, apadrinhar os filhos dos

pobres era considerado um dever de caridade cristã, e o suserano ou senhor

feudal naturalmente tornava-se o padrinho de todos os filhos dos camponeses

que moravam nas suas terras.

Desnecessário dizer que este apadrinhamento, na maioria das vezes,

significava mais abuso do que garantia de futuro; novas crianças equivaliam a

mais mão-de-obra para o senhor, a mais bocas para alimentar, para os seus

pais, a mais moças, no caso de nascerem meninas, para proteger (inutilmente)

dos instintos grosseiros dos mandatários. Se o Pobre precisa “trabalhar nos

engenhos/longe de sua morada” (3,3-4) para sustentar os filhos, significa que o

apadrinhamento oferecido pelo Duque é apenas o cumprimento de uma

formalidade, de uma exigência social adstrita à sua posição, procedimento que

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serve, inclusive, de cimento para as relações interpessoais entre as

personagens em questão: ambos se tratam por “compadre”.

No Nordeste, até a primeira metade do século XX, o ato de apadrinhar

crianças era tido em alta consideração. O padrinho ou a madrinha recebia um

voto de confiança da família do(a) afilhado(a), que devia a ele(a) o mesmo

respeito merecido pelos pais. Mesmo atualmente, com as profundas

transformações havidas nas relações sociais, não é incomum que famílias mais

tradicionais da região ainda façam observar o antigo costume de “tomar a

bênção” aos padrinhos e madrinhas, mesmo sendo o(a) afilhado(a) adulto(a).

As famílias, portanto, uniam-se entre si, apadrinhando mutuamente os seus

filhos. Esse intercâmbio sugere igualdade entre as partes interessadas, pela

natureza da cooperação que suscita; entretanto, não é o que se verifica em

relação ao Pobre e ao Duque.

Não é de se estranhar que, diante de condições de vida tão adversas,

alguém use de todos os recursos de que dispõe para superar as dificuldades.

O Pobre, destituído de qualquer facilidade material, tem, entretanto,

inteligência, o que o torna, digamos, desigual em relação ao Duque, que,

embora aquinhoado, é tolo e irrefletido, além de desmedidamente ambicioso e

invejoso. A narrativa mostrará como o Pobre, conhecedor do caráter falho do

Duque, o manipulará seguidamente, acenando com ganhos fictícios e

reservando para si os ganhos reais, até destituí-lo do bem mais elementar, a

própria vida. E, já que estamos discutindo a questão da (des)igualdade, se a

colocamos em termos éticos e morais, não podemos evitar uma pergunta

crucial: em que realmente diferem o Duque e o Pobre, além da posição social?

Este é um aspecto que será discutido em outro item desta análise.

Como personagens-tipo, o Duque e o Pobre apresentam um perfil

psicológico bem definido. O primeiro caracteriza-se pela cobiça, aliada a uma

falta de inteligência quase patológica, que o faz cair em três contos do vigário

sucessivos aplicados pelo Pobre: o cavalo que defecava dinheiro (7, 6-7); a

rabeca que ressuscitava os mortos (39, 3-6); o ouro no fundo do precipício, só

acessível a quem por ele se jogasse do alto (69, 1-6). O segundo caracteriza-

se pela aguda inteligência, aliada à amoralidade dos atos, cuja única norma a

ser seguida é a da preponderância sobre o adversário. Se o objetivo do Pobre

fosse meramente o de sobreviver, ele não precisaria buscar riquezas, mas

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apenas o sustento; da mesma forma, não teria sentido buscar vingança, mas

manter a convivência em cordialidade.

Assim, o Duque e o Pobre completam-se um ao outro para que a

narrativa flua. Onde um falta, o outro tem de sobra, o que oferece um leque de

possibilidades para o narrador explorar, considerando que o objetivo de ambos

é em princípio conflitante: o do Duque é manter a desigualdade, enquanto que

o do Pobre é o de reverter esse destino aparentemente inexorável. Segundo

observamos, essa relação de complementaridade entre as personagens serve

para ressaltar o valor da inteligência, da astúcia (e não o comportamento ético)

para vencer as dificuldades da vida. O Duque, afinal, é derrotado por ser tolo (e

não por ser mal); o Pobre vence por ser esperto (e não por ser bom). A

narrativa segue à risca a proposta filosófica da literatura picaresca.

3.3 A INTELIGÊNCIA, A ASTÚCIA OU A FALTA DELAS

Diz o dito popular que não existiriam os espertos se não fossem os tolos.

A inteligência ou faculdade de aprender tem uma profunda identificação com o

ser humano, que pode adquirir conhecimento de maneira empírica, isto é,

através da prática direta, ou de maneira acadêmica, isto é, através da formação

escolar. Em ambas as modalidades, o desenvolvimento intelectual funciona,

respectivamente, como uma forma de construção da experiência no dia-a-dia,

mediante erros e acertos, ou como tarefa sistemática em que se vai

acrescentando graus de conhecimento prático e teórico.

A astúcia por sua vez consiste na habilidade de enganar, de ludibriar, de

induzir ao erro. É uma característica comportamental bem peculiar aos heróis

baixos, que, por sua vez, não estão muito preocupados com fama, moral ou

reputação; para o herói baixo, o importante é se dar bem, mantendo-se

indiferente ao que os outros sentem ou pensam a seu respeito. Desta maneira,

analisaremos o Pobre na perspectiva de “herói com capa de vilão”, que acaba

se tornando um modelo para os seus pares ao conseguir derrotar, de um lado,

o inimigo rico e poderoso, e, do outro, a lógica social determinante quase

absoluta das posições que as pessoas ocupam na vida. A principal arma

utilizada na “batalha” foi a inteligência, aliada à astúcia.

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BARROS.

Com o propósito de desenvolver uma visão critica das personagens,

vamos averiguar também a postura do Duque, representativo do que

consideramos a falta da inteligência e da astúcia, o oposto do Pobre. O Duque,

em virtude de sua ganância desenfreada, torna-se refém de um individuo que

não mede conseqüências (chega a matar o oponente, no final) para atingir o

seu único propósito: não o de sobreviver, apenas, mas o de enriquecer, o que

realiza a custa de golpes que ele empreende, dotados das mais sutis facetas e

coroado de êxito. As situações-problema mais difíceis atuam como propulsoras

do raciocínio para superá-las, como se pode verificar no início do processo

desencadeado pela ação da personagem:

Disse o pobre à mulher: ─ Como havemos de passar? O cavalo é magro e velho Não pode mais trabalhar Vamos inventar um "quengo" Pra ver se o querem comprar. (CDD, 4, 1-6) Foi na venda e de lá trouxe Três moedas de cruzado Sem dizer nada a ninguém Para não ser censurado No fiofó do cavalo Foi o dinheiro guardado. (CDD, 5, 1-6) Do fiofó do cavalo Ele fez um mealheiro Saiu dizendo: sou rico Inda mais que um fazendeiro, Porque possuo o cavalo Que só defeca dinheiro. (CDD, 6, 1-6) O velho disse ao compadre: ─ Assim não e que se faz Nossa amizade é antiga Desde os tempo de seus pais Dou-lhe seis contos de reis Acha pouco, inda quer mais? (CDD, 18, 1-6) O velho pela ambição Que era descomunal, Deu-lhe seis contos de reis Todo em moeda legal Depois pegou no cabresto E foi puxando o animal. (CDD, 20, 1-6)

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BARROS.

Logo após um longo período trabalhando em um engenho dos

arredores, no intuito de melhorar a magra renda familiar, o Pobre vê-se em

apuros; sem dinheiro, com um cavalo magro e inútil e com pelo menos uma

boca, a da esposa, além da dele, para sustentar. Recebido como pagamento

pelos serviços prestados, o cavalo, ao invés de proporcionar renda, iria, na

realidade, trazer-lhe mais despesas. Como reverter tal situação?

O plano montado (4, 1-6), com a concordância da mulher, não visava

especificamente ao Duque, é preciso que se diga. Tratava-se de uma isca

lançada a esmo (“pra ver se o querem comprar”, 4,6), numa aposta com os

fados, que lhe foram propícios. A farsa montada era de molde a atrair um

ganancioso qualquer, suficientemente tolo para acreditar que um cavalo

esquelético, de propriedade de um trabalhador paupérrimo, defecava nada

menos que dinheiro. Também é oportuno lembrar que o objetivo do Pobre era

apenas o de vender o cavalo para garantir temporariamente a sobrevivência

(“Como havemos de passar?”, 4,2).

O fato é que a descomunal ganância do compadre Duque, aliada à sua

providencial falta de inteligência, entregou-o nas mãos do astucioso, que, agora

sabedor destes pontos vulneráveis do oponente, os exploraria sem piedade em

proveito próprio. O lucro não poderia ser maior: “três moedas de cruzado” (5,2)

habilmente colocadas no ânus do animal forneceram ao incauto a ilusão de

haverem sido ali produzidas e transformam-se para o proprietário do animal,

em “seis contos de réis” (20,3).

Uma vez que nem mesmo a rápida descoberta do engodo (“logo no

primeiro dia”, 23,1) foi suficiente para trazer o Duque à razão, por que o Pobre

não tentaria nova empresa? Parecia tão fácil que seria tolice não tentar.

Comprando na farmácia “uma borrachinha” (26,2), encheu-a com sangue de

galinha e instruiu a esposa para que a colocasse sob a roupa, à altura do peito.

Percebendo a aproximação do compadre, simulou uma briga com a esposa

(28, 1-6) e fingiu esfaqueá-la e matá-la (32,1-6). Explicou ao Duque apavorado

que fizera aquilo apenas para encerrar a discussão, pois possuía um objeto

mágico, uma rabeca, que traria a mulher de volta à vida, e desta vez mais

cordata:

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Correu foi ver a rabeca Começou logo a tocar De repente o velho viu A mulher se endireitar E depois disse: estou boa, Já posso me levantar. (CDD, 36, 1-6)

Para o Duque, um objeto que, além de encerrar como por encanto as

discussões com a esposa, ainda dotava o seu possuidor do poder de vida e

morte sobre as pessoas, não merecia estar em outras mãos que não as suas

(“porém a sua rabeca/só serve bem para mim”, 41, 5-6). Em que um miserável

o utilizaria? Crendo-se esperto, prevendo os ganhos mais imediatos da

aquisição feita em relação à esposa (“se quiser teimar comigo/eu dou-lhe uma

facada” 43, 5-6 [...] ela se vê quase morta/ já reconhece o castigo”, 44,1-2), o

Duque leva a rabeca para casa, desembolsando mais seis contos de réis,

agora sem direito a regatear, como na ocasião anterior (18, 1-6).

Mais uma vez enganado, e agora com a morte involuntária da esposa

para amargar, o Duque faz as contas (“esse crime hei de vingá-lo/seis contos

desta rabeca/com outros seis do cavalo”, 54,2-4) e resolve cobrar do Pobre o

que lhe é devido. Contrata dois jagunços para matá-lo, colocando-o dentro de

um surrão e jogando-o ao mar (56 1-6). Os empregados realizam a tarefa pela

metade: “ensacam” o Pobre, mas, antes de jogá-lo ao mar, decidem “tomar

uma pinga” (59, 5), deixando o surrão do lado de fora da bodega, no chão da

calçada.

O Pobre, então, encontra-se novamente na mesma conjuntura por ele

enfrentada no início da narrativa, ou seja, diante de uma situação-problema

intrincada, de cuja solução depende a sua sobrevivência. Precisa mais uma

vez jogar a isca na direção do desconhecido. Pensa rápido e põe-se a repetir

de dentro do saco: “não caso porque não quero/me acho aqui padecendo/a

moça é milionária/o resto eu bem compreendo” (60, 3-6). A próxima vítima não

tarda a aparecer, na figura de um boiadeiro, tão tolo, cobiçoso e invejoso

quanto o Duque. Embalado pela ilusão do casamento rico, do ganho fácil,

entrega ao espertalhão os seus únicos bens, a vida (inconscientemente) e a

boiada, da qual não mais iria precisar se o Pobre aceitasse trocar de lugar com

ele.

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A LUTA DE CLASSES NO NORDESTE: UMA LEITURA DE O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, DE LEANDRO GOMES DE

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O lucro agora é ainda mais substancioso para o Pobre (“a mim não

falta mais nada”, 64,6), mercê de sua astúcia e inteligência. O boiadeiro,

seguindo o próprio destino, é lançado pelos jagunços do Duque não no mar,

mas “serra abaixo” (65,5). O Pobre desaparece durante “dois ou três meses”

(66,1) e torna-se um bem sucedido negociante de gado (“cada vez mais

aumentava”, 66,4), mas o acaso o põe novamente diante do Duque, que

empalidece de susto ao vê-lo (67,2).

Ainda desta vez o Duque se deixa enganar pelo Pobre e ainda desta

vez torna-se vítima da própria ganância. Percebendo a prosperidade do seu

antigo morador (“está mais rico do que eu”, 67,6), resolve descobrir-lhe a fonte

e obtém como resposta que o ouro provém do precipício onde o Pobre se

despenhara a mando dele. Entretanto, para pegá-lo, é necessário entrar no

surrão, exatamente como fizera ao Pobre, sendo essa a única condição para

“passar bem até morrer” (69,6). Neste momento, a narrativa prepara-se para o

seu ponto alto, quando o Pobre exerce a sua vingança total sobre o Duque,

dando-lhe o mesmo gênero de morte que aquele lhe destinara um dia. O

Duque inacreditavelmente se propõe como merecedor natural do usufruto do

suprimento de ouro descoberto pelo Pobre, uma vez que foi ele que o mandou

ao fundo do precipício (70, 1-6), ao que o Pobre responde, com uma frieza

perturbadora:

[...] pois não Estou pronto pra mostrar [o local] Eu junto com os capangas Nós mesmo vamos levar E o surrão de serra abaixo Sou eu quem quero empurrar (CDD, 71, 1-6)

Ocorre então ao Duque o mesmo que já ocorrera ao boiadeiro. A sede

de ganhos, ao invés de atrair lucros, tira do cobiçoso absolutamente tudo o que

ele possui. A moral da história, que não se aplica aos atos do Pobre, todos

voltados, por sua vez, para o ganho fácil através da esperteza, aparece na

penúltima estrofe do romance: “todo homem ambicioso/nunca pode viver

bem/arriscando o que possui/em cima do que já tem” (76, 3,6). Uma vez que a

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moral da história não se aplica, com afirmamos, aos atos do Pobre,

acreditamos que, na narrativa, não é a cobiça que priva as personagens da

vida e de seus haveres, mas a falta de inteligência e de astúcia de que dão

testemunho. O que faz o diferencial entre o Duque, o boiadeiro e o Pobre é

exatamente o fato de que este aumenta o seu “capital” pelo uso da astúcia e da

inteligência.

3.4 A ÉTICA E A MORAL DAS AÇÕES: O BEM EM SEGUNDO PLANO

Como sabemos, as nossas ações têm conseqüências. Tão logo

adquirimos senso o bastante para entender minimamente a dinâmica das

nossas relações com os outros e com o mundo, as diferentes instâncias

educativas (família, religião, escola) se encarregam de nos ensinar de diversas

maneiras o significado do que chamamos de responsabilidade.

Já na primeira infância, a criança seguidamente mede forças com os

adultos à sua volta, testando-os. Aprende a atingir determinados objetivos

indiretamente, manipulando situações e emoções em seu favor. Mediante

tentativas de ensaio e erro, demarca com uma exatidão impressionante as

fronteiras do seu agir (até onde pode ir, como e com quem), cujas balizas, uma

vez fincadas, só muito dificilmente são retiradas.

A criança, em seus primeiros anos de vida, não se pauta por um código

moral. Seus atos não podem ser qualificados, a rigor, como bons ou maus;

apenas obedecem ao impulso instintivo de preponderar sobre o outro, mesmo

que este seja a sua mãe, para realizar os próprios desejos. Daí a importância

das chamadas instâncias educativas: são elas que ensinam que nem todos os

desejos são lícitos, assim como os meios para satisfazê-los.

Na narrativa de Leandro Gomes de Barros, essas noções, que

determinam as bases do proceder ético, são de certa forma distorcida. Ética,

na acepção aqui utilizada, significa a ciência do reto agir, do reto proceder,

através da qual o indivíduo, pela prática do bem, promove o próprio bem-estar

e dos que se encontram à sua volta (ABBAGNANO, 2003, p.381).

No romance, o que vale é a luta e, assim sendo, as ações se justificam

como movimentos de um jogo, as jogadas que cada participante realiza,

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adaptando-as às circunstâncias em função da vitória: o Pobre engana o Duque,

que manda matar o Pobre, que por sua vez levara o Duque a matar a própria

esposa; o Pobre safa-se da morte colocando um inocente para morrer em seu

lugar, engana o Duque ainda uma última vez e afinal o mata com o mesmo

gênero de morte que iria sofrer de suas mãos no passado. A moral da história

não contempla essas questões, dirigindo-se apenas à ambição do Duque,

relembrando o provérbio popular, “quem tudo quer tudo perde”:

Este livrinho nos mostra Que ambição não convém Todo homem ambicioso Nunca pode viver bem Arriscando o que possui Em cima do que já tem. Cada um faça por si Eu também farei por mim É este um dos motivos Que o mundo está ruim Porque estamos cercados Dos homens que pensam assim. (CDD, 77, 78).

Dentro desse mesmo espírito justificam-se as “mentiras lucrativas” com

que o Pobre ludibria o Duque. Destinam-se – pelo menos a primeira – a

resolver o problema da sobrevivência (“como havemos de passar?” 4,2). Como

quer que seja, todas rendem lucro, respectivamente, doze contos de réis para a

primeira e a segunda; a vida e uma boiada para a terceira; a vingança e a

vitória final para a quarta. Pode-se perceber ainda que quanto mais longe o

Pobre se aventura a ir, maior é o ganho que extrai. Com a segunda mentira, a

da rabeca que ressuscitaria os mortos, ele ganha mais do que seis contos de

réis: consegue evitar o regateio por parte do Duque e ainda o faz matar a

esposa (que, a propósito, ao contrário da do Pobre, recusa-se a apoiar o

marido).

Certos atos são tão questionáveis que dificilmente se justificariam

mesmo entre pessoas que se conhecem e estabelecem entre si algum laço de

confiança. Aqueles que os praticam silenciam sobre eles, embora não

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desdenhem de seus frutos. O Pobre não expõe o motivo do empréstimo das

moedas que faz ao vendeiro:

Foi na venda de lá trouxe Três moedas de cruzado Sem dizer nada a ninguém Para não ser censurado No fiofó do cavalo Foi o dinheiro guardado. (CDD, 6, 1-6).

Não é por outra razão que a velha Duquesa se indigna diante da “rabeca

mágica”. Afinal, que tipo de cristã ela seria se concordasse com o fato do

marido ser possuidor de um objeto que lhe dava poder de vida e de morte

sobre as pessoas? Para ela, deveria ser natural conviver com homens

armados, o próprio marido entre eles, mas a rabeca, diferentemente das armas

(que, aliás, não poderiam ressuscitar, apenas matar), reveste-se de uma aura

sobrenatural e suas prerrogativas acenam para uma tentativa da parte de seu

possuidor de rivalizar o poder divino, uma escolha cujos desdobramentos a

velha Duquesa prefere evitar (“eu não quero ser culpada/do prejuízo que

houver”, 48,5-6). O Duque, realmente, a seu ver, passara dos limites e ela o

chama à razão:

O senhor é mesmo um velho, Avarento, interesseiro Que já fez do seu cavalo Que defecava dinheiro? Meu velho, dê-se a respeito, Não seja tão embusteiro. (CDD, 49, 1-6).

O comportamento da Duquesa não condiz com o padrão das ações

esposado pelo marido, razão pela qual ele, irritado, mas também interessado

em testar a rabeca milagrosa, não hesita em aplicar-lhe quatro punhaladas. E o

faz obedecendo à mesma lógica do silêncio sobre as ações inconfessáveis de

que o Pobre se valeu para pegar emprestadas as moedas na venda. Permite

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deliberadamente o agravamento da discussão, e ameaça a esposa de morte

num momento em que ela, de natureza “estouvada” (44,2), ou já estaria

zangada o bastante para não recuar, ou atribuiria à ameaça apenas o valor de

força de expressão:

O velho que confiava Na rabeca que comprou Disse a ela: cale a boca O mundo agora virou Dou-lhe quatro punhaladas, Já você sabe quem sou. Ele findou as palavras A velha ficou teimando, Disse ele: velha dos diabos Você ainda está falando? Deu-lhe quatro punhaladas Ela caiu arquejando. (CDD, 50, 51)

O último aspecto que gostaríamos de ressaltar em relação aos

desdobramentos das ações das personagens diz respeito ainda à moral da

história, apresentada nas estrofes 76 e 77, desta vez considerando as vítimas

inocentes colhidas no meio da batalha travada entre o Pobre e o Duque: a

Duquesa e o Boiadeiro. Dizemos que ambos são vítimas inocentes porque

foram sacrificados durante a disputa, como peças que se eliminam num

tabuleiro de xadrez durante a partida.

A distorção que percebemos na aplicação da moral ao fato narrado

explicaria, a nosso ver, estas mortes. O Boiadeiro enquadra-se perfeitamente

na figura daquele que “arrisca o que possui/em cima do que já tem” (77, 5-6),

isto é, compromete o que é real a título de perseguir uma ilusão,

desconhecendo o valor concreto daquilo que já lhe foi dado obter. Assim

sendo, nada mais justo que o perca. A Duquesa, no entanto, estava consciente

da realidade e do peso das ações. A sua morte obedece à mesma lógica que

poupa a esposa do Pobre, a que justifica a ação amoral como necessária e

indispensável, diante das circunstâncias, aquela que conhecemos através da

máxima “os fins justificam os meios”. Como os fins que têm prioridade na

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narrativa são os do Pobre, e não os do Duque, a morte da esposa pode ser

considerada como o início de sua aniquilação total.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi nosso objetivo apresentar uma leitura da relação assimétrica entre

pobres e ricos, tomando como corpus o folheto de cordel O cavalo que

defecava dinheiro, da autoria de Leandro Gomes de Barros.

Buscando elaborar uma leitura que se distanciasse do padrão geral que

informa os estudos em literatura de cordel, priorizou-se apontar para aspectos

de cunho ético e filosófico. Assim, a análise seguiu uma linha de raciocínio que

leva em consideração as posições dos estudiosos consultados, mas que ao

mesmo tempo dialoga com o texto estudado mediante um questionamento das

ações das personagens.

Esse questionamento foi trabalhado através da interação entre as

personagens e os demais elementos da narrativa, principalmente o narrador,

pois não podemos esquecer que é através dele que fala o autor e que a

literatura de cordel está intimamente associada às experiências concretas de

seus autores, leitores e ouvintes.

A proposta de trabalho aqui desenvolvida foi a de examinar, em última

análise, a desigualdade social existente entre ricos e pobres, na visão oferecida

pela história. Nela, percebemos a esquematização de uma estratégia de

superação dos ricos, a ser levada a efeito pelos pobres, que prevê não a

possibilidade de coexistência entre as classes, mas a eliminação da classe

favorecida (no final do romance, o Duque e a Duquesa, os representantes da

classe rica, estão mortos). Semelhante maniqueísmo nos parece questionável,

inclusive porque não existem diferenças efetivas de comportamento moral

entre vencedores e vencidos. Surpreendeu-nos, ao final da análise, a dimensão

que as palavras podem assumir quando exploramos certos implícitos nelas

potencializados, o que pudemos verificar com o romance de Leandro Gomes

de Barros.

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5 REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,

2003.

ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado de Letras,

1999.

AYALA, M. Ignez Novais. No arranco do grito: aspectos da cantoria nordestina.

São Paulo: Ática, 1988.

CASCUDO, Luís da Câmara. Os cinco livros do povo. João Pessoa: Ed.

Universitária/ UFPB, 1994.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1998.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza.

10. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.

FERREIRA, Aurélio Buarque de H. Novo dicionário Aurélio da língua

portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

GALVÃO, Ana M. de Oliveira. Cordel: leitores e ouvintes. Belo Horizonte;

Autêntica, 2006.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1991.

KHOTE, Flávio. O herói. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.

LEITE, Lígia Chiappini M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1993.

NÓBREGA, Cristina. A literatura de cordel e Leandro Gomes de Barros: vida e

obra. In: http://www.recantodasletras.com.br Data do acesso: 05/08/2009.

PINHEIRO, Hélder & LÚCIO, ANA Cristina M. Cordel na sala de aula. São

Paulo: Duas Cidades, 2001.

TAVARES, Bráulio. Contando histórias em versos. São Paulo: Editora 34,

2005.

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6 ANEXOS

6.1 ANEXO 1: IMAGEM

CAPA DO CORDEL

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6.2 ANEXO 2: CONTEÚDO DO FOLHETO

O Cavalo que Defecava Dinheiro Leandro Gomes de Barros

I

Na cidade de Macaé Antigamente existia

Um duque velho invejoso Que nada o satisfazia

Desejava possuir Todo objeto que via

II

Esse duque era compadre De um pobre muito atrasado

Que morava em sua terra Num rancho todo estragado Sustentava seus filhinhos

Na vida de alugado.

III Se vendo o compadre pobre

Naquela vida privada Foi trabalhar nos engenhos

Longe da sua morada Na volta trouxe um cavalo Que não servia pra nada

IV

Disse o pobre à mulher: ─ Como havemos de passar?

O cavalo é magro e velho Não pode mais trabalhar

Vamos inventar um "quengo" Pra ver se o querem comprar.

V

Foi na venda e de lá trouxe Três moedas de cruzado

Sem dizer nada a ninguém Para não ser censurado

No fiofo do cavalo Foi o dinheiro guardado

VI

Do fiofo do cavalo Ele fez um mealheiro

Saiu dizendo: ─ Sou rico! Inda mais que um fazendeiro,

Porque possuo o cavalo Que só defeca dinheiro.

VII Quando o duque velho soube

Que ele tinha esse cavalo Disse pra velha duquesa: ─ Amanha vou visitá-lo Se o animal for assim

Faço o jeito de comprá-lo!

VIII Saiu o duque vexado

Fazendo que não sabia, Saiu percorrendo as terras Como quem não conhecia

Foi visitar a choupana, Onde o pobre residia.

IX

Chegou salvando o compadre Muito desinteressado:

─ Compadre, Como lhe vai? Onde tanto tem andado?

Ha dias que lhe vejo Parece está melhorado...

X

─ E muito certo compadre Ainda não melhorei

Porque andava por fora Faz três dias que cheguei

Mas breve farei fortuna Com um cavalo que comprei.

XI

─ Se for assim, meu compadre Você esta muito bem!

E bom guardar o segredo, Não conte nada a ninguém. Me conte qual a vantagem Que este seu cavalo tem?

XII

Disse o pobre: ─ Ele esta magro Só o osso e o couro,

Porém tratando-se dele Meu cavalo é um tesouro Basta dizer que defeca

Níquel, prata, cobre e ouro!

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XIII Ai chamou o compadre E saiu muito vexado,

Para o lugar onde tinha O cavalo defecado

O duque ainda encontrou Três moedas de cruzado.

XIV

Então exclamou o velho: ─ Só pude achar essas três!

Disse o pobre: ─ Ontem à tarde Ele botou dezesseis! Ele já tem defecado,

Dez mil reis mais de uma vez.

XV ─ Enquanto ele está magro

Me serve de mealheiro. Eu tenho tratado dele

Com bagaço do terreiro, Porém depois dele gordo

Não tem quem vença o dinheiro...

XVI Disse o velho: ─ meu compadre

Você não pode tratá-lo, Se for trabalhar com ele E com certeza matá-lo O melhor que você faz

É vender-me este cavalo!

XVII ─ Meu compadre, este cavalo

Eu posso negociar, Só se for por uma soma Que de para eu passar

Com toda minha família, E não precise trabalhar.

XVIII

O velho disse ao compadre: ─ Assim não é que se faz Nossa amizade é antiga

Desde os tempo de seus pais Dou-lhe seis contos de reis

Acha pouco, inda quer mais?

XIX ─ Compadre, o cavalo é seu!

Eu nada mais lhe direi, Ele, por este dinheiro Que agora me sujeitei

Para mim não foi vendido, Faça de conta que te dei!

XX O velho pela ambição Que era descomunal,

Deu-lhe seis contos de reis Todo em moeda legal

Depois pegou no cabresto E foi puxando o animal.

XXI

Quando ele chegou em casa Foi gritando no terreiro:

─ Eu sou o homem mais rico Que habita o mundo inteiro! Porque possuo um cavalo Que só defeca dinheiro!

XXII

Pegou o dito cavalo Botou na estrebaria, Milho, farelo e alface Era o que ele comia O velho duque ia lá,

Dez, doze vezes por dia...

XXIII Logo no primeiro dia O velho desconfiou

Porque na presença dele O cavalo defecou

Ele procurou o dinheiro Nem um tostão encontrou

XXIV

Ai o velho zangou-se Começou logo a falar:

─ Como e que meu compadre Se atreve a me enganar?

Eu quero ver amanha O que ele vai me contar.

XXV

Porém o compadre pobre, (Bicho do quengo lixado) Fez depressa outro plano Inda mais bem arranjado Esperando o velho duque Quando viesse zangado...

XXVI

O pobre foi na farmácia Comprou uma borrachinha Depois mandou encher ela

Com sangue de uma galinha E sempre olhando a estrada

Pré ver se o velho vinha.

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BARROS.

XXVII Disse o pobre à mulher: ─ Faça o trabalho direito Pegue esta borrachinha Amarre em cima do peito Para o velho não saber, Como o trabalho foi feito!

XXVIII

Quando o velho aparecer Na volta daquela estrada,

Você começa a falar Eu grito: ─ Oh mulher danada! Quando ele estiver bem perto,

Eu lhe dou uma facada.

XXIX Porém eu dou-lhe a facada

Em cima da borrachinha E você fica lavada

Com o sangue da galinha Eu grito: ─ Arre danada!

Nunca mais comes farinha!

XXX Quando ele ver você morta

Parte para me prender, Então eu digo para ele: ─ Eu dou jeito ela viver, O remédio tenho aqui,

Faço para o senhor ver!

XXXI ─ Eu vou buscar a rabeca

Começo logo a tocar Você então se remexa

Como quem vai melhorar Com pouco diz: ─ Estou boa

Já posso me levantar.

XXXII Quando findou-se a conversa

Na mesma ocasião O velho ia chegando

Ai travou-se a questão O pobre passou-lhe a faca,

Botou a mulher no chão.

XXXIII O velho gritou a ele

Quando viu a mulher morta: ─ Esteja preso, bandido! E tomou conta da porta

Disse o pobre: ─ Vou curá-la! Pra que o senhor se importa?

XXXIV ─ O senhor é um bandido

Infame de cara dura Todo mundo apreciava

Esta infeliz criatura Depois dela assassinada,

O senhor diz que tem cura?

XXXV Compadre, não admito

O senhor dizer mais nada, Não é crime se matar

Sendo a mulher malcriada E mesmo com dez minutos,

Eu dou a mulher curada!

XXXVI Correu foi ver a rabeca Começou logo a tocar De repente o velho viu A mulher se endireitar

E depois disse: ─ Estou boa, Já posso me levantar...

XXXVII

O velho ficou suspenso De ver a mulher curada,

Porém como estava vendo Ela muito ensangüentada Correu ela, mas não viu, Nem o sinal da facada.

XXXVIII

O pobre entusiasmado Disse-lhe: ─ Já conheceu

Quando esta rabeca estava Na mão de quem me vendeu,

Tinha feito muitas curas De gente que já morreu!

XXXIX

No lugar onde eu estiver Não deixo ninguém morrer,

Como eu adquiri ela Muita gente quer saber

Mas ela me esta tão cara Que não me convém dizer.

XL

O velho que tinha vindo Somente propor questão,

Por que o cavalo velho Nunca botou um tostão Quando viu a tal rabeca

Quase morre de ambição.

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A LUTA DE CLASSES NO NORDESTE: UMA LEITURA DE O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, DE LEANDRO GOMES DE

BARROS.

XLI ─ Compadre, você desculpe

De eu ter tratado assim Porque agora estou certo

Eu mesmo fui o ruim Porém a sua rabeca

Só serve bem para mim.

XLII ─ Mas como eu sou um homem

De muito grande poder O senhor é um homem pobre

Ninguém quer o conhecer Perca o amor da rabeca... Responda se quer vender?

XLIII

─ Porque a minha mulher Também é muito estouvada Se eu comprar esta rabeca

Dela não suporto nada Se quiser teimar comigo, Eu dou-lhe uma facada.

XLIIII

─ Ela se vê quase morta Já conhece o castigo,

Mas eu com esta rabeca Salvo ela do perigo Ela dai por diante,

Não quer mais teimar comigo!

XLV Disse-lhe o compadre pobre: ─ O senhor faz muito bem, Quer me comprar a rabeca Não venderei a ninguém Custa seis contos de reis,

Por menos nem um vintém.

XLVI O velho muito contente Tornou então repetir: ─ A rabeca já é minha Eu preciso a possuir

Ela para mim foi dada, Você não soube pedir.

XLVII

Pagou a rabeca e disse: ─ Vou já mostrar a mulher! A velha zangou-se e disse:

─ Vá mostrar a quem quiser! Eu não quero ser culpada Do prejuízo que houver.

XLVIII ─ O senhor é mesmo um velho

Avarento e interesseiro, Que já fez do seu cavalo Que defecava dinheiro?

─ Meu velho, dê-se a respeito, Não seja tão embusteiro.

XLIX

O velho que confiava Na rabeca que comprou

Disse a ela: ─ Cale a boca! O mundo agora virou

Dou-lhe quatro punhaladas, Já você sabe quem sou.

L

Ele findou as palavras A velha ficou teimando,

Disse ele: ─ Velha dos diabos Você ainda esta falando?

Deu-lhe quatro punhaladas Ela caiu arquejando...

LI

O velho muito ligeiro Foi buscar a rabequinha,

Ele tocava e dizia: ─ Acorde, minha velhinha! Porém a pobre da velha,

Nunca mais comeu farinha.

LII O duque estava pensando Que sua mulher tornava Ela acabou de morrer Porém ele duvidava

Depois então conheceu Que a rabeca não prestava.

LIII

Quando ele ficou certo Que a velha tinha morrido Boto os joelhos no chão E deu tão grande gemido Que o povo daquela casa

Ficou todo comovido.

LIV Ele dizia chorando:

─ Esse crime hei de vingá-lo Seis contos desta rabeca Com outros seis do cavalo Eu lá não mando ninguém, Porque pretendo matá-lo.

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A LUTA DE CLASSES NO NORDESTE: UMA LEITURA DE O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, DE LEANDRO GOMES DE

BARROS.

LV Mandou chamar dois capangas: ─ Me façam um surrão bem feito

Façam isto com cuidado Quero ele um pouco estreito Com uma argola bem forte,

Pra levar este sujeito!

LVI Quando acabar de fazer

Mande este bandido entrar, Para dentro do surrão E acabem de costurar

O levem para o rochedo, Para sacudi-lo no mar.

LVII

Os homens eram dispostos Findaram no mesmo dia, O pobre entrou no surrão Pois era o jeito que havia

Botaram o surrão nas costas E saíram numa folia.

LVIII

Adiante disse um capanga: ─ Está muito alto o rojão, Eu estou muito cansado, Botemos isto no chão!

Vamos tomar uma pinga, Deixe ficar o surrão.

LVIX

─ Está muito bem, companheiro Vamos tomar a bicada! Assim falou o capanga Dizendo pro camarada

Seguiram ambos pra venda Ficando além da estrada...

LX

Quando os capangas seguiram Ele cá ficou dizendo:

─ Não caso porque não quero, Me acho aqui padecendo

A moça é milionária O resto eu bem compreendo!

LXI

Foi passando um boiadeiro Quando ele dizia assim, O boiadeiro pediu-lhe: ─ Arranje isto pra mim

Não importa que a moça Seja boa ou ruim!

LXII O boiadeiro lhe disse:

─ Eu dou-lhe de mão beijada, Todos os meus possuídos Vão aqui nessa boiada... Fica o senhor como dono,

Pode seguir a jornada!

LXIII Ele condenado a morte

Não fez questão, aceitou, Descoseu o tal surrão

O boiadeiro entrou O pobre morto de medo Num minuto costurou.

LXIV

O pobre quando se viu Livre daquela enrascada,

Montou-se num bom cavalo E tomou conta da boiada,

Saiu por ali dizendo: ─ A mim não falta mais nada.

LXV

Os capangas nada viram Porque fizeram ligeiro, Pegaram o dito surrão

Com o pobre do boiadeiro Voaram de serra abaixo

Não ficou um osso inteiro.

LXVI Fazia dois ou três meses Que o pobre negociava A boiada que lhe deram

Cada vez mais aumentava Foi ele um dia passar,

Onde o compadre morava...

LXVII Quando o compadre viu ele

De susto empalideceu; ─ Compadre, por onde andava

Que agora me apareceu?! Segundo o que me parece, Está mais rico do que eu...

LXVIII

─ Aqueles seus dois capangas Voaram-me num lugar Eu cai de serra abaixo

Até na beira do mar Ai vi tanto dinheiro,

Quanto pudesse apanhar!..

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A LUTA DE CLASSES NO NORDESTE: UMA LEITURA DE O CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, DE LEANDRO GOMES DE

BARROS.

LXIX ─ Quando me faltar dinheiro

Eu prontamente vou ver. O que eu trouxe não é pouco,

Vai dando pra eu viver Junto com a minha família,

Passar bem até morrer.

LXX ─ Compadre, a sua riqueza Diga que fui eu quem dei! Pra você recompensar-me Tudo quanto lhe arranjei,

E preciso que me bote No lugar que lhe botei

LXXI

Disse-lhe o pobre: ─ Pois não, Estou pronto pra lhe mostrar!

Eu junto com os capangas Nos mesmo vamos levar

E o surrão de serra abaixo Sou eu quem quero empurrar!

LXXII

O velho no mesmo dia Mandou fazer um surrão. Depressa meteu-se nele,

Cego pela ambição E disse: ─ Compadre eu estou

A tua disposição.

LXXIII O pobre foi procurar

Dois cabras de confiança Se fingindo satisfeito

Fazendo a coisa bem mansa Só assim ele podia,

Tomar a sua vingança.

LXXIV Saíram com este velho Na carreira, sem parar

Subiram de serra acima Até o ultimo lugar

Dai voaram o surrão Deixaram o velho embolar...

LXXV

O velho ia pensando De encontrar muito dinheiro,

Porém sucedeu com ele Do jeito do boiadeiro,

Que quando chegou embaixo Não tinha um só osso inteiro.

LXXVI

Este livrinho nos mostra Que a ambição nada convém

Todo homem ambicioso Nunca pode viver bem, Arriscando o que possui Em cima do que já tem.

LXXVII

Cada um faça por si, Eu também farei por mim!

E este um dos motivos Que o mundo está ruim,

Porque estamos cercados Dos homens que pensam assim.

FIM