a lua de gomrath

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LITERATUTA INFANTO JUVENIL

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Page 1: A LUA DE GOMRATH

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Apresenta:

Page 2: A LUA DE GOMRATH

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Page 3: A LUA DE GOMRATH

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Para Ellen, Adam e Katharine.

Page 4: A LUA DE GOMRATH

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Coordenação editorial: Maristela Petrili de Almeida Leite Valentim Rebouças Lenice

Bueno da Silva Edição do texto: Marcelo Gomes Assistência Editorial: Ana

Lucia Santos

Tradução: Ana Maria Machado Preparação de texto: Márcio Della Rosa Coordenação

de Revisão: Estevam Vieira Ledo Jr. Revisão; Ana Maria Tavares Edição de Arte: A+

Comunicação Ilustração da capa e miolo: Rogério Soud Saída de filmes: Hélio P. de

Souza Filho Impressão e acabamento:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do

LIVRO, SP, Brasil)

Garner, Alan

A lua de Gomrath / Alan Garner ; ilustrado por Rogério Soud ; traduzido por Ana

Maria Machado. — 2. ed. — São Paulo : Moderna, 2006.

Título original: The moon of Gomrath.

1. Literatura infanto-juvenil I. Soud, Rogério II. Título.

06-0674 __________________ CDD-028-5

índices para catálogo sistemático:

1.Literatura infanto-juvenil 028.5

2.Literatura juvenil 028.5

Originally published in English by Harper Collins Ltd under the title The moon of

Gomrath Copyright © Alan Garner 1963 The author asserts the moral right to be

identified as the author of this work. Published by arrangement with Harper Colins

Publishers Ltd.

Todos os direitos reservados no Brasil por Editora Moderna Ltda. Rua Padre Adelino,

758, Belenzinho, 03303-904 - São Paulo, SP Vendas e Atendimento: Tel.: ( 0 1 1 ) 6090-

1500 Fax: ( 0 1 1 ) 6090-1501 www.moderna.com.br Impresso no Brasil, 2006

Page 5: A LUA DE GOMRATH

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Nota aos Leitores

O autor afirma que as coisas e os locais mencionados em A pedra encantada de Brisingamen

e sua sequência, A lua de Gomrath, realmente existem, com exceção de Fundindélfia, mas ele

trocou um pouco seus lugares. Garante também que os ingredientes das histórias são

verdadeiros, os encantamentos são genuínos (embora incompletos, para evitar eventuais

problemas) e os nomes são reais, mesmo se os personagens são inventados. Muitos desses

nomes vieram da literatura celta e podem ter sido assuntos de histórias antigas, há muito

perdidas.

Da mesma forma, a maioria dos elementos e das entidades dos livros aparecem de

uma forma ou de outra no folclore tradicional das Ilhas Britânicas. Mas o autor os adaptou

a sua própria visão. Os Einheriar, por exemplo, eram os guarda-costas dos deuses na

mitologia escandinava. O Herlathing era a forma inglesa da Caçada Selvagem e Garanhir, "A

Pessoa que podia dar Chifradas", era um dos muitos nomes de seu chefe, mas a natureza

dessa Caçada Selvagem que aparece aqui está mais próxima ao ciclo de mitos irlandeses.

Para escrever estas histórias, o autor pesquisou em vários livros, cujos títulos constam

de uma bibliografia na edição original, e usou nomes arcaicos para lugares habitados por

anões e elfos.

Na tradução, quando achamos que era o caso, demos uma versão em português de

certos nomes próprios (como o Poço Sagrado, o Farol, a Colina da Samambaia Negra). Mas

deixamos vários em sua forma original, para evocar a sonoridade poética que ajuda a

compor esse universo fantástico. Além disso, mantivemos também algumas palavras que

são importantes para criar esse clima, mesmo não existindo em nossos dicionários. Nesse

caso, sempre dá para adivinhar seu sentido a partir do contexto em que ocorrem. É o caso

de lios-alfar, cantrefe, palugue, bodaque — entre outras. Como todo leitor sabe, há palavras

mágicas, e é com elas que se fazem encantamentos. Nas páginas de Alan Garner, cumprem

magnificamente essa função.

Ana Maria Machado

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Highmost Redmanhey Fazenda na Borda de Alderley, onde Susan e Colin vão se hospedar.

É propriedade do casal Mossock.

Page 7: A LUA DE GOMRATH

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Os irmãos Colin e Susan Por causa de uma viagem dos pais, passam uma temporada em Highmost Redmanhey, onde vão viver incríveis aventuras.

Gowther e Bess Mossock e seu cão, Scamp. Seus hóspedes vão trazer o mundo da fantasia para Highmost Redmanhey.

Page 8: A LUA DE GOMRATH

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Cadellin Argentesta, o

mago.

Há séculos vive em Fundindélfia,

a velha mina dos anões. É o guar-

dião dos cavaleiros da Caverna

dos Adormecidos.

Atlendor, senhor dos elfos

Busca desesperadamente salvar

seu povo, os lios-alfar, do Grande

Mal que vem causando sua

desaparição.

Page 9: A LUA DE GOMRATH

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Uthecar Hornskin, o anão.

Lutador incansável. Perdeu um

olho numa luta com a feiticeira

Morrigana.

Alhanac, o cavaleiro.

Vai conduzir Susan e Colin, através dos portões de ferro, de volta a Fundindélfia, a velha mina dos anões.

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"E, para passar o tempo, que seja este um livro agradável de se ler, mas, para que se lhe dê fé e se tenha crença

em que é tudo verdadeiro o que nele contém, que fique isso a seu critério."

William Caxton

31 de julho de 1485

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• 1 •

Os elfos de Sinadon

azia frio e ventava muito na estrada de Mottram, abaixo da Borda, colina de

Alderley, que era coberta de bosques. As árvores eram sacudidas de um lado para

outro, lá em cima na escuridão. Se alguém precisasse sair de casa numa noite dessas,

tinha de afundar bem a cabeça por baixo da gola, ficando com o rosto todo e nrugado, sem

enxergar nada, e avançar contra o vento. E era bom mesmo que fosse assim, porque o que

estava acontecendo por entre as árvores não era para olhos humanos.

De uma fresta da Borda escapava uma faixa de luz azul que cortava a escuridão.

Vinha de uma fenda estreita num rochedo alto que parecia um enorme dente, e dentro dela

havia um portão duplo, de ferro, escancarado. Passando por ele, chegava-se a um túnel.

Sombras se mexiam por entre as árvores, enquanto uma funesta procissão ia pelo portão,

sumindo dentro da colina.

Eram pessoas minúsculas, de pouco mais de um metro. Tinham o peito afundado e a

cintura fina, e seus braços e pernas eram compridos e magros. Vestiam túnicas curtas, com

cinto e sem manga, e estavam descalças. Alguns usavam mantos de penas de águia branca,

que eram sinal de distinção, não agasalho. Seguravam arcos de curva acentuada. De um

lado do cinto, portavam aljavas cheias de flechas brancas. Do outro, espadas largas. Todos

montavam pequenos cavalos brancos. Alguns iam eretos e orgulhosos, mas a maior parte

deles se curvava sobre o santo-antônio da sela, e alguns até jaziam completamente imóveis

sobre os pescoços de suas montarias, enquanto as rédeas eram seguras pelos

companheiros. Ao todo, eram uns quinhentos.

Ao lado dos portões de ferro, estava parado um velho. Era muito alto e magro como

uma árvore do bosque, uma bétula nova. Suas vestes alvas, seus cabelos e barba brancos,

compridos, esvoaçavam com o vento. Apoiava-se num cajado que também era branco.

Devagar, os cavaleiros foram passando pelos portões e entrando no túnel luminoso.

Quando todos já estavam lá dentro, o velho se virou e os seguiu. Os portões de ferro

rangeram e se fecharam após sua passagem. Ficou apenas um rochedo nu, sob o vento.

Dessa maneira, sem que ninguém percebesse, os elfos de Sinadon foram para

Fundindélfia, o último baluarte da Alta Magia em nossos dias. E lá foram recebidos por

Cadellin Argentesta, um grande mago, guardião dos lugares secretos da Borda.

F

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• 2 •

O Poço

pa! — disse Gowther Mossock. — O que é isto?

— O quê? — perguntou Colin.

— Isto que está aqui, no jornal.

Colin e Susan chegaram mais perto, para ver o que o dedo de Gowther estava

apontando, uma manchete perto do meio da página.

EXPLORANDO AS PROFUNDEZAS

Despertou muita curiosidade a descoberta do que parece ser um poço de dez metros de profundidade,

durante escavações realizadas em frente ao Hotel Trafford Arms, na Borda de Alderley.

Trabalhadores contratados por Isaac Massey e Filhos estavam cavando a terra em busca de um lençol

d'água que causava infiltrações na superfície, quando deslocaram uma laje de pedra e descobriram uma

cavidade. Ao baixarem uma corda com um peso na ponta, constataram que a profundidade aproximada tinha

cerca de dez metros, dos quais cinco ficavam debaixo d'água. O poço não tinha nenhuma ligação com o

vazamento e, embora não se tenha removido toda a cobertura, estima-se uma área de aproximadamente dois

metros quadrados para a cavidade, que tem paredes forradas de lajotas de pedra.

Foi aventada a hipótese de que antigamente teria existido uma bomba d'água em frente ao hotel. As

escavações podem ter revelado o poço do qual a água era bombeada.

Outra teoria provável é a de que se trate de um respiradouro, ligado às galerias de antigas minas, que se

estendem por uma distância considerável em direção à aldeia.

• • •

— O engraçado — disse Gowther quando as crianças acabaram de ler — é que, desde

que eu me entendo por gente, sempre ouvi dizer que existe um túnel que vem das minas

de cobre até o porão do Trafford. E agora ele aparece. Fico imaginando o que pode ser isso,

finalmente.

—E

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— Não sei por que tanto interesse — disse Bess Mossock. — É só um buraco molhado,

seja o que for. E por mim, pode ficar por lá o tempo que quiser.

Gowther riu:

— Ei, garota, cadê a sua curiosidade?

— Na minha idade, e me arriscando a engordar que nem a Porca Eilen, ando com

outras coisas na cabeça, se quiser saber. Não dá para ficar metendo buracos cheios dágua

dentro dela.

— Deixe disso... Todo mundo tem outras coisas pra pensar. Eu tenho de fazer minhas

compras, e vocês ainda não acabaram.

— Será que a gente não podia ir só dar uma olhadinha? — propôs Susan.

— Era o que eu ia sugerir — disse Gowther. — É logo ali, depois da esquina. Não leva

mais que dois minutos.

— Pois então, podem ir — disse Bess. — Espero que se divirtam. Mas não fiquem o

dia todo por lá, hein...

• • •

Saíram do mercadinho e foram para a rua da aldeia. No meio dos carros estacionados,

a carroça verde da família Mossock, com seu cavalo branco, Príncipe, era uns trinta anos

mais velha do que tudo o que estava em volta. Mas os Mossock também eram. Bess, com

seu casaco comprido e um chapéu redondo e de abas preso no cabelo com um longo

alfinete, e Gowther, usando colete e suspensórios, não viam razão para mudar a vida de

sempre. Estavam acostumados a viver assim. Uma vez por semana saíam de Highmost

Redmanhey, a fazenda que tinham na encosta sul da Borda, e vinham de carroça até a

aldeia de Alderley, fazer a entrega de ovos, frangos e verduras aos fregueses. Quando

Colin e Susan tinham chegado, para ficar em Highmost Redmanhey, no começo, tudo tinha

parecido meio estranho. Mas eles logo se adaptaram aos costumes dos Mossock.

Gowther e as crianças foram a pé, deixando a carroça para trás, e seguiram pela

distância curta que subia a rua até o Trafford Arms, uma estalagem construída segundo

um ideal de beleza do tempo da rainha Vitória, num estilo meio gótico, mostrando a

estrutura de peças de madeira aparente.

Na frente do prédio, tinham cavado uma espécie de trincheira, de um metro de

profundidade, bem junto à parede. Gowther subiu no monte de terra e barro, ao lado, e

olhou lá para baixo.

— Aí está.

Colin e Susan subiram também.

O canto de uma lajota de pedra brotava da escavação, pouco acima do chão. Um

pedaço da lajota estava quebrado, deixando um buraco de menos de meio palmo. Era tudo.

Susan pegou uma pedrinha e a jogou pelo buraco. Passou um segundo até se ouvir um

ploft, ressoando, quando ela bateu na água.

— Não dá para saber muita coisa, não é mesmo? — disse Gowther. — Você está

conseguindo ver?

Susan tinha pulado para dentro da escavação e estava abaixada, espiando pelo buraco.

Page 14: A LUA DE GOMRATH

PDL – Projeto Democratização da Leitura

— É redondo... feito um túnel em pé. Parece que tem alguma coisa espetada, uma

espécie de cano... não dá pra ver mais nada.

— Vai ver que é mesmo só um poço — disse Gowther. — Pena... eu bem que ia gostar

se a velha história fosse verdade.

Voltaram para a carroça. Quando Bess acabou as compras, continuaram fazendo sua

ronda de entregas. Só terminaram no fim da tarde.

— Imagino que vocês vão querer voltar pra casa a pé pelo bosque, como das outras

vezes.

— Isso mesmo, por favor... pode?

— Por mim, achava melhor desistir dessa idéia — disse Gowther. — Mas se estão

mesmo querendo tanto, podem ir... só que duvido que achem muita coisa. E tratem de ir

direto pra casa. Daqui a uma hora já vai escurecer, e esses bosques podem ser muito

perigosos de noite, traiçoeiros... Vocês podem cair num buraco de mina de uma hora para

outra.

Colin e Susan foram andando pelo sopé da Borda. Faziam isso toda semana, enquanto

Bess e Gowther voltavam para casa na carroça. E toda vez que arranjavam um tempinho

livre, iam também até a colina, andar à toa, procurando...

Nos primeiros quinhentos metros, a estrada era margeada por jardins suburbanos,

seguros. Depois, começavam a aparecer umas plantações e num instante a aldeia ficava

para trás. À direita, erguia-se a encosta norte da Borda, vertical, saindo diretamente do

caminho de pedestres, com algumas faias se curvando sobre a estrada e a crista íngreme,

cheia de pinheiros e pedras.

Os dois saíram da estrada e tomaram a picada estreita por entre as árvores. Durante

algum tempo foram subindo em silêncio, embrenhando-se pelo bosque. De repente, Susan

falou:

— Mas, na sua opinião, qual é o problema? Por que não podemos encontrar Cadellin

agora?

— Pelo amor de Deus, não me venha com essa história de novo... — disse Colin. — A

gente nunca soube como é que se pode abrir os portões de ferro, ou a entrada do Poço

Sagrado de Holywell, então não temos muita chance de encontrá-lo.

— Sei disso, mas por que é que não está querendo nos ver? Antes, eu podia entender

quando ele sabia que não era seguro vir até aqui. Mas agora não. Do que é que tem medo

já que Morrigana foi embora?

— Aí é que está... — disse Colin. — Será que foi mesmo?

— Só pode ter ido — disse Susan. — Gowther disse que a casa dela está vazia, e todo

mundo na aldeia confirma.

— Mas pode muito bem estar viva e não estar em casa — disse Colin. — Andei

pensando muito: a única vez que Cadellin fez isso conosco foi quando achou que ela

estava por perto. Então agora, das duas uma: ou ele se cansou da gente, ou está havendo

algum problema. Só pode ser. Senão, por que ia ser sempre assim?

Tinham chegado ao Holywell, o Poço Sagrado. Ficava no sopé de um penhasco, em

um dos numerosos vales da Borda. Era um buraco raso e longo na pedreira, no qual

pingava água da rocha. Ao lado, havia outra bacia, menor, em forma de le que, e em cima

dela uma fresta na face do rochedo — era o segundo portão para Fundindélfia, as crianças

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sabiam. Mas agora, o que estava acontecendo, semana após semana, era que seus

chamados não tinham resposta.

Não faz parte desta história contar como Colin e Susan foram levados pela primeira

vez ao mundo da Magia, que está tão perto de nós e nos passa tão despercebido, como o

que está por trás das sombras1. Mas depois de terem feito amizade com Cadellin

Argentesta, agora estavam muito magoados porque ele parecia tê -los abandonado, sem

nenhum motivo ou aviso. Quase desejavam nunca ter descoberto encantamento algum.

Não podiam suportar a idéia de que o bosque para eles fosse vazio de tudo, a não ser de

beleza. Ou de que a pedra que escondia os portões de ferro fosse apenas uma pedra, e que

o penhasco por cima do Poço Sagrado não passasse de um penhasco.

— Vamos — chamou Colin. — Ficar olhando não vai fazer o portão abrir. E se a gente

não se apressar, não vamos chegar em casa antes de escurecer. E você sabe como Bess

gosta de reclamar.

Foram saindo do vale para o alto da Borda. No crepúsculo, os galhos se erguiam

contra o céu e a penumbra corria pela grama, virava um breu nas fendas e nas bocas dos

túneis das velhas minas, que cortavam o bosque com seus monturos de areia e pedregulho.

Ouvia-se o assobio do vento, embora as arvores não se mexessem.

— Mas eu tenho certeza de que Cadellin daria um jeito de nos avisar, se não

pudéssemos...

— Espera aí! — interrompeu Colin. — O que é aquilo? Você está vendo?

Estavam andando pelo lado de uma pedreira, desativada havia muitos anos. O chão já

estava coberto de capim e mato, e por isso só o paredão nu fazia com que aquele vale fosse

diferente dos outros que havia na Borda. Mas esse despojamento dava ao lugar uma

atmosfera primitiva, uma sensação de isolamento que, ao mesmo tempo, era inquietante e

tranqüila. Parecia que nesse lugar a noite chegava mais depressa.

— Onde? — perguntou Susan.

— Na outra ponta da pedreira, um pouquinho à esquerda daquela árvore.

— Não...

— Lá vai de novo! Sue! O que é aquilo?

O vazio do vale estava sombrio, mas uma mancha de escuridão se mexia, mais

sombria do que o resto. Flutuava por cima do capim, sem forma, achatada, mudando de

tamanho, e subia a superfície do penhasco. Em algum ponto no meio da mancha, se é que

aquilo tinha um meio, havia dois pontos de luz vermelha. Deslizou pela beirada da

pedreira e foi absorvida pelo mato.

— Você viu? — perguntou Colin.

— Vi. Quer dizer, se havia alguma coisa, eu vi. Pode ter sido só... um efeito de luz.

— E você acha que era só isso?

— Não.

1 Esta história é contada no livro A pedra encantada de Brisingamen, que também faz parte desta coleção. (Nota da editora.)

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• 3 •

Atlendor

gora estavam com pressa. A diferença podia estar neles mesmos ou no bosque, mas

Colin e Susan sentiam que alguma coisa tinha mudado. De repente, a Borda se

tornara não exatamente maléfica, mas estranha, insegura. E eles estavam loucos

para chegar a um lugar aberto, sair do meio das árvores. Talvez fosse só efeito da luz ou

dos nervos, ou dos dois ao mesmo tempo, mas alguma coisa ainda parecia estar brincando

de assustá-los. A toda hora imaginavam que havia um movimento de algo branco por

entre o alto das árvores — nada muito definido, mas insinuado e fugidio.

— Você acha mesmo que havia alguma coisa lá na pedreira? — perguntou Susan.

— Sei lá... e se houvesse, o que seria? Acho que deve ter sido mesmo só um efeito de

luz. Não acha?

Mas antes que Susan pudesse responder, ouviu-se um assobio no ar. As crianças

deram um pulo para o lado, enquanto um pouco de areia jorrou a seus pés, bem entre elas.

Olharam e viram uma flecha, pequenina e branca, fincada bem no meio do caminho. E

enquanto olhavam, espantados, uma voz firme falou, vinda da escuridão, acima de suas

cabeças.

— Não movam um único músculo de seus músculos, uma única veia de suas veias, um

único fio de cabelo de suas cabeças, senão eu hei de lhes lançar tantos dardos, do mais fino

carvalho, que vocês ficarão costurados na terra.

Instintivamente, Colin e Susan olharam para cima. Diante deles, uma bétula muito

velha lançava seu tronco em arco por cima do caminho. Entre os galhos da árvore, estava

de pé uma figura miúda, parecida com um homem, mas de pouco mais de um metro.

Usava uma túnica branca e tinha a pele morena, crestada pelo vento. Os cachos de seu

cabelo, colados à cabeça, pareciam labaredas de prata. E os olhos... bem, eram olhos de

cabra. Emitiam uma luz que não se refletia em nada no bosque. Nas mãos, a criatura

segurava um arco muito curvado.

No primeiro momento, Colin e Susan ficaram parados, incapazes de dizer qualquer

coisa. Depois, a tensão dos últimos minutos fez Colin estourar.

— Que idéia é essa? — gritou. — Quase nos acertou com essa coisa!

— Ah, pelos Donas! Ah, por santa Mothan! É ele mesmo, o que fala com os elfos!

Colin e Susan levaram um susto com essa voz cheia, que dava gargalhadas. Viraram -

se e viram outra figura pequena, porém mais troncuda, parada no caminho atrás deles,

com os cabelos vermelhos brilhando sob as últimas luzes do dia. Poucas vezes tinham

A

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visto uma cara tão feia. Tinha uns lábios enormes, dentes separados, verrugas na cara,

nariz de batata, barba e cabelo embaraçados e uma pele ressecada como as cascas das

árvores no auge do inverno. O olho esquerdo era coberto por um tapa-olho, mas o direito

valia por dois. Sem dúvida, era um anão. Adiantou-se e deu uma palmadinha no ombro de

Colin, com tanta força que o corpo do menino balançou:

— E este sou eu, Uthecar Hornskin, que amo vocês por causa disso! Salve! E agora,

será que Sua Alteza não quer descer da árvore e falar com os amigos?

O vulto branco no alto da árvore não se mexeu. Parecia não ter ouvido nada. Uthecar

continuou:

— Estou achando que há outros lugares neste bosque esta noite que estão muito mais

necessitados das flechadas dos elfos do que aqui! Vejo que Albanac se aproxima e ele não

parece nada tranqüilo!

O anão estava olhando para o caminho lá na frente, mais adiante de Colin e Susan.

Eles não conseguiam ver tão longe no escuro, mas ouviram o som distante de cascos de

cavalo se aproximando. Cada vez mais alto, cada vez mais perto, até que do meio da noite

surgiu um cavalo negro, com olhos selvagens e molhado de suor. Esparramando areia,

parou de repente junto a eles. O cavaleiro, um homem alto, também vestido de pre to,

chamou em direção ao alto da árvore:

— Atlendor, meu senhor! Encontramos o que procurávamos, mas está fora do bosque,

para o sul, e se move depressa demais para mim. Ermid, filho de Erbin, Riogan, filho de

Moren, e Anwas, o Alado, com metade dos cavaleiros de seu cantrefe, estão vigiando, sem

tirar o olho. Mas não bastam. Depressa!

Seu cabelo liso e negro chegava aos ombros, o ouro brilhava em uma de suas orelhas,

e seus olhos pareciam queimar como gelo. Na cabeça, tinha um chapéu de copa alta e abas

largas e os ombros estavam envoltos por uma capa ampla, presa com uma fivela de prata.

— Estou indo. Albanac ensinará a esta gente o que desejo.

Ligeiro, o elfo correu pelo tronco da bétula acima, e desapareceu no meio da copa da

árvore. Houve apenas uma brancura esvoaçando pelas árvores em volta, como se fosse

uma rajada de neve. E por entre os galhos soou um barulho parecido com o do vento.

Durante algum tempo, ninguém falou. O anão dava a impressão de estar se divertindo

muito com a situação, contente em deixar que os outros fizessem o movimento seguinte. O

homem chamado Albanac olhava as crianças. Colin e Susan ainda estavam se recuperando

da surpresa e se acostumando com o fato de que estavam novamente no mundo da Magia

— ao que parecia, por acaso. E agora que estavam lá outra vez, lembravam-se de que não

era apenas um mundo de encantamento, mas também de sombras profundas.

Estavam caminhando para dentro daquele mundo desde que tinham chegado à

pedreira. Se tivessem reconhecido essa atmosfera antes, os choques sucessivos dos

encontros com o elfo, o anão e o cavaleiro não teriam sido tão fortes nem os te riam

deixado sem fôlego.

— Acho que agora — disse Albanac — a questão não está mais nas mãos de Cadellin.

— O que você quer dizer com isso? — disse Colin. — E o que está acontecendo?

— Ia levar algum tempo para explicar o que quero dizer. Ou o que está acontecendo,

aliás. E o lugar para essas explicações é Fundindélfia, então é melhor irmos juntos.

— Não há nada mais urgente para você resolver no bosque esta noite? — perguntou

Uthecar.

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— Nada que a gente possa fazer — disse Albanac. — A velocidade e os olhos dos elfos

são nossa única esperança, e tenho medo de que mesmo eles não sejam o s uficiente.

Apeou do cavalo e seguiu a pé, com as crianças e o anão, pela picada aberta na mata.

Mas depois de algum tempo, Susan percebeu que não estavam andando na direção do

Poço Sagrado.

— Não seria mais rápido se fôssemos por ali? — perguntou, apontando para a

esquerda.

— Seria — confirmou Albanac —, mas por aqui o caminho é mais largo, e isso

representa uma grande vantagem esta noite.

Chegaram a uma espécie de clareira, de pedra e areia, que se estendia até a beirada da

Borda. Era a Ponta das Tormentas, um lugar de onde dava para se apreciar a paisagem

durante o dia, mas que agora não parecia muito amistoso. De lá, cruzaram por cima das

pedras até Saddlebole, que era uma ponta do morro que avançava para dentro da planície.

Bem no meio dela erguia-se um rochedo alto e arredondado.

— Pode fazer o favor de abrir os portões, Susan? — pediu Albanac.

— Não consigo. Já tentei uma porção de vezes.

— Colin — disse Albanac —, por favor, encoste a mão direita na pedra e diga a

palavra Emalagra.

— Assim?

— É.

— Emalagra!

— De novo.

— Emalagra! Emalagra!

Não aconteceu nada. Colin recuou, com cara de bobo.

— Agora Susan — insistiu Albanac.

Susan deu um passo até junto da pedra, e encostou nela a mão direita.

— Emalagra. Viu? Não adianta. Já tentei muitas vezes e não...

Apareceu uma fresta na pedra. Foi crescendo e revelando um par de portões de ferro.

E atrás deles, um túnel iluminado por uma luz azul.

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• 4 •

O Brollachan

ão vai abrir os portões? — perguntou Albanac. Susan esticou a mão e

tocou os portões de ferro.

Eles se abriram sozinhos.

— Depressa — disse Uthecar. — A noite é muito mais saudável lá dentro do que aqui

fora.

Apressou as crianças a passarem logo pelo portão. A pedra se fechou de novo assim

que todos acabaram de entrar.

— Por que eles se abriram? Antes nem se mexiam — disse Susan.

— Porque você disse a palavra. E também por outra razão que depois vamos discutir.

Foram descendo com Albanac pelos caminhos de Fundindélfia. Um túnel levava a

uma caverna, a caverna dava passagem a um túnel, e assim seguiram, de túnel em túnel e

de caverna em caverna, todos diferentes e todos iguais. Parecia não haver fim.

Quanto mais fundo iam, mais forte ficava a pálida luz azul . Assim, as crianças

souberam que estavam se aproximando da Caverna dos Adormecidos, cuja consideração

tinha feito com que a velha mina dos anões de Fundindélfia recebesse a maior carga de

Magia de uma época. E seu guardião era Cadellin Argentesta. Ali, naquela caverna,

durante séculos esperando o dia em que Cadellin iria despertá-lo de seu sono encantado

para travar a última batalha do mundo, jazia um rei, cercado por seus cavaleiros, cada um

com sua égua branca como o leite.

As crianças olharam em volta, contemplando as chamas frias, agora brancas no

coração da Magia, cintilando na armadura de prata. Viram os cavalos e os homens.

Ouviram o murmúrio abafado de sua respiração ecoando, a batida do coração de

Fundindélfia.2

Depois da Caverna dos Adormecidos, o caminho começava a subir, passando por mais

túneis, por pontes estreitas e de arcos altos, sobre abismos desconhecidos, ao longo de

passagens apertadas no teto de cavidades, atravessando planícies de areia debaixo de

abóbadas de pedra, até as cavernas mais remotas da mina. Finalmente, chegaram a uma

pequena gruta, bem nos fundos do Poço Sagrado, o lugar que o mago usava como seus

aposentos. Lá estavam umas poucas cadeiras, uma mesa comprida e uma cama de pele de

animais.

2 Para saber mais sobre Fundindélfia e os cavaleiros adormecidos, leia A pedra encantada de Brisingamen. (N. da E.)

—N

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— Onde está Cadellin? — indagou Susan.

— Deve estar com os lios-alfar, os elfos — disse Albanac. — Muitos estão passando mal,

com a doença-da-fumaça. Mas enquanto ele não chega, vocês podem descansar aqui. Na

certa há muita coisa que estão desejando saber.

— Claro que há! — exclamou Colin. — Quem estava atirando flechas contra nós?

— O senhor dos elfos, Atlendor, filho de Naf. Ele precisa da ajuda de vocês.

— Da nossa ajuda? — repetiu Colin. — Pois tem uma maneira muito esquisita de

pedir.

— Nunca pensei que os elfos fossem assim... — disse Susan.

— Vocês estão se precipitando — disse Albanac. — Lembrem-se de que ele está com

medo, numa situação de perigo. Está cansado, sozinho... e é um Rei. É bom lembrar, tam-

bém, que os elfos não têm um amor natural pelos homens, porque os lios-alfar foram

expulsos para os lugares ermos justamente por causa da sujeira, da feiúra e do ar impuro

que os homens estão adorando nestes últimos duzentos anos. Vocês precisam ver o que a

doença-da-fumaça está fazendo com os elfos de Talebolion e de Sinadon. Precisam ouvir a

chiadeira dela nos pulmões deles. Tudo culpa dos homens.

— Mas como é que nós podemos ajudar?

— Vou lhes mostrar — disse Albanac. — Cadellin está há muitos dias falando contra

isso, e tem suas razões, mas já que vocês estão aqui, acho que o melhor é contar -lhes o que

está errado. Em resumo, é o seguinte: há alguma coisa escondida nos ermos das Terras do

Norte, lá longe no Prydein, onde os elfos tinham erguido seu último reino. Durante muito

tempo, o número de lios-alfar já vinha diminuindo — não por causa da doença-da-fumaça,

como está acontecendo no ocidente, mas por alguma razão que não conseguimos descobrir.

Os elfos simplesmente estão desaparecendo. Somem sem deixar vestígios. No começo, era

de um em um, ou aos pares. Mas não faz muito tempo, perdeu-se um cantrefe inteiro, o

cantrefe de Grannos, com tudo, até mesmo cavalos e armas. Não sobrou nem uma flecha.

Isso é obra de algum Grande Mal. Para descobri-lo e destruí-lo, Atlendor está

conclamando todo o seu povo, do sul e do oeste, e reunindo toda a magia que conseguir.

Susan, será que você podia dar a ele a Marca de Fohla?

— O que é isso? — perguntou Susan.

— É o bracelete que Angharad Mão-de-Ouro lhe deu.

— Esta pulseira? Eu nem sabia que ela tinha nome... em que ela pode ajudar Atlendor?

— Não sei — disse Albanac. — Mas tudo que for mágico pode ajudar, e você tem

magia nesse bracelete. Não abriu os portões?

Susan olhou a tirinha de prata antiga que usava em volta do pulso. Era tudo o que

havia trazido das ruínas do último encontro que tinham tido com aquele mundo, e fora

dada a ela, numa noite de perigo e encantamento, por Angharad Mão-de-Ouro, a Dama do

Lago. Susan não sabia o que significavam as letras pesadas que estavam inscritas em

negro, numa língua esquecida, sobre a superfície da prata. Mas sabia que não se tra tava de

uma pulseirinha comum, e não a usava sem respeito. 3

— Por que tem esse nome? — perguntou.

3 Episódio relatado em A pedra encantada de Brisingamen. (N. da E.)

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— Há muitas histórias sobre essas coisas, que só conheço vagamente — respondeu

Albanac —, mas sei que as Marcas de Fohla fazem parte da Magia mais antiga do mundo.

Esta é a primeira que vejo, e não sei para que serve. Mas de qualquer modo, você pode dá-

la a Atlendor?

— Não — disse Susan.

Mas os elfos podem ser totalmente destruídos, quem sabe se justamente por precisarem de

uma Marca! — disse Albanac. — Você se nega a ajudá-los bem na hora em que eles mais

precisam?

— É claro que vou ajudar — disse Susan. — Só que Angharad me recomendou muito

que eu cuidasse sempre de meu bracelete, mas não disse por quê. Então, se Atlendor está

precisando, eu tenho de ir com ele.

Ouvindo isso, Uthecar desandou a rir. Mas Albanac ficou preocupado e disse:

— Agora você me pegou. Atlendor não vai gostar nada disso. Mas esperem: será que

ele precisa saber? Não quero levar-lhe mais problemas, se puder evitar. Pode ser que a

Marca não sirva para Atlendor, que não possa usá-la, que só funcione com você. Mas você

podia me emprestar o bracelete, Susan, e o levo para que ele tente, experimente seus

poderes. Se não der certo, é mais fácil ele aceitar sua oferta.

— Ah, é? E quem garante que, no momento em que tiver a Marca nas mãos, ele não

some, para lá de Bannawg, mais depressa do que raposa se metendo pelo meio do bosque?

E leva o bracelete mágico embora...

— Você não conhece os lios-alfar, Hornskin — disse Albanac. — Dou minha palavra de

que ele não vai fazer trapaça.

— Então é preciso que os ouvidos de Cadellin saibam disso — disse Uthecar. — Para

que Atlendor não fique achando que um perigo atroz merece ações atrozes. Jamais um lios-

alfar sairia de Fundindélfia se Cadellin os mandasse ficar.

— Não precisa — disse Susan. — Confio em você. E confio em Atlendor. Aqui está a

pulseira. Ele pode tentar ver o que consegue fazer. Mas, por favor, não fiquem com ela

mais tempo do que o necessário.

— Obrigado — disse Albanac. — Você não vai se arrepender.

— Tomara que não — disse Uthecar, com uma cara que não parecia nada feliz. — Mas

pelo que ouvi sobre vocês, acho que andam muito sem juízo por não estarem vestindo uma

armadura. A Morrigana não esquece, nem perdoa.

— A Morrigana? — repetiu Colin. — Onde? Ela está atrás da gente outra vez?

Embora as crianças tivessem cruzado com essa mulher pela primeira vez sob sua

forma humana, logo ficaram sabendo que não era apenas com a feiúra dela que deviam se

preocupa. Era a Morrigana, a senhora dos antros de bruxas chamados de celeiros do mal. E

acima de tudo, ela tinha o poder de despertar poderes maléficos nas pedras e de fazer o

ódio fermentar no ar, além de ter uma força terrível. Mas seu poder tinha sido quebrado

por Cadellin Argentesta, principalmente por intermédio de Colin e Susan. E eles não

sabiam se ela havia ou não sobrevivido à destruição que aniquilara seus seguidores.

— O celeiro do mal está disperso, mas ela foi vista — disse Albanac, apontando

Uthecar com um gesto de cabeça. — O melhor é perguntar a ele, que trouxe notícias dela.

O anão com gênio de mel, vindo das Terras do Norte, para lá de Minith Bannawg.

— O que foi? Você a viu? — quis saber Colin.

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— E não vi? — disse o anão. — Vocês estão mesmo querendo saber? Pois então, eu

conto.

Respirou fundo e começou:

— Quando eu vinha para o sul, passei pela Colina da Samambaia Negra, em Prydein,

e uma tremenda tempestade estava se formando. Por isso, comecei a procurar umas pedras

e uns galhos de mato mais fechado, com intenção de fazer um abrigo para passar a noite. E

vi uma pedra redonda, castanha, meio separada das outras. Pus os braços em volta dela

para levantá-la, e nesse momento, ai meu rei do sol e da lua, meu senhor das estrelas

brilhantes e perfumadas!, a pedra criou braços e me agarrou o pescoço, e já estava quase

expulsando a vida que mora em mim!

Fez uma pausa e continuou:

— Nem me perguntem como, porque eu mesmo não sei dizer, mas consegui me soltar.

E, de repente, a pedra era a Morrigana! Pulei pra cima dela com minha espada. E mesmo

ela me arrancando o olho, cortei sua cabeça. O berro que deu foi repetido por todo lado, na

Colina da Samambaia Negra. Mas a cabeça deu um pulo, direto, redondinho, e voltou para

seu pescoço, e num instante lá vinha ela de novo, xingando pra cima de mim, e fiquei

morrendo de medo. Três vezes nós lutamos, três vezes tirei sua cabeça, mas três vezes ela

ficou inteirinha de novo, e eu já estava quase morrendo, de tanta dor e cansaço. Então,

quando mais uma vez passei a espada pela altura de seus ombros, quando a cabeça estava

voltando para o tronco, consegui botar a lâmina de ferro bem no lugar do pescoço. Então a

cabeça, "gong!", quicou na lâmina, e pulou para o céu. Quando estava começando a cair, e

vi que vinha para cima de mim, me desviei e ela entrou na terra uns dois metros, com toda

a força que vinha. Que cabeça! Depois ouvi o barulho de pedras mordendo, mastigando,

mascando, moendo e triturando, achei que era hora de levar minhas pernas para longe

dali, e lá me fui pela noite afora, através do vento e da neve.

• • •

Ficaram todos esperando o mago chegar. E enquanto esperavam, Uthecar se

encarregou de não deixar que a conversa se interrompesse nem um minuto.

Contou como Albanac o encontrara um dia e falara de um boato sobre alguma coisa

que tinha saído do chão perto de Fundindélfia e estava sendo caçada por Cadellin

Argentesta. Como já estava havia muito tempo sem fazer nada, o próprio Uthecar resolveu

fazer a viagem para o sul, saindo de Minith Bannawg, na esperança de que Cadellin

apreciasse seu auxílio. Não se decepcionou. O assunto era muito mais importante do que

ele imaginava...

Havia muito, muito tempo, um dos antigos malefícios do mundo tinha aterrorizado a

planície, mas tinha sido apanhado e aprisionado num poço, no sopé da Borda. Muitos

séculos mais tarde, por meio da estupidez dos homens, esse mal escapara e exigira muito

trabalho e sacrifício para ser recapturado. Pois agora Albanac vinha com a notícia de que o

homem novamente soltara esse mal.

— E ninguém faz idéia do lugar deste mundo duro e encolhido, onde se pode

encontrar de novo o Brollachan — disse Uthecar.

O Brollachan...

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— Acontece que o Brollachan — disse Uthecar — tem olhos e boca, mas não tem fala e,

infelizmente, não tem forma.

Não dava para entender. Mas a sombra que se ergueu na mente de Susan enquanto o

anão falava parecia escurecer toda a caverna.

Pouco depois, Cadellin chegou. Estava com os ombros curvados, e apoiava o peso no

cajado que tinha na mão. Quando viu as crianças, franziu a testa, acentuando as rugas em

volta dos olhos.

— Colin? Susan? Fico contente em ver vocês, mas por que estão aqui? Albanac, por

que passou por cima de mim e fez uma coisa dessas?

— Não foi bem isso o que aconteceu, Cadellin — disse Albanac. — Mas antes de mais

nada, como estão os lios-alfar!

— Os elfos de Dinsel e Talebolion vão demorar muito a sarar — disse Cadellin. — Os

que vieram de Sinadon são mais fortes, mas estão tomados pela doença -da-fumaça, e tenho

medo de que alguns estejam fora de meu alcance.

Voltou-se para os meninos e acrescentou:

— Mas agora me contem como vieram parar aqui.

— Fomos... detidos... por Atlendor, o elfo. E depois, Uthecar e Albanac apareceram —

respondeu Susan — e acabamos de saber o que está acontecendo com os elfos.

— Não julgue Atlendor mal, ele está sob pressão — disse Albanac. — Mas Susan nos

deu esperanças. Estou com a Marca de Fohla aqui.

Cadellin olhou para Susan.

— Fico... contente... — disse. — É muito generoso de sua parte, Susan. Mas será uma

decisão sábia? Vocês sabem que estou preocupadíssimo com a destruição dos elfos. Mas a

Morrigana...

— Já falamos nela — apressou-se a esclarecer Albanac. — O bracelete não vai ficar

muito tempo comigo, e não acho que a rainha das bruxas venha tão ao sul por enquanto.

Ela vai ter que estar muito mais forte antes de ousar aparecer tão aberta mente, e ainda não

se sente segura nem para sair de Minith

Bannawg, se é que a história de Uthecar Hornskin é verdadei ra. Por que estaria mudando

de forma para se disfarçar de pedra, se não estivesse com medo de ser perseguida?

— Tem razão — concordou Cadellin. — Talvez eu esteia exagerando nos meus

cuidados. Mas o fato é que não gosto nada de ver estas crianças trazidas ao limiar do

perigo dessa maneira. Não, Susan, não fique zangada comigo. Não é por causa de sua

idade que eu me preocupo, mas por causa de sua humanidade. É contra minha vontade

que vocês estão aqui agora.

— Mas por quê? — exclamou Susan.

— Por que acha que os homens só nos conhecem nas lendas? Nós não temos que evitá-

los para preservar nossa segurança, como no caso dos elfos. Mas pela de vocês mesmos.

Não foi sempre assim. Já houve um tempo em que todos vivemos próximos. Mas pouco

antes de que os elfos fossem expulsos, vocês mudaram. Acharam que o mundo era mais

fácil de dominar se só usassem as mãos. Assim, para vocês, as coisas passaram a valer

mais do que os pensamentos. E os homens ainda chamaram isso de Idade da Razão. Só

que, para nós, a verdade é justamente o contrário. Por isso, nos nossos assuntos, o ponto

mais fraco de vocês é exatamente onde deviam ser mais fortes. O perigo para vocês não

vem apenas do mal, mas de outras coisas com que lidamos. Podem não ser maléficas em si,

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mas são forças selvagens, descontroladas, que podem destruir quem não estiver

acostumado com elas.

Continuou explicando:

— Por todas essas razões, nós nos afastamos da humanidade. Ficamos sendo apenas

uma lembrança. Com o passar do tempo, viramos uma superstição, um monte de espíritos

e terrores em que se fala numa noite de inverno. E, ultimamente, estamos sendo motivo de

zombaria e descrença. Por tudo isso é que tenho de ser tão severo com vocês. Deu para

entender?

— Acho que sim — respondeu Susan. — Em linhas gerais, pelo menos.

— Mas se vocês cortaram qualquer contato conosco, por completo, há tanto tempo,

como é que falam do mesmo jeito que a gente? — quis saber Colin.

— Mas não falamos — disse o mago. — Só estamos usando a Língua Comum agora,

porque vocês estão aqui. Entre nós há muitas outras línguas. E não repararam que, para

alguns de nós, a Língua é mais difícil e mais estranha do que para outros? Os elfos são os

que mais têm evitado os homens, quase completamente. Falam a Língua de um modo mais

parecido com o que ouviram pela última vez, antigamente, e mesmo assim não falam bem.

O resto de nós — eu, os anões, e alguns outros — a temos ouvido pelos anos afora, e a

conhecemos mais do que os elfos, muito embora não consigamos dominar a rapidez com

que vocês falam agora nem seu jeito abreviado. Albanac é quem mais encontra os homens,

e até ele de vez em quando fica completamente perdido, mas como acham que é maluco,

não faz diferença.

Colin e Susan não demoraram muito na caverna. A atmosfera daquela noite não os

deixava muito à vontade, e era evidente que Cadellin tinha muitas outras coisas na cabeça,

além do que tinha dito. Pouco depois das sete, subiram pelo túnel mais curto, que levava

da caverna ao Poço Sagrado. O mago tocou a rocha com seu cajado e o penhasco se abriu.

Uthecar acompanhou os meninos por todo o caminho, até a fazenda, só os deixando

quando chegaram ao portão. Colin e Susan perceberam que os olhos dele não paravam,

vasculhando a escuridão, de um lado para outro, para lá e para cá.

— O que é? — perguntou Susan. — O que está procurando?

— Uma coisa que espero não encontrar — disse Uthecar.

— Vocês devem ter notado que o bosque não estava vazio esta noite. Estávamos perto

do Brollachan, e tomara que agora já esteja bem longe daqui.

— Mas como é que você podia vê-lo, ou ver qualquer outra coisa? — perguntou Colin.

— Está escuro feito breu.

— Vocês devem saber que os olhos de um anão nasceram para enxergar no escuro —

disse Uthecar. — Mas até vocês veriam o Brollachan se ele aparecesse, mesmo que a noite

estivesse mais negra do que a goela de um lobo. É que, por mais negra que esteja a noite,

Brollachan ainda é mais negro.

Com isso, a conversa parou pelo resto da jornada. Mas quando chegaram a Highmost

Redmanhey, Susan perguntou:

— Uthecar, desculpe, mas qual é o problema com os elfos? Não quero parecer mal-

educada, mas... bem, sempre achei que eram... bem, os "melhores" do povo de vocês.

— Ah! — exclamou Uthecar. — Na certa iam concordar com você! E pouca gente

discordaria deles. Devem julgar por vocês mesmos. Mas uma coisa eu posso dizer so bre os

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lios-alfar: são impiedosos, sem nenhuma gentileza, e existem mui tas coisas

incompreensíveis neles.

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• 5 •

"Para uma mulher que estava com estupor"

pouco menos de um quilômetro de Highmost Redmanhey, depois da lombada da

colina Clinton, há uma antiga pedreira escavada no chão, que ficou sem uso e foi

inundada. Quando as margens não são penhascos, são barrancos abruptos,

cobertos de árvores. Uma bomba de ar, quebrada, range de vez em quando. Um caminho

esquecido se perde pelo meio dos espinhos sem levar a lugar nenhum. À luz do sol, é um

local desolado, tão desolado quanto apenas uma maquinaria abandonada consegue ser.

Mas quando o sol vai baixando, o ar fica carregado com uma atmosfera diferente. A água

escurece, sombria, no fundo das encostas dos penhascos e as árvores se amontoam,

inclinadas, para beber água. A bomba geme. Um lugar solitário, esverdeado, escuro.

Mas tranqüilo, pensava Susan. E isso não é pouco. Não houvera muita paz na fazenda

desde que os dois tinham voltado. Já tinham passado dois dias, cheios da conversa de

Colin e dos silêncios pesados do casal Mossock. É que Bess e Gowther sabiam do

envolvimento das crianças com a Magia, ocorrido no passado, e ficavam tão preocupados

com essa mistura de mundos quanto Cadellin.

O tempo também não ajudava. O ar estava parado, úmido, quente e pesado demais

para o começo do inverno.

Susan sentia que precisava dar uma volta e relaxar um pouco. Por isso, nessa tarde,

saíra sozinha, sem Colin, e fora até a velha pedreira. Sentou-se na beirada de uma laje que

se projetava sobre a água e se distraiu, vendo as sombras cinzentas dos peixes. Por muito

tempo, ficou ali sentada, desligando-se pouco a pouco das tensões dos últimos dias. De

repente, um barulho fez com que levantasse a cabeça.

— Oi, quem é você?

Um pequeno pônei preto estava parado na margem da agua, do outro lado da

pedreira.

— O que é que você está fazendo aqui? O pônei sacudiu a crina e

relinchou.

— Vem cá! Vem, rapaz!

O pônei olhou fixo para Susan, sacudiu a cauda, depois se virou e desapareceu pelas

árvores.

— Bem, deixa pra lá... Que horas serão?

Susan subiu o barranco e se afastou da pedreira, entrando no campo. Rodeou o

bosque pelo outro lado, e assobiou, mas não aconteceu nada:

— Oi, vem cá! Aqui, garoto, vem! Bom, se não quiser vir, eu já... epa!

O pônei estava bem ao seu lado.

A

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— Você me assustou. Onde é que tinha se metido?

Enquanto falava com o animal, a menina acariciava as orelhas dele. Parecia que o

pônei estava gostando, porque encostou a cabeça no ombro dela e fechou os olhos de

veludo negro.

— Calma, assim você me derruba...

Durante alguns minutos, ficou fazendo carinho no pescoço dele. Depois, relutante, o

empurrou.

— Agora tenho de ir embora. Mas amanhã volto para te ver de novo.

O pônei saiu trotando atrás dela.

— Não, volte. Você não pode vir comigo.

Mas o pônei foi atrás de Susan por todo o campo, empurrando-a de leve com o

focinho e soprando junto à sua orelha. E quando ela ia subir na cerca que separava aquele

campo do seguinte, ele se meteu entre ela e a cerca, empurrando-a de lado com sua barriga

brilhante.

— O que é que você quer? Um empurrão.

— Não tenho nada para lhe dar. Outro empurrão.

— O que é?

Mais um empurrão.

— Ah, já sei! Está querendo que eu monte, é? É isso, não é? Entendi. Então fique

parado. Assim, como um bom menino. Pronto. Agora... epa! Fique quieto! Calma!

No momento em que Susan acabou de montar, o pônei se virou e saiu no maior galope

em direção à pedreira. Susan agarrou a crina com as duas mãos, gritando:

— Não! Pare!

Galopavam a toda velocidade em direção à cerca de arame farpado que havia no alto

do penhasco, em cima da parte mais funda da pedreira.

— Pare! Pare!

O pônei virou a cabeça para trás e olhou para ela. Seus beiços espumavam, curvados

num sorriso maléfico. O veludo de seus olhos desaparecera: no fundo de cada pupila havia

uma chama vermelha.

— NÃO! — gritou Susan.

Iam cada vez mais rápido. A beirada do penhasco se destacava, numa linha nítida

contra o céu. Susan tentou pular do pônei e se jogar no chão, mas seus dedos pareciam

presos na crina, suas pernas estavam coladas nas costelas no animal.

— NÃO! NÃO! NÃO! NÃO!

O pônei saltou sobre a cerca e mergulhou. "Splash!" O barulho ecoou entre os

paredões de pedra, algumas ondas bateram no rochedo, houve algumas bolhas. Logo, a

pedreira ficou silenciosa debaixo do céu carregado.

• • •

— Não vou esperar mais — disse Bess. — Susan que esquente a janta sozinha quando

chegar.

— Então vamos comer logo — concordou Gowther. — Ainda tem uma ou duas coisas

que preciso fazer antes da chuva, que pelo visto não demora. Do jeito que está abafado,

acho que vai cair um toró.

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— Tomara mesmo — disse Bess. — Não estou nem conseguindo respirar. Susan disse

se ia chegar tarde?

— Não — respondeu Colin. — Mas você sabe como ela é. E nem ao menos levou um

relógio.

Sentaram-se à mesa, e comeram em silêncio. Os únicos sons eram os da respiração de

Bess e Gowther, do tique-taque do relógio, do zumbido idiota de duas moscas zonzas que

ficavam girando sem parar em volta da lâmpada. O céu parecia que estava se abaixando

em cima da casa, apertando as pessoas lá dentro como se fossem maçãs numa prensa.

— Vai ser um aguaceiro, a qualquer momento — disse Gowther. — E é bom Susan

andar ligeiro, se não quiser ficar ensopada. Já devia ter chegado. Onde é que ela foi, Colin?

Epa! O que deu nele?

Scamp, o cachorro dos Mossock, tinha começado a latir, agitado, bem ali perto.

Gowther pôs a cabeça para fora da janela:

— Ei, chega! Sossega aí! Depois voltou para a mesa:

— O que é mesmo que eu estava dizendo? Ah, sim, Susan... Você sabe aonde ela foi?

— Disse que ia até a pedreira descansar um pouco, que lá é bem tranqüilo. Disse que

eu estava dando nos nervos dela.

— O quê? Foi à pedreira Hayman? Você devia ter nos dito isso antes, Colin. Aquele

lugar é muito perigoso. Ai, que cachorro irritante! Ei, Scamp! Chega! Não me ouviu falar?

— Minha nossa! — exclamou Bess. — O que aconteceu com você? Por onde andou?

Susan estava parada na porta, pálida e com um ar aparvalhado. O cabelo dela estava

grosso de tanta lama, e uma poça d'água se formava a seus pés, de tanto que escorria.

— A pedreira! — gritou Gowther. — Ela deve ter caído lá dentro! O que deu em você,

Susan, para fazer uma coisa dessas?

— Primeiro, um bom banho e uma cama quente — disse Bess. — Depois a gente

conversa. Coitadinha!

Segurou no braço de Susan e a levou para dentro.

— Só Deus sabe o que aconteceu — contou Bess ao voltar, meia hora depois. — Estava

com o cabelo cheio de areia e de mato. Mas não consegui arrancar nem uma palavra dela.

Paroce que está apatetada, sei lá. Na certa precisa dormir. Pus umas bolsas de água quente

na cama, e ela estava com jeito de quem ia apagar em um minuto.

A tempestade sacudia a casa, enchia os quartos de correntes de ar, fazia as lâmpadas

darem estalos. Tinha começado logo ao anoitecer, trazendo um alívio da tensão. A casa

agora era um refúgio, não uma prisão. Colin, depois de ter diminuído a ansiedade mais

imediata relacionada a Susan, instalou-se com seu livro favorito para ler até a hora de

dormir.

Era um livro-caixa antigo e meio mofado, com uma capa de couro castanho. Uns cem

anos antes, um dos párocos de Alderley tinha copiado nele uma série variada de

documentos ligados à vida da paróquia. O livro estava na família de Gowther havia tanto

tempo que ele nem sabia mais quanto, e, embora nunca tivesse tido paciência para tentar

decifrar os garranchos daquelas páginas, guardava o livro como um tesouro, um vínculo

que o ligava a um tempo passado. Mas Colin era fascinado pelas historinhas que o livro

contava, pelos detalhes dos litígios nos tribunais, os casos acontecidos na paróquia, os

relatos das grandes mansões, e as histórias de família que o enchiam. Sempre havia

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alguma coisa absurda e engraçada para se achar, para quem tinha o senso de humor de

Colin.

A página que ele estava olhando agora começava assim:

EXTRATO DAS CONTAS DO GUARDIÃO DA IGREJA, 1617

Prestação de contas exata e perfeita de todas as Somas de Dinheiro que eu, John Henshaw de Butts, Guardião

da Igreja de Neither Alderley e da paróquia de Alderley, recebi e da mesma forma desembolsei, desde que pela

primeira vez fui investido neste

Cargo até o atual dia em que escrevo, aos 28 de maio, do Ano do Senhor de 1618.

£ s. d.

Pagamento da cerveja para 0 3 2

os sineiros e para nós mesmos

Quantia para John Wych, sua conta 0 2 0

por uma nova lâmina de machado

Quantia para um homem que teve 0 0 2

a língua cortada pelos turcos

Quantia para Philip lá, metade de 0 1 6

sua conta pela caminhada

Quantia para um pretenso 0 1 3

cavalheiro irlandês

Quantia gasta em linhas para fazer redes 0 1 8

Quantia para uma mulher que 0 0 6

estava com estupor

Quantia gasta quando eu fui à cidade 0 0 4

para avisar às pessoas que tinham que

trazer o lixo que tinham esquecido de

trazer no dia de enterrar o lixo

Quantia dada a um Major que 0 1 0

tinha sido levado pelos franceses

e foi roubado por eles

Quantia paga ao Sr. Hollinshead 0 0 8

pelo mandato para punir as

imoralidades dos meninos

Mas o registro seguinte acabou com a gargalhada e a cara de riso de Colin. Ele leu e releu.

Depois chamou: — Gowther!

— Que é?

— Ouça isto aqui. Faz parte das contas do tesoureiro da igreja em 1617: "Quantia paga

nos Confins das Ruas quando o Sr. Hollinshead e o Sr. Wright estiveram em Paynes para

confinar o diabo que foi encontrado na Cervejaria quando estavam colocando o novo can o

e ele quebrou no Buraco".

Levantando os olhos do livro, Colin perguntou:

— Você acha que é aquele buraco lá no Trafford? Gowther franziu a testa.

— Eu acho que sim, com essa conversa de cano, e tudo o mais. Aquela região de

Alderley antigamente se chamava Confins das Ruas, e eu ouvi dizer que havia um bar por

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lá, antes que construíssem o Trafford. Isso é de 1617, não é? Então não pode fazer parte

das minas. Elas só começaram há uns duzentos anos, quando abriram a Mina do Oeste.

Quer dizer, então parece mesmo que foi o poço desse bar antigo, hein?

— Mas não pode ser — disse Colin. — Estão chamando de Buraco e, pelo jeito, não

sabiam que estava lá. Então, o que pode ser?

— Sei lá, não me pergunte... — disse Gowther. — E quem são esses tais de Hollinshead

e Wright?

— Toda hora se fala neles no livro — disse Colin. — Acho que eram os padres em

Alderley e Wilmslow. Mas eu gostaria de saber mais coisas sobre esse "diabo".

— Se fosse você, não dava muita importância a isso — disse Gowther. — Eram

supersticiosos pra burro naquele tempo. Pra falar a verdade, ainda ontem eu estava

conversando com Jack Wrigley — o sujeito que bateu com a picareta na fenda — e ele disse

que, quando estava olhando para ver o que era, ouviu um barulho meio de bolhas, que o

deixou com a pulga atrás da orelha, mas acabou achando que tinha alguma coisa a ver com

a pressão do ar. Pode ser que seja isso o que o velho padre achou ser o Capeta.

— Não estou gostando nada disso — comentou Bess, acabando de descer a escada. —

Susan não falou nada até agora, e está gelada que nem um sapo. E não consigo entender de

onde é que vem tanta areia. Mesmo depois do banho tomado, o cabe lo dela ainda está todo

areiento. E continua encharcada, de torcer, nem parece que se enxugou toda. Mas pode ser

que seja porque está suando, com aquelas duas bolsas de água quente. Só que tenho

certeza de que tem alguma coisa muito errada. Está lá deitada, com os olhos esbugalhados,

dum jeito muito esquisito, olhando o vazio.

— Acha que é bom eu ir chamar o médico? — perguntou Gowther.

— O quê? Numa chuvarada destas? E já são quase dez horas... Não, deixe, ela não está

assim tão mal. Mas, se de manhã não tiver melhorado, a gente chama.

— Será que ela não levou uma pancada na cabeça? Ou coisa parecida... — insistiu

Gowther.

— Acho que parece mais que teve um choque — disse Bess — porque não tem

nenhuma marca de pancada, nem machucado, nada inchado. E, de qualquer modo, está no

melhor lugar para ela. O médico não ia gostar nem um pouco de você trazê-lo até aqui

numa noite destas. Vamos ver como é que ela fica depois de um bom descanso e uma boa

noite de sono.

Como muitas mulheres do campo de sua geração, Bess não se livrava de um

inexplicável medo de médico.

• • •

Colin nunca soube o que o despertou. Ficou deitado de costas, contemplando o luar.

Tinha acordado de repente e completamente, sem nenhuma sonolência ou preguiça. Seus

sentidos estavam bem aguçados, atentos a todos os detalhes do quarto, como se as zonas

de luz e escuridão gritassem com ele.

Levantou-se da cama e foi até a janela. Era uma noite clara, com ar fresco e límpido

depois da tempestade. O luar lançava suas sombras em vários pontos da fazenda. Junto à

porta do celeiro, Scamp estava deitado, com a cabeça entre as patas. E, de repente, Colin

percebeu que alguma coisa se movia. Só viu rapidamente, com o canto do olho, e num

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instante já tinha desaparecido. Mas não havia a menor dúvida: uma sombra ti nha

deslizado entre a casa e o portão que levava aos Riddings, os campos que cobriam a colina

íngreme atrás do quintal.

— Ei! Scamp! — sussurrou Colin, mas o cachorro nem se mexeu. — Scamp! Acorde!

O animal se espreguiçou devagar e deu um latido abafado.

— Pega! Vamos!

Scamp se espreguiçou de novo, depois saiu rastejando, com a barriga quase

encostando no chão, e foi para dentro do celeiro.

— Que é isso? Ei!

Mas Scamp não voltava.

Colin então resolveu vestir a camisa e as calças bem depressa, por cima mesmo do

pijama, e calçou os sapatos rapidamente, antes de ir acordar Gowther. Mas, quando passou

em frente ao quarto de Susan, parou. E nem mesmo sabendo por que, abriu a porta. A

cama estava vazia. A janela, aberta.

O menino desceu a escada na ponta dos pés e foi até a porta. Ainda estava trancada

por dentro. Será que Susan tinha pulado de uma altura de três metros, em cima de um

chão de cascalho? Abriu as trancas, deu um passo para fora e, enquanto olhava em volta,

viu uma silhueta magra passando, recortada contra o céu, nos Riddings.

Subiu o morro correndo, o mais rápido que podia. Mas levou algum tempo até

descobrir o vulto outra vez, agora subindo a colina Clinton, a uns quatrocentos metros

dali.

Colin correu mais ainda. E, quando chegou ao lado do morro, já tinha conseguido

reduzir à metade a vantagem que Susan levava. Porque era Susan, sem dúvida alguma.

Estava de pijama e parecia deslizar sobre o solo, dando a estranha impressão de que

corria, embora seus movimentos fossem de quem caminhava. Bem à frente dela, viam -se as

massas escuras das copas das árvores da pedreira.

— Sue! — gritou ele. Mas pensou: "Não, não posso fazer isso, é muito perigoso. Está

sonâmbula, não pode ser acordada de repente. Mas está indo para a pedreira..."

Colin nunca tinha corrido tanto. Quando desceu do morro, o terreno acidentado

escondeu Susan, mas ele sabia qual era a direção geral. Chegou até a cerca que ficava na

beirada do penhasco mais alto e parou para olhar em torno, enquanto re cuperava o fôlego.

A lua mostrava toda a encosta do morro e grande parte da pedreira. A bomba de ar

brilhava, e as pás do cata-vento giravam. Mas não se via Susan em lugar nenhum. Colin se

encostou num dos esteios da cerca. Devia estar dando para ver a menina. Não era possível

que a tivesse ultrapassado, ela já devia ter chegado. Procurou com os olhos por toda a

pedreira. Olhou bem para o espelho liso e preto da água. Estava assustado. Onde é que ela

podia estar?

E, então, ele deu um grito que botou para fora todo o medo que estava sentindo,

quando uma coisa pegajosa passou por cima de seu sapato e agarrou seu tornozelo. Teve

um sobressalto, deu um passo atrás e olhou para baixo. Era uma mão. Uma faixa estreita

de terra, de poucos centímetros de largura, se estendia do outro lado da cerca, poucos

palmos abaixo da superfície da pedra. Depois, era uma queda abrupta até a água escura. A

mão agora agarrava a beirada do rochedo.

— Sue!

Page 32: A LUA DE GOMRATH

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O menino se esticou por cima do arame farpado. Ela estava bem abaixo dele,

equilibrada na faixa de terra, encostada no penhasco, e com o rosto pálido virado para

cima, em sua direção.

— Agüente aí, segure firme!

Colin deitou no chão, passou o braço em volta do esteio da cerca, segurando com

firmeza. Deslizou o outro braço por baixo do arame e agarrou a mão. Mas levou um susto:

o aspecto era de mão, mas a sensação era de casco.

O arame rasgou a manga do menino, no momento em que ele gritou e retirou o braço.

Em seguida, quando o rosto de Susan apareceu, subindo pela beirada do penhasco, a um

palmo do seu, e ele viu a luz estranha que brilhava nos olhos dela, Colin perdeu a razão,

esqueceu qualquer pensamento. Saiu disparado, para longe dali, tropeçando, correndo,

voando. Só olhou para trás uma vez, e teve a impressão de que uma sombra sem forma se

erguia da pedreira em direção ao céu. Atrás dele, as estrelas se apagaram, mas em lugar

delas apareceram duas vermelhas, bem juntas, como brasas, que não cintilavam.

Colin foi correndo pelo morro abaixo, saltando cercas, jogando-se pelo meio de

moitas, mergulhando pelos Riddings até chegar em casa. Enquanto tentava abrir a porta, a

lua se escondeu e a escuridão se esgueirou por cima das paredes brancas. Coli n se virou:

— Esenaroth! Esenaroth! — gritou.

Nem sabia de onde veio essa palavra, arrancada de seus lábios independentemente de

sua vontade. Ouviu-as a distância, como se tivessem saído de outra boca. Queimavam

como uma fogueira de prata dentro de seu cérebro, lugar de asilo no meio do negrume que

enchia o mundo.

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• 6 •

Mal Antigo

cho que a gente vai ter mesmo de chamar o médico — disse Bess. — Ela está

encharcada outra vez — não pode fazer bem pra saúde. E essa maldita areia! O

cabelo dela ainda está cheio...

— Isso mesmo — concordou Gowther. — Vou botar os arreios no Príncipe, e vou logo

chamá-lo.

Colin tomava o café da manhã automaticamente. As vozes de Bess e Gowther

passavam por ele. Tinha que fazer alguma coisa, mas não sabia o quê.

Tinha sido acordado com as lambidas da língua quente de Scamp em seu rosto.

Deviam ser umas seis da manhã. Estava todo encolhido na soleira da porta, duro de frio.

Ouviu Gowther descendo para a cozinha. Ficou pensando: será que devia contar a ele o

que tinha acontecido? Mas não sabia, nada estava claro em sua cabeça. Precisava algum

tempo para pensar. Escondeu o pijama e foi acender os lampiões para ordenhar as vacas.

Depois do café, Colin ainda não tinha chegado a nenhuma conclusão. Subiu para o

quarto e mudou de roupa. A porta do quarto de Susan estava escancarada. O menino se

obrigou a entrar. Lá estava ela, deitada na cama, com os olhos entreaber tos. Quando viu

Colin, deu um sorriso.

Ele desceu até a cozinha, e a encontrou vazia. Bess dava comida às galinhas, enquanto

Gowther cuidava de Príncipe. Colin estava sozinho dentro de casa com... o quê? Precisava

de ajuda e Fundindélfia era sua única esperança. Saiu para o quintal, assusta do,

desesperado, e quase soluçou de alívio, pois Albanac se aproximava, descendo pelos

Riddings, com o sol batendo em suas fivelas de prata e na espada, a capa inflada às suas

costas pelo vento.

Colin correu em direção a ele e o encontrou no sopé da colina.

— Albanac! Albanac!

— O que aconteceu? Colin! Você está bem?

— É Sue!

— O quê?

Albanac segurou Colin pelos ombros e olhou firme dentro de seus olhos.

— Onde está ela?

— Não sei... quer dizer... está na cama... não... ai, você precisa ouvir...

— Estou ouvindo, mas não entendo. Conte-me o que está errado.

— Desculpe — disse Colin.

A

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Fez uma pausa e começou. Enquanto falava, o rosto de Albanac foi ficando tenso e

cheio de rugas, seus olhos pareciam dois diamantes azuis. Quando Colin começou a

descrever como seguira Susan até a pedreira, Albanac o interrompeu.

— Dá para nos verem da janela dela?

— Não... quer dizer... talvez. É aquela última janela da frente.

— Então é melhor sair daqui.

Deram a volta até chegar a um lugar onde não podiam mais ser vistos de janela

nenhuma.

— Continue.

Quando a história acabou, Albanac deu uma risada amarga:

— Então era isso... tão pertinho, afinal de contas. Mas venha, temos de agir antes que a

oportunidade passe.

— Por quê? O quê...?

— Escute: dá para entrar na casa sem sermos vistos da panela?

— D-d-á...

— Ótimo. Acho que não tenho poder suficiente para fazer o que tem de ser feito, mas

temos de pensar em Susan, antes de mais nada. Agora, muita atenção: não podemos falar

quando nos aproximarmos da casa. Leve-me até o quarto. Não vou fazer nenhum barulho,

mas você deve andar naturalmente, como se não estivesse acontecendo nada. Vá até a

janela e abra. Então, vamos ver.

• • •

Colin pousou a mão na maçaneta e olhou por cima do ombro. Albanac estava parado

no alto da escada e fez um sinal com a cabeça. Colin abr iu a porta.

Susan continuava deitada, com o olhar fixo. Colin foi até a janela e a abriu. Ouvindo o

barulho, Albanac entrou no quarto: na mão, segurava a Marca de Fohla, aberta. Susan

grunhiu, esbugalhou os olhos e jogou os cobertores longe, mas Albanac se lançou através

do quarto por cima da cama, atingindo o queixo de Susan com o ombro e prendendo o

braço dela debaixo do corpo dele, enquanto fechava o bracelete em torno do pulso da

menina. Depois, com a mesma rapidez, saltou de volta para a porta e puxou a espada.

— Colin! Rápido! Saia!

— O que foi que você fez? — perguntou o menino. — O que está acontecendo?

A mão de Albanac segurou seu ombro e o empurrou para fora do quarto. Em seguida,

também pulou para fora e fechou a porta, batendo-a.

— Alban...

— Quieto! — ordenou Albanac, numa voz duríssima. — Quando ela ficar livre, temos

que ter o maior cuidado. Só espero é que o bracelete cause tanta dor que a fuga seja mais

importante que a vingança.

Ficaram imóveis, rígidos. O único barulho que se ouvia era a cama de Susan ranger.

Depois parou. Silêncio.

— Albanac! Olhe!

Um rolo negro de fumaça escorria por baixo da porta. Foi rolando para a frente, por

cima do assoalho, e depois se recolheu, numa pirâmide instável, que foi começando a

crescer.

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— Se quiser ficar vivo — sussurrou Albanac —, não desgrude de mim.

A pirâmide já estava com um metro de altura. Perto do vértice, brilhavam dois olhos

vermelhos. Perto da base, ficava algo que podia ser uma boca sombria, ou um bico raso.

Depois a coisa começou a crescer. Crescia em muitas direções, como um balão, e crescia em

espasmos, com intervalos de descanso.

Albanac ergueu a espada e falou numa voz firme e clara:

— Poder do vento tenho eu sobre vós. Poder da ira tenho eu sobre vós. Poder do fogo

tenho eu sobre vós. Poder do trovão tenho eu sobre vós. Poder do raio tenho eu sobre vós.

A essa altura, a pirâmide enchia a casa toda. Não era mais uma pirâmide, era tudo —

uma escuridão universal na qual havia dois discos chatos da cor de sangue, e uma fita de

fogo azul que era a espada de Albanac.

— Poder das tempestades tenho eu sobre vós. Poder da lua tenho eu sobre vós. Poder

do sol tenho eu sobre vós. Poder das estrelas tenho eu sobre vós.

Os olhos vazios cresciam e se aproximavam, agora grandes, do tamanho de pratos , e a

escuridão começou a pulsar. Colin agarrou a capa de Albanac como se fosse um homem se

afogando, pois a pulsação seguia o ritmo das batidas de seu coração, e não dava para saber

onde ele acabava e a escuridão começava.

— Poder... dos céus... e dos mundos... tenho... eu... sobre... vós... Poder... poder... não

está dando para segurar, não agüento mais!

Albanac ergueu a espada sobre a cabeça com as duas mãos, e em seguida golpeou a

escuridão no meio dos olhos.

— Eson! Eson! Emaris!

Houve um clarão de luz, e um barulho de algo se rasgando. A casa tremeu, a porta se

abriu para dentro, um vento forte sacudiu o quarto e tudo ficou quieto. Albanac e Colin,

devagar, levantaram as cabeças do chão e se ergueram. Cada um encos tou num lado do

batente da porta.

O quarto estava revirado, os móveis todos espalhados, a esquadria da janela se soltara

da parede. A espada de Albanac estava em pedaços. Só Susan estava tranqüila: deitada,

serena, respirando pausadamente, num sono profundo. Colin foi até a cama e olhou par a

ela.

— Sue... É mesmo Sue, agora?

Albanac fez um gesto com a cabeça, confirmando.

Ouviram-se vozes lá fora, no quintal, e passos pesados subindo a escada. Num

instante, Gowther estava parado na porta do quarto.

— O quê...?

Bess logo apareceu atrás dele.

— Quem...? Minha nossa! Ai! Meu Deus! Ai!

— Chega de barulho, mulher — disse Gowther. Vendo Albanac, perguntou:

— Agora, senhor, o que significa isso?

— Isso, fazendeiro Mossock, era o Brollachan.

— O quê?

— Isso mesmo, e temos muita coisa para fazer, e depressa. Embora eu duvide muito

de que a gente consiga seguir o rastro... Tenho de ir até Fundindélfia, mas volto. Deixem

Susan dormir, e cuidado para que o bracelete fique sempre no pulso dela, deixando -a

segura.

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— Eu estava indo chamar o médico — explicou Gowther.

— Não! Nada disso — disse Albanac. — Deixe que Cadellin a veja primeiro.

— Mas...

— Confie em mim! Pode não ser bom para ela. Este assunto não é para os homens.

— Não? Você pode ter razão. Ela está com um aspecto melhor, isso é verdade. Tudo

bem, vamos esperar um pouco. Mas é bom você se apressar.

— Obrigado, fazendeiro Mossock.

Albanac saiu correndo, e todos ficaram olhando enquanto ele se afastava,

atravessando os Riddings. E ninguém disse uma palavra.

• • •

Mas muitas palavras foram ditas mais tarde. Bess e Gowther ouviram a história de

Colin, e acreditaram nela. Tinham de acreditar. O quarto destruído era uma prova

evidente.

Tinham passado várias horas consertando o que podiam, e remendando o resto.

Durante todo esse tempo, Susan dormia sem parar. Para Bess, era esse o único consolo do

dia. Era um sono tranqüilo, de quem descansa, e não aquele estado anterior, morto,

retirado, próximo a um coma, que tinha perturbado Bess muito mais do que pudesse

admitir. Susan ainda eslava pálida, mas agora era uma palidez sadia, comparada com a de

antes.

• • •

A batida na porta foi tão de leve que, se não estivessem todos em silêncio, sentados à

mesa diante de um lanche tardio, não teriam ouvido.

— Não acham que alguém bateu? — perguntou Gowther.

— Acho que sim — disse Bess. — Mas não tenho certeza.

— Quem é? — perguntou Gowther.

— Albanac.

— Ah! — exclamou ele, indo até a porta. — Entrem... Albanac entrou na cozinha,

seguido por Uthecar e Cadellin.

O mago se encolheu debaixo das vigas de madeira. Quando se levantou, a cabeça estava

tão no alto que nem dava para ver.

— Não querem sentar? — convidou Gowther.

— Obrigado — disse Cadellin. — Como vai Susan?

— Ainda está dormindo. Não tentamos acordá-la, já que Albanac tinha dito que era

melhor deixar que descansasse. Mas está com um aspecto muito melhor... senão, já

tínhamos chamado o médico para dar uma olhada nela, isso eu garanto.

— Ainda está dormindo? — repetiu Cadellin.

— Vocês não tiraram o bracelete do pulso dela, tiraram? — perguntou Albanac,

preocupado.

— Não.

— Eu gostaria de vê-la, por favor — disse Cadellin.

— O que está acontecendo? — perguntou Colin. — Por que é que vocês estão com

essas caras tão tristes?

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— Espero que não esteja acontecendo nada — disse o mago. — Albanac chegou a

tempo, e isso foi ótimo. O Brollachan não costuma deixar um corpo espontaneamente, a

não ser que já esteja além de qualquer esperança. Susan conseguiu escapar — e eu espero

que sem maiores conseqüências —, mas seria bom se pudéssemos ir vê-la.

— Escutem aqui — disse Bess, que estava sentada com ar preocupado desde que vira

o mago —, eu não vou fingir que estou entendendo nada disso, mas se Susan precisa de

cuidados, quem tem de tratar dela é o médico. Estou dizendo isso o tempo todo.

— É isso mesmo — concordou Gowther. — Você pode ir dar uma olhada nela, se

quiser, mas é só. Depois do que essa menina andou passando, quanto menos confusão,

melhor. Amanhã a gente vai chamar o médico, para examiná-la com cuidado, e pronto.

— Hummmm... — foi o único comentário de Cadellin. Subiram. Susan ainda dormia.

Cadellin olhou-a.

— Pode acordá-la, fazendeiro Mossock. A menina não tem nenhum machucado no

corpo, e já descansou bastante.

Bess se curvou sobre a cama e sacudiu Susan com carinho:

— Vamos, querida, acorde... Você já dormiu bastante, meu amor.

Susan não se moveu. Bess a sacudiu com mais força:

— Ande, menina, acorde!

Mas Susan não dava o menor sinal de pretender acordar, por mais que Bess tentasse.

— Senhora Mossock... — disse Cadellin, suavemente. — Posso tentar?

Bess recuou um pouco e o mago segurou o pulso da menina, procurando os

batimentos. Depois, levantou a pálpebra de Susan e examinou. Em seguida, apoiou a mão

esquerda na testa dela e fechou os olhos. Passou-se um minuto, e depois mais outro.

— Ela está bem? — perguntou Colin.

O mago não respondeu. Aliás, mal parecia respirar.

— Cadellin! — insistiu Colin.

— Ei! O que está acontecendo? — perguntou Gowther, fazendo um gesto para agarrar

o braço de Cadellin.

Mas Albanac se meteu na frente e não deixou.

— Por favor, fazendeiro Mossock, é melhor não interferir. Quando acabava de dizer

essas palavras, Cadellin abriu os olhos e disse:

— Ela não está aqui. Está perdida para nós.

— O quê? — exclamou Colin. — O que quer dizer isso? Ela não morreu, não pode ter

morrido! Vejam! Está respirando... Só está dormindo...

— Apenas o corpo dela está dormindo — disse Cadellin. — Vamos deixá-la em paz.

Há uma coisa que vocês precisam saber.

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• 7 •

Antiga Magia

rollachan não tem forma — disse Albanac. — Precisa então tomar a forma dos

outros. Mas nenhuma estrutura mortal consegue agüentá-lo Por muito tempo, é um

morador selvagem demais. Em pouco tempo, o corpo vai mudando, se estica, se

enche de caroços, torna-se uma forma errada. Depois se encolhe, se esfarela, vai virando pó,

e o Brollachan o abandona, como a serpente larga para trás sua pele, e vai em busca de

outro corpo. Chegamos a tempo no caso de Susan. Senão, ela teria murchado como uma

açucena debaixo da geada. Ela agora está segura — só temos é que encontrá-la.

— Tem certeza de que é Sue quem está lá em cima? — perguntou Colin. — Ontem à

noite, quando toquei a mão dela, bem... estava diferente... não parecia nada com uma mão.

— Não se preocupe — disse Cadellin. — Na certa foi a lembrança de uma forma

anterior, essas coisas acontecem com o Brollachan, fica uma espécie de assombração

pairando, a memória dele demora a assumir a mudança. Você nunca ouviu falar em gente

que perde um membro e tem a sensação de sentir dor ou coceira num pé ou mão que não

está mais lá?

— Mas aonde é que isso tudo vai nos levar? — perguntou Gowther. Susan está lá em

cima deitada, e ninguém consegue que ela acorde. A gente tem de fazer alguma coisa.

O mago suspirou:

— Eu não sei qual é a resposta, fazendeiro Mossock. O Brollachan levou a menina

embora do corpo dela, e não consigo ver onde ela está agora. Está além da minha mágica.

Vamos chamar outros poderes para encontrá-la, e, até que isso aconteça, ela tem que ficar

aqui deitada, e o bracelete de Angharad Mão-de-Ouro não deve nunca sair de seu pulso.

— Quem me dera que nunca tivesse saído... — suspirou Albanac. — Eu trouxe de

volta no instante em que Atlendor me devolveu, mas já era tarde.

— Só tem uma coisa — disse Gowther — que eu ainda quero saber: quanto tempo vai

durar essa história?

— Não é um negócio rápido — disse o mago. — Semanas... meses... tomara que não

sejam anos... Ela está muito longe.

— Então vou chamar o médico, agora mesmo — disse Gowther. — Chega dessa

história toda.

— Fazendeiro Mossock, isso é a mesma coisa que jogar água no óleo fervente! —

exclamou o mago. — Será que você ainda não entendeu? Isso não é assunto para os

B

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mortais. Sabe o que aconteceria? Ela nos escaparia. E nossa tarefa ia ficar cinco vezes mais

difícil.

— É, mas o lugar dela é no hospital, se vai ficar desse jeito. Para começar, vai precisar

de alimentação especial.

— Não, nós cuidamos dela, pode deixar. Conosco, ela está segura. Fazendeiro

Mossock, a pior coisa que podem fazer é isso que você está ameaçando. O perigo aumenta

muito, para Susan e para nós, se não nos deixar tratar disso à nossa maneira. Gowther

olhou para o mago, com ar preocupado.

— Não gosto nada disso, mas já o conheço bastante para saber que dessas coisas você

entende. Então, vamos fazer um trato. No meio-termo. A não ser que Susan piore, não faço

nada nos próximos três dias.

— Três dias! — disse Cadellin. — Não se pode fazer muita coisa em três dias.

— Não sei, não entendo disso — disse Gowther. — Mas é o prazo máximo.

— Então temos que aceitar, e torcer para dar certo — disse o mago, levantando-se da

cadeira. — Colin, você pode estar na Pedra Dourada amanhã ao meio-dia? Há uma coisa

de que Susan vai precisar.

• • •

Colin saiu da estrada, tomando a trilha que seguia pela lateral do bosque. À sua

esquerda, havia pinheiros e carvalhos. À direita, campos e colinas.

Chegou ao bloco de arenito cinzento que ficava na beirada da trilha e e ra chamado de

Pedra Dourada. Tinha uma forma tão rude que poucas pessoas notavam que era cheio de

marcas de ferramentas, e não era apenas mais uma das muitas protube râncias da Borda,

mas tinha sido colocado ali em alguma época, com um propósito determinad o e já

esquecido. Uthecar e Albanac estavam sentados, com as costas encostadas nele.

— Sente aqui, Colin — disse Albanac. — Está seco. Como está Susan?

— Na mesma. Vocês acharam alguma coisa que possa ajudar?

— Nada — disse Uthecar. — Apesar de não termos dormido nem descansado um

instante desde que saímos de lá.

— Cadellin está usando todo seu poder — disse Albanac —, mas nem ele consegue ver

onde ela está. Porém não desanimem. Não vamos desistir, e outros estão nos ajudando.

Acabamos de chegar de Redesmere: a Dama do Lago está lhes mandando isto aqui. Vocês

não precisam mais se preocupar com comida.

Entregou a Colin uma garrafinha de couro.

— O vinho da mesa de Angharad Mão-de-Ouro tem muitas virtudes.

— Obrigado — disse Colin. — Mas vocês vão encontrar Sue, não vão? É só uma

questão de tempo, não é? E em que tipo de lugar ela está? Como é que pode estar em outro

lugar, se está ali deitada na cama?

— Não vou mentir para você — disse Albanac. — A Susan que está ali é só

Comprimento, Largura e Altura. A verdadeira Susan não é nada disso. Vocês sempre

conheceram as duas como se fossem uma só, mas o Brollachan as separou co mo se fosse

um gravetinho que a gente quebra na hora de acender o fogo.

— Estou achando... — disse Uthecar. — Estou achando que Cadellin não vai encontrar

essa menina.

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— Tem de encontrar, e vai encontrar — disse Albanac. — Nunca pensei que você fosse

ficar com medo tão depressa.

— Você está enganado, não é medo. Estou é achando que a Alta Magia é afiada demais

para uma empreitada dessas.

— Não estou entendendo.

— Você pensa muito, mas às vezes não é esperto. Eu expli co — disse Uthecar. — Pense

bem: diz-se que a espada que está ao lado do Adormecido, em Fundindélfia, é capaz de

dividir em dois um fio de cabelo dentro d'água, ou de tirar sangue do vento. Mas você

usaria uma têmpera dessas para derrubar esta árvore aqui? Pois é a mesma coisa. O

Brollachan faz parte do Velho Mal, não circula por esses lugares etéreos que Cadellin

conhece. Contra o Velho Mal, seria melhor a Antiga Magia. Contra um exército de mil

bravos, pode me dar a espada do rei. Mas para abater este carvalho, prefiro o machado do

lenhador.

— Eu não tinha pensado nisso... — concordou Albanac. — Mas você pode ter razão. E

não podemos deixar de buscar todas as possibilidades. Mas que Antiga Magia ainda existe

hoje em dia? Toda ela está dormindo, e não deve ser acordada.

— Não sei, eu não tenho cabeça para essas coisas, infelizmente — disse Uthecar. —

Bem que eu perguntei aos lios-alfar, mas eles jamais olhariam tão para baixo.

— Mas então, o que é que a gente pode fazer? — exclamou Albanac, com uma

animação nova, como se as palavras de Uthecar lhe tivessem dado um outro ânimo, que

contagiava até Colin, apesar de toda a preocupação do menino.

— Não sei, não conheço muito essas coisas, mas andei pensando em qual seria o

encantamento mais forte para todos os momentos dos piores males e tenho a impressão de

que seria a Mothan — disse Uthecar. — Mas onde ela pode crescer nestas terras planas do

sul? Não faço a menor idéia.

— A Mothan! — disse Albanac. — Já ouvi falar nela! Mas é uma planta mágica,

dificílima de achar... E só temos três dias.

— Contem-me tudo sobre ela — pediu Colin. — Vou achá-la.

Uthecar olhou para ele.

— Conto. O que mais se precisa para poder achá-la é essa determinação que estou

vendo em você. É uma planta caprichosa, que só cresce nas alturas da velha trilha reta, e

só floresce na noite de lua cheia.

— Amanhã é noite de lua cheia! — exclamou Colin. — Onde é essa trilha?

A essa altura, ele e Albanac já estavam de pé, mas Uthecar continuava onde estava.

— Não é uma só, são várias, mas todas se perderam. Eu sei de duas, para lá de Minith

Bannawg, mas nem mesmo um elfo seria capaz de chegar lá a tempo. Porém pode haver

outras por aqui. Se você estiver parado na velha trilha reta, bem na hora em que a lua

cheia se levanta ao longo dela, então consegue ver. O resto do tempo, está escondida.

— Tem alguma por aqui? — perguntou Colin a Albanac.

— Não sei. Mas, uma vez, ouvi falar nelas. Porém foram feitas num tempo muito

antigo, antes dos anões e antes dos magos. Fazem parte da Antiga Magia, embora não

saibamos para que servem. E as coisas mortas se mexem quando ela se move.

— Escutem! Eu tenho que achar essa trilha! Tem de haver um jeito. Por que vocês iam

me falar dela se não fosse servir para nada?

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— Bom, eu estava imaginando se haveria alguma trilha conhecida por aqui... — disse

Uthecar. — Porém, infelizmente, pelo jeito não há. Mas não perca a coragem, Colin. É a

Antiga Magia, simples, cálida. A fé e a força de vontade podem tocar o coração dela. Se for

possível achar a Mothan, você vai achar, embora eu não faça a menor idéia de onde ela

possa estar.

— Mas como é que eu começo a procurar? — perguntou Colin.

— Tenha fé e virá alguma ajuda. Procure. Tente. Pense em Susan. Nunca perca a

esperança nem a coragem. Volte aqui amanhã a esta mesma hora. Pode ser que tenhamos

alguma notícia melhor.

Colin caminhou de volta a Highmost Redmanhey sem nem prestar atenção à

paisagem. A velha trilha reta: a velha trilha reta. Só isso, tão vago. A velha trilha reta. E,

no entanto, tinha certeza de que já ouvira falar nisso antes de Uthecar mencioná-la, o que

era ridículo, porque, afinal de contas, como é que ele podia saber alguma coisa sobre uma

magia que mesmo quem vivia com ela só conhecia vagamente? Mas, quanto mais ele pen -

sava, mais atrás a memória voltava, e mais ele tinha certeza de que seria capaz de

responder à pergunta se conseguisse lembrar.

De volta à fazenda, Colin fez uma refeição triste. Desistira de procurar a velha trilha

reta e estava preocupado com Susan, pensando nela. Os Mossock também comiam em

silêncio, com uma expressão aflita no rosto.

De repente, como muitas vezes acontece quando a cabeça da gente deixa de lado um

problema, a cena que estava escapando de Colin apareceu completinha, pelo meio dos

pensamentos dele.

— Já sei! — exclamou.

Deu um salto da cadeira e subiu a escada correndo, até seu quarto. Pulou por cima da

cama e tirou da prateleira o tal livrão antigo de Gowther, encapado de couro marrom. Em

algum lugar, no meio daquelas quatrocentas e cinqüenta páginas, havia uma referência à

velha trilha reta. Ele sabia que tinha visto. Estava bem nítida na sua cabeça. Ficava em

frente a uma página cheia de anotações heráldicas: havia o desenho de um brasão, com um

cabrito entre três cabeças de javali. Mas, mesmo lembrando tão bem, Colin estava em tal

estado que teve de folhear página por página duas vezes, até conseguir achar. E depois,

quando releu, o estilo seco das anotações do pastor ficava tão distante da excitação da

Magia que o menino ficou em dúvida.

"Hoje eu andei pelo traçado de uma trilha antiga, bem reta, feita por nossos rudes

antepassados (sou levado a crer), antes da chegada dos antigos romanos a estas plagas.

Segui esse caminho de Mobberley até a Borda. Foi construído — se é que se pode

empregar esse termo — numa época tão remota que não existe registro algum de sua

existência, salvo os freqüentes montículos e pedras erigidos para indicar o caminho. Entre

esses, o Farol e a Pedra Dourada são os mais notáveis, ao longo da Borda. A partir do

último, onde terminei minha excursão, parecia que a trilha se alinhava com o pico do Tor

Brilhante, que fica a cerca de quatorze quilômetros em direção a Buxton.

É impossível deixar de maravilhar-se com a capacidade desses arquitetos

desconhecidos, que, embora ignorantes de todo das artes da ciência..."

Page 42: A LUA DE GOMRATH

PDL – Projeto Democratização da Leitura

Colin fechou o livro. A animação desaparecera. Mas tinha que tentar. Onde mais

poderia encontrar uma pista? Era a única coisa que tinha.

— Tudo bem com você, garoto? — perguntou Bess quando ele desceu. — Está com

cara de quem perdeu um dinheirão e achou um dinheirinho.

— Não, tudo bem, desculpe — disse Colin. — Foi uma coisa de que me lembrei, no

livrão velho. Você sabe onde fica o Farol, na Borda?

— Sei — disse Gowther. — É a parte mais alta da Borda. Sabe, quando a gente vai pelo

caminho do alto, da Pedra do Castelo até o Ponta das Tormentas? Pois bem, logo antes de

virar à esquerda, o Farol é aquele morrinho redondo logo acima da gente, à direita. N ão dá

pra se enganar. Antigamente tinha uma casinha de pedra no alto, e ainda dá para ver as

fundações.

— Posso ir até lá dar uma olhada hoje de tarde?

— Claro que pode — disse Bess. — Nada como um bom exercício, para distrair as

idéias.

— Obrigado, não demoro.

Gowther tinha razão. Não dava para se enganar com o Farol. Era um morro com uma

superfície lisa, evidentemente artificial, e ficava bem visível, longe das árvores, no ponto

mais alto da Borda. Parecia um túmulo.

Colin andou de um lado para outro sobre a elevação, mas a única trilha visível era

moderna, e não tinha nada de reta.

A partir do Farol, Colin foi andando por entre as árvores até a Pedra Dourada, que

ficava a uns 400 metros, mas não dava para perceber que estivesse caminhando por trilha

alguma. Ao chegar lá, continuou em linha reta depois da pedra, por cima de uma ligeira

elevação no terreno, até que chegou à beira do bosque, logo adiante, a poucos metros. A

partir daí, do outro lado dos campos, ficava o perfil do alto dos Peninos e, em determinado

ponto, bem em frente de Colin, a linha dos morros se elevava num pico não muito alto,

mas francamente nítido. E, de novo, nem sinal de trilha nenhuma.

Na certa, era o Tor Brilhante, pensou Colin. Bom, pelo menos as anotações estavam

certas. É melhor contar a Albanac. É tudo o que temos como pista, a não ser que ele tenha

descoberto alguma coisa.

Page 43: A LUA DE GOMRATH

PDL – Projeto Democratização da Leitura

• 8 •

O Tor Brilhante

ode ser... — disse Albanac. — Pode muito bem ser... Apesar de a gente

sempre associar a Pedra Dourada ao mundo dos elfos, já ouvi dizer que

eles a encontraram aqui quando fizeram a estrada.

— "Pode ser..." — remedou Uthecar. — Você era capaz de duvidar que um lobo tem

dentes, enquanto eles não estivessem rasgando a sua garganta. "Pode ser..." Francamente!

É! É! É claro que é! A Antiga Magia veio atender a nossa necessidade e nos mostrou o

caminho para seu coração — a velha trilha reta a partir do morro do Farol. É lá que você

tem que estar hoje à noite, Colin, e aproveitar a oportunidade que parecer, seja qual for.

— Pois é disso mesmo que não gosto — disse Albanac. — Dizem que aconteceram

coisas muito estranhas no Farol.

— E daí? Vou estar lá com você, Colin, e minha espada vai te defender.

O resto do dia pareceu se arrastar para Colin. Conferiu na agenda e no jor nal a hora

em que a lua cheia ia nascer. Depois, de repente, ocorreu-lhe uma dúvida aflitiva: e se

fosse uma noite nublada? Faria diferença? Então, saiu lendo todas as previ sões da

meteorologia, e subiu os Riddings três vezes para olhar o céu. Mas não pre cisava ter-se

preocupado. Era uma noite de céu limpo quando ele finalmente escapuliu da casa da

fazenda e se dirigiu ao bosque.

Encontrou Uthecar na Pedra Dourada e foram andando juntos pela escuridão

tranqüila.

— Será que a lua vai nascer na trilha? — disse Colin.

— É a nossa esperança — respondeu Uthecar. — Mas acho que vai. Se não nascer, não

nos resta muita coisa.

— E como é que eu vou conhecer a Mothan? Nunca vi uma planta dessas, nem

desenhada.

— Cresce isolada, entre as pedras. Tem folhas de cinco pontas e raiz vermelha. E

reflete a lua. Pode deixar, que você vai reconhecer assim que a vir.

Subiram no morrinho onde antes ficava o Farol. No alto, havia um espacinho cheio de

areia, e uns blocos de arenito. Sentaram-se nos blocos e esperaram. O anão tinha a espada

repousada por sobre os joelhos.

— O que é que eu faço com a Mothan quando a encontrar? — perguntou Colin.

— Pegue a flor, e algumas folhas — disse Uthecar — e leve para Susan. Mas tome

cuidado para não machucar a raiz, nem tirar todas as folhas.

—P

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Continuaram sentados, em silêncio. Colin não queria falar. Não conseguia impedir

que sua voz tremesse, e toda hora ficava sem fôlego. De repente, depois de olhar

repetidamente o relógio, Colin se levantou e começou a andar para a frente e para trás no

alto do monte. Olhava atentamente para a escuridão, tentando distinguir alguma coisa.

Nada se mexia nem se mosliava. Finalmente, o menino sentou numa pedra e pôs a cabeça

entre as mãos.

— Não adianta — disse, desanimado. — A lua já devia ter nascido há cinco minutos.

— Não desista ainda — disse Uthecar. — A lua vai ter que subir de trás dos morros.

Levante-se, Colin. Fique preparado.

O anão se afastou ligeiramente de Colin, deixando-o sozinho no topo do morro.

Houve um momento de silêncio, e então Colin disse:

— Ouça! Está ouvindo?

— Só o barulho da noite. Mais nada.

— Ouça! É música! Como se fossem vozes chamando. E sininhos de gelo! E olhe ali! Lá

está a trilha!

De repente, pelo meio das árvores e por cima do morro do Farol, fluía uma linha

cintilante, uma meada de fios de prata, todos vivos, faiscantes. Colin tinha visto algo

levemente parecido antes, uma única vez, numa manhã muito rara em que o sol cortara um

caminho pelo meio de um tapete invisível de teias de aranha cobertas de orvalho, cobrindo

os campos. Mas nada se comparava à beleza do que estava vendo agora. A trilha pul sava,

fulgurante, sob seus pés e ele olhava para ela como se esti vesse num encantamento.

— Corra! — lembrou Uthecar. — Não perca tempo!

— Para que lado? Ela se estende à direita e à esquerda, até onde a vista alcança!

— Para o leste! Para as montanhas! Ligeiro! A trilha vai se perder quando a lua passar.

Depressa! Corra! E que a sorte te acompanhe!

Colin deu um pulo e foi correndo pela colina abaixo, e seus pés tinham asas de prata.

As árvores eram vagas manchas à sua volta, houve um momento em que sentiu a dureza

da Pedra Dourada debaixo de si, e num instante ele saía do bosque, e lá esta va a velha

trilha reta seguindo em frente, mergulhando e fluindo sobre os campos arredondados, e

subindo mais adiante, pela encosta das colinas, até o pico do Tor Brilhante, e por trás dele

o disco largo da lua, branco como um escudo dos elfos.

Em frente, em frente, em frente, cada vez mais rápido, mais rápido... A trilha o

puxava, fluía através dele, enchia seus pulmões, seu coração e sua mente de fogo, lançava

centelhas a partir de seus olhos, escorria de seus cabelos, e os sininhos e a música e as

vozes faziam parte dele, e a Antiga Magia cantava-lhe, das profundezas da terra e das

cavernas do céu azul-noite.

Depois a trilha se ergueu na sua frente, e de repente Colin estava nas colinas. A lua

estava clara e nítida, sobre o Tor Bri lhante. E enquanto ele subia o paredão do pico do alto

penhasco, o caminho se dissolveu como um véu de fumaça. O peso tomou conta de seu

corpo e o puxou para baixo, do alto do morro. Mas Colin deu um grito altíssimo e esticou

o braço para agarrar o pico. Os sinos se perderam em meio aos soluços de sua respiração,

às batidas de tambor de seu sangue.

Abriu os olhos. Uma pedra áspera apertava sua bochecha, rochedo cinzento ao luar.

Pelo meio de seus dedos, que agarravam a pedra, saíam umas folhas, de cinco pontas. E no

oco da palma de sua mão, havia um pálido brilho de luar.

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PDL – Projeto Democratização da Leitura

• • •

Sobre a região do Wildboarclough, o cone de Shuttlingslow se destacava das longas

serras, como uma torre de sentinela, velando sobre a planície que se estendia como um

mar, do Pico Rivington até as elevações de Moel Fammaw. Mas Colin não via nada disso.

Seus olhos e todo o seu ser estavam voltados para a delicada Mothan que guardava nas

mãos em concha.

Tinha pegado a flor e duas folhas. As pétalas faiscavam, com uma luz fria, de vaga -

lume, e os finos pêlos das folhas eram de prata. Passaram-se alguns minutos. Depois, Colin

dobrou a Mothan com cuidado e a guardou numa bolsinha de couro que Uthecar tinha lhe

dado especialmente para esse fim. Em seguida, olhou em volta.

A velha trilha reta desaparecera, mas abaixo do Tor Bri lhante a estrada de Buxton

iniciava as curvas de sua descida para Macclesfield. Colin caminhou ao longo da beirada

até o final do penhasco, e foi escolhendo por onde ia pisar, por cima do chão acidentado e

cheio de mato, até a estrada.

Era meia-noite. A estrada estava esquisita, fria, macia sob seus pés depois dos tocos,

buracos e pedras do Tor Brilhante. E depois que o pique da excitação passou — e passou

rápido, com a queda do morro — ele começou a se sentir exausto. E cada vez menos à

vontade. A noite estava tão parada, a estrada tão deserta ao luar... Mas então lembrou-se

de Susan, deitada na cama em Highmost Redmanhey, e da Mothan guardada no bolso, e

das maravilhas daquela noite, e seus passos ficaram mais leves.

Passos leves. Era tudo o que podia ouvir. Atrás dele, parou e escutou. Nada. Olhou.

Estrada deserta. Devia ser um eco, pensou, e começou a andar de novo. Mas agora estava

consciente de estar ouvindo, e logo começou a suar.

Ouvia seus próprios passos, firmes na estrada, e depois deles ouvia um eco, que vinha

do paredão de pedra seca e do morro. E entre seus passos e o eco ouvia um som, "pate -

pate-pate", de pés. Pelo ruído, pés descalços.

Parou. Nada. Olhou. Estrada deserta. Mas a lua lançava sombras.

Colin cerrou os dentes e andou mais depressa. Passo. Eco. Passo. Eco. Passo. Eco.

Passo. Eco. Respirou fundo. Nervos! Nada além de... "pate-pate-pate". Colin virou-se. Uma

sombra se moveu?

— Quem está aí? De quem é esse andar? — gritou.

— Ar! Ar! Ar! — respondeu a colina.

— Estou vendo você!

— Ê! Ê! Ê!

Conta ponto para Colin ele não ter corrido. Estava quase entrando em pânico. Mas

engoliu em seco e obrigou o cérebro a pensar. A que distância estaria de Macclesfield? Uns

seis quilômetros? Então não adiantava sair correndo. Virou-se e começou a andar. E

embora não conseguisse dar dez passos sem olhar para trás, continuou firme, e foi se

afastando do Tor Brilhante. Não via nada. Mas os passos que não eram exatamente um eco

continuavam a acompanhá-lo.

Depois de uma meia hora, Colin já estava achando que talvez conseguisse chegar à

cidade, porque a coisa que o seguia — fosse lá o que fosse — parecia contentar-se apenas

com isso, porque nunca diminuía a distância entre eles. De repente, quando se aproximou

Page 46: A LUA DE GOMRATH

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de uma curva mais fechada, Colin ouviu algo que fez seu sangue gelar. Era um so m novo,

e vinha da frente: cascos. O som de um cavalo que vinha andando bem devagar.

Olhou para trás. Nada ainda. Mas não podia voltar. E fora da estrada era tudo

desconhecido demais. Mas por que deveria ter medo desse novo som? Colin estava tão

tenso que teria medo de sua própria voz. Não conseguiu tomar uma decisão: estava

encurralado.

Seus olhos estavam fixos na estrada, que sumia de vista como uma língua negra. O

"ploque-ploque" suave dos cascos de cavalo parecia continuar, sem fim. A estrada

continuava deserta...

Era um cavalo preto, e o cavaleiro vinha envolto numa capa e usava um chapéu de

abas largas.

— Albanac!

Colin saiu correndo para ele, rindo. Um toque de realidade — ainda que fosse uma

realidade daquelas — bastava para mudar toda a cena. Colin viu a si mesmo com outros

olhos. Era uma bela noite enluarada, entre colinas tranqüilas, e Susan es tava esperando

que ele a levasse a Mothan. Desde que saíra do Farol até esse instante, tinha estado em

outro plano da existência. Era demais para sua imaginação.

— Albanac!

— Colin! Bem que eu achei que ia te encontrar em algum ponto desta estrada.

Conseguiu pegar a Mothan!

— Consegui!

— Então, venha. Vamos levá-la para Susan.

Albanac se abaixou, pegou Colin e o ajeitou na sela à sua frente. Depois, fez meia -

volta com o cavalo, em direção a Macclesfield.

— Mas, Colin, você está molhado, tremendo... Alguma coisa deu errado?

— Não. É só que tudo é tão estranho... Passei por maus momentos...

— Estou vendo.

Enquanto ele dizia isso, o cavalo virou a cabeça e olhou para trás, para o fundo da

estrada. Relinchou e colou as orelhas na cabeça.

Albanac se retorceu na sela. Colin, meio enrolado na capa dele, não podia ver o que

havia na estrada lá atrás, mas sentiu o corpo de Albanac enrijecer e ouviu a respiração dele

assoviando por entre os dentes. Em seguida, as rédeas se sacudiram no pescoço do cavalo

e o animal saiu a galope com toda a fúria de seu sangue mágico. A velocidade da corrida

bloqueava qualquer pergunta na garganta de Colin. E a noite enchia seus ouvidos, e a capa

estalava ao vento.

Albanac não parou enquanto não chegaram aos Riddings e viram lá embaixo

Highmost Redmanhey, com seu telhado e suas madeiras se recortando ao luar, e uma luz

na janela do quarto onde Susan estava deitada.

— Por que aquela luz está acesa? — perguntou Colin.

— Está tudo bem — disse Albanac. — Cadellin está esperando por nós.

O quartinho estava cheio de gente. Quando Colin abriu a porta, Bess exclamou:

— Onde você se meteu? Devia ter nos...

— Calma, menina — disse Gowther, suavemente. — Conseguiu o que queria, Colin?

— Consegui.

— E está tudo bem com você?

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— Sim.

— Bom, isso é o que importa. Vamos ver o que se pode fazer agora.

Colin pegou a flor e as folhas da bolsinha.

— Você fez tudo direitinho — disse Uthecar. — É mesmo a Mothan. Agora, dê a sua

irmã.

— Aqui está — disse Colin, entregando a planta a Cadellin.

Mas o mago sacudiu a cabeça.

— Não, Colin. Isso faz parte da Antiga Magia. Não vai respeitar a minha mente. É

melhor que Uthecar cuide disso. Ele tem mais habilidades nessa área.

— De modo algum, Cadellin Argentesta — disse o anão. — Comigo também não vai

funcionar. A necessidade não é minha. Só vai agir por intermédio de Colin. Dobre a flor

dentro das folhas e ponha tudo na boca da menina.

Colin foi até a cama. Dobrou a Mothan bem apertada e abriu a boca de Susan o

suficiente para que aquela bolinha vegetal passasse por dentro dos dentes dela. Deu um

passo atrás e ficou esperando. Para todos, o silêncio parecia uma faixa de aço apertando a

cabeça. Passaram-se três minutos. Não aconteceu nada.

— Isso é uma besteira! — disse Bess.

— Cale a boca! — repreendeu Uthecar, grosseiro. Outro silêncio comprido. Colin

achou que ia desmaiar.

Suas pernas tremiam com o esforço da concentração.

— Ouçam! — exclamou Albanac.

Muito longe e, se é que estava em algum lugar, acima deles, ouviram uns latidos

abafados, como se fossem de cachorros acuando uma presa numa caçada, e o sopro

profundo de uma trompa de caça. Os latidos se aproximaram, e agora já se ouvia também

o tinido de uns arreios. A trompa soou de novo — estava bem perto, do lado de fora da

janela. E Susan abriu os olhos.

Olhou fixo em volta, de um modo descontrolado, como se tivesse sido acordada no

meio de um sonho. Depois sentou, fez uma careta, e levou a mão à boca. Mas Uthecar deu

um salto, atravessando o quarto e bateu com força no meio das costas dela, com a palma

da mão.

— Engula!

Susan não conseguiu evitar. Com o golpe, deu um soluço e engoliu a Mothan. Então

deu um pulo para fora da cama. Correu até a janela e a abriu tão descuidadamente que o

lampião caiu no quintal lá embaixo e explodiu num clarão de parafina. Susan pendurou -se

para fora da janela e Colin atravessou o quarto escuro correndo e a agarrou pelos ombros,

pois parecia que ela estava determinada a fazer alguma coisa que não a deixava lem brar

do perigo.

— Celemon! — gritava ela. — Celemon! Fique comigo! Colin a puxou para trás do

peitoril e teve que agarrar a esquadria para não cair, pois o choque do que viu no céu por

cima da fazenda o deixou de pernas bambas.

Não era capaz de dizer se eram estrelas, ou o que eram. O céu era uma espécie de

neblina de luar e no meio dessa neblina parecia que as estrelas formavam novas

constelações, que se mexiam, ganhavam vida e adquiriam uma forma, desenhando nove

moças montadas a cavalo, gigantescas, enchendo os céus. Giravam em torno da fazenda,

com falcões pousados nas mãos, e entre elas saltavam galgos de caça, com olhos faiscantes

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e coleiras cobertas de jóias. As amazonas vestiam túnicas curtas e seus cabelos brilhavam

contra o céu. Depois a trompa de caça soou novamente, os cavalos empinaram e saíram

galopando pela planície. E a noite lançou uma chuvarada de estrelas cadentes sobre o céu

do oeste.

Só Colin vira isso. Quando se voltou para dentro do quarto, Bess aparecia na porta

com outro lampião. Susan continuava olhando lá para fora da janela, com lágrimas

escorrendo pelo rosto. Mas quando a luz encheu o quarto, ela relaxou e suspirou.

— Como você está se sentindo, Susan? Ela olhou para ele.

— Cadellin. Bess. Gowther. Uthecar. Colin. Albanac. Mas o que era aquilo, então? Eu

tinha esquecido de vocês.

— Sente-se na cama — disse Cadellin. — Conte pra gente o que você sabe desses

últimos dias. Mas antes de mais nada, senhora Mossock, a senhora não quer trazer alguma

coisa para Susan comer e beber? É o que ela está precisando agora, para se sentir melhor.

Num instante, já estava tudo providenciado. E enquanto comia, Susan contou sua

história. Hesitava ao falar, como se estivesse tentando descrever algo para si mesma, mais

do que para qualquer outra pessoa.

— Lembro de ter caído na água — disse — e aí tudo escureceu. Prendi o fôlego

enquanto agüentei, mas depois começou a doer e tive de soltar, mas bem nessa hora a água

se afastou de mim na escuridão e então... bem... quer dizer, o escuro conti nuava o mesmo,

mas eu estava em outro lugar, flutuando... não era nenhum lugar específico, era só um

lugar, para a frente e para trás, dando voltas no nada. Sabem, quando a gente está na cama

de noite e imagina que ela está girando, ou o quarto está escorregando? Era assim.

Continuou:

— Não era terrível, mas eu não gostava dos barulhos. Tinha guinchos e som de

alguma coisa arranhando, por todo lado em volta de mim... vozes... não, não eram bem

vozes... eram só uns sons confusos, mas vinham de gargantas. Alguns estavam bem perto,

outros vinham de longe. Continuaram por muito tempo, e eu não estava gostando. Mas

não fiquei assustada, nem preocupada com o que ia me acontecer... apesar de ficar

assustadíssima agora, quando penso nisso! Eu não gostava de estar onde estava, mas ao

mesmo tempo não conseguia pensar em nenhum outro lugar onde quisesse esta r. E depois,

de repente, senti uma mão agarrar meu pulso e me puxar para cima. Houve uma luz, ouvi

alguém gritando — agora acho que era Albanac — e comecei a me mexer mais depressa do

que nunca. Tão depressa que fiquei tonta, e a luz ficou cada vez mais fo rte, não fazia a

menor diferença se eu fechasse os olhos. Depois, comecei a ir devagar de novo, e o brilho

não incomodava tanto, e conseguia ver o contorno da mão que estava me segurando. E

então, parecia que eu estava rompendo uma película, feita de luz, e eu estava numa água

rasa, na beira do mar, e em pé junto a mim havia uma mulher, vestida de vermelho e

branco, e segurávamos os pulsos uma da outra, e nossos brace letes estavam presos um no

outro... e Cadellin! Só agora estou me dando conta disso! O bracelete dela era igual ao

meu... ao que Angharad me deu!

— Provavelmente era mesmo — disse o mago, rapidamente. — Não pense nisso.

Continue.

— Bom, então ela abriu o seu bracelete e o soltou do meu, e saímos andando juntas

pela praia. Ela disse que se chamava Celemon e que íamos para Caer Rigor. Não achei que

precisasse fazer nenhuma pergunta. Aceitava tudo o que vinha, como a gente faz nos

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sonhos. Mais adiante, nos reunimos às outras, que estavam nos esperando num platô

rochoso, e saímos cavalgando sobre o mar, para Caer Rigor, e todo mundo estava muito

animado, falando em voltar para casa. E de repente, senti um gosto amargo na boca, e todo

mundo sentiu também, e por mais que a gente fizesse força para cavalgar, não

conseguíamos sair do lugar. Celemon disse que íamos ter que voltar, e voltamos, então

fiquei tonta outra vez, e o gosto amargo na boca foi ficando mais forte, achei que ia

vomitar, não conseguia me equilibrar, e caí do cavalo, lá do alto, fui caindo, caindo, dentro

do mar, ou da neblina, sei lá o que era. Fiquei horas caindo, então bati numa coisa dura.

Tinha fechado os olhos para ver se não enjoava, e quando abri estava aqui. Mas onde está

Celemon? Não vou mais vê-la?

— Com certeza, vai — disse o mago. — Algum dia vai encontrá-la de novo, e irão a

cavalo sobre o mar até Caer Rigor, e não haverá nenhum gosto amargo que impeça a

jornada, mas só quando chegar a hora. Cada coisa a seu tempo. Agora você precisa é

descansar.

Deixaram Susan com Bess e desceram para a cozinha.

Colin estava meio zonzo, de exaustão e maravilhamento. Descendo as escadas, tentou

descrever o que tinha visto quando puxara Susan da janela. Mas ninguém prestou atenção,

exceto Cadellin, que pareceu encarar seu relato como a confirmação de seus próprios

pensamentos.

— Caer Rigor... — repetia o mago. — Caer Rigor... Hum, estamos em águas muito

profundas agora. Caer Rigor... Que bom que você encontrou a Mothan a tempo, Colin,

porque se Susan tivesse chegado lá, nem a Alta Magia nem a Antiga Magia seriam capazes

de trazê-la de volta.

"Três vezes o total de Prydwen nos levou:

Exceto sete, de Caer Rigor ninguém retornou."

É assim que a canção fala de lá. Ah... não é sempre que a Antiga Magia consegue fazer

tanto bem...

— Como assim? — perguntou Colin. — Não é Magia

Negra, é? Por favor, explique. E o que aconteceu com Sue?

— É difícil explicar — disse o mago. — Melhor deixar para quando estivermos mais

descansados. Mas se faz muita questão, eu conto — embora no fim você possa estar

entendendo ainda menos do que agora. É o seguinte, Colin: a Antiga Magia não é Magia

Negra, mas tem sua própria vontade, só faz o que quer. Pode funcionar de acordo com a

sua necessidade, mas não segundo as suas ordens. E, além disso, há lembranças da Antiga

Magia que surgem quando ela funciona. E não é que sejam um mal em si, mas são

caprichosas, e erradas para nossa época.

— É isso mesmo — confirmou Albanac. — O Caçador estava na estrada.

— Você o viu? — perguntou Cadellin, severo.

— Vi. Ele veio com Colin, de seu leito no Tor Brilhante. Na certa queria saber o que o

tinha despertado.

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— O quê? — perguntou Colin. — Quem é? Na estrada? Ouvi alguém me seguindo, ou

pensei que tinha ouvido, mas depois, quando encontrei você, fiquei achando que t inha

sido uma bobagem.

— Talvez fosse.

— Ei, de que é que vocês estão falando?

— Uma velha lembrança — disse o mago. — Não trouxe mal algum, mas não se

precisa falar mais nisso. É melhor agora eu explicar o que foi que Susan acabou de nos

contar. Isso, sim, é algo que pode afetar todos nós.

— Não me diga que está levando a sério essa história toda! — disse Gowther. — Foi só

um sonho. Ela mesma confirmou.

— Ela disse que parecia um sonho — observou Cadellin.

— E eu bem que gostaria de poder encarar assim, deixando de lado. Mas acontece que é a

verdade. Acho que ainda há muito mais do que ela se lembra. O Brollachan a carregou

desse nível do mundo em que os homens nascem, e a levou para a escuri dão e a vida

informe, que os magos chamam de Abred. De lá foi transportada para o Limiar das

Estrelas de Verão, que fica tão além desse mundo de vocês como o Abred fica abaixo dele.

Muito poucos até hoje conseguiram ir tão longe. Desses, ainda muito menos conseguiram

voltar. E nenhum deles deixou de mudar tanto. Ela cavalgou com As Brilhantes, As Filhas

da Lua, e que vieram em sua companhia, desde muito além do vento do norte. Agora ela

está aqui. Mas As Brilhantes não se afastaram de Susan por livre e espontânea vontade,

porque, através dela, podem despertar seu poder neste mundo — a Antiga Magia, que se

foi daqui há muito, muito tempo. É uma magia que escapa a nosso controle. Uma magia do

coração, não da cabeça. Pode ser sentida, mas não conhecida. E nisso não vejo bem algum.

Todos ouviam atentos, e Cadellin prosseguiu: — E Susan não foi vítima do Brollachan por

acaso. Havia um elemento de vingança nisso. Ela foi salva, e está protegida, apenas por

causa da Marca de Fohla — que é a bênção dela, mas também sua maldição, pois o

bracelete não só a protege contra o mal que pode esmagá-la, mas também a leva para

muito além dos caminhos da vida humana. Quanto mais usá-lo, mais vai precisar dele. E

agora já é tarde demais para tirá-lo. Será que tudo isso já não bastava? Seria ainda

necessário despertar a Antiga Magia que dormia? Meu coração estaria bem mais leve se eu

pudesse ter certeza de que aquilo que vocês despertaram esta noite poderia voltar a

descansar com a mesma facilidade com que acordou.

Colin ficou desperto com todos os acontecimentos daquele dia e daquela noite

girando em sua cabeça, depois que o mago foi embora. Havia ainda tanta coisa sem

resposta, tanta coisa que não fora entendida, tanta coisa que fora conquistada. Apesar de si

mesmo, sentia: tinha sido apenas um instrumento. Mas Susan estava salva, Susan estava...

De repente, Colin teve um sobressalto e sentou-se na cama. Embaixo da janela, ouvira

um som leve e familiar. "Pate-pate-pate-pate-pate". Saltou da cama e se arrastou até a

janela.

A casa lançava uma sombra sobre o quintal. Colin prestou atenção, mas não ouviu

nada. Olhou em volta... e não conseguiu conter o grito que brotou em sua garganta. A

sombra do telhado lançava uma linha reta sobre o pé do muro que corta va o quintal. E

acima dessa linha dava para ver a sombra de um par de chifres curvos, orgulhosos — a

galhada de um veado.

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Com o barulho do grito, a sombra se moveu e se perdeu. "Pate-pate-pate". E depois

que os passos morreram na distância, a noite ficou silenciosa.

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• 52 •

Os Cavaleiros de Donn

a manhã seguinte, Susan não parecia ter sido afetada por tudo o que lhe

acontecera. Estava com bom aspecto e se sentia bem. Mas Bess insistiu para que

ela ficasse na cama, e chamou o médico. Pareceu meio desapontada quando ele

disse que não havia nada errado com Susan.

Passaram-se alguns dias. As crianças passavam a maior parte do tempo discutindo

sobre o que cada uma tinha visto ou feito. Susan descobriu que estava esquecendo

rapidamente tudo o que lhe acontecera entre a queda na pedreira e o momento em que

engoliu a Mothan. Era como num sonho. Primeiro, mais nítido e mais real do que qualquer

outra coisa. Mas logo se perdia, com o fluxo mais tangível de impressões depois de acorda-

da. Tinha muito pouco a acrescentar ao breve relato que fizera poucos minutos após sua

volta.

Estava mais preocupada com as experiências de Colin com o Brollachan. E embora ele

só lhe tivesse dado um resumo do que acontecera, foi o suficiente para que ela perdesse o

sono por várias noites.

Colin quis ser mais detalhado quando tentou descrever o que tinha visto no céu

depois que puxou Susan da janela, mas percebeu que estava além de sua capacidade. O

quadro mais próximo que conseguia pintar era comparar as amazonas e seus cães a figuras

num mapa de constelações que vira numa velha enciclopédia , em casa, em que as estrelas

faziam parte de um desenho feito por um artista, para mostrar que a pipa de Orion na

verdade era três quartos de um gigante, e o W de Cassiopéia era uma mulher sentada

numa cadeira. Mas nada disso combinava com o que Susan lembrava. Para ela, Celemon

tinha sido uma pessoa normal, tão sólida em seu estado de existência quanto Colin era

agora. E não conseguia entender o resto.

E nenhum dos dois conseguia decifrar o que poderiam ser os passos que Colin ouvira.

E Gowther não ajudou nada, quando os dois lhe perguntaram se havia veados na Borda.

— Não, que eu saiba — disse ele. — No tempo de Lord Stanley, havia alguns em

Alderley Park, mas já se acabaram há muitos anos.

Mas o que deixou Susan mais fascinada foi a narrativa de como Colin tinha achado a

velha trilha reta, e toda a jornada do menino por ela até encontrar a Mothan. Assim, num

dia em que eles voltavam do Poço Sagrado já bem tarde e viram o monte do Farol bem

escuro acima deles, à luz das estrelas, ela simplesmente não conseguia passar por ali

indiferente.

N

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Os dois tinham ido a Fundindélfia, a pedido de Albanac, para descobrir o que

Atlendor conseguira fazer com o bracelete de Susan. Era uma resposta curta. Não tinha

feito nada. O poder não passava para ele. A visita acabou levando a uma discussão prolon-

gada, sobre se Susan devia ir para o norte com Atlendor, e todo o tempo a conversa girava,

indo dos elfos para o Brollachan, já que ambos eram as maiores preocupações de Albanac

no momento.

— É que eu não quero sair daqui — explicara ele — e deixar vocês para trás, com o

Brollachan solto por aí. Ele não tem aparecido, mas temos de encontrá -lo, porque não

temos a menor pista de onde ele pode estar escondido. E muito em breve os lios-alfar vão

partir, e eu tenho de ir com eles. É uma escolha que eu não gostaria de ter que fazer.

Tinha sido uma discussão cansativa, que não levou a conclusão alguma. Mas, agora, lá

estava o Farol.

— Vamos até lá — propôs Susan.

— Está bem — disse Colin. — Mas não tem muita coisa pra se ver.

— Eu sei. Mas de qualquer modo, gostaria de ver a lua nascer. Imagino que não tenha

muita chance de ver a trilha, mas eu quero estar lá, saber como foi que você se sentiu. Se é

que não parece bobagem...

— Espere aí... — disse Colin.— E Bess e Gowther? Já está tarde, e ainda falta uma meia

hora para a lua nascer.

— Eles sabem onde a gente está — disse Susan, por cima do ombro, enquanto se

adiantava. — E não acho que Gowther vá ligar. Vamos!

Colin seguiu Susan pela encosta nua do Farol, e lá em cima os dois se sentaram nos

blocos de pedra. Ele apontou para a linha da trilha, com a maior exatidão que conseguia

lembrar. Depois, era só uma questão de esperar a lua e, em pouco tempo, os dois estavam

entediados e com frio.

— Você não tem fósforos? — perguntou Susan.

— Acho que não.

— Procure.

Colin virou os bolsos pelo avesso e, no fundo de um deles, entre migalhas e restos de

papel de bombom, encontrou um fósforo, daqueles que não precisam de caixa para

acender.

— Será que é seguro acender uma fogueira aqui? — perguntou Colin.

— Deve ser. Não tem nenhuma árvore por perto. E com essa areia em volta, o fogo não

se espalha.

As crianças então juntaram uns gravetos e, entre as árvores ao pé da colina, acharam

um pinheiro seco, caído havia algum tempo, já sem folhas e liso.

— Não faça uma fogueira fechada demais — disse Susan —, senão demora muito a

acender.

Num instante, o fogo pegou, do fósforo ao graveto, do graveto ao galho, até que a

madeira ficou em brasa. As chamas subiam, altas, e em segundos a pilha toda estava acesa.

Colin e Susan jogaram na fogueira toda a madeira que tinham recolhido, mas quanto mais

jogavam, mais depressa tudo queimava.

— Chega! — disse Colin. — Se a gente não tomar cuidado, vai escapar ao controle.

Acho que essa madeira está com resina demais.

Page 54: A LUA DE GOMRATH

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Mas Susan estava empolgada com a fogueira. Correu de novo até o pinheiro caído e

começou a puxar um galho mais pesado.

— Vem cá, Colin, dê uma ajuda! Com esse galho, vai!

— Não! — a voz de Colin, de repente, estava tensa. — Não ponha mais lenha. Alguma

coisa está errada. Estou com frio.

— É só o vento — disse ela. — Vamos, depressa! Para não apagar!

Ela jogou todo o peso puxando o galho e levou um tombo quando ele se quebrou do

tronco. Depois, começou a puxar a lenha morro acima.

Colin correu até perto dela e agarrou-a pelo braço.

— Sue! Você não está percebendo? A fogueira não está esquentando nada!

— Quem é que agora está trazendo fogo ao monte, na véspera de Gomrath? —

perguntou uma voz fina e gélida, bem atrás deles.

Colin e Susan se viraram.

As chamas formavam uma cortina escarlate entre o morro e o céu, e dentro delas,

fazendo parte delas, havia três homens. No primeiro momento, duas formas altas e seus

rostos disformes dançavam e se misturavam com os galhos ardentes do pinheiro, mutáveis

como todas as figuras que a imaginação vê nas sombras de uma fogueira. Mas enquanto as

crianças olhavam, eles foram ficando mais sólidos, mais definidos, independentes das

chamas por entre as quais tinham surgido. E, de repente, eram reais. E terríveis.

Estavam inteiramente vestidos de vermelho. Vermelhas eram suas túnicas, vermelhas

suas capas. Vermelhos eram seus olhos, vermelhas as longas cabeleiras presas atrás em

anéis de ouro vermelho. Três escudos vermelhos às costas, três lanças vermelhas nas mãos.

Três cavalos vermelhos entre as pernas, todos com arreios vermelhos. Tudo

completamente vermelho, armas, roupas e pêlos, tanto nos homens como nos cavalos.

— Quem... quem são vocês? — murmurou Colin. — O que desejam?

O cavaleiro do meio ficou em pé na sela, e ergueu uma lança brilhante sobre a cabeça.

— Ei, meu filho, grandes notícias! Bem despertos estão os corcéis que cavalgamos, os

corcéis do antigo monte. Bem despertos estamos nós, os Cavaleiros de Donn, os Guardas

dos Deuses da Caçada Selvagem, conhecidos como os Einheriar do Herlathing. Ei, meu

filho!

E arremessou a lança bem alto no ar. Ela faiscou quatro vezes, e ele a apanhou de

volta e a brandiu à sua frente. Em seguida, os três cavaleiros se levantaram devagar,

saindo da fogueira, e as chamas se espalharam pelo chão, escorrendo como se fossem

mercúrio vermelho. E os três se recortavam, escuros, contra o clarão do alto da colina, mas

farrapos da barba da luz ainda brincavam nas pontas de suas lanças.

— Corra! — gritou Colin para Susan.

Mas antes que conseguissem alcançar as árvores, houve um tropel de cascos, um

barulho de capas esvoaçando, e Colin e Susan foram levantados do chão por braços com

tendões de aço, e jogados de través sobre pescoços de cavalos que se arre messaram pela

noite como se o fim do mundo estivesse em seus calcanhares.

• • •

Quando o bracelete de prata foi dado a Susan por Angharad Mão-de-Ouro, a menina

ficou sabendo que, mesmo que ela não soubesse qual era o segredo de seu poder, ele

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jamais lhe falharia numa hora de necessidade. Por isso, agora, quando pelo meio do som

do sangue que latejava em suas têmporas e da trovoada que os cascos de cavalo faziam

junto a seus ouvidos, ela de repente vislumbrou o brilho do metal à luz da lua nascente.

Susan começou a bater no cavalo e no cavaleiro com o braço que tinha o bracelete. Mas não

fez o menor efeito. O cavaleiro agarrou o pulso dela e olhou o bracelete com a maior

indiferença. Depois, levantou-a com uma das mãos e a fez montar ereta no cavalo, bem à

sua frente. Não receava que ela se perdesse, porque galopavam a tamanha velocidade que

Susan agarrava a crina do animal com as duas mãos, e nem podia pensar em fugir ou em

dar mais golpes.

Em direção ao sul, lá se foram eles, passando pelo bosque do Moinho de Vento e pelo

bosque de Bent, pela Casa Alta e por Jenkins Hey, quase sete quilômetros pela noite afora,

descendo pelos fundos da Borda. Depois chegaram a um terreno aberto, largo, que parecia

um parque, e na frente deles erguia-se um morro, e no alto havia um grupo fechado de

pinheiros.

Os cavaleiros puxaram as rédeas e os dois que carregavam Susan e Colin

emparelharam com o chefe. De repente, a noite estava inteiramente silenciosa. Fiapos de

neblina pairavam no ar, e o morro se erguia, escuro, por entre eles.

O que ia à frente avançou até o sopé do morro, ergueu a lança e a atirou entre as

árvores. Com a velocidade, ela pegou fogo, a partir das chamas que corriam ao longo das

bordas da lâmina. Resvalou no tronco do pinheiro mais próximo e arremeteu de volta, bem

rápida, para a mão vermelha que a enviara.

As chamas do dardo se apagaram. Mas agora as árvores estavam em brasa. O fogo

rugia e se erguia, como tinha feito no Farol, e mais uma vez não esquentava nada, nem

parecia consumir as árvores. A voz do cavaleiro era uma espada, cortando a cadência

profunda das chamas:

— Bem despertos estejam os filhos de Argatron! Bem despertos Ulmrig, Ulmor,

Ulmbeg! Cavalguem, Guardas dos Deuses da Caçada Selvagem, os Einheriar do

Herlathing!

Uma brisa agitou a neblina, formando faixas que dançavam. As chamas tremeram.

Parecia que havia um movimento dentro delas, e vozes:

— Cavalguemos! Cavalguemos! A galope! A galope! E do fogo saíram três homens.

Suas capas eram brancas, presas com fechos de ouro, e cada um tinha na mão um

chicote. Seus cabelos eram amarelos, encaracolados como a cabeça de um carneiro. E seus

cavalos eram alvos como a primeira neve do inverno na montanha negra quando sopra o

vento do norte.

Assim que apareceram, os cavaleiros vermelhos se viraram e continuaram a galopar

pela noite adentro. Colin, pendurado por cima do pescoço do último cavalo, conseguia ver

as capas brancas que os seguiam, em fila.

Foi uma cavalgada curta, poucas centenas de metros pelo parque e pelo bosque até

Fernhill, a Colina das Samambaias, que tinha três pinheiros eretos bem no topo. Mais uma

vez a lança voou, mais uma vez as árvores arderam, mais uma vez a voz cha mou:

— Bem desperto esteja o filho de Dunarth, o rei do norte, o rei do monte! Desperte

Fiorn em sua colina! Cavalguemos, Guardas dos Deuses da Caçada Selvagem, os Einheriar

do Herlathing!

— Cavalgo! Cavalgo! A galope! A galope!

Page 56: A LUA DE GOMRATH

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Uma figura solitária surgiu do meio das árvores. Seu rosto era severo, com a testa

franzida, a barba bem aparada, dividida em duas. A cabeleira era negra, tremenda,

majestosa. Usava uma túnica de pêlo áspero, sem capa nem manto. Trazia um escudo

redondo, com cinco círculos de ouro e rebites de bronze branco, pendurado no pescoço. Na

mão, carregava um mangual de ferro, com sete correntes, enroladas três vezes, com três

quinas, e cada uma tinha na ponta sete nós cheios de pregos pontudos. Seu cavalo era

negro, de crina dourada.

E saíram todos cavalgando, os cavaleiros vermelhos, os brancos, e o rei selvagem,

pela Floresta dos Monges, e daí a uns dois quilômetros chegaram à Corcova d o Soldado,

com seu anel de pinheiros, onde se diz que em certas noites de inverno há estranhas luzes

que se movem. Mas agora havia uma única luz, e era vermelha.

— Bem desperto esteja Fallowman, o filho de Melimbor! Bem desperto esteja Bagda, o

filho de Toll! Cavalguemos, os Guardas dos Deuses da Caçada Selvagem, os Einheriar do

Herlathing!

— Cavalguemos! Cavalguemos! A galope! A galope! Cabeças redondas, de cabelos

negros, esses tinham um comprimento só, na nuca e na testa. Seus olhos brilhavam na

escuridão. Usavam hábitos pretos, de capuzes compridos, e tra ziam espadas de ranhuras

largas, bem equilibradas para dar golpes. Os cavalos eram completamente negros, até as

línguas.

Por bosques, vales e riachos eles se foram, por campos, sebes e alamedas, por

Capesthorne e Whisterfield, por mais de uma légua, Windyharbour, Withington,

Welltrough, e lá estava o Morro Largo, o velho Tunsted, e seus pinheiros se acenderam ao

toque da lança.

— Bem despertos estejam os filhos de Ormar! Bem despertos Maedoc, Midhir,

Mathramil! Cavalguemos, os Guardas dos Deuses da Caçada Selvagem, os Einheriar do

Herlathing!

— Cavalguemos! Cavalguemos! A galope! A galope! Suas capas eram azuis, como o

céu lavado pela chuva, suas cabeleiras amarelas se espalhavam sobre seus ombros.

Azagaias de cinco pontas traziam nas mãos, e em cada um de seus escu dos tinham

cinqüenta nós de ouro queimado, e o relevo de pedras preciosas. Brilhavam na noite como

se fossem raios do sol.

Os cascos de seus cavalos eram de bronze polido e o pêlo deles parecia tecido de ouro.

Agora os Einheriar estavam completos. Tomaram a direção de Alderley e do morro do

Farol, e por muito tempo os rastros dos cavalos ficaram sobre o capim e as pedras,

tamanha a fúria com que cavalgaram. E o ar por onde passavam ficava brilhante, de tantas

faíscas.

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• 10 •

O Senhor do Herlathing

olin achou que fosse morrer. Ondas de arrepio percorriam-no, cortando

momentaneamente a dor que cantava em sua cabeça e o ferimento em que se trans -

formara todo o seu corpo. E não conseguia mais chorar, pois os nervos e músculos

pareciam estar tão abalados que ficavam além de toda e qualquer coordenação, e limitava -

se a engolir em silêncio, como um peixe.

Para Susan, essa jornada ao Farol foi menos dura, mas sua cabeça estava entorpecida

pela velocidade e pelo choque, até que o clarão da fogueira começou a aparecer por entre

as árvores.

Os cavaleiros se aproximaram do Farol sem diminuir a velocidade. Quando chegaram

lá, fizeram um círculo em volta do monte, e puxaram as rédeas dos cavalos, de maneira

abrupta. O chefe subiu lentamente até o topo do monte e entrou na fogueira. Esticou a

lança para baixo e tocou o chão com a ponta dela. E Susan realizou seu desejo. A velha

trilha reta escorreu da lança, como uma faixa de aço derretido escorre de uma fornalha.

Mas não era mais um caminho prateado de luar, como

Colin vira, e sim um rio caudaloso, de ondas de chamas rubras, precipitando -se pelo meio

do bosque até se perder de vista. O cavaleiro levantou os dois braços e jogou a cabeça para

trás:

"Desperte aquele que está na Colina da Madrugada!

Desperte para a chama do Goloring!

Do calor do sol, do frio da lua, Venha, Garanhir! Gorlassar!

Venha, Senhor do Herlathing!"

Silêncio. Ninguém se mexeu. Depois, ao longe, da distância, veio uma voz, clara,

como uma mistura de árvores e vento, rios e luz de estrelas. Cada vez mais perto, mais

perto, cantando, selvagem:

"E não sou eu aquele que chamam de Gorlassar?

Não sou eu um príncipe das trevas?

Garanhir, o tormento da batalha!"

"Onde estão meus Ceifadores, com seus cantos de guerra

C

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e o tremor dos massacres em lanças e dardos?

Onde o estrondo dos escudos no clamor das espadas,

a mordida das lanças azuladas na carne,

a sede das flechas da ira, que bebem fundo,

vorazes e rubras nas lutas mortais?"

E por entre as árvores, surgiu a figura de um homem. Vinha trotando em direção ao

Farol pela velha trilha reta, e a luz brincava nos músculos de seu corpo, em padrões

ondulados de vermelho e preto. Era imenso e poderoso, mas tinha a graça de um animal.

Era alto, quase dois metros e meio, e corria sem esforço. Sua cara era comprida e fina, de

nariz pontudo e narinas frementes. Sobrancelhas da noite, olhos escuros como rubis,

voltados para o alto. Os cabelos eram cachos vermelhos. Entre os cachos, crescia a galhada

de um veado. O cavaleiro respondeu:

"Velozes os cascos, livre o vento!

Despertos estamos todos diante das chamas do Goloring!

Do calor do sol, do frio da lua,

Viva Garanhir! Gorlassar!

O Senhor do Herlathing!"

Depois, recuou devagar e se afastou da fogueira. E quan do o recém-chegado veio até o

círculo e subiu, marchando, até o alto do monte, todos os cavalos se ajoelharam e os

cavaleiros ergueram os braços em silêncio.

Susan olhou para ele e não teve medo. Sua razão não podia aceitá -lo, mas algo

profundo, bem dentro dela, o aceitava. Entendia o que fizera com que os cavalos se

ajoelhassem. Estava diante do coração de todas as coisas selvagens. Diante do trovão, do

raio, da tempestade. Do ritmo lento das marés e das estações, do nascimento e da morte,

da necessidade de matar e da necessidade de construir. Os olhos dele estavam sobre ela, e

ela não tinha medo.

Ele ficou de pé no meio das chamas frias, sozinho e imóvel, e elas o contornavam e

tomavam sua forma, de tal maneira que ele era desenhado em sangue, e línguas escarlates

jorravam para cima, das pontas de seus chifres. Era como se atraísse para si a luz da

fogueira. Esta se encolhia e as chamas afundavam como se estivessem sendo puxadas para

dentro da carne dele. E crescia, não em tamanho, mas em poder, até que finalmente a única

luz ficou sendo a da lua, e ele estava em pé diante dela, negro.

Então, falou:

— Faz muito tempo desde a última vez que uma fogueira se acendeu no Goloring para

celebrar. Que homens se lembraram da véspera de Gomrath?

Os dois cavaleiros que levavam as crianças se adiantaram.

Colin sentiu que uns olhos profundos o varriam, e, sem fôlego, teve uma sensação de

euforia que levou embora qualquer dor de seu corpo.

— É bom acordar assim, com a lua na colina.

Havia em sua voz alguma coisa próxima ao riso, e ele se inclinou para endireitar Colin

em cima do pescoço do cavalo. Depois, virou-se para Susan, e ia dizer alguma coisa,

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quando o cavaleiro ergueu o braço da menina e mostrou a Marca de Fohla, alva, no braço

dela. Brilhava mais do que reflexos de prata, e os caracteres pretos gravados nela tremiam

como se tivessem vida.

Leve, ligeira e sem dizer uma palavra, a majestade escura se ajoelhou e a mão de

Susan foi tomada e posta em uma testa fria. Depois, ele se ergueu e levantou Colin e Susan

dos cavalos, depositando-os no topo do monte. Em seguida, virou-se.

— Cavalguem, Einheriar do Herlathing! A galope!

— Cavalguemos! Cavalguemos! A galope!

Tufos de capim, levantados pelos cascos, respingaram nas crianças. Por um instante, a

noite foi um tumulto de escuridão correndo, e em seguida os meninos ficaram sozinhos.

Sentaram-se nas pedras e se olharam.

— Isso... isso foi o que eu vi no quintal — disse Colin. — Foi o que me seguiu.

— Eles nem ligaram para o que nos acontecia — disse Susan, espantada. — Não

estavam a mínima interessados na gente.

— Ele me seguiu até a fazenda.

— Mas talvez tenha sido melhor assim — disse Susan. — Acho que não teríamos

muitas esperanças se achassem que a gente estava no caminho deles.

— Não foi muito bem-feito tudo isso?

Colin e Susan deram um pulo quando ouviram uma voz dizendo isso. Olharam na

direção de onde o som viera e viram um anão parado no meio das árvores.

— Uthecar! — gritou Colin, enquanto os dois corriam morro abaixo para encontrá-lo.

— Uthecar?

— Quem é você? — perguntou Susan. O anão olhou para eles.

— E agora? Como é que desmanchamos isso? — perguntou ele.

Estava vestido de negro, com uma espada na cintura, com punho dourado. Tinha

cabelos e barbas bem cortados, uma postura orgulhosa e voz firme, numa atitude que

exalava tanta autoridade que nem se podia imaginar que suas palavras fossem alguma

repreensão zangada.

— Desculpe... — disse Colin. — Mas o que fizemos de errado? Tudo isso foi culpa

nossa?

— Como não foi? Só mesmo uns tolos acenderiam uma fogueira no monte a qualquer

hora. Mas fazer isso justamente nesta noite, entre todas as noites do ano... E queimar lenha

de pinheiros... Onde é que Cadellin está com a cabeça para deixar vocês longe das vistas

dele? Mas venham, temos de ver o que esses seus amigos vão fazer. Pode ser que não seja

tarde demais para levá-los de volta aos montes.

— Nunca vamos conseguir alcançá-los! — exclamou Susan. — Saíram galopando como

o vento.

— Acho que não foram muito longe — disse o anão. — Vamos ver.

Saiu correndo e os meninos correram para acompanhá-lo.

— Mas afinal, o que é isso? — perguntou Colin. — Quem são eles? E quem é... ele?

— A Caçada Selvagem. O Herlathing. Foi isso que vocês soltaram em cima da gente.

Já não chegava ter despertado o Caçador... Só ele já daria um trabalhão. Mas agora que os

Einheriar cavalgam com ele, vamos ter de agir rapidamente, ou muitos serão aqueles que

vão dormir com luz nos olhos — e só os corvos saem ganhando com isso. Mas agora,

silêncio. Acho que estamos chegando perto deles.

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Tinham chegado ao alto de um penhasco sobre um vale. O anão rastejou até a borda e

olhou para baixo. Colin e Susan juntaram-se a ele, mas embora pudessem ouvir

movimento no sopé do penhasco, não conseguiam ver nada, pois a rocha era salien te em

relação ao chão lá embaixo. Foram rastejando até um ponto em que o penhasco dava lugar

a uma encosta mais suave, e dessa encosta puderam ver com clareza.

Estavam no Poço Sagrado, o segundo portão da Fundindélfia. Ao longo do caminho

que passava pelo poço, os Einheriar estavam enfileirados. E no poço, com o alto dos chi -

fres quase no mesmo nível que o rosto das crianças, estava Garanhir, o Caçador. Segurava

uma taça de algum metal branco e os cavaleiros a tomavam, um depois do outro, bebendo

concentrados. Depois, a levantavam e derramavam as últimas gotas sobre a cabeça, e

seguiam adiante.

Para cada cavaleiro, o Garanhir se adiantava e tornava a encher a taça c om a água do

poço. E a água brilhava, do mesmo leito que a velha trilha reta tinha brilhado com a lança,

e todo o pântano abaixo brilhava, vermelho.

O anão recuou da borda e fez um sinal para que as crianças o seguissem. Fez a volta

com eles pela cabeceira do vale e os levou até o lado oposto, onde podiam ver as silhuetas

dos Einheriar recortadas contra a penumbra.

— Chegamos tarde demais — disse o anão. — Agora que já beberam água do poço,

isso é tarefa para um mago. Pelas barbas do Dagda! Será que vamos ter de ficar

conversando até que tudo o que já dormiu desperte de novo? E bem que isso pode

acontecer, porque quando a Antiga Magia começa a se mexer, vai fundo — mesmo se não

tiver uma fogueira de pinheiros para ajudar!

Virou-se para Susan e perguntou:

— Escute: está vendo onde é que estamos? Os portões de ferro estão bem em cima

daquela fenda atrás de nós... Você tem como abri -los?

— Eu... acho que sim... — disse ela.

— Então vá avisar Cadellin. Diga a ele que os Einheriar estão cavalgando. Nós

ficamos de vigília.

— Está certo.

Susan desapareceu e poucos minutos depois a terra estremeceu debaixo deles,

enquanto o céu sobre a fenda se tingia de azul. Colin virou-se para olhar o Poço Sagrado.

Embora não houvesse muita luz, dava para ver que os cavaleiros estavam s e reunindo, e

dava para ouvir o som de cascos inquietos.

— Acho que eles já vão... — disse o menino. — O que fazemos agora?

Um barulho seco, de metal, foi a resposta. Ele olhou por cima do ombro e viu a lua

pálida se refletindo na espada de punho dourado, e também nos olhos atrás da espada.

— Vamos andando — disse o anão.

• • •

Quando entrou no túnel, Susan achou que tinha ouvido Colin gritar, mas o barulho da

rocha e dos portões abafou sua voz, se é que era mesmo a voz dele. Quando o eco

desapareceu, só havia o silêncio pulsando nos ouvidos dela. Susan hesitou. Esticou o braço

para tocar nos portões novamente. Mas disse a si mesma que, se alguma coisa tivesse

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começado a acontecer, havia ainda mais necessidade de que encontrasse Cadellin o quanto

antes. Então virou-se e saiu correndo pelo túnel.

Era o caminho mais comprido para a caverna do mago. Para chegar lá, tinha de passar

por todo o labirinto de Fundindélfia, e ela logo percebeu que não sabia o caminho. Nos

túneis, seus passos e sua respiração a envolviam, em ondas, mas por mais irritante que

isso fosse, não era nada perto da infinidade de cavernas numa névoa azul.

Finalmente, ela teve de parar para descansar. E enquanto se recostou, tremendo, numa

parede de caverna, sua razão foi maior que a urgência, e a partir de então começou a usar

os olhos. Mesmo assim, já tinha passado cerca de uma hora desde que deixara Colin ,

quando finalmente Susan encontrou um túnel que conhecia, e ainda levou uns dez minutos

para chegar até a caverna.

Uthecar e Albanac estavam com o mago.

— O que houve, Susan? — perguntou Albanac, levantando-se de um salto.

— Einheriar! Einheriar! O Caçador!

— Os Einheriar? — exclamou Cadellin. — Como é que você sabe?

Levantou-se e saiu correndo, subindo pelo túnel que levava ao Poço Sagrado.

— Espere! — gritou Susan. — Eles estão lá fora!

O mago nem lhe deu atenção, e logo depois dele corria Albanac, pouco adiante de

Uthecar. Quando Susan chegou ao poço, estavam todos parados no caminho, o anão

examinando o chão, e Cadellin vasculhando a planície com os olhos. A luz já sumira da

água e os bosques estavam silenciosos.

Mas então Uthecar disse:

— Eles estiveram aqui.

— E beberam água do poço — disse Albanac.

— Temos de encontrá-los — disse Cadellin. — Mas não sei se irão para os montes. A

coisa está feia.

— Pior do que isso — disse Uthecar. — Estou me lembrando de que hoje é a véspera

de Gomrath, e sinto cheiro de uma fogueira de pinheiros.

— Não é possível! — exclamou o mago.

— É... acho que a culpa foi nossa... — disse Susan. — Acendemos uma fogueira no alto

do Farol. Foi como tudo começou. Eles saíram do fogo.

— E por que cargas dágua vocês foram se meter a acender uma fogueira lá? —

perguntou Cadellin numa voz que deixou Susan com vontade de sair correndo.

—Estávamos esperando a lua nascer... e... estávamos com frio.

O mago sacudiu a cabeça.

— A culpa é minha — disse para Albanac. — Eu devia ter sido mais firme. Vamos,

estamos perdendo tempo. Temos de encontrar o rastro deles.

— Colin deve saber para onde foram — disse Susan. — Eles ficaram vigiando o que

acontecia aqui, estavam do outro lado do vale.

— Eles? — repetiu o mago.

— É... Ele e o anão. Estão junto aos portões de ferro.

— Que anão? — perguntou Uthecar. — Não há nenhum outro anão por aqui.

— Há, sim... — disse Susan. — Está vestido de preto e...

— Depressa! — interrompeu Uthecar. — Leve-nos até lá e não perca tempo falando.

Page 62: A LUA DE GOMRATH

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Susan sentiu um frio no coração. Partiu pelo caminho, e não disse uma palavra até

chegar ao lugar onde deixara Colin.

— Cadê eles? — perguntou, mesmo sabendo que não adiantava. — O que aconteceu?

— Vestido de preto, hein? — disse Uthecar. — E com uma espada de punho dourado?

— Isso mesmo. E o cinto e as tiras debaixo do joelho também eram de ouro.

— Você o conhece? — perguntou Cadellin.

— Se conheço? Se conheço aquela víbora? Conheço, e muito! Só não consigo é

imaginar o que o terá trazido de Bannawg, mas garanto que boa coisa não é. Porque uma

coisa eu lhe digo: pode procurar em todas as terras banhadas pelos sete mares, e nunca vai

encontrar um anão pior do que Pelis, o Falso.

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• 11 •

O Morrote de Goyt

á uma mente maligna agindo contra estas crianças — disse Cadellin. —

Podem ter certeza. Tinham voltado à caverna do mago e estavam

sentados em volta da longa mesa. Atlendor se juntara a eles.

— Mas o que podemos fazer? — perguntou Susan.

— Pensar e ter esperanças — disse Cadellin.

— Eu preferiria procurar e encontrar — disse Uthecar. — Invoque sua mágica,

Cadellin Argentesta, mas pode ser que agora haja mais necessidade de olhos e lâminas.

Pelis não está aqui. E onde ele estiver, é onde devo estar. Porque estou achan do que a

morte dele está guardada aqui na minha espada.

— Então vá — disse Cadellin. — Mas cuidado com a noite.

O anão se levantou e já ia entrar no túnel quando Atlendor falou:

— Uthecar Hornskin, seu Pele-de-Chifre, você não vai sozinho. Eu o acompanho.

— Como queira — disse Uthecar, e o anão e o elfo saíram juntos.

— A espada de um vai acabar entre as orelhas do outro, se o perigo não fizer que se

unam — disse Cadellin. — E você, Susan, fique aqui um pouco. Vou ter de sair. Mas

Albanac fica.

— Mas não posso! — disse Susan. — Tenho de fazer alguma coisa para encontrar

Colin.

— Se Atlendor e Uthecar não conseguirem encontrá-lo — disse o mago —, então você

também não conseguirá. Nesse caso, só nos resta recorrer à magia.

— Não posso ficar aqui parada, sem fazer nada!

— Susan! Parece que você não está entendendo! Lá fora está muito perigoso. Você tem

de ficar em Fundindélfia.

— Mas Bess vai enlouquecer.

— Que bom que você se lembrou dela — disse Cadellin.

— Viu só o sofrimento que vocês causam quando se misturam com o nosso mundo?

Vou falar com o fazendeiro Mossock agora, e digo a ele que você não volta para casa

enquanto este assunto não estiver completamente encerrado. Não posso garan tir que vai

ser fácil convencê-lo, mas você não me deixa outra escolha.

E apesar de todos os argumentos de Susan, Cadellin ficou firme. Quando, afinal, saiu

da caverna, os dois estavam zangados.

— Não posso ficar presa aqui dentro! — exclamou Susan.

— Tenho de sair e encontrar Colin!

—H

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Albanac enxugou o rosto com a mão. Parecia exausto.

— Não podemos fazer nada, Susan. Pode ser que a gente venha a precisar de todas as

nossas forças mais tarde, então é melhor dormir agora. Eu, por mim, sei que estou moído.

— Mas tenho de sair!

— E quanto tempo faz que está se roendo toda, louca para entrar? — disse Albanac. —

Vamos, tente dormir. Se não conseguir, sente-se e converse um pouco.

Susan se jogou sobre a cama de peles, e durante alguns minutos estava tão furiosa e

frustrada que nem conseguia conversar. Mas tinha muitas perguntas na cabeça, e daí a

pouco começou a falar.

— Albanac, quem é o Caçador? E o que foi que fizemos?

— Ele faz parte da Antiga Magia. E mesmo que Cadellin não concorde, acho que o que

vocês fizeram não foi por acaso. A Antiga Magia foi despertada, e se moveu para dentro

de vocês, e acho que foi ela que os levou até o Farol. Há muito, muito tempo, antes que ela

caísse no sono, esta era a noite em que ficava mais forte, a véspera de Gomrath, uma das

quatro noites do ano em que se fundem o Tempo e a Eternidade. E nesse tempo se acendia

uma fogueira de pinheiros no Goloring — onde hoje é o Farol — para trazer os Einheriar

dos montes e o Caçador do Tor Brilhante. Porque a Antiga Magia é magia da lua e do sol, e

é também magia do sangue, e é aí que reside o poder (e também a necessidade) do

Caçador. Ele vem de um tempo muito cruel no mundo. Os homens mudaram muito desde

a época em que o cobriam de honras.

— Você diz a toda hora que a Antiga Magia foi despertada — disse Susan—, mas se

ela é assim tão forte, como é que morreu?

— Por obra de Cadellin — disse Albanac. — Para os magos, e sua Alta Magia, de

pensamentos e encantamentos, a Antiga Magia era um obstáculo, um poder sem forma

nem ordem. Então, tentaram destruí-la. Mas não podia ser destruída — no máximo, foi

dormir. E nesta temporada chamada de Gomrath, que dura sete noites, o sono dela é muito

leve.

— Então não tem nada de mau com ela — disse Susan. — Só está atrapalhando.

— Tem razão. Pode-se até dizer que os magos não tinham o direito de fazer o que

fizeram. Mas à medida que o tempo passa, o mundo muda. E acontece que, realmente, a

Antiga Magia ficou errada para estes tempos. Não se encaixa com os padrões atuais de

bem e mal.

— Mas é mais natural que todos esses encantamentos — disse Susan. — Acho que a

entendo melhor do que essas coisas todas aqui.

Albanac olhou para ela.

— Pode ser. Porque também tem outra coisa: é uma magia de mulher. E quanto mais

vejo, mais percebo que a Marca de Fohla faz parte dela.

— O que é que o Caçador faz? Para que serve?

— Faz? Susan, ele não faz, ele é. Basta isso. Essa é a diferença entre as duas magias. A

Alta Magia baseia-se na razão. A Antiga Magia faz parte das coisas. Não serve a nenhum

propósito.

Susan podia sentir que o que Albanac dizia era verdade, embora não pudesse

entender exatamente. Pensou de novo em Colin. Ela devia ter parado quando ouviu o grito

dele. Pelis, o Falso.

— Albanac?

Page 65: A LUA DE GOMRATH

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— Hummm?

Ela se virou para olhar. Albanac estava sentado, com a cabeça descansando sobre os

braços.

— Nada...

A menina ficou ouvindo a respiração de Albanac, cada vez mais regular e mais

profunda. Ele estava dormindo.

E não há mais ninguém aqui, pensou. O túnel vai direto ao Poço Sagrado. Como era

mesmo? Emalagra?

Rodeou a mesa em silêncio, prestando atenção em cada passo, até que chegou à

parede atrás do poço. Pôs a mão na fenda comprida, sobre a pedra, e disse a palavra que

tinha o poder.

O ranger da pedra ecoou pelo túnel e Susan forçou a passagem pela abertura assim

que houve espaço para seu ombro. Depois, saiu correndo.

• • •

Uthecar e Atlendor estavam sentados ao luar, no banco de madeira da Pedra do

Castelo, uma elevação que se destacava das árvores, acima da planície.

— Ele não está no bosque — disse Uthecar. — E fora daqui, é o vasto mundo.

— Se não está no bosque — disse Atlendor —, será que pode estar embaixo dele?

— Não é que o lios-alfar é esperto? — disse Uthecar. — Pois é exatamente isso que

Pelis, o Falso, é capaz de fazer... Ele sabe que vamos procurar, e podemos ir longe atrás

dele. Que lugar melhor para se esconder do que onde foi visto pela últi ma vez? Há alguns

lugares perto de Saddlebole, bem perto dos portões de ferro... Vamos, depressa!

Saíram correndo pelos bosques, passaram o Poço Sagrado, passaram o lugar onde

Colin e o anão tinham desaparecido, passaram os portões de ferro e chegaram a um oco,

bem por cima de uma encosta escura, coberta de faias. Lá havia muitos recessos, cavernas

e túneis espremidos por entre as pedras. Atlendor sacou a espada e se aproximou de um

dos túneis. Estava tão bloqueado na entrada que até ele tinha de rastejar para entrar.

— Deixe disso! — falou Uthecar. — Seus olhos não servem para isso. Se ele estiver aí

dentro, o seu destino é a morte gelada.

— Mas tenho nariz para isso! — disse Atlendor. — A caverna onde se esconde um

anão é inconfundível.

— Então, vamos a ela!

Uthecar deu um passo atrás, com os olhos brilhando ferozes, e ficou vendo os quadris

do elfo deslizarem para dentro da abertura.

— Ela afunda um bocado para dentro do morro — disse Atlendor —, e não há espaço

para desembainhar uma espada. Sem dúvida, o ar é muito fedorento, mas duvido que ele

esteja aqui.

Uthecar xingou e se virou, com raiva. E quando fez isso, vislumbrou uma boca cheia

de presas, rosnando, e olhos de fogo verde montados numa cabeça larga, com orelhas

curtas saindo do alto achatado de um crânio, para os lados, e umas garras bran cas

apontadas para ele, e tudo isso vindo a toda velocidade pelo ar. Sem nem pensar, seus

braços protegeram o rosto, e ele caiu no chão, derrubado por um golpe violento. Quando

tentava se equilibrar, Uthecar viu que não era o objetivo imediato do ataque, pois o vulto

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peludo já estava metido até a metade na abertura pela qual Atlendor tinha passado. Nem

havia tempo de puxar a espada. Uthecar saltou para adiante, e assim conseguiu agarrar

com ambas as mãos a cauda curta e felpuda, enquanto os flancos desapareciam lá dentr o.

Era como se estivesse segurando uma mola meio solta, com uma força irresistível.

Uthecar plantou uma perna de cada lado do buraco e se jogou para trás. As patas de trás o

escoiceavam, mas ele conseguiu evitá-las. Pulando de um lado para outro, conseguiu

evitar que elas ganhassem terreno. Isso era o suficiente para empatar um pouco a luta, mas

ele sabia que não conseguiria agüentar por muito tempo. E a voz abafada de Atlendor,

reclamando lá de dentro, não ajudava muito. Evidentemente, ele não fazia idéia do que

estava acontecendo.

— Seu pêlo de chifre de um olho só! O que é que está bloqueando o buraco?

— Se esta porcaria de rabo se partir — gritou Uthecar... — a sua... garganta... fica

sabendo... num instantinho!

Parecia que os ombros de Uthecar iam se soltar das costas dele, e sentia que os pulsos

estavam perdendo a capacidade de agarrar. Não veio nenhuma resposta de Atlendor.

De repente, o corpo à sua frente esperneou, e ficou mole. E antes que ele pudesse se

preparar, toda a resistência desapareceu e caiu para trás, puxando um peso morto, que

veio por cima dele.

Uthecar se levantou e olhou o corpo a seus pés. Era um gato selvagem, imenso, de

mais de um metro, que tinha sido esfaqueado na garganta. Junto à saída do túnel,

Atlendor estava de pé, limpando o sangue da espada num tufo de capim.

— Um palugue... — disse Uthecar. — Então era isso. Estou achando que nestes bosques

há coisa demais que veio de muito além de Bannawg.

• • •

Toda vez que Colin tropeçava, a espada cutucava suas cos telas. Não era fácil manter a

velocidade que o anão exigia, num terreno daqueles, e de noite.

Nem o anão deixava que ele falasse. Um empurrão extra era a resposta cada vez que

Colin abria a boca.

Quando chegaram à Ponta das Tormentas, o anão parou e assobiou baixinho. Uma voz

respondeu do outro lado das pedras. O som dela deixou a pele de Colin arrepiada. Era

fria, aguda, e difícil de identificar, não dava nem para saber se era animal ou não. Depois,

na beirada das árvores, alguma coisa se mexeu e começou a vir em direção a Co lin e o

anão. Era um gato selvagem. Atrás dele vinham muitos outros. Cada vez mais, vinham

saindo das árvores, e daí a pouco o chão estava inteiramente tomado por eles, até parecia

que estava coberto por um casaco de pêlos arrepiados.

Os gatos ficaram girando em torno de Colin e começaram a encará-lo. O menino

estava cercado por pedras de luz verde, brilhando. O anão embainhou a espada. Uma

parte dos gatos se agrupou do lado de Colin, como se fosse uma escolta. Aperta vam-se e

estavam bem próximos, mas não o tocaram. Os outros se dispersaram e desapareceram por

entre as árvores, separando-se para ir à caça.

A partir da Ponta das Tormentas, Colin correu até que saí ram do bosque. Não tinha

escolha. Ou melhor, tinha, mas cada vez que diminuía o passo, os sil vos atrás dele e os

olhos que o encaravam faziam com que rapidamente escolhesse correr. Mas depois que

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chegaram aos campos, o anão relaxou um pouco, e passou a caminhar. O andar deslizante

dos gatos selvagens tornou-se então um tapete macio em movimento.

Viajaram para o leste a noite toda, sob a lua minguante. Passaram por Adder's Moss,

por Withenlee e pela Colina das Lebres, por Tytheringston e depois pelos morros que

ficam acima de Swanscoe, subindo e descendo sulcos que pareciam ondas — Kerridge e

Lamaload, Nab End e Oldgate Nick, desceram o brejo do Hoo e subiram o Morrote de

Goyt, quilômetros e quilômetros de terra sem árvore nenhuma, quebrada apenas por

paredões de arenito. E finalmente, bem no fundo do pântano, chegaram a uma colina

pequena e arredondada, coberta de moitas de rododendro, bem fechadas. E em volta dessa

colina, subia uma trilha curva.

Seguiram a trilha pelo rododendro azaléias adentro. Distante, lá embaixo à direita,

ouvia-se um riacho cantar. No alto da trilha havia algo que parecia umas ruínas, de uns

terraços ajardinados, mas com muito mato, abandonado. Colin, cujo medo zangado já

tinha sido, há muito tempo, substituído pela exaustão, foi ficando cada vez mais

preocupado. Havia algo nesse lugar, nesse jardim todo planejado no meio das montanhas,

que decididamente não era nada bom.

A trilha se dividiu e os gatos fizeram Colin ir pelo lado da esquerda. Durante alguns

metros, andaram no plano, e depois havia uma curva fechada. Ao fazer a curva, Colin

parou, apesar dos gatos.

Bem à sua frente, no meio de um platô gramado, estava uma casa — grande, feia,

pesada, feita de pedra. A lua brilhava, pálida, sobre ela. Mas a luz que saía das janelas em

arco e da porta aberta também parecia ser luar.

— Chegamos — disse o anão.

Foi a primeira coisa que ele falou em horas. Os gatos se adiantaram e nesse instante uma

nuvem deslizou sobre a lua.

— Fiquem! — gritou o anão.

Mas Colin já tinha parado por conta própria. Porque quando a lua desapareceu, a luz

de dentro da casa se apagou. Mal dava para ver a casa contra a colina atrás dela. Mas o

que dava para ver fez Colin ficar olhando, espantado. Podia ser um truque da escuridão,

mas de alguma forma a construção perdera sua forma, se dissolvera. Claro, dava para ter

certeza de que era o céu o que via por uma das janelas, dava para distinguir uma estrela. E

então a nuvem passou, a lua brilhou sobre a casa, e as janelas voltaram a lançar luz sobre o

gramado. O anão puxou a espada.

— Agora corra — disse, empurrando Colin para a casa. Os gatos se lançaram para a

frente, levando-o com eles pela porta.

Colin se achou numa saleta de entrada, fria, naquela luz sem sombras. Em frente dele,

havia uma escadaria de pedra, larga. E do alto da escada, falou uma voz rouca.

— Seja muito bem-vindo. Nossos dentes já estavam enferrujando de tanto ansiar por

sua carne.

Colin reconheceu a voz. Não precisava nem olhar para a mulher que estava descendo

a escada, para reconhecer que era a Morrigana.

Era robusta e atarracada, de cabeça larga enfiada nos ombros, e sua boca larga era tão

cruel quanto os olhos. Vestia uma túnica azul tão escura que parecia preta, amarrada com

um cordão escarlate. Os gatos abriam-lhe caminho, e se esfregavam nela, enquanto a

mulher caminhava em direção a Colin.

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PDL – Projeto Democratização da Leitura

— Fique tranqüilo. Fica por nossa conta garantir que nem um pedacinho de você vai

escapar do lugar para o qual você veio — a não ser o que os pássaros carregarem em suas

garras.

Dizendo isso, esticou o braço para passar a mão num dos gatos. E Colin viu que ela

usava um bracelete. Era igualzinho ao de Susan, mas as cores eram ao contrário: as letras

eram pálidas, de prata, e o bracelete era negro.

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• 12 •

O lago

thecar e Atlendor estavam sentados na caverna do mago, limpando os ferimentos.

— Eu é que vou lá fora esta noite — disse o anão. — Se Susan tiver passado por

esses portões, então não há nenhum pedacinho dela para a gente achar. Ou se há,

nem vale a pena achar. Tem um palugue em cada árvore! Tivemos de matar uns vinte para

conseguir chegar de Saddlebole até o portão.

— Tanto ele como o elfo estavam cobertos de arranhões profundos, e com as roupas

em farrapos.

— Ela tem a Marca, pode ser que isso a proteja — disse Albanac. — Mas tenho que ir

atrás dela.

— Mas você não tem a Marca — disse Uthecar. — Se Susan ainda estiver viva,

mostrou que não precisa da gente. Se você quiser mesmo ir atrás dela, é melhor esperar

que amanheça. Se sair agora, os dentes de um palugue vão se regalar no seu pescoço.

• • •

O barulho da rocha se abrindo fizera Susan perder o controle, de tão nervosa. Achou

que Albanac vinha logo atrás dela, e saiu correndo, às cegas, mesmo sem ter a menor idéia

de onde deveria procurar Colin. Não reparou no caminho nem na dis tância. Em algum

ponto, no meio do bosque, parou para recuperar o fôlego. O tempo todo a urgência a

empurrava, como se cada passo estivesse apenas a uma fração de segundo ou a um

centímetro adiante de uma mão que fosse apanhá-la. Quando parou, sentiu que o ar

sossegou em sua volta, como se tivesse perdido a corrida. Quase dava para ouvir o som

dele parando de repente. Mas não era imaginação: houvera mesmo um movimento que

cessara de repente e virara silêncio. Susan agora tinha a impressão de que tudo na noite

convergia para um único ponto. E o ponto era ela.

Tentava raciocinar, mas era inútil, porque sua razão lhe dizia que não tinha a menor

possibilidade de encontrar Colin. A concentração no ar vibrava, como cordas de um

instrumento que alguém tivesse tangido. Susan olhava em volta, procurando, com tanta

força, que parecia que aquele negrume estava com manchinhas de luz, floquinhos verdes.

E depois notou que, em vez de irem mudando para uns padrões de arco -íris, como essas

luzes sempre fazem quando a gente força os olhos no escuro, desta vez elas não mudava m

de cor — e ainda se agrupavam, aos pares, bem junto ao chão. Eram olhos! Estava cercada

por um campo de olhos verdes, duros, que não piscavam. E todos esta vam fixos nela.

U

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Os gatos se aproximaram. Agora Susan podia distingui-los individualmente. Havia

duas ou três dúzias de gatos, que andavam de pernas duras e com os pêlos eriçados. Susan

estava assustada demais para se mexer, mesmo vendo que eles se aproxi mavam, até que

um deles assobiou e a atacou com suas garras.

Antes que tivesse tempo de perceber que o golpe não iria atingi-la, Susan já tinha

pulado na direção oposta. E então os gatos recuaram e abriram-lhe uma passagem verde. A

intenção deles ficou evidente. Podia se mover com toda liberdade, desde que fosse para

onde eles queriam que fosse. Mas se ela se desviasse dessa linha, ou tentasse parar, logo

mostravam suas garras.

Ela sabia que esses gatos faziam parte do tal perigo que Cadellin tanto temia, fosse ele

qual fosse. Havia inteligência demais em seus movimentos, para que fossem animais

comuns — e esse era apenas seu aspecto menos estranho.

E assim, durante algum tempo, exatamente como acontecera anteriormente com Colin,

Susan foi tocada pela floresta, como se fosse um rebanho e o pastor a levasse. Os gatos não

encostavam nela, mas andavam muito perto e a faziam correr. E foi justamente essa pressa

que acabou revelando a Susan a arma que tinha contra eles.

Estava tropeçando quase a cada passo que dava ao luar, mas de repente torceu o

tornozelo de mau jeito e perdeu o equilíbrio. Esticou o braço para se proteger com a mão

na queda — e os gatos pularam para trás, evitando aquela mão como se fosse car vão em

brasa. Susan ficou encolhida, de joelhos, olhando o círculo de gatos. Levou algum tempo

para se dar conta, conscientemente, daquele fato novo. Estendeu o pulso para a frente, e

eles se jogaram para trás, cuspindo. Tinham medo da Marca! Então ela se levantou, tirou o

bracelete do pulso e o agarrou de jeito que formasse uma faixa em torno dos nós dos

dedos. Depois deu um passo à frente, balançando a mão diante de si, num arco lento. Os

gatos cederam, apesar de rosnarem, sacudirem a cabeça de um lado para o outro e a

fuzilarem com os olhos, de puro ódio.

Susan não tinha a menor idéia de onde estava. Mas a melhor direção a seguir devia ser a

que a fizesse voltar por onde viera. Devagar, virou-se e começou a andar. Os gatos a deixa-

ram passar, embora continuassem tão grudados nela como antes. A diferença era que

agora a escolha era dela.

Passou a ser uma questão de lutar passo a passo, porque os gatos não cediam um

milímetro por conta própria. Se Susan tivesse conseguido manter as forças e enfrentar

mentalmente tudo o que se concentrava contra ela, sem dúvida teria chega do a

Fundindélfia sã e salva. Mas, embora a compulsão física que a pressionava tivesse

diminuído, a maldade continuava a mesma e corroía sua vontade. E ela estava muito

assustada e sozinha. A exaltação do primeiro momento de triunfo logo baixou. Entendia

agora que Cadellin tinha muito mais razão do que ela pensava.

A menina conseguiu agüentar talvez por uma meia hora — e nesse tempo só avançou

cerca de um quilômetro e meio. Não era muito, nem chegara muito longe. Era pressão

demais. Exibindo a Marca à sua frente, seguia adiante, sem nenhum ou tro objetivo além de

escapar imediatamente daqueles olhos que a perseguiam. E, é evidente, não conseguiu. Os

gatos continuavam em volta dela, não mais girando em círculos, mas cada vez mais perto,

quase a guiando, para qualquer lugar, não importava onde, desde que foss e cada vez mais

depressa, mais depressa, às cegas, por entre o bosque, até que chegasse sua hora. E ela

chegou.

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Susan estava correndo tão atarantada que só por sorte não tinha caído. Mas de repente

chegou ao alto de um barranco e o chão faltou debaixo de seus pés. Caiu de pouco mais do

que sua própria altura, e num caminho largo. Mas caiu de mau jeito. E com a força da

corrida, caiu de cabeça. A Marca escapou de sua mão e rolou pela areia até a beirada mais

distante do caminho.

Susan pulou para agarrá-la, mas já era tarde demais. Na beirada do caminho, a

encosta descia íngreme até a planície, numa mistura de areia, cascalho e pedras, e o

bracelete já ganhava velocidade e rolava cada vez mais rápido ladeira abaixo. Susan olhou

por cima dos ombros e não parou. Os gatos estavam a uns dez metros dela, e algo neles lhe

dizia que até já tinham esquecido seu objetivo original e só queriam se vingar. Ela pulou

pela encosta, atrás do bracelete, e foi descendo a toda velocidade, sem nem pensar no

quanto era íngreme. Depois de alguns passos, seu próprio peso a empurrava. Suas pernas

davam saltos, cada um maior que o outro, os pés pesando como pêndulos. A menina

tentou se inclinar para trás, diminuir, mas não conseguia controlar o corpo. E a Marca de

Fohla seguia à sua frente, se afastando, mais depressa que ela, cada vez mais rápida,

dançando por cima das pedras. E, de repente, a pulsei ra bateu numa pedra maior e pulou

no ar. Lá no alto, parou e ficou suspensa, girando, mas não caiu.

Primeiro, o bracelete era uma faixa clara de prata, refletindo a lua, mas depois

começou a engrossar, virando uma espécie de fogueira branca. O fogo foi crescendo e em

pouco tempo não havia mais bracelete, só um disco de luz com um miolo preto redondo,

onde antes ficava o espaço cercado pela pulseira. E esse disco cresceu, cresceu, até que

ocupou toda a visão de Susan. E quando desapareceram as últimas beiradas da noi te,

parecia que as bordas de fogo chegavam mais perto dela, e o miolo preto se afastava,

embora não diminuísse de tamanho. Mas agora, em vez de um disco, era um túnel que

girava, e Susan estava correndo para dentro dele, sem conseguir parar.

O chão fugia a seus pés, e ela continuava em disparada, ainda sem controle, mas o

peso oscilante desaparecera de suas pernas. O túnel girava em torno dela, e por isso tinha

a impressão de estar de vez em quando correndo também no teto e nas paredes. Perdera a

noção do tempo que durava aquela corrida desenfreada, mas o círculo preto lá adiante,

que chamava para si toda a perspectiva e, portanto, devia ser o fim do túnel, ia aos poucos

aumentando de tamanho. E seu pretume não era mais tão uniforme, mas começava a se

manchar de cinzento. O contraste com o círculo foi aumentando, as cores começaram a

emergir, e daí a pouco Susan estava distinguindo árvores, água e a luz do sol. Depois o

círculo ficou maior do que o anel de fogo e logo já era uma paisagem completa, meio

enevoada, cercada de prata. Tudo foi ficando mais fino, como a neblina da manhã, e Susan

saiu do túnel, ainda correndo, em cima de um gramado. Parou, sem fôlego, e olhou em

volta.

Logo reconheceu onde estava: numa ilha cheia de árvores, no meio de Redesmere, um

laguinho que ficava a uns sete quilômetros ao sul de Alderley. Mas era dia, e pelo calor do

ar, o brilho da água, os passarinhos cantando, e o verde das árvores do outro lado do lago,

era claro que também era verão.

Algo igualmente estranho já a trouxera a essa mesma ilha antes, e foi naquela ocasião

que pusera o bracelete no braço pela primeira vez. Seu coração ficou mais leve, enquanto

olhava em volta, procurando a pessoa que sabia que iria achar — Angharad Mão-de-Ouro,

a Dama do Lago. E lá estava Angharad, sentada entre as árvores, alta, esbelta, vestida

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numa túnica longa, com seus cabelos cor de ouro, sua pele alva como a neve de uma noite,

suas faces suaves e rosadas como as flores da dedaleira. E na mão dela estava o bracelete

de Susan.

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• 13 •

O bodaque

ngharad sorriu:

— Já é hora de você saber melhor qual é seu lugar nisto tudo... — disse, enquanto

prendia o bracelete em volta do pulso de Susan. — Venha comigo.

Pegou Susan pela mão e foram por entre as árvores até uma clareira, onde se

sentaram.

Enquanto Angharad falava, Susan sentia o alívio de não ter mais de carregar o peso da

solidão. Angharad sabia tudo o que tinha acontecido, não era pre ciso explicar nada a ela.

— Muito pouco disso tudo aconteceu por acaso — disse ela. — Nem as coisas boas,

nem as más. E tomara que possa ficar sobre seus ombros.

— Nos meus ombros? — repetiu Susan. — Por quê?

— Em primeiro lugar é bom saber que todo o perigo que ameaça vocês vem da

Morrigana.

— A Morrigana?

— Ela mesma. Está por aqui, e seu coração está cheio de vingança. Vai custar muito a

recuperar todo o seu antigo poder, mas mesmo assim é uma ameaça ao mundo, e está

inteiramente voltada contra você. Nesse momento, Colin está nas mãos dela. E pretende

usá-lo para destruir você, se puder. Porque a Marca de Fohla é uma proteção contra ela,

embora não vá ser assim para sempre.

— Mas por que eu? Que importância tenho? Não entendo nada de magia. Por que é

que você ou Cadellin não podem cuidar dela?

— Quando você usa a Marca, está vestindo um destino — disse Angharad. — Era isso

que Cadellin temia. E a esta altura, só por seu intermédio é que nós podem os atuar.

Porque, você entende, esta magia é da lua, e nós fazemos parte dela.

Mostrou o pulso e Susan viu nele um bracelete branco.

— Nosso poder cresce e diminui, com a lua. O meu é o da lua cheia, o de Morrigana é

o da lua velha. Agora estamos na lua velha, então quem está forte é ela.

— E onde é que entro nisso? — perguntou Susan.

— Você é jovem e seu bracelete é da lua jovem. Então você pode ser mais do que a

Morrigana, se tiver coragem. Posso botar você no caminho agora, e ajudá-la a se proteger

contra a Morrigana enquanto a lua está velha, mas não posso fazer mais do que isso. O que

acha? Está disposta a ajudar?

A

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— Claro que estou. Não tenho escolha, afinal de contas... — disse Susan. — Ela vai

continuar me perseguindo, aconteça o que acontecer. E Colin não tem a menor chance de

se salvar se eu não ajudar.

— É isso mesmo — disse Angharad. — O desejo de vingança dela é imenso. Mas agora

ela sabe que você está usando a Marca, se é que não sabia antes. A lua nova sempre lhe

causa medo, principalmente nesta época, porque é a lua de Gomrath, quando nossa magia

era a mais forte do mundo e ainda pode vir a ser. Por isso, a Morrigana vai tentar destruí-

la antes que você ganhe o poder. Vai ter de travar uma guerra com ela, e ven cê-la. Se

conseguir, pode ser que nunca mais nos ameace. Se falhar, pode ser que cresça tanto, que

nada mais a detenha.

Em seguida, Angharad deu uma faixa de couro a Susan. Nela estava pendurado uma

cornetinha curva, branca como marfim, com embocadura e bordos de ouro.

— Tome isto. Ela, com sua arte, vai chamar outras potências. Você tem muito pouca

coisa. Por isso, leve esta corneta. É a terceira coisa mais valiosa que existe e se chama

Anghalac. Moriath deu-a a Finn, Finn a Camha, e Camha a mim. Toque esta corneta se

tudo estiver perdido, mas apenas nesse caso. Porque quando Anghalac soar, pode ser que

você nunca mais tenha paz, nem no círculo do sol, nem às escondidas da lua. Não se

esqueça: só se tudo estiver perdido.

— Vou lembrar — disse Susan.

A magia estava acabando. A ilha se afastava dela e ia para a terra do sono. As últimas

palavras de Angharad vieram de muito longe, e ficaram ecoando na cabeça da menina. Ela

não conseguia ficar acordada. Sua mente ia afundando na escuridão, muito além do

alcance dos sonhos.

Durante muito tempo, antes de abrir os olhos, Susan ouviu o barulho da água. Foi

esse o som que a acordou de mansinho. Depois, ela se virou de costas e ficou olhando as

estrelas. Estava na margem de um rio, que corria pelo fundo de um vale, entre colinas altas

e ermas. Mas perto havia um portão de pedra. Além dele, uma estrada levava para dentro

de um renque de árvores.

Havia outra estrada, seguindo o rio. Mas Susan foi atraída pela que se metia entre as

árvores. Estrada, vale, céu, nada disso tinha vida. Mas o portão era estranho, além do

simples fato de já estar ali, num lugar daqueles. Examinou-o de perto. Era de ferro,

fechado com corrente e cadeado, e tudo estava enferrujado.

Susan subiu, pulou o portão e começou a andar pela estradinha. À esquerda, um

riacho descia até o rio. Alguns metros adiante, moitas de rododendro se fechavam. A

estrada era reta, e dava para ver que já fora larga um dia, mas os rododendros

proliferavam, abandonados, e agora a passagem se reduzia a uma faixa de areia, que

refletia muito de leve o amarelado da lua meio torta.

Ouvia a água gargarejando entre as moitas, e esse era o único ruído, que ia ficando

cada vez mais fundo, à medida que o caminho subia sobre a trincheira que o riacho cortara

entre as pedras. E por toda parte, os rododendros sufocavam o vale. Era uma massa que

pendia sobre Susan, como uma ameaça. Ela sentia que aqueles milhões de folhas, todas

elas acres, peludas, respirando, vivas, se juntavam para formar um grande corpo de

células verdes, e que em conjunto tinham uma consciência que era animal. Podia ser

apenas imaginação, mas o efeito sobre ela era aguçar seus sentidos, e movia -se com a

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delicadeza de uma criatura selvagem, evitando gravetos e pedras soltas quase ins -

tintivamente, sem duvidar nem por um instante que estava perto de Colin.

Por duas vezes o caminho cruzou o riacho, e nesses pontos havia pontes de pedra,

com balaústres meio soltos, quase caindo. A segunda dessas pontes ficava a quase um

quilômetro do portão e, ao alcançá-la, Susan estava no auge de sua sensibilidade aguda.

Seus olhos aproveitavam o menor fiapo de luz, e ela conseguia ver tudo o que havia no

caminho, e tudo o que os rododendros permitiam, nas bordas. A segunda ponte ficava

numa encruzilhada do vale: havia uma colina coberta de arbustos e o riacho e outro

riozinho fluíam em volta, cada um por um lado, juntando-se na ponte. O caminho seguia

pelo lado esquerdo do vale. E de pé, junto à ponte, à sombra dos rodo dendros, imóvel,

havia um vulto que parecia um homem.

Ele estava segurando uma lança e um escudo redondo, pequeno. A luz batia no alto de

sua cabeça, e tocava seu peito e ombros, mas todo o resto estava na sombra. E estava tão

quieto que Susan nem podia ter certeza de que não era uma estátua esquisita.

A menina ficou olhando, por alguns minutos, mas ele não fez o menor movimento,

não mostrou o mínimo sinal de vida que a ajudasse a decidir. Ela não podia nem pensar

em voltar. Sabia que tinha de ir em frente, de qualquer jeito, e que o risco de passar pelo

vulto na ponte era grande demais.

Não adiantava tentar forçar uma passagem pelo meio do mato. O único jeito era ir

pelo riacho, que nesse ponto não ficava muito abaixo do caminho. Susan recuou até ficar

fora da vista da ponte, e depois se abaixou pela margem e entrou na água.

Era um riacho bem rasinho, mas muito cheio de pedras, e de vez em quando tinha uns

poços mais fundos, em que a água batia na sua cintura. Não dava para andar em silêncio,

mas o rumor da água correndo sobre as pedras cobria qualquer barulho que fizesse, e ela

teve o cuidado de ficar bem grudada na margem, onde as sombras eram mais espessas. A

ponte foi a pior parte. Era baixa, com o ar fedendo a limo, e Susan a toda hora caía sobre

coisas que se mexiam e se afastavam dela na escuridão.

Depois de passar pela ponte, descobriu que as margens ficavam mais altas e íngremes,

mas continuou por mais uns cem metros antes de ousar sair da água. A margem aí era um

barranco quase vertical, de terra e húmus molhado. Oito ou nove vezes Susan meteu as

unhas lá em cima, na obra de sustentação que segurava o caminho, para logo em seguida

despencar, em meio a um desmoronamento. Mas finalmente acabou conseguindo botar os

ombros na estradinha, e a partir daí foi mais fácil acabar de subir.

Nesse ponto, a estrada tinha sua largura original e, pouco adiante, saía dela um

desvio em curva para a direita. Susan parou, sem saber se devia continuar subindo, mas

depois resolveu explorar o desvio, pelo menos até depois da curva.

Continuava se movendo em silêncio e com cuidado, mas toda sua atenção não

impediu que exclamasse quando viu o que vinha depois da curva.

O caminho margeava um platô gramado, para o qual desciam uns degraus, e no

gramado havia uma mansão de pedra, construída no pesado estilo italiano do século

passado. Todas as janelas brilhavam com uma luz que era mais forte do que o luar, mas da

mesma qualidade, sem vida.

Susan sabia que era isso o que devia encontrar. Era o coração do mal. A Morrigana

estava ali — e Colin também. Susan começou a andar em direção a casa, e depois se

deteve. "Não", pensou. "Não sei onde procurar, nem o que fazer. E ela provavelmente vai

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prender nós dois. Tenho que dar um jeito de avisar a Cadellin que ela está aqui. Ele é

quem poderá cuidar dela."

Em cima da porta havia uma torre quadrada. Como se fosse para conf irmar os

pensamentos de Susan, um vulto apareceu numa das janelas em arco da torre. Era a

Morrigana. Ficou olhando para o gramado lá embaixo e, embora Susan estivesse na

sombra, sentia como se uma luz forte se lançasse sobre ela, e foi preciso recorrer a todo seu

controle para ficar quieta enquanto a Morrigana espreitava a noite. Finalmente, quando ela

saiu da janela, Susan esgueirou-se de volta pelo caminho.

A casa a assustara. "Por que eu?", pensava. "Por que Angharad não podia contar a

Cadellin? A Morrigana devia saber. 'Tomara que possa ficar sobre seus ombros', foi isso o

que ela disse. Bem, podia ter me dito muito mais. Eu não sei nada de magia, e todos os que

sabem ficam apavorados com a Morrigana, então não ia ter muita coisa que eu pudesse

fazer lá dentro. Tenho de encontrar Cadellin."

Susan chegara à encruzilhada. Podia virar para a esquerda, em direção ao vale, ou

continuar subindo para a direita. Não queria passar de novo por aquela situação da ponte,

porque agora tinha certeza de que o que estava guardando a passagem não era uma

estátua. Mas onde estaria? Em que direção ficava Alderley? Orientou-se pelas estrelas: o

caminho que subia ia em direção ao oeste. "O que é o caminho certo, se eu estiver nos

Peninos", pensou, "mas não me adianta nada se eu estiver no País de Gales. Mas se estiver

no País de Gales, estou a uns setenta qui lômetros de Alderley, então é melhor que eu esteja

nos Peninos". E começou a subir a colina.

O caminho continuava como antes, mas não por muito tempo. O emaranhado de

rododendros acabou, e na frente de Susan estava um portal vazio num muro de pedras. Do

outro lado, um terreno aberto descia suave por uma boa distância, até uma cordilheira

arredondada, como o lombo de uma baleia, que fazia tudo parecer pequeno perto dela . Só

de olhar, Susan sentiu a cabeça girando e as pernas bambas. Mas do outro lado daquela

serra, Susan esperava, haveria uma planície e lá estaria Alderley — pelo menos, não havia

mais rododendros.

Susan passou pelo portal e, quando fez isso, alguém se destacou da sombra do muro.

Agora, em pleno luar, dava para ver bem, fosse ou não o mesmo que antes guardava a

ponte. Não chegava a ser da altura de Susan. Era careca, de orelhas pontudas, com olhos

brilhantes em forma de amêndoa e tinha um nariz pontudo e curvo. Sua lança parecia uma

folha, e seu corpo estava coberto de uns cachos de pêlos achatados, densos como escamas.

Susan ficou paralisada com o choque e não conseguiu se mexer nem mesmo quando o

homem esticou a mão e agarrou seu braço. Mas o grito que em seguida saiu daquela

bocarra soltou os músculos da menina. Porque no momento em que ele a tocou, a Marca

dardejara fogo, e uma chama branca correu pelo braço dela e bateu como uma chicotada na

mão que a agarrava. O homem caiu encostado no muro, e não se mexeu mais.

Susan saiu correndo pelo descampado, porém mal tinha conseguido chegar ao sopé da

montanha quando ouviu um grito. Olhou em volta e viu outro homem armado, pulando o

muro e vindo em sua perseguição.

Mas seria mesmo um homem? Havia algo errado com seu jeito de correr. Era rápido

como um lagarto por cima do capim. Suas pernas se remexiam para a frente meio aos

saltos, como se cada passo fosse uma bicada. Parecia que a articulação do joe lho era ao

contrário, que a perna era fina debaixo do joelho, e que os pés tinham saltos.

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Susan levava uma vantagem de uns 50 metros, mas estava subindo, enquanto o outro

descia ladeira abaixo. Ela tropeçava na subida, tentando deixar alguma energia de reserva,

mas era empurrada pela necessidade de escapar.

Uma lança zuniu junto a ela, e se fincou no chão. O perseguidor não ia se arriscar a um

contato mais próximo. Susan ainda pensou em pegar a arma e usá-la contra o dono, mas

não conseguia encará-lo, nem mesmo a usar a arma ou tocá-la. Então continuou correndo,

sem parar, aumentando a vantagem enquanto sabia que a lança ia sendo recuperada, e

esperando o próximo ataque.

Chegou a um grupo de árvores mortas, amontoadas na encosta, e foi passando por

elas, se escondendo de tronco em tronco, agradecida por essa ligeira proteção. Mas estava

tão exausta que, quando tropeçou, não conseguiu levantar. Retorceu-se, encostou numa

árvore, e instintivamente enfrentou o perigo.

A criatura estava chegando às árvores, correndo com a lança levantada. Hesitou por

um momento, procurando no meio da pouca luz, depois prosseguiu. E quando passou pela

primeira árvore, foi como se um pedaço de um galho torto se soltasse e se levantasse à sua

frente — um raio de luz comprido de repente o atingiu e sumiu debaixo de suas costelas.

O vulto gritou e caiu.

— Então agora são os bodaques! — exclamou uma voz, zangada e enojada — Nunca vai

ter fim esse lixo de Bannawg?

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• 14 •

A Caçada Selvagem

thecar virou-se para Susan:

— No começo desta noite, Cadellin achou que você tivesse morrido. Será que você

vai provar que ele estava errado?

— Uthecar! — exclamou Susan. — Como é que você chegou até aqui?

— Não basta estar aqui? — disse o anão, ajudando Susan a se levantar. — Afinal, o

bodaque gosta de terreno íngreme, mais até do que uma lebre da montanha. A morte de

ferro estaria agora em você — e ainda pode chegar... afinal, um bodaque morto, e não muito

tranqüilamente... Seria melhor levar a cabeça dele, mas esse seu bodaque é muito rápido em

atirar a lança, e vai ser difícil e demorado cortar a garganta dele, que é dura feito couraça

de touro...

Uthecar e Susan começaram a subir a colina juntos. Iam caminhando, porque Uthecar

sabia que ainda havia uns trezentos metros de terreno aberto diante deles e, se alguém os

perseguisse, não ia ser uma corrida que os salvaria.

Do descampado não dava para ver a casa, e, à medida que subiam, o vale de

rododendros se encolhia, virava uma linha escura, e depois se escondeu atrás da curva da

colina.

Uthecar fez Susan contar a ele o que tinha visto, antes de lhe dar qualquer explicação

sobre sua presença entre as árvores mortas.

— Mas como é que você descobriu onde a Morrigana estava? — perguntou Susan,

afinal. — Você foi muito rápido.

— Não tanto quanto você imagina — disse ele. — Foi na noite passada que Colin foi

levado.

— Não pode ser! — disse Susan. — Tudo aconteceu tão depressa! Só faz umas quatro

ou cinco horas...

— Não. Você estava num encantamento, na ilha de Angharad Mão-de-Ouro. Lá o

tempo da Terra não conta, podiam ter passado anos. Foi só a magia da Dama que fez com

que fossem apenas um dia e uma noite... Mas conto o que aconteceu comigo, é simples.

Depois que a lua nasceu, Pelis, o Falso, veio até Fundindélfia, parou diante dos portões e

disse que se você não estivesse pronta para ir com ele amanhã, e seu bracelete entregue a

ele, iam nos devolver Colin — um pedacinho de cada vez. Primeiro, tive vontade de

derramar o orgulho dele em ondas escuras pelo chão, mas isso vai ter de esperar. Primeiro,

temos de eliminar a vantagem deles. Então, Albanac ficou distraindo Pelis, deixando que

falasse, e eu saí pelo Poço Sagrado, dei a volta, me escondi, e quando ele foi embora eu o

segui. Mas aquele vale está cheio de horrores, e muitos deles não respon dem a uma

U

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espada. Por isso, o melhor é a gente trazer Cadellin. Enquanto ele trata da Morrigana, vou

testar a natureza de Pelis, o Falso, nem que tenha de atravessar um mar de bodaques para

chegar até o coração dele.

Já estavam no alto da montanha: o mundo estava deserto.

Susan e Uthecar se moviam pelo meio do mato, eram manchinhas na luz embaçada.

— E o que são esses... bodaques! — perguntou Susan.

— A escória de Bannawg — respondeu ele. — São meio aparentados com os goblins,

mas têm mais garra — não vou dizer que seja coragem. A única coisa que amam é o grito

das lâminas, e se houver muitos deles em volta da Morrigana, não vai ser nada fácil salvar

Colin. Não dá para você subir mais depressa?

Havia uma ponta de algo estranho em sua voz quando fez a pergunta.

— Por quê? Algum problema?

— Olhe para trás — disse o anão.

Mas Susan não viu nada, a não ser os fundos do morro, e o charco do outro lado, em

volta do Morrote de Goyt, como se fosse a barriga de uma represa, monstruosamente

imóvel.

— Não estou vendo nada. Onde?

— Ali, e ali, e ali, e ali, e mais ali, pelo meio do mato. Então ela viu. Línguas em

movimento avançando sobre o chão pantanoso, para a frente e para trás, para dentro e

para fora, lá embaixo da colina, de olhos verdes.

— São os batedores — disse Uthecar. O que temos de temer não são tanto os palugues,

mas o bodaque que vem atrás. Gostaria de deixar muito vento entre nós e eles.

Susan e Uthecar apertaram o passo, embora ainda não estivessem correndo. Os gatos

passaram a persegui-los abertamente, agora que tinham sido vistos, e começaram a chamar

uns aos outros, em uivos pela montanha abaixo, numas vozes que eram dor e desolação da

alma.

A quantidade deles assustou Uthecar. Não imaginara que houvesse tantos. Num

minuto o sufocariam e podiam até neutralizar o bracelete durante um tempo suficiente

para que Susan fosse morta — se fosse esse seu objetivo.

Mas os palugues não atacaram, e Susan e Uthecar chegaram ao alto da serra. Um muro

de pedra corria pelo topo, que à esquerda subia ligeiramente, e decaía à direita num

pequeno platô, que depois levantava-se num pico mais adiante. Em frente havia um vale, e

mais colinas, mas do outro lado delas estava a planície. Estavam a uns quatorze

quilômetros de Alderley.

Passaram por cima do muro e estavam a ponto de começar a descer para o vale,

quando viram uma linha de bodaques atravessando o platô para dentro do vale, com

intenção de cortar seu caminho. Só lhes restava subir o morro da esquerda. Prosseguiram

junto ao muro, onde o terreno era mais macio e havia trilhas de carneiros, e os palugues os

iam tangendo, alguns do outro lado do muro andando um pouco à sua frente.

A encosta era bem suave, dava para Susan e Uthecar correrem, porém cada passo

tinha de ser medido. Mas acabaram caindo na armadilha. Logo estavam no alto do morro,

e o alívio que tiveram por não ter mais de subir foi logo cortado pelo penhasco que se

despencava à sua frente. Quando viraram as costas, perceberam que os palugues que iam

correndo na frente estavam em cima do muro e tinham formado um semicírculo junto com

os que os seguiam. O penhasco não era de uma altura impossível de pular, mas o chão lá

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embaixo era só um pouquinho menos íngreme, e cheio de espinheiros e pedras. Mais

abaixo, uma estrada serpenteava por entre as colinas.

— Nem pense em pular — disse Uthecar. — la quebrar todos os ossos. Aqui, pelo

menos, nem um palugue nem um bodaque vão estar em nossos pescoços. Embora eu ache que

isso não faz muita diferença: veja só.

Já dava para ver mais de uns vinte bodaques. Um grupo de três deles já estava chegando

no alto, bem na frente dos outros. Pararam na beirada do semicírculo formado pelos

palugues, apoiaram-se nas lanças, com satisfação maligna, decidindo qual deles teria o

prazer de matar, já que não havia muito a temer de uma menina e de um anão caolho

armado de espada.

— Atrás de mim, e bem abaixada... — sussurrou Uthecar. — Estou pensando numa

coisa para esses três. Se não der certo, dê um pulo e confie na Dama.

— Eu tenho esta cornetinha — disse Susan. — Não é melhor tocar?

— Acho que é melhor guardar para alguma ocasião ainda pior — disse ele.

Mas antes que ele pudesse dizer qualquer outra coisa, um dos bodaques se destacou das

fileiras de palugues, com o escudo levantado e a lança preparada. E enquanto ganhava terre-

no entre Uthecar e os palugues, o anão jogou a espada para a frente, num arco de baixo para

cima. Pegou o bodaque na barriga e o derrubou. Com o ímpeto do golpe, Uthecar tinha ido

em seguida, atrás da espada, e chegou ao bodaque antes que esse atingisse o capim do chão.

No mesmo movimento, arrancou o escudo do braço do bodaque, e se ajoelhou protegido por

ele, enquanto as lanças dos outros dois bodaques vinham em sua direção. Elas morderam o

escudo, e saíram do outro lado, mas não acertaram Uthecar. Em seguida, o anão agarrou

sua espada e a lança do bodaque moribundo e se jogou para trás, voltando para junto do

penhasco antes que os dois bodaques tivessem tempo de reunir suas forças e pular sobre ele.

Aí já estava tarde demais para a coragem deles. Cada palugue via sua própria morte naquela

espada, e suas mentes não eram suficientemente espertas para perceber qual era a

estratégia do anão.

Uthecar empurrou o escudo brilhante e a lança nos braços de Susan e saltou de volta,

pelo meio dos gatos, num contra-ataque. Em quatro grandes passadas, foi por cima deles

sem que o tocassem, e caiu sobre os bodaques indefesos. Duas vezes sua espada rebrilhou, e

num instante Uthecar estava no meio dos gatos com dois escudos nos braços. Mas desta

vez os gatos estavam mais preparados. Parecia que ele estava tentando atra vessar a vau

pelo meio de uma correnteza negra que lhe vinha até a cintura. Corpos arranhavam os

escudos na altura de sua cabeça, e sua espada era uma faísca de relâmpago girando em

volta de seus pés. Mas conseguiu abrir caminho e se reuniu a Susan na beira do penhasco.

Quando a força principal dos bodaques chegou ao alto da colina, encontrou uma menina

e um anão, armados, de pé numa língua protuberante de pedra, de um jeito tal que só

podiam ser atacados de frente e por um só agressor.

Não chegou a ser uma luta. Durante algum tempo, os bodaques zanzaram pelo alto do

morro, tentando encontrar um ponto de vantagem. Depois, frustrados, começa ram a atirar

as lanças. Mas quando viram que o mais provável era que mais tarde as armas fossem

usadas contra eles, ou se perdessem lá embaixo do precipício, tentaram avançar sobre o

anão. Mas cinco mortes rápidas os detiveram, e eles recuaram, raivosos, s acudindo a

cabeça.

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Os palugues não podiam ajudar. Seu forte eram ataques em matilhas. Lances

individuais não eram sua especialidade. Houve várias escaramuças envolvendo sangue,

quando fizeram uma tentativa de se lançar contra a espada de Uthecar.

Assim, após alguns minutos, a situação parecia ter chegado a um impasse.

— Se conseguíssemos resistir até o amanhecer, seríamos vencedores — disse Uthecar.

— Nem os palugues nem os bodaques gostam do sol. Mas que notícia já terá chegado até a

Morrigana a esta altura? E se ela vier, bom... só resta mesmo dar boa-noite.

Uthecar tinha visto cabeças de palugues de costas, na direção do Morrote de Goyt. Sabia

bem o que isso significava. E o tempo todo, gatos e goblins estavam saindo do vale,

apinhando-se no alto do morro.

— Se ficarmos aqui, não vamos ver o sol nascer — disse. — Não sei o que nos resta.

— Você sabe onde estamos? — perguntou Susan. — Tem uma estrada lá embaixo.

— Ah, isso eu sei. Isto aqui é o Tor Brilhante. Entre os seus pés é onde crescia a

Mothan apanhada por Colin, e aqui é onde o Caçador dormia.

— O quê? Aqui? Aqui mesmo neste lugar?

Ficou tão surpresa que tirou os olhos dos bodaques e olhou em volta, àquela ponta de

pedra destacada, com os pensamentos cheios da luz que tinha recebido, vinda do meio das

chamas do Farol a se apagar. E de repente, uma dor, fria como uma navalha, golpeou o

pulso da menina, fundo, até o osso.

— Ai! Me acertaram! — exclamou Susan, agarrando o pulso.

Mas quando olhou, não havia sangue nem ferimento. Porém a Marca de Fohla

brilhava com um fogo branco, e as letras pretas gravadas nela pareciam flutuar sobre a

superfície do metal, e agora conseguia ver a palavra de poder.

— Uthecar! Posso ler o que está escrito no bracelete!

— Então diga o que é!

— Está escrito "TROMADOR"...

A colina toda tremeu quando ela disse essa palavra. O ar pulsou numa nota que nem

dava para se ouvir, e a teia do céu balançou, fazendo as estrelas dançarem, e o brilho delas

ecoava "tromador, tromador", pela noite afora. E desse som nasceu um vento.

Foi um vento que nunca ninguém imaginara: pulou nas costas de Susan e a jogou

sobre a pedra. Os dedos dela se seguravam em todas as frestas e seu corpo estava tão

encostado que a rocha até palpitava. Porque era um vento capaz de arrancar os pêlos de

um cavalo e os tufos de capim de um campo. Era capaz de arrancar as moitas de um morro

e um salgueiro da raiz. Era capaz de arrancar o topo de um rochedo e de separar a águia

dos filhotes. E foi esse vento que veio uivando enraivecido por cima dos picos de arenito,

em centelhas de fogo brilhante.

Os bodaques e palugues se amontoaram junto ao muro, e o vento os prendeu por lá. O

capim se mexia como se fosse a cabeleira do morro.

Depois, do mesmo jeito que chegou, o vento foi embora. Susan e Uthecar levantaram o

rosto, e procuraram as lanças, porque os escudos tinham sido levados como se fossem

folhas no outono. Mas não chegaram a tocar nas armas, porque doze homens a cavalo

estavam bem perto do lugar onde estavam deitados. Imóveis como a morte. E na frente

deles estava um homem que tinha uma galhada de chifres de sete pontas, no alto da

cabeça, recortando-se cruel contra o céu.

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Esse cavaleiro da frente era vermelho e portava uma lança. Ergueu-a e sua voz cortou

o ar como se fosse uma lâmina:

"Há um grito no vale,

Não é aquele que fura?

Há um grito na montanha,

Não é aquele que fere?

Há um grito na floresta,

Não é aquele que conquista?

O grito de cada jornada sobre a planície!

O grito de cada vale perdido!"

Os três cavaleiros vermelhos, os Cavaleiros de Donn, levantaram suas lanças na

mesma altura. As capas brancas dos filhos de Argatron se abriram e três chicotes curvos

ficaram visíveis. O soturno Fiorn, rei do norte, rei do monte, apoiou seu mangual sobre o

ombro e as sete correntes se entrechocaram, num barulho maligno. Fallowman, o filho de

Melimbor, desembainhou sua espada negra, que silvou na bainha como se fosse uma

víbora. A espada de Bagda estava erguida. Os filhos de Ormar prepararam os dardos por

detrás dos escudos de prata, e os cascos de seus cavalos eram luas em brasa.

Garanhir, o Caçador, sacudiu a cabeça. Sua voz ecoou, selvagem como a de um

animal.

— Cavalguem, Einheriar do Herlathing!

— Vamos cavalgar! Cavalgar! A galope!

Os palugues tinham começado a se esgueirar para trás, orelhas coladas às cabeças,

olhos apertados de medo, quando o cavaleiro falou. Mas no momento em que a voz do

Garanhir atroou sobre eles, ficaram enlouquecidos, como se aquele som tocasse uma nota

que os fizesse perder a razão. Pularam por cima do mato, em fuga. Mas os bodaques se

desvencilharam da montoeira em que o vento os tinha jogado e se ajoelharam atrás dos

escudos, um bem juntinho do outro, apoiando no chão os cabos das lanças, com as pontas

voltadas na direção dos peitos dos cavalos. Mas dardo, mangual, chibata, espada e lança

estavam sobre eles antes que conseguissem dar seu golpe, quando os Einheriar os

varreram como uma onda, rolando suas cabeças como cascalho no fundo do leito de um

rio.

Garanhir avançou pelo meio das fileiras dos bodaques: agarrou-os pelos pescoços,

juntando suas cabeças.

— Cavalgar, Einheriar do Herlathing!

— Vamos cavalgar! Cavalgar! A galope!

As fileiras partidas se espalharam e o Herlathing prosseguiu sua cavalgada pela

colina, cortando, chicoteando, expulsando os goblins e os gatos de volta para o vale.

Susan olhava maravilhada, espantada com o vigor do massacre feito pelos cavaleiros.

Garanhir estava escuro até a cintura, e tinha umas tiras penduradas nos chifres. Mas

Uthecar a puxou para fora do rochedo, guiando-a para a ponta do penhasco.

— Não vamos ficar por aqui — disse. — A Caçada Selvagem nos salvou. Você agora

está querendo esperar a Morrigana?

— Mas veja! Eles estão se divertindo com o que estão fazendo.

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— Se divertindo? Menina, você invocou a Caçada Selvagem... Não é nenhuma magia

de brincadeira... Dê graças a Deus porque não é a sua cabeça que está rolando morro

abaixo.

Os dois saíram do meio das pedras e desceram até a estrada, mas Uthecar não quis

seguir por ela. Escolheu uma linha reta para Alderley, evitando os descampados sempre

que possível, e manteve o passo apertado durante toda a noite. Em pouco tempo, o

barulho do massacre foi sossegando.

Quando amanheceu, Uthecar e Susan encontravam-se num campo no alto da Borda,

junto à beirada de uma tripa de bosque. A lua estava baixa no céu. Susan estava sem

fôlego, exausta, mas Uthecar parecia mais tranqüilo do que em qualquer outro momento

daquela noite.

— Estamos chegando — disse. — Dentro do bosque, junto à Pedra Dourada, uma

velha estrada de elfos vai até Fundindélfia. Vai ser uma espécie de escudo para nós,

porque nem mesmo a Morrigana pode caminhar sem dor por uma estrada de elfos. E

problemas menores simplesmente não conseguem andar por ela.

— Então, vamos — disse Susan. — Vamos correr.

De repente, ficara preocupada: uma sombra passara por seu espírito, vindo do leste.

Mas antes que conseguissem dar um passo, ouviram uma voz chamar atrás deles:

— Imorad! Imorad! Surater!

Foi como se o gelo trancasse seus músculos. Uthecar gritou, e em seguida ficou

imóvel. Mas Susan, embora parecesse que suas juntas estavam se cristalizando, conseguiu

forçar os membros a se mexer. Virou a cabeça e viu a Morrigana saindo do meio de

algumas árvores do outro lado do campo. Trazia uma longa espada e sua mão direita

estava esticada em direção a Susan e Uthecar. Com o punho fechado, e os dedos mínimo e

indicador apontados para a frente.

— Tem de... correr... — sussurrou Susan.

Conseguiu andar, mas cada passo era uma travessia pesada. O corpo pesava, morto,

como chumbo. Parecia estar tentando correr num pesadelo. Mas Uthecar só conseguia

mexer o olho.

— Tentar... correr... — disse Susan.

A garganta dela estava dormente, congelada. Estendeu a mão para o anão e fechou os

dedos em volta do pulso dele, desajeitada, para puxá-lo. Mas no momento em que o tocou,

Uthecar sentiu a vida cintilar em seus ossos e, pondo toda sua energia nesse esforço,

conseguiu balançar as pernas, empurrando os quadris para a frente, com os braços girando

longe do corpo, como se estivesse nadando. Desse modo, Susan e Uthecar mexeram-se

juntos em direção ao bosque, que nesse ponto era muito estreito, e a Morrigana veio atrás

deles, com a espada pronta.

— Estrada... estrada... ali... — disse Uthecar. Apontou com a cabeça para a esquerda, e

Susan viu uma trilha, margeada por paredes de pedra, que seguia pelo outro lado do

bosque. Os dois se jogaram com toda sua força naquela trilha, porque a Morrigana agora

estava tão perto que eles podiam ouvir sua respiração. Lançaram-se sobre o pequeno muro

de pedra e caíram lá dentro, na estrada dos elfos. Na mesma hora, sumiu o que os estava

paralisando.

— Solte meu braço e me dê a mão — disse Uthecar. — Quem tem poder contra ela é

você, mas eu prefiro ter a espada livre. Ela não vai ser detida por muito tempo.

Page 84: A LUA DE GOMRATH

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Foram correndo pela trilha, e a Morrigana seguia pelo outro lado da mureta,

acompanhando o passo deles. Apesar de seu tamanhão, podia se mexer muito depressa.

Mas eles notaram que ela olhava para o céu, como se estivesse ansiosa. Já chegava perto da

Pedra Dourada quando tropeçou e parou.

— Fique aqui — disse Uthecar. — Ela não está à vontade, tome cuidado!

A Morrigana estava parada, ofegante, a menos de vinte metros deles.

— Que caia sobre você tudo o que meu coração deseja, anão! — berrou ela.

Uthecar se jogou no chão, levando Susan com ele, gritando com todas as forças:

— Que caia sobre aquela pedra cinzenta tudo o que o seu coração deseja, megera!

Ouviu-se um barulho no ar, por cima da cabeça de Susan, como se fosse um rufar de

asas, e a Pedra Dourada rachou-se de alto a baixo. Pedaços de pedra voaram para todo

lado, uns fragmentos grudaram na pele de Susan, e quando ela olhou de novo a Morrigana

não estava mais lá.

Page 85: A LUA DE GOMRATH

PDL – Projeto Democratização da Leitura

• 85 •

Errwood

e eu os tivesse encontrado antes que bebessem no poço — disse Cadellin —,

poderiam ser empurrados de volta para os montes. Mas a água os

confirmou aqui, e isso vai durar sete noites. Durante esse tempo, quem

pode dizer o que eles não serão capazes de fazer?

— Eu me preocuparia muito menos com o Herlathing do que com a Morrigana —

disse Uthecar.— Porque ele eu fiquei contente de ver, e ela nunca pode estar

suficientemente longe de minha vida. A Pedra Dourada que o diga!

— Não consigo entender — disse Susan. — Ela estava bem em cima da gente, e de

repente olhou para o céu, quebrou a Pedra Dourada, e sumiu.

— Onde estava a lua? — quis saber Cadellin.

— Não reparei.

— Estava quase se pondo — disse Uthecar. — Você acha que foi isso que meteu medo

nela?

— Pode ser... — disse Cadellin. — É na lua que reside o seu poder. Porém não fica

impotente quando a lua se põe. Que carga especial haveria em cima dela, para conseguir

não ficar?

— Bom... — disse Susan — se ela estiver indo para casa, Albanac podia segui-la a

cavalo — não deve ter chegado nem na metade do caminho ainda —, e então podíamos

saber o que há de errado.

— Ela pode mudar de forma e chegar lá muito antes de meu cavalo — disse Albanac.

— Mas eu vou, se Uthecar for comigo para mostrar o caminho.

— Não! — disse Uthecar. — Duas espadas não fazem diferença. Leve Susan com você.

Porque uma espada, um cavalo e a Marca podem servir, à luz do dia.

— Vocês não iam me deixar sozinha, iam? — perguntou a menina, olhando para

Cadellin.

— Acho que Angharad Mão-de-Ouro se engana — disse o mago —, mas você está tão

longe do seu mundo que é melhor eu não piorar as coisas ainda mais, me metendo agora.

Vá com Albanac. Mas lhe imploro: não se arrisque.

Susan e Albanac desceram a uma das cavernas inferiores, onde o cavalo de Albanac

estava estabulado, junto com os cavalos dos lios-alfar. Depois, saíram de Fundindélfia pelos

portões de ferro e cavalgaram em direção à Pedra Dourada. Vigiavam todas as árvores,

mas não viram nenhum gato, e assim que chegaram aos campos, o cavalo disparou e eles

seguiram a toda velocidade para o Tor Brilhante. Cachorros latiam nas fazendas, homens

—S

Page 86: A LUA DE GOMRATH

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olhavam nos campos, mas Albanac não tinha tempo para tomar precauções de não ser

visto. Quando subiram as colinas, a terra já estava deserta.

Aves carniceiras brigavam pelo meio do mato, no alto do Tor Brilhante, e voaram em

nuvens quando Susan e Albanac passaram por eles. O cavalo agora marchava, e Albanac

estava atento, olhando o céu e o pântano, com uma mão apoiada na espada, na bainha.

Cavalgaram ao longo do muro quase até o platô, depois viraram à direita e desceram

para o vale. O dia estava parado. Nada se mexia.

Detiveram-se junto ao monte de árvores mortas, mas não havia sinal do bodaque. E os

rododendros não deixavam ver nada no vale.

— De qualquer modo, não dava mesmo para ver a casa daqui — disse Susan. — Fica

no outro lado daquele morrinho redondo, na boca do vale.

— Vamos mais perto, então — disse Albanac. — Mas não estou gostando do que estou

vendo, mesmo a esta distância.

Quando chegaram ao portal, o cavalo de Albanac virou as orelhas para trás, colando-

as na cabeça, mas foi em frente sem hesitar, pisando macio.

Mesmo à luz do dia, o lugar era assustador. Moitas, ruínas de pedra, tudo úmido,

verde, cheio de mato pelo caminho, o riacho absorvendo qualquer barulhinho, de modo

que a toda hora sentiam calafrios, com medo de que alguém se aproximas se sem ser

ouvido. E por cima da cabeça, as paredes do vale se estreitando.

Susan apontou o caminho da esquerda, na encruzilhada:

— É logo depois da curva — sussurrou.

Albanac assentiu, com a cabeça. Seguiram em frente, com cuidado. O cavalo parecia

saber o risco. Albanac puxou a espada quando se aproximaram da curva, e Susan deu um

grito que assustou os pássaros, fazendo-os sair em bando, voando por entre as árvores.

Porque, diante do caminho, se abria o platô com o gramado. Mas onde Susan antes

vira um pequeno lago ornamental, agora havia um montinho de junco. A casa alta,

brilhante e com uma torre, agora era uma pilha de madeira velha e paredes caí das, com

espinhos e samambaias crescendo por entre o entulho, sombrio, com os arcos vazados das

janelas.

— Isso está morto há muito tempo — disse Albanac.

— Mas ainda ontem à noite era uma casa! — exclamou Susan. — E a Morrigana estava

aqui. Eu vi!

— Não duvido — disse Albanac. — Aqui tem feitiçaria. Vamos.

Deu meia volta no cavalo e voltou pelo caminho a galope.

Sentia uma necessidade urgente de estar de novo no vale aberto, como se o perigo

tivesse bocejado a seus pés e eles estivessem pulando para trás por instinto, enquanto suas

mentes tentavam rapidamente entender o que estava acontecendo. Mas quando chegaram

à encosta descampada, grande parte do pavor foi embora e Albanac diminuiu o passo do

cavalo.

— O que fez a casa cair? — perguntou Susan, numa voz fraquejante.

— Não, Susan. O que você viu ontem foi obra da Morrigana. Temos de encontrar

Cadellin, porque acho que estou vendo uma luz no meio disso tudo, e podemos levar

vantagem sobre ela.

— Como?

Page 87: A LUA DE GOMRATH

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— Vamos primeiro perguntar a Cadellin. Ele é quem sabe julgar direito essas coisas.

Mas acho que Colin está mais seguro agora do que antes, e que, esteja ele onde estiver, a

Morrigana não pode alcançá-lo antes de você ou de mim.

— Você tem certeza?

— Não. Mas vamos perguntar a Cadellin.

Esporeou o cavalo, e subiram o flanco do Tor Brilhante como uma bandeira ao vento.

Pois aquele era Melynlas, o potro de Caswallawn, um dos três Cavalos de Alta Linhagem

de Prydein.

Estavam começando a descer do outro lado do morro, em direção a Thursbitch, abaixo

do Tor do Gato, quando viram um pastor e seu cão, caminhando por uma trilha de

ovelhas. O cachorro correu para eles, latindo, mas bastou um assobio e vol tou para junto

do homem. Albanac virou Melynlas para o lado, e deteve o animal.

— Há uma casa num vale do outro lado da colina — disse. — Está em ruínas e

invadida pelo mato. O senhor sabe o que é?

O pastor olhou para Susan e Albanac só com um pouco de curiosidade.

— Deve ser Errwood Hall.

— Há quanto tempo ninguém mora lá?

— Não sei. Só sei que foi demolida quando eu era criança.

— Justamente o que pensei — disse Albanac. — Muito obrigado.

— De nada — disse o pastor. — Meio fora de época para uma festa à fantasia, não?

Onde é?

— Festa? — disse Susan. — Que festa?

— Muito obrigado, e bom dia — disse Albanac, puxando a rédea de Melynlas.

— É... não é sempre que a gente vê duas pessoas fantasiadas por aqui. Por isso eu logo

vi que tinha uma festa.

— Mas eu não estou... — disse Susan.

— Duas? — Albanac puxou a rédea, abrupto. — Quem mais o senhor viu?

— Uma mulher passou por mim há uma meia hora, lá pra baixo de Thursbitch, no

caminho de Errwood. Nunca vi ninguém andando tão depressa! Estava toda arrumada, de

saia comprida e tudo, mas nem falei com ela, só vi de longe.

— Há meia hora? O senhor tem certeza?

— Digamos... uns vinte minutos...

— Mais uma vez, muito obrigado! — exclamou Albanac, e Melynlas avançou a toda

em direção a Alderley, e os tufos de capim que seus cascos arrancavam voavam como

bandos de andorinha antes da chuva.

— Acho que desta vez a pegamos! — disse Albanac pelo meio do barulho do galope.

— Ela chegou lá pouco antes de nós, mas já era tarde demais para ela, embora desse para

chegar suficientemente perto para nos ver. Só que ela não nos atacou — quer dizer, não

ousou atacar. Acho que a pegamos!

A cavalgada de volta a Alderley foi a mais rápida que Susan já vira, mais rápida até

que a do Herlathing para o Farol, na noite vermelha de fogo. Não pararam nem para

deixar Melynlas no estábulo, mas entraram em Fundindélfia pelo Poço Sagrado, direto

para a caverna do mago.

— Temos de agir logo — disse Cadellin, quando contaram sua história. — Parece que

ela ainda não está bastante forte para te atacar sem se preparar, a não ser que consiga

Page 88: A LUA DE GOMRATH

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carregar-se com a lua. Tudo isso é magia da lua. Ela a usou para construir a lembrança da

casa, na firmeza das pedras, e tenho a impressão de que a mansão só existe quando a lua

velha brilha. Se não chegar até a casa antes da lua se pôr, então fica impedida de entrar até

de noite, e se Colin estiver lá, está seguro durante algum tempo. Temos de conseguir ficar

entre ela e a casa enquanto há luz, e quando a luz surgir, temos de mantê-la fora de casa

até libertar Colin.

— Então vamos precisar de ajuda — disse Albanac. — Só três ou quatro não vão

conseguir guardar aquela casa. Vamos ter de falar com Atlendor.

Foram todos juntos, apesar das objeções de Uthecar a se confiar em elfos. Nas

cavernas mais profundas de Fundindélfia, os lios-alfar estavam sentados em seus

banquinhos, em ordem e em silêncio. O único barulho era um espasmo de tosse que

irrompia de quando em quando em diferentes partes da caverna. Susan não pôde deixar de

se assustar um pouco com aquela imobilidade.

Foram até Atlendor, sozinho no extremo mais distante da caverna, e contaram a ele o

que iam fazer.

— Será que os lios-alfar podem nos ajudar nisso? — perguntou Albanac. — É só por

uma noite, e no meio das montanhas. A doença da fumaça não pode atacá-los em tão

pouco tempo.

Atlendor se levantou. Seus olhos brilhavam.

— Não pode? Tem certeza? Mas não importa. Os lios-alfar partem daqui a três noites,

para longe de tudo isso. Já ajudamos a perseguir o Brollachan. Esta história de magia da

lua não é da nossa conta. Não temos nada a ver com isso. E você prometeu ir conosco,

Albanac, embora eu esteja vendo quebra de promessa no seu coração.

— Meu senhor Atlendor — disse Albanac —, está para ser dito que os lios-alfar não

lutarão contra um problema quando o encontrarem?

— Isso mesmo. Porque é um problema dos homens. E os homens acabam trazendo a

morte para o meu povo, quase sempre. Vamos embora daqui a três noites, Albanac, e você

vai conosco.

Estava virando as costas, como se o assunto estivesse encerrado, quando a voz de

Susan o deteve:

— Se você não nos ajudar a tirar Colin daquela casa — disse ela —, vamos logo ficar

sabendo até que ponto a magia da lua não tem nada a ver com vocês. E meu bracelete?

Esqueceu dele?

Num piscar de olhos, uma expressão de alarme quebrou a pose de Atlendor.

— Você também prometeu que ia nos ajudar — disse, frio.

— E acha mesmo que vou dar qualquer ajuda se Colin não estiver seguro?

— Promessa quebrada não vale nada.

— Pois então não vale... O que eu quero saber é... vocês vão ou não vão ajudar?

— Vocês terão cinqüenta cavaleiros e vou chefiá-los, mas só depois do pôr-do-sol —

disse Atlendor. — E se tudo isso não estiver resolvido na terceira noite, os cinqüenta e

Albanac ficam, e levo o resto do meu povo para Bannawg.

Albanac respondeu rapidamente:

— É muito nobre de sua parte, e satisfaz nossa necessidade.

— Não. É muito tolo, e foi conseguido pela força — disse Atlendor.

Page 89: A LUA DE GOMRATH

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• 89 •

O uivo de Ossar

u

s

an e Uthecar escolheram cavalos na manada dos lios-alfar, e Susan também

pegou uma espada e um escudo. Mas ficou sem armadura, porque entre as co tas de

malha que os elfos tinham nenhuma servia nela. Subiram com os cavalos até a caverna

do mago.

— Não tem um cavalo para você? — perguntou Susan.

— Não vou com vocês — disse Cadellin.

— Não vai? Mas você tem de ir!

— Pensei muito nisso — disse Cadellin. — Meu dever é ficar aqui, guardando os

Adormecidos. Só eu posso acordá-los. Se fosse morto, teria traído minha missão, e só em

Fundindélfia posso ter certeza de vida. E, Susan, embora a Morrigana esteja lutando, e

Colin esteja em poder dela, os Adormecidos estão à espera de alguém cuja sombra vai

matar a sede do mundo, e não posso faltar a eles.

— É verdade — disse Albanac. — Estamos próximos demais da ameaça para ver com

clareza. É melhor que a Morrigana triunfe agora, do que acontecer que os Adormecidos

nunca acordem.

— Mas, e a magia dela? — disse Susan. — A gente não entende disso.

— É um risco a correr — disse Cadellin. — Mas você não estará desamparada lá. E se

estivesse, Susan, não podia se queixar. Vocês procuraram isso porque quiseram. Eu fiz o

que pude para manter você a distância.

— Não adianta ficar conversando mais — disse Uthecar. — Não sobra muito tempo de

dia para fazermos o que tem de ser feito. A não ser que a gente queira virar um presente

para a Morrigana.

— Tem razão, vamos — disse Susan.

Foi uma despedida esquisita. Susan e Uthecar, embora admitissem a lógica das

palavras de Cadellin, tinham emoção demais em suas naturezas para tomarem uma

decisão daquelas. Quando estavam saindo de Fundindélfia, Albanac segurou a mão de

Cadellin, e só ele viu a expressão de dor do mago e a luz que havia por detrás dos olhos

dele.

Cavalgaram depressa, e com facilidade.

— A espada e o escudo são para os palugues — disse Uthecar. — Nem tente enfrentá-

los com uma lança de bodaque. Deixe isso conosco.

S

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PDL – Projeto Democratização da Leitura

— Mas a Caçada Selvagem não acabou com eles?

— Não ouso esperar tanto — disse Uthecar. — Alguns devem ter escapado, mas

quantos? Quando o sol baixar, vamos ficar sabendo.

Era meio-dia quando chegaram a Errwood. Aproximaram-se com menos cautela do

que antes, e Uthecar passou a cavalo por entre as ruínas, para decidir como poderiam se

preparar melhor para a noite.

— Não vai ser simples montar guarda na casa — disse, quando voltou. — Estes três

lados são planos e abertos, mas atrás é perigoso. O espaço entre as paredes e a colina é

pequeno, e em alguns lugares a pedreira foi cortada e muitas moitas cresceram na frente.

A Morrigana pode estar muito perto sem que a gente saiba. É por ali que temos de

começar.

Foi para os fundos da casa e começou a cortar as moitas de rododendro, para longe da

parede de pedra. Albanac fez o mesmo, partindo de um ponto mais adiante e os dois foram

trabalhando, um em direção ao outro, até limparem o morro, numa faixa de uns dez

metros de largura.

Susan empurrou os galhos e arbustos cortados, e os amon toou em pilhas apertadas, ao

longo da beirada do platô em que ficava a casa, entre os dois braços do riacho e por cima

deles.

Isso tudo levou quatro horas, e o resto da luz do dia foi dedicado a limpar o máximo

possível do mato que crescia nas margens íngremes debaixo do platô. Depois, o mato

cortado foi amontoado no meio do gramado.

Em nenhum momento aconteceu nada que lhes fizesse sentir que estavam em perigo.

Uma ou duas vezes, Susan teve a impressão de ter escutado os uivos de um cão, ao longe,

e Albanac achou que tinha ouvido também. Parava de trabalhar, escutava, e depois voltava

a cortar as moitas, sacudindo o corpo todo com os golpes, como se estivesse lutando pela

vida.

— É bom não ficar no vale até que os lios-alfar cheguem — disse Uthecar, no

crepúsculo. — Agora, tudo quanto é palugue e bodaque que ainda houver por lá vai sair de

baixo das pedras e de dentro dos buracos, e, se estivermos perto, não vamos ter muito

tempo para respirar. No descampado, o perigo deles não é tão grande.

— E a Morrigana? — disse Susan. — Achei que estávamos aqui para impedir que ela

se aproxime.

— A lua ainda não vai nascer. Até lá, ela não vai se mostrar muito — disse Uthecar.

Mas vamos acender o fogo, rapidamente, antes de sairmos. Tem bastante lenha para ficar

acesa a noite inteira, e nem bodaques nem palugues são muito chegados a uma fogueira.

Albanac tirou um isqueiro de pedra e um pavio de dentro da capa e acabaram

conseguindo umas faíscas, que acenderam nuns tufos de capim seco, e esses foram

transferidos com cuidado para gravetos e folhas secas, e depois para os montes de ar -

bustos. Havia mais de uma dúzia, e todos estavam acesos quando a noite caiu.

Então montaram a cavalo e galoparam pela estrada até o descampado, onde pararam,

protegidos de um ataque de surpresa.

— Quanto tempo os elfos vão levar para chegar até aqui? — perguntou Susan.

— Não devem demorar — disse Albanac. — Devem ter saído de Fundindélfia assim

que começou a escurecer. E os seus cavalos são tão ligeiros quanto Melynlas, quando é

preciso.

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PDL – Projeto Democratização da Leitura

Atravessaram o riacho, em direção a uma campina plana, onde os cavalos tinham

melhor pasto. O céu estava amarelo, as nuvens negras da noite se aproximavam, deixando

o vale totalmente imóvel. Mas essa sensação foi quebrada com um choque que fez os

cavalos recuarem, quando um cachorro uivou bem perto.

— Onde foi isso? — perguntou Albanac.

— Ali! — disse Uthecar. — No alto da colina!

E lá, junto às árvores mortas onde Uthecar tinha matado o bodaque, destacava-se a

forma de um cachorro preto. Era do tamanho de um bezerro, e tão indistinto contra as

árvores, sob aquela luz, que parecia de fumaça. Jogou a cabeça para trás, e se us uivos

ecoaram solitários. Depois, esgueirou-se pelo meio dos troncos, e não o viram mais.

Albanac ficou sentado, de cabeça baixa, sem dizer nada, por muito tempo depois que

a voz tinha sumido. Uthecar olhou para ele, mas não se mexeu. Dava para Susan se ntir o

peso que baixara sobre eles.

Albanac deu um suspiro fundo.

— O uivo de Ossar — disse.

Mas bem quando ele falou, ouviram um barulho surdo no ar, ficando cada vez mais

alto, e o horizonte foi quebrado por um movimento, como se um exército estivesse se

levantando do mato. E da direção do Tor Brilhante, vieram descendo os lios-alfar, a galope,

com suas espadas nuas nas mãos, as lâminas flamejantes.

Pararam, uma multidão agitada, depois da disparada pelo morro, mas não falaram

nada. Nem mesmo entre eles.

— Viemos — disse Atlendor a Albanac. — Onde está a Morrigana?

— Ainda não a vimos, mas deve estar bem perto. Saímos da casa neste minuto. Está

cercada de fogueiras, e o terreno está limpo, embora num dos lados seja muito arriscado

para nós. Não achamos nenhum bodaque nem palugue.

— Sinto o cheiro deles — disse Atlendor. — Não demoram a aparecer. Mas vamos

para a casa, e lá esperamos pelo que deve acontecer. Porque também sinto cheiro de

sangue.

Seguiram pelo caminho, em fileiras de três. Os cavalos marchavam, os escudos

estavam erguidos, prontos, pois a esta altura a última luz tinha sumido.

Era impossível que tantos se aproximassem da casa em silêncio. Mas ninguém falava

nem fazia o menor barulho que pudesse ser evitado. A luz das espadas dos elfos no ar

úmido formava um halo que se refletia friamente no aveludado das folhas de rododendro.

Quando chegaram à encruzilhada, Albanac ergueu a mão para deter a coluna. Algo

estava errado. Todos podiam sentir. Então os elfos passaram adiante, para fazer a curva a

galope. A casa estava na escuridão. As fogueiras que tinham deixado mi nutos antes

haviam sido apagadas. Os montes de lenha se erguiam em volta da casa, negros, e o ar

estava carregado, com um cheiro acre de coisa queimada.

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• 92 •

A marca da bruxa

s elfos não hesitaram. Cavalgaram enfileirados e num instante tinham feito um

cordão em volta da casa. Alternavam-se: um virado para dentro, outro para fora.

— Depressa! — gritou Uthecar para Albanac. — Precisamos de fogo!

Pulou do cavalo, agarrou um tufo de capim seco, mas o ar estava tão carregado de

umidade que o capim não acendia. Quanto mais se apressavam, mais se atrapalhavam e

mais sentiam o perigo. Mas quando finalmente conseguiram uma chama, a madeira logo se

acendeu de novo, porque ainda estava quente.

— O vento teria acendido mais, em vez de apagar — disse Albanac. — E a água teria

deixado muita fumaça. Esta lenha está seca. A Morrigana faz o que pode, antes que a lua

surja.

— E não é pouco — disse Uthecar. — Precisamos de luz, porque nem todos aqui têm

olho de anão. Mas só temos nossas mãos para nos defender.

— Estamos ganhando mais do que perdendo — disse Albanac. — Senão, por que a

Morrigana ia apagar o fogo? Até que a lua nasça, ela não pode fazer muito mais do que

nos encher de medo e pavor. Pelo que o pastor contou, eu diria que ela não está nem

conseguindo mudar de forma. Está só sentada em algum lugar, esperando a lua.

— É? E daí? — disse Atlendor, que cavalgara até junto deles. — Temos de mostrar

nossa força. Assim, pode ser que não precisemos medi-la contra a dela. Venha comigo —

disse a Susan.

E cavalgaram até o meio do gramado, onde ele parou e levantou o pulso da menina

sobre a cabeça dela.

Este era o primeiro momento em que Susan estava consciente de seu bracelete desde o

aparecimento dos Einheriar no Tor Brilhante, e ficou surpresa ao ver que não conseguia

mais ler a palavra de poder. A inscrição, que então se destacara com tanta clareza no

metal, agora voltara a ser tão ininteligível como sempre.

Um por um, os elfos vieram até Susan. Tocavam o bracele te com as flechas e espadas,

e voltavam ao anel de fogo. Quando o último elfo voltou a seu posto, o braço de Susan

doía até o osso, mas Atlendor ainda o erguia bem alto. Quando o círculo finalmente se

completou, ele falou numa voz que foi muito além da luz:

— Aqui está sua desgraça! Aqui está uma praga para sua carne! Venha, esta mos

prontos!

Bateu sua própria espada contra o bracelete, e deixou cair o braço de Susan. Mas

quando Atlendor fez isso, ouviu-se uma exclamação de um dos elfos que estavam embaixo

O

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da muralha da pedreira, e ele deslizou por cima do pescoço do cavalo até o c hão, com uma

lança entre os ombros.

— Uma vida para salvar um homem — disse Atlendor, calmamente.

Mas antes que qualquer um fizesse o menor movimento, uma voz falou, vinda da

colina atrás das ruínas:

— Estamos indo, tenha paciência, estamos indo...

— É a Morrigana! — disse Susan.

— Onde está ela, Pele-de-Chifre? — perguntou Atlendor.

— Atrás das moitas — disse Uthecar. — Não consigo ver.

— Não era melhor entrarmos, ficarmos dentro das paredes? — perguntou Susan —

Aqui somos alvos perfeitos e parados.

— E o que nos aconteceria se a lua nascesse sem que reparássemos? — disse Albanac.

— Ficaríamos esmagados pelas pedras. Mas se formos para a frente da casa, estaremos a

salvo das lanças, porque só na colina dos fundos é que eles podem chegar suficientemente

perto para atirar.

Os lios-alfar agora estavam todos virados para fora. Aqueles que ainda não tinham

vestido a cota de malha, como o que morrera, rapidamente as desenrolavam.

Susan, Uthecar e Albanac estavam abaixados no gramado, junto de onde tinha sido a

entrada principal da casa.

— É bom saber onde ela está — disse Uthecar. — Vocês acham que se encostarmos

nossas espadas no bracelete, ficamos à prova da magia dela?

— A espada não vai matar — disse Albanac —, mas a virtude do bracelete pode

corromper e irritar as feridas feitas pela espada, e acho que as flechas podem impedir que

ela tente entrar na casa mudando de forma.

— Se a casa aparecer com a lua — disse Uthecar —, Susan e eu vamos lá dentro

procurar Colin. Você toma conta da porta, aqui, Albanac.

Esperaram que as horas se passassem, até a lua nascer. Atlendor tomava conta das

fogueiras. Não houve nenhum movimento para apagá-las — até pelo contrário. Parecia que

elas queimavam mais depressa do que azevinho, e Atlendor estava tendo uma trabalheira

para manter o fogo alto. A pilha de lenha sobre o gramado foi diminuindo. A essa

velocidade, não ia durar muito tempo. De repente, Atlendor parou no meio de um gesto

que vinha repetindo, de jogar mais um galho nas chamas. A Morrigana quase tinha

vencido. Apressou-se em juntar algumas fogueiras, sacrificando uma sim, uma não,

pensando nas horas em que a noite ia durar. Mas, depois disso, tudo indicava que a

Morrigana se contentava em esperar. O fogo era normal, nenhum bodaque jogou lanças.

A lua nasceu muito tempo antes de poder ser vista, e de repente brilhou, alta, do meio

de uma nuvem, uma faixa feia de amarelo, surpreendendo os que estavam de vigília. E

embora a luz fosse fraca, sem nem se comparar à das fogueiras, no momento em que tocou

as ruínas, elas tremeram como se estivessem numa onda de calor, e se dissolveram para

cima, formando uma casa. As janelas lançavam para fora sua luminosidade morta sobre a

grama, criando poças de branco nas chamas.

— Agora! — gritou Uthecar.

Susan e ele se precipitaram contra o barranco, correndo, e arremessando todo o seu

peso sobre a porta. Ela se abriu facilmente, e eles caíram lá dentro, por cima da soleira.

Enquanto Susan caía, uma lança passou por cima de sua cabeça e atraves sou o vestíbulo.

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Uthecar chutou a porta, e a madeira repicou, sob um impacto feito por vários golpes

separados, dados ao mesmo tempo. Pontas de bronze a atravessavam, destacando -se como

dentes. Mas a porta estava fechada. E enquanto o eco dos golpes ainda estava ressoando,

Uthecar e Susan já subiam as escadas correndo.

— Ele não vai estar perto do chão — disse Uthecar. — E temos que andar depressa,

porque deve estar bem guardado, e a esta altura o fogo e nossa presença já são evidentes

para qualquer um.

Foram de quarto em quarto, escancarando as portas, mas todos estavam vazios. O

barulho da busca tomava conta da casa.

Chegaram ao fim de um patamar e Susan ia se jogar sobre uma porta, quando Uthecar

a deteve:

— Espere! Não estou gostando disto.

Apontou para um painel no alto da porta. Nele havia um desenho, em preto, com

umas letras estranhas agrupadas em volta.

— É uma marca de bruxa — disse Uthecar. — Vamos embora.

— Nada disso — disse Susan. — É a primeira coisa que a gente encontra. Vou olhar.

Experimentou a maçaneta com cuidado. A porta se abriu e Susan entrou num quarto

imenso. Estava sem mobília, e tão vazio quanto qualquer um dos outros que já tinham

visto, mas no chão havia um círculo desenhado, de uns seis metros de diâ metro. Tinha

uma margem dupla, em volta da qual estavam desenhados mais caracteres semelhantes

aos do painel. Dentro do círculo havia um losango e, nele, uma estrela de seis pontas perto

de cada ângulo. No centro do losango estava uma garra fa bojuda e de gargalo comprido,

com uma substância preta que se mexia como se estivesse fervendo, embora a rolha esti-

vesse lacrada com cera. E dentro da garrafa nadavam dois pon tos de luz vermelha que

mantinham sempre a mesma distância entre si.

Susan se aproximou do círculo e as fagulhas vermelhas pararam de se mexer e

grudaram no vidro. A menina sentiu um impulso de pegar a garrafa, mas quando chegou

ao círculo, o quarto todo se encheu de um zumbido, como se houvesse enxames de

abelhas, e as margens do círculo começaram a fumegar. Rapidamente, ela recuou, e ao

mesmo tempo Uthecar a agarrou pelo ombro e a empurrou para fora do quarto, batendo a

porta.

— O Brollachan! Ela o prendeu aí dentro!

— Aquilo? Então temos de impedir que ela entre aí, senão vai soltá -lo!

— Não me admira que ele tenha sumido — disse Uthecar.

— Ouça! — sussurrou Susan. — Vem vindo alguém! Havia uma porta que eles ainda

não tinham aberto, no final do patamar. Era menor que as outras. Por trás dela, apro-

ximavam-se passos.

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— Chegue para trás! — mandou Uthecar. — Deixe espaço para as espadas!

Afastou as pernas, e ficou em posição de saltar em cima de alguém ou de atacar. Os

passos que corriam se aproximaram, a porta se abriu e Uthecar deu um grito de alegria,

porque emoldurado pelo marco da porta estava Pelis, o Falso, de espada na mão,

paralisado pela surpresa.

Uthecar saltou, mas Pelis foi tão rápido quanto ele, e a espada só mordeu a porta, que

tinha sido batida na cara de Uthecar. Ele a abriu, e saiu correndo pela passagem a que ela

levava. Na outra extremidade, Pelis estava desaparecendo, esca da acima, aos pulos.

— Não me siga! — gritou Uthecar para Susan. — Fique de guarda aqui!

A escada não era comprida, e no alto havia uma única porta. Pelis estava pondo uma

chave na fechadura, mas não teve tempo de abrir antes que Uthecar o alcançasse.

Não era covarde. Ficou ali sem escudo, segurando a espada com ambas as mãos, de

costas para a porta, e não houve um golpe ou avanço de Uthecar que não fosse enfrentado

ou revidado. Mas a vantagem do escudo começou a fazer diferença e Uthecar foi

empurrando Pelis para longe da porta em direção à escada. Chegando lá, teve de ceder.

Susan ouvia o barulho do ferro batendo, e as respirações ofegantes, sons que o poço

da escada aumentava. Tentava convencer a si mesma de que era capaz de fazer uso da

espada.

Quando Uthecar e Pelis surgiram em seu campo de visão, ela se encostou na parede, e

ficou observando o jogo brilhante das lâminas, enquanto elas se batiam, se empurravam e

faiscavam em volta dos dois anões, com uma beleza cruel que tinha a exatidão de uma

dança.

— Para o quarto lá de cima! — exclamou Uthecar quando chegou no degrau de baixo.

Susan assentiu com a cabeça e começou a se esgueirar para passar pela luta. Uthecar

aumentou o ataque, mas, mesmo assim, Pelis conseguiu dar um corte maligno em direção a

Susan, quando ela correu para a escada. A menina ergueu o escudo e o golpe resvalou na

beirada dele, deixando uma marca comprida na pedra da parede. Mas não a tocou e ela

conseguiu passar.

Susan viu a chave na fechadura. Será que Uthecar queria que ela abrisse? Examinou a

madeira, mas não havia marcas nem inscrições visíveis. Então, virou a chave, e chutou a

porta, para que se abrisse.

Era mais uma cela do que um quarto. Sem janelas, vazia, sem nenhum conforto, como

o resto da casa. E de pé, encostado na parede à sua frente, estava Colin.

Page 96: A LUA DE GOMRATH

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• 96 •

O golpe doloroso

elis, o Falso, batia rijo no escudo de Uthecar, que já estava trincado em dois lugares.

Se conseguisse inutilizá-lo, tinha mais chance de conseguir deter aquela retirada

lenta pelo corredor abaixo. Como espadachim, não ficava nada a dever a Uthecar.

Mas aquela desvantagem fazia com que fosse quase impossível atacar e, embora tivesse

conseguido passar uma vez pela guarda de Uthecar, o ferimento causado foi leve. Ele

próprio estava perdendo forças, devido a um golpe que levara no ombro. A menina

sozinha não seria obstáculo, em matéria de armas, embora ele ainda desconfiasse do

bracelete dela. Mas tinha que acabar logo com aquele anão, ou a luta perderia seu

propósito.

Por isso, quando viu Susan aparecer atrás de Uthecar, com Colin apoiado em seu

braço, Pelis não hesitou, mas recuou para a escada que descia até o vestíbulo. Sabia que

não iria longe, se virasse as costas e saísse correndo.

Chegou ao alto da escada e, com habilidade, enfrentou Uthecar de tal maneira que

parecia estar perdendo as forças rapidamente. Assim, quando fraquejou e abriu a guarda,

Uthecar achou que chegara o momento e deu um golpe, jogando todo seu peso num

balanço do braço. Mas Pelis tirou o corpo fora, rolou por cima do corrimão e se jogou lá

embaixo no vestíbulo, enquanto Uthecar perdia o equilíbrio e caía pela escada.

Pelis saiu correndo. Mas não para a porta da frente, e sim para outra porta que saía do

vestíbulo. Passou e a fechou de novo, antes que Uthecar conseguisse s e recuperar. Susan

foi a primeira a chegar lá e quando abriu a porta viu Pelis por um instante, recortado

contra uma janela que ia do chão ao teto, e através da qual dava perfeitamente para ver o

clarão do fogo no gramado. Depois, o anão se agarrou na esquadria, balançou-se e

desapareceu no meio de uma cascata de vidro quebrado.

— Volte — chamou Uthecar. — Se os lios-alfar não o agarrarem agora, é porque a vida

dele é encantada. Vamos sair pela porta.

— Colin, você consegue correr?

— Consigo — disse Colin. — Eu estou bem. Só não comi nem bebi nada desde que

cheguei, e estava um pouco tonto, mas já passou.

— Você está machucado?

— Não. Eles só me prenderam ali dentro e me deixaram. Imagino que você já saiba

que é a Morrigana.

P

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— Sei, cruzamos com ela. Mas depois a gente conta. Susan, segure a mão de Colin e

quando eu abrir a porta, corra junto à parede para perto de Albanac. Ele não pode estar

longe. Cuidado com o descampado. Prontos?

Abriu a porta e, na mesma hora, agarrou o braço de Susan.

— Esperem!

— O que houve? — perguntou Colin.

Uthecar não respondeu, mas atravessou o vestíbulo e correu até o quarto de onde

Pelis escapara. Quando as crianças chegaram lá, viram que Uthecar estava parado junto à

janela quebrada, olhando a noite, que estava tão silenciosa e impene trável quanto as

cavernas de uma mina.

— A lua se escondeu — disse Uthecar.

— Mas a casa não fica aqui a não ser que a lua esteja bri lhando em cima dela — disse

Susan —, e ela ainda está aqui.

— É... mas onde é este "aqui"? — disse Uthecar. — Para o vale, esta casa está "aqui"

quando a lua velha brilha nela, e não nas outras ocasiões. Mas para a casa, o vale só está

"ali" sob a lua. Por isso, estou perguntando o que está "ali" agora, e não estou querendo

saber a resposta. Vamos esperar a lua voltar, e depois vamos sair por esta janela o mais

rápido que pudermos.

Enquanto esperavam, Uthecar fez várias perguntas a Colin, mas não havia muita coisa

a contar. A Morrigana não fizera nada com ele. Tinha sido levado direto para aquele

quarto e trancado lá dentro.

— Sua hora ia chegar — disse Uthecar. — Susan era o principal alvo e usaram você de

isca para trazê-la até aqui. E a trouxeram, mas não do jeito que queriam!

— Mas por que foi que Pelis não me trouxe logo, em vez de trazer Colin?— perguntou

ela.

— Ele não sabia quanto do poder guardado em você já tinha se revelado. Se fosse um

pouco maior, ele nem podia sonhar em trazê-la à força, pela espada.

— Por que ele está fazendo isso tudo? — perguntou Colin. — Nós nem hesitamos em

confiar nele, quando vimos que era um anão.

— Ah, e isso para vocês bastava! — exclamou Uthecar. — Por que é que estou aqui, se

não for porque gosto de confusão?

É da natureza dos anões procurar encrenca — e ele tem mais prazer em causá-la do que em

curá-la.

Mas antes que pudessem dizer qualquer coisa mais, a escuridão vibrou e apareceram

luzes difusas, que se condensaram em fogueiras. Com a luz, vieram barulhos — patadas de

cavalos, choques de armas.

Uthecar pôs o escudo à sua frente e pulou pela janela. As crianças o seguiram e os três

caíram juntos num caminho que havia entre a casa e o gramado. Uthecar ajoelhou -se atrás

do escudo, para avaliar a situação.

Os elfos mantinham seu círculo, enfrentando os gatos e os goblins. Se algum conseguia

atravessar o círculo, não era perseguido, mas abatido com flechas. E pelo número de

corpos no chão, a luta já durava bastante tempo.

Os elfos estavam em inferioridade numérica, pelo menos, de dois para um. Havia

gatos por toda parte, um tormento para os cavalos e morte certa para qualquer elfo que

fosse derrubado.

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Apesar de sua opinião sobre os lios-alfar, Susan admirava a coragem deles. Eram

rápidos como falcões, porém calmos em sua velocidade, e nem gritavam nem berravam.

Deviam ter olhos na nuca, pensou Susan.

— Não estou vendo Albanac — disse Uthecar. — Vamos procurá-lo.

Correram até o canto da casa e encontraram Albanac guardando a porta.

— Como estão as coisas? — perguntou Uthecar.

— Eles atacaram com a lua, mas estamos resistindo. E como foi com vocês?

— Colin está aqui, e não está ferido — disse Uthecar. —

E o Brollachan está lá dentro... então, temos de mantê-los aqui fora.

— O Brollachan?

— É... fechado num quarto de magia negra.

— Quando a gente tiver tempo para pensar, você me conta. Agora, mal dá para

trabalhar tentando ficar vivo.

Mas embora Albanac não tivesse exagerado o perigo, a luta estava amainando. Os

palugues tinham pouca determinação. E os bodaques, percebendo que tinham perdido o

ímpeto do ataque, estavam poupando vidas. Acabaram se ret irando, na esperança de que

os lios-alfar os perseguissem, mas nenhum elfo saiu de onde estava.

— Esta calma não vai durar muito — disse Albanac. — Colin, você precisa de armas, e

receio que vá ter de usá-las.

Atravessou o gramado, andou pelo meio das fogueiras e, quando voltou, trazia um

escudo e uma espada idênticos aos que Susan estava usando.

Colin prendeu o escudo no braço e testou o peso da espada.

— Lembrem-se — disse Uthecar —, são para os gatos, os palugues. Não se metam a

lutar com os bodaques.

— Seria muito melhor se tivéssemos armas de fogo — disse Colin.

— Seria mesmo? — disse Uthecar. — É nisso que nos distinguimos dos homens. Eu

sei, você pode olhar para nós aqui e achar que estamos metidos num massacre. Mas

sabemos o preço de cada morte, porque olhamos nos olhos aqueles que estamos mandando

para a escuridão, e vemos o sangue em nossas mãos, e cada morte é sempre como se fosse

a primeira. Posso lhe garantir: nessa hora, a vida é verdadeira, e seu valor fica muito claro.

Mas matar a distância é matar sem saber, e essa é a destruição do homem. Você vai

descobrir nos arcos dos lios-alfar muita coisa que explica a natureza deles, que não foi

sempre como é agora.

O final das palavras de Uthecar se misturou a uma agitação que tinha começado na

curva do caminho e agora se espalhava por toda parte. Em vez de atacar por todos os lados

ao mesmo tempo, os bodaques e palugues tinham feito uma formação na estrada, e avançavam

em bloco. Conseguiram furar o círculo e já estavam quase chegando a casa antes que se

soubesse direito o que acontecia. Mas os elfos reagiram com rapidez e se fecharam

novamente, junto às paredes.

A luta agora era desesperada, já que os elfos não podiam manobrar. Mas defendiam

seu terreno, usando apenas as espadas. Os cavalos recuavam e escoiceavam.

Uthecar e Albanac guardavam a porta, as crianças ao lado. As instruções do anão,

para só lutarem com os palugues, não podiam ser seguidas, porque gatos e goblins

amontoavam-se diante deles, e teria sido fatal se tentassem discriminar.

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O pior momento para Colin e Susan foi quando o ataque estava chegando, a segundos

deles, e sabiam que iam ter de erguer a espada e depois abatê-las sobre seres vivos. Colin

lembrou de brincadeiras de lutas, anos antes. Mas a lâmina agora era como limo, a po nta

parecia orvalho. No entanto, quando viu os dentes e garras que avançavam contra ele e

mais ninguém, golpeou instintivamente, e a partir daí, o desejo de viver assu miu o

controle.

Os bodaques atacavam com suas lanças, e pulavam alto com seus pés de garras afiadas,

enquanto os palugues somavam sua maldade à luta.

Porém mais uma vez a paciência fria levou a melhor sobre a raiva e os bodaques

recuaram, os elfos foram avançando passo a passo com a retirada deles, e o círculo original

acabou se formando novamente.

Albanac ficou com as crianças junto a casa, e eles se sentaram no chão, exaustos. Mas

Uthecar ainda estava no calor da briga, e ia além dos elfos, até o limite da fogueira,

jogando fora o escudo cada vez que ficava pesado demais com as lanças q ue se enfiavam

nele, e pegando outro nos montinhos que coalhavam o gramado.

Parecia que finalmente ele tinha esfriado um pouco, a ponto de começar a voltar,

quando de repente deu um grito, olhando para a estrada:

— Então ainda está vivo, e bem longe da briga! Mas eu o vejo! E minha espada está

louca para fazer a festa em você!

— Volte! — gritou Albanac. — Se acha que consegue viver saindo deste círculo, é

porque perdeu a razão, carregada pelos fantasmas da montanha.

Mas Uthecar girava a espada sobre a cabeça, preparando-se para atacar.

— Corram, bodaque! Abram caminho! Porque quando eu saltar sobre vocês, por mais

numerosos que sejam, como saraivada de granizo ou folhas de capim, podem ter certeza

de que suas cabeças e crânios vão se juntar às estrelas do céu! E seus ossos, esmagados por

mim, vão virar pó e se espalhar pela terra!

E seguiu em frente, numa fúria incontrolável, passando pelas fogueiras , mergulhando

numa penumbra de gritos e golpes de lâminas.

Ficou enfurecