a luta contra o vicio

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A LUTA CONTRA O V�CIO Como funcionam os grupos an�nimos que ajudam pessoas a se livrar da depend�ncia Foto: Sergio Divitiis Reuni�o dos Dependentes de Amor e Sexo An�nimos: luta contra o sexo compulsivo e a incapacidade de manter relacionamentos firmes Foto: Antonio Milena Na Quarta-feira de Cinzas, por volta das 8 horas da noite, enquanto muita gente ainda voltava da folia do Carnaval, dez pessoas se acomodaram numa sala apertada de uma igreja no bairro do Itaim Bibi, em S�o Paulo. � uma rotina que elas cumprem, religiosamente, todas as semanas. Embora participem da mesma reuni�o h� algum tempo, nenhuma delas sabe a verdadeira identidade da outra. Conhecem-se apenas pelo primeiro nome e n�o dizem de onde v�m ou o que fazem na vida. O �nico ponto em comum nesse grupo � um problema. Os freq�entadores t�m graves problemas afetivos ou s�o viciados em sexo — mesmo que a palavra v�cio, considerada pejorativa, n�o seja utilizada. Ali, emprega-se o termo "dependente". Como no caso dos dependentes de �lcool, cigarro ou drogas, o sexo para esse grupo j� foi um prazer corriqueiro. Com o tempo, contudo, tornou-se uma obsess�o, a ponto de criar dificuldades no emprego, no relacionamento com a fam�lia e com outras pessoas. Alguns passaram por tratamentos m�dicos e psicol�gicos sem resultados efetivos, at� participar das reuni�es do grupo

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Page 1: A Luta Contra o Vicio

A LUTA CONTRA O V�CIOComo funcionam os grupos an�nimosque ajudam pessoas a se livrar da depend�ncia

Foto: Sergio Divitiis

Reuni�o dos Dependentes de Amor e Sexo An�nimos: luta contra o sexo compulsivo e a incapacidade de manter relacionamentos firmes

Foto: Antonio Milena

Na Quarta-feira de Cinzas, por volta das 8 horas da noite, enquanto muita gente ainda voltava da folia do Carnaval, dez pessoas se acomodaram numa sala apertada de uma igreja no bairro do Itaim Bibi, em S�o Paulo. � uma rotina que elas cumprem, religiosamente, todas as semanas. Embora participem da mesma reuni�o h� algum tempo, nenhuma delas sabe a verdadeira identidade da outra. Conhecem-se apenas pelo primeiro nome e n�o dizem de onde v�m ou o que fazem na vida. O �nico ponto em comum nesse grupo � um problema. Os freq�entadores t�m graves problemas afetivos ou s�o viciados em sexo — mesmo que a palavra v�cio, considerada pejorativa, n�o seja utilizada. Ali, emprega-se o termo "dependente". Como no caso dos dependentes de �lcool, cigarro ou drogas, o sexo para esse grupo j� foi um prazer corriqueiro. Com o tempo, contudo, tornou-se uma obsess�o, a ponto de criar dificuldades no emprego, no relacionamento com a fam�lia e com outras pessoas. Alguns passaram por tratamentos m�dicos e psicol�gicos sem resultados efetivos, at� participar das reuni�es do grupo Dependentes de Amor e Sexo An�nimos, Dasa, uma entidade de auto-ajuda espalhada pelo mundo, com seis grupos no Brasil e encontros regulares no Rio de Janeiro e em S�o Paulo.

"Cheguei a fazer sexo com tr�s mulheres por dia, a qualquer hora, em qualquer lugar", conta o publicit�rio Rodolfo*, 35 anos. No in�cio, essa voracidade sexual era algo de que ele se vangloriava diante dos amigos. Quando o sexo tomou por completo sua vida, a ponto de procurar indigentes na rua para se satisfazer, Rodolfo percebeu que precisava de ajuda. Esse n�o � um problema exclusivo dos homens. Antes de entrar para o

Um ter�o dos brasileiros adultos tem algum tipo de v�cio ou

compuls�o

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grupo, Berenice, uma artista gr�fica de 32 anos, chegou a perder um emprego, prejudicada pelas noitadas em que percorria bares � procura de parceiros. "Tive muitos amantes, cheguei a um ponto em que nem perguntava mais o nome deles", conta. Bebia muito e, em busca de aux�lio, come�ou a freq�entar as reuni�es do Dasa e de outro grupo de apoio, o dos Alco�licos An�nimos, AA. Aos poucos, passou a se abster de �lcool e sexo. Hoje, diz que sua vida melhorou muito. "Estou bem no trabalho, recuperei minha vida familiar e tenho amigos que me ajudam muito", afirma ela. "Mas ainda n�o me sinto preparada para um envolvimento afetivo."

Neur�ticos e introvertidos — Grupos como o Dependentes de Amor e Sexo An�nimos s�o um fen�meno que se propaga de forma acelerada na sociedade brasileira. Em todo o pa�s, funcionam hoje pelo menos dezessete grandes associa��es de auto-ajuda, com centenas de filiais nas maiores cidades. Entre elas est�o os Narc�ticos An�nimos, os Jogadores An�nimos e os

Adictos do A��car. As reuni�es do Dasa abrigam, al�m dos dependentes de sexo, pessoas viciadas em pr�ticas como voyerismo, exibicionismo e c�njuges que julgam depender de maneira doentia do marido ou da esposa. H� ainda grupos dedicados a ajudar pessoas com dist�rbios psicol�gicos ou dificuldades emocionais, como Neur�ticos An�nimos, Psic�ticos An�nimos, Emocionais An�nimos e Introvertidos An�nimos (veja quadro). Ali se re�nem pessoas de diferentes idades e classes sociais em busca de apoio m�tuo para superar v�cios ou comportamentos compulsivos que as levaram a uma vida destrutiva e socialmente malvista.

Foto: Raul Junior

Jogadores An�nimos:a expectativa do

resultado provocaefeitos equivalentes

aos da coca�naFoto: Antonio Milena

O funcionamento de todos esses grupos se inspira no dos Alco�licos An�nimos, a mais antiga e bem organizada associa��o do g�nero. Fundado em 1935 por dois alco�latras em Akron, nos Estados Unidos, o AA possui hoje cerca de 2 milh�es de ativistas em 146 pa�ses. No Brasil, estima-se que existam 6.000

"Eu passava a noite nos bares � procura de novos parceiros."

Berenice, artista gr�fica, 32 anos, ex-

viciada em sexo

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grupos, com 200.000 freq�entadores. Para auxiliar as pessoas pr�ximas ao alco�latra surgiram outros grupos de apoio: o Al-Anon, que re�ne amigos e familiares, e o Alateen, para os filhos mais jovens. Gra�as a seu sucesso na recupera��o de muitos alco�latras, o AA passou a servir como modelo para o combate a outros tipos de depend�ncia, das drogas ao fumo e ao jogo. O Narc�ticos An�nimos, que d� apoio aos dependentes de drogas, tornou-se uma das maiores irmandades em escala planet�ria. Atende 1 milh�o de pessoas em 150 pa�ses. S� a cidade de Nova York possui 1.000 grupos para viciados em drogas. No Brasil funcionam 400 grupos, freq�entados por 20.000 dependentes em recupera��o. "A gente n�o promete nada a ningu�m", diz Pedro, an�nimo porta-voz da entidade no Brasil. "Mas a maior parte das pessoas que v�m aqui permanece no tratamento."

Ajuda divina — A terapia dos grupos an�nimos consiste em doze passos que o dependente deve seguir em busca da recupera��o. O primeiro � admitir o v�cio e a necessidade de ajuda. O �ltimo, transmitir sua experi�ncia aos freq�entadores novatos das reuni�es,

como forma de estimul�-los a ir em frente. A esses encontros nunca s�o convidados psic�logos, m�dicos ou outros especialistas. Apenas dependentes. Nas reuni�es dos Dependentes de Amor e Sexo An�nimos, cada participante fala por at� sete minutos e ouve o relato de quem conseguiu superar a compuls�o. Sobre uma mesa, uma placa adverte: "Quem voc� v� aqui, o que voc� ouve aqui, deixe que fique aqui". Fala-se em Deus e reza-se a Ora��o da Serenidade, na qual os participantes pedem sabedoria para discernir entre o que podem e o que n�o podem mudar em sua vida. Apesar disso e de a reuni�o geralmente ser realizada numa igreja, seus integrantes dizem que o encontro n�o tem v�nculo algum com religi�o.

Foto: Antonio Saggesi

Comedores Compulsivos:entre os freq�entadores,pessoas que j� passarampor outros grupos an�nimos

Foto: Moreira Mariz

O Alco�licos An�nimos � um dos poucos grupos de auto-ajuda cujas reuni�es muitas vezes s�o realizadas em sedes pr�prias. S�o salas simples e despojadas

A receita das casas de bingo � infal�vel para

desenvolver a depend�ncia

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que, ao contr�rio de outros grupos de auto-ajuda, possuem placa bem vis�vel na rua. Nas paredes h� tabuletas com os doze passos para largar o copo. Na semana passada, um quadro negro no AA do bairro do Jabaquara, em S�o Paulo, mostrava uma agenda intensa de atividades. "Os freq�entadores n�o gostam muito de Carnaval, porque a festa os aproxima da bebida", explica Franco, 62 anos, funcion�rio p�blico, um dos participantes. "Comecei a beber depois que me casei, aos 21 anos, e logo j� estava bebendo desde manh�", conta Paulo, um tapeceiro de 45 anos. De l� para c�, chegou a perder o emprego e tentou o suic�dio. Como? Ingerindo d�zias de garrafas de cacha�a. Depois que sua mulher o levou �s reuni�es do AA, recuperou-se e voltou a estudar — hoje est� na 8� s�rie. "At� freq�entar o grupo de apoio, nunca tinha ouvido falar que alcoolismo era doen�a", afirma.

Do ponto de vista da sa�de p�blica, a luta contra o v�cio assume propor��es epid�micas. Os psiquiatras estimam que entre dez e quinze pessoas em cada grupo de 100 adultos desenvolvem algum tipo de depend�ncia em rela��o a subst�ncias como �lcool ou drogas. Isso corresponde a um total de cerca de 13 milh�es de pessoas no Brasil. Essa conta mais que dobra se nela forem inclu�dos os fumantes. Pelo menos 27 milh�es de brasileiros (um ter�o da popula��o adulta) fumam, segundo o Instituto Nacional do C�ncer. Deles, 70% querem parar de fumar, mas apenas 3% ao ano conseguem. Dois em cada 100 d�lares de riquezas produzidas no pa�s s�o gastos no tratamento de doen�as decorrentes do tabagismo, segundo o Minist�rio da Sa�de. Essa despesa � tr�s vezes maior que o faturamento anual da Souza Cruz, a maior fabricante de cigarros no pa�s. Outra fatia substancial do or�amento da sa�de no Brasil � destinado ao tratamento do alcoolismo. Pesquisa realizada pela Federa��o das Ind�strias do Estado de S�o Paulo, Fiesp, estima que no Brasil o n�mero de li�encas m�dicas no trabalho devido ao alcoolismo seja o triplo do causado por outras doen�as, o que leva a fam�lia a utilizar tr�s vezes mais a assist�ncia m�dica e social.

Desvio de car�ter — Descobertas cient�ficas recentes est�o mudando a forma de entender o comportamento dos dependentes. At� algum tempo atr�s, o v�cio era considerado um desvio de personalidade, pr�prio de pessoas fracas de car�ter e com dificuldade para se relacionar socialmente. Aos

poucos, os cientistas est�o chegando � conclus�o de que a raiz do problema � muito mais biol�gica do que social. Suas pesquisas conseguem explicar por que determinadas subst�ncias t�m o poder de propiciar momentos t�o intensos e fugazes de felicidade artificial. E tamb�m por que algumas pessoas caem mais facilmente nas tenta��es do �lcool, do cigarro, da coca�na e de outras drogas, enquanto outras conseguem livrar-se delas sem grande sofrimento.

Foto: Pedro Martinelli

A qu�mica cerebral que leva algu�m a

fumar ou comer demais � a mesma

"Acordava no meio da noite para ir ao bingo.

N�o podia me controlar."Patr�cia, secret�ria, 47 anos, ex-viciada em jogo

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Paulo, no Alco�licosAn�nimos: um emprego

perdido e tentativa desuic�dio bebendo

cacha�aFoto: Marcos Hermes

Tudo isso est� relacionado com a qu�mica do c�rebro. � a produ��o de uma subst�ncia natural chamada dopamina que rege todas as formas de compuls�o. Assim como a serotonina, cuja falta � associada �s sensa��es de tristeza e abatimento, a dopamina � a mol�cula produzida no c�rebro para transmitir a sensa��o de prazer. Ela � liberada a partir de est�mulos externos, como um elogio, um beijo, uma boa m�o de p�quer ou o consumo de �lcool e cigarro (veja quadro). A ci�ncia tamb�m est� descobrindo que pessoas cujas c�lulas cerebrais t�m alguma dificuldade em produzir ou liberar dopamina s�o as mais predispostas ao v�cio. Elas teriam uma tend�ncia gen�tica a recorrer ao est�mulo das drogas ou das emo��es fortes, como forma de compensar as defici�ncias na qu�mica natural do c�rebro. Esse mesmo mecanismo qu�mico seria capaz de induzir uma pessoa ao v�cio nas mesas de jogo ou � depend�ncia da coca�na. Isso explica, tamb�m, por que muitas pessoas circulam por diferentes formas de v�cio: abandonam o alcoolismo e se tornam dependentes do fumo, depois largam o cigarro e se tornam comil�es compulsivos.

A substitui��o de uma compuls�o por outra � uma peculiaridade marcante no comportamento dos dependentes. Um dos grupos de auto-ajuda que mais recebem migrantes de outras entidades do g�nero � o Comedores Compulsivos An�nimos, CCA. Nascido em 1960 em Los Angeles, nos Estados Unidos, o grupo chegou ao Brasil na d�cada passada e expandiu-se rapidamente. Hoje existem 138 CCA espalhados no pa�s, com 1.500 freq�entadores. "Essas pessoas comem muito para preencher algum vazio, que muitas vezes � um outro v�cio que abandonaram", afirma o endocrinologista Ant�nio Vieira Gabriel, da Associa��o Brasileira de Estudos da Obesidade. A maior parte dos comedores compulsivos � obesa e n�o consegue controlar seus impulsos por meio de rem�dios. Nas reuni�es, s�o estimulados a fixar o n�mero di�rio de refei��es e a abster-se de determinados alimentos pelos quais t�m compuls�o. "O contato com outros comedores compulsivos que souberam contornar o problema faz com que aquele que est� entrando no grupo melhore e seja incentivado", afirma a assistente administrativa Fernanda, de 33 anos, coordenadora, em Belo

O v�cio tem raiz biol�gica

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Horizonte, da Junta de Servi�os Gerais de Comedores Compulsivos do Brasil. "Das pessoas que freq�entam nossas reuni�es, 80% aprendem a comer moderadamente."

Al�m dos limites — Nos grupos de auto-ajuda, as pessoas com tend�ncia natural � compuls�o encontram for�as para superar seus pr�prios limites. "Essas entidades d�o uma rede de apoio para pessoas que, sozinhas, n�o teriam estrutura para vencer suas dificuldades", diz o psiquiatra Hermano Tavares, do Hospital das Cl�nicas de S�o

Paulo. Um caso exemplar � o Jogadores An�nimos, uma organiza��o que s� existe h� tr�s anos no Brasil. Embora o jogo seja legalmente proibido no pa�s, estima-se que s� as casas de bingo sejam freq�entadas por 1 milh�o de pessoas. A grande maioria vai a esses lugares apenas para se divertir e encontrar amigos. Uma boa parte, no entanto, acaba viciada em jogo. Em S�o Paulo existem tr�s grupos de Jogadores An�nimos freq�entados principalmente por dependentes de bingo. S�o, geralmente, homens e mulheres na meia-idade, que faltam ao trabalho ou deixam os filhos em casa para passar tardes e noites inteiras jogando. "Antes, acordava no meio da noite s� para ir ao bingo", afirma Patr�cia, uma secret�ria de 47 anos, que fez sua estr�ia numa reuni�o do Jogadores An�nimos antes do Carnaval. "N�o conseguia me controlar. Agora, estou h� uma semana sem jogar."

Em geral, os viciados em jogatina falam mais abertamente sobre seu problema do que os participantes de outros grupos de ajuda. Fazem piadas envolvendo cartelas de apostas, bolinhas de bingo e cartas de baralho. Mas, na maioria dos casos, est�o muito preocupados com d�vidas. O problema � alarmante. Andr�, empres�rio paulista de 40 anos e hoje freq�entador do Jogadores An�nimos, era viciado em videop�quer. Costumava tomar dinheiro emprestado do banco e de amigos para jogar. Para que a fam�lia n�o desconfiasse que estava viciado em jogo, abriu em segredo quatro diferentes contas banc�rias. S� decidiu procurar ajuda quando devia cerca de 700 000 reais e come�ou a receber amea�as dos agiotas. Reuniu a fam�lia, contou o que estava acontecendo e prometeu parar de jogar. Vendeu alguns bens para cobrir as d�vidas de jogo e, depois de algum tempo, achou que estava curado. N�o estava. Andr� convivia com a mulher e os filhos normalmente, mas por dentro s� pensava no jogo. "Pensei que tivesse aprendido a li��o e que poderia jogar moderadamente", diz. "Voltei ao videop�quer e, um ano e meio depois, j� estava novamente devendo 600 000 reais." Andr� s� parou de jogar depois de conhecer o grupo Jogadores An�nimos. H� seis meses luta para pagar d�vidas pendentes daquele per�odo. "Hoje, se eu vender todos os meus bens, s� consigo pagar um ter�o do que estou devendo."

Receita infal�vel — Nos Estados Unidos, onde h� estat�sticas mais precisas sobre o v�cio, os pr�prios cassinos promovem campanhas e servi�os assistenciais contra o jogo compulsivo. Cerca de 5 milh�es de americanos s�o viciados em jogo. Na Holanda, existem 140.000 jogadores classificados como patol�gicos, quase 1% da popula��o do pa�s. Como as drogas qu�micas, a compuls�o pelo jogo tamb�m est� relacionada � sensa��o f�sica que ele produz. "As casas de bingo usam uma receita infal�vel para criar depend�ncia",

"N�o h� dependente mais fiel ao v�cio do

que o tabagista."Jo�o, m�sico, 36 anos, ex-fumante

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diz o psiquiatra Hermano Tavares. "A f�rmula combina um jogo de azar, em que novas rodadas se sucedem rapidamente, com um ambiente fechado, onde a luz do sol nunca entra. O ritmo das apostas n�o deixa tempo para que o jogador calcule o quanto j� perdeu. O lugar fechado impede que ele se d� conta de quantas horas j� passou ali dentro". Estudos do Hospital das Cl�nicas de S�o Paulo mostram que, nas rodadas mais decisivas de bingo, por exemplo, um jogador tem sua freq��ncia card�aca e respirat�ria acelerada na mesma propor��o de quem disputa uma corrida de 100 metros rasos ou cheira uma carreira de coca�na. Uma s�bita descarga de dopamina no c�rebro � a recompensa pela vit�ria no jogo, enquanto uma eventual derrota obriga o jogador a tentar novamente, em busca dessa sensa��o prazerosa. "Essas altera��es abruptas no metabolismo s�o fatais para criar depend�ncia", explica o psiquiatra.

Os estudos mostram que cada tipo de droga age de maneira diferente no c�rebro. A coca�na bloqueia a absor��o da dopamina produzida no organismo. O excesso de neurotransmissor acelera o n�mero de descargas el�tricas entre os neur�nios e produz sensa��o de euforia. As anfetaminas obt�m efeito semelhante acelerando a libera��o de dopamina, a um ritmo que o c�rebro n�o tem tempo de reabsorv�-la normalmente. A nicotina do cigarro faz as duas coisas simultaneamente: tanto acelera a produ��o de dopamina quanto cria uma enzima que impede a quebra das mol�culas do neurotransmissor. Em todos os casos, o resultado final � sensa��o artificial de prazer e bem-estar, ainda que moment�nea. S�o sensa��es t�o agrad�veis e recompensadoras que o dependente tende a procur�-las cada vez mais, n�o importa a que pre�o.

Uma nova vida — Pelo efeito qu�mico que provoca e por sua f�cil difus�o entre os consumidores, o cigarro concorre com o �lcool para o posto de v�cio mais perigoso do planeta. "N�o existe viciado mais fiel que o tabagista", afirma Jo�o, um m�sico de 36 anos, freq�entador do grupo Fumantes An�nimos, em S�o Paulo. Ele fumou durante vinte anos e foi levado ao desespero por crises agudas de falta de ar, durante uma gripe. "Tentei de tudo para largar o cigarro", conta. "Acupuntura, simpatias, nada deu certo." Hoje, com a ajuda do Fumantes An�nimos, Jo�o est� sem fumar h� tr�s anos. Mas ainda n�o esqueceu o v�cio. "A sensa��o de prazer proporcionada pelo cigarro � incompar�vel." Criados no Brasil em 1980, os grupos Fumantes An�nimos t�m ex-dependentes engajados na organiza��o das reuni�es em todo o pa�s e na transmiss�o de sua experi�ncia. Na primeira vez que comparecem a esses encontros, os fumantes que tentam livrar-se do v�cio recebem um toco de madeira para que possam ocupar as m�os e ter a sensa��o de estar segurando o cigarro. "Ouvindo hist�rias de outros fumantes, percebi que era um dependente qu�mico e precisava do apoio do grupo para mudar minha vida", diz Jo�o. Esse � um dos aspectos mais animadores das associa��es de auto-ajuda. Elas t�m-se fortalecido tanto no Brasil, e no mundo inteiro, porque exercem um duplo papel de ajuda aos dependentes. Primeiro, conseguem faz�-lo interromper o uso de subst�ncias viciantes ou desistir de determinadas atividades compulsivas. Depois, d�o-lhe suporte e orienta��o para recompor la�os familiares e sociais. Como o pr�prio nome desses grupos indica, s�o pessoas an�nimas, que nunca se tinham visto antes. E que, uma vez juntas, encontram for�as umas nas outras para dar uma

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guinada no rumo da pr�pria vida.

O sucesso do div� coletivo

Fotos: Claudio Rossi

Roberto, do Introvertidos An�nimos, e uma reuni�odo grupo: a terapia do espelho contra a timidez

A receita de auto-ajuda an�nima se mostrou t�o �til na recupera��o de dependentes qu�micos que fez surgir grupos para cuidar de uma vasta gama de problemas humanos. Muitos deles se ocupam de problemas emocionais, que antes s� eram tratados por psic�logos e psiquiatras. Essas associa��es adotam a chamada terapia do espelho, em que cada freq�entador conta o pr�prio drama e se identifica na hist�ria do outro. Gente que tem medo de ficar sozinha, n�o relaxa diante de estranhos, tem dificuldade para falar em p�blico, sofre de ins�nia ou anda � procura de sentido para a vida lota as salas de reuni�o desses grupos.

S�o pessoas como o economista Paco, 59 anos, que h� nove procurou ajuda no Emocionais An�nimos no Rio de Janeiro e, mais tarde, levou a experi�ncia do grupo para Cascavel, no Paran�, onde mora hoje. Criado dentro de padr�es r�gidos de comportamento, ele desenvolveu um perfeccionismo exagerado e sentimento constante de medo e indecis�o. Seu desequil�brio emocional se manifestava especialmente no trabalho. Paco discutia constantemente com os colegas e, em raz�o do comportamento agressivo, perdeu amigos e oportunidades de promo��o. "Os outros eram obrigados a suportar meus erros, mas eu jamais aceitava a falha de algu�m", conta. Paco diz que as reuni�es do Emocionais An�nimos o ajudaram a controlar a ansiedade e respeitar os limites dos outros. Ainda vai aos encontros do grupo porque n�o se considera curado. "Doen�a emocional n�o tem alta m�dica", afirma.

Ajudar as pessoas a recuperar a auto-estima e a vontade de viver tamb�m � o objetivo do Neur�ticos An�nimos, NA, entidade surgida em 1964 nos Estados Unidos e que j� tem 450 grupos no Brasil. Foi no NA que a professora Flor�ncia, 40 anos, diz ter encontrado meios para livrar-se da depress�o. Ela resolveu procurar ajuda quando come�ou a ter crises de choro constantes e dificuldade para levantar pela manh�. "Demorei um ano para aderir ao grupo porque associava o termo neur�tico a coisa de maluco", relata. Hoje comparece religiosamente �s reuni�es. "Para mim foi mais interessante falar com pessoas

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que passam por dificuldades iguais �s minhas do que recorrer a um tratamento especializado", diz Flor�ncia.

Depois de dois anos de pouco progresso em sess�es de psican�lise, Roberto, um escrevente de 27 anos, tamb�m recorreu ao NA. "Eu estava muito confuso", conta. "N�o entendia meus pr�prios sentimentos nem conseguia falar com as pessoas." No trabalho, andava de cabe�a baixa, cumpria passivamente as tarefas que lhe eram determinadas e tinha medo do chefe. Sa�a sempre sozinho porque n�o conseguia fazer amigos. Com o tempo, descobriu que suas dificuldades nada tinham a ver com as dos integrantes do Neur�ticos An�nimos. Seu problema era outro: a timidez excessiva. Descobriu tamb�m a exist�ncia do Introvertidos An�nimos, um grupo de auto-ajuda que nasceu em S�o Paulo h� cinco anos e hoje re�ne cerca de cinq�enta participantes. "Eu me identifiquei muito com as hist�rias que ouvi nas reuni�es e j� progredi bastante", comemora. "At� consigo paquerar sem ficar nervoso."

A auto-ajuda est� dando bons resultados at� na recupera��o de doentes mentais. As reuni�es do grupo Psic�ticos An�nimos, PA, fundado tr�s anos atr�s por Luiz de Barros, ele pr�prio um doente mental que preferiu sair do anonimato, funcionam como um poderoso instrumento de ressocializa��o. Mestre em educa��o pela Universidade de S�o Paulo, Barros j� passou por dez interna��es psiqui�tricas desde o primeiro surto da doen�a, h� 21 anos. Com o envolvimento no PA, passou a ter uma vida mais produtiva e diz n�o ter perdido mais o controle. "O grupo de auto-ajuda ensina doentes mentais cr�nicos e incur�veis a conviver com as crises", afirma. "Mas n�o substitu�mos os m�dicos. Eles continuam a ter papel fundamental no tratamento."

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* Todos os personagens desta reportagem s�o identificados por pseud�nimos.

Reportagem de Juliana De Mari, Daniel Hessel Teich ePablo Nogueira, de S�o Paulo, Daniella Camargos,

de Belo Horizonte, e M�rcio Pimentel, de Cascavel (PR)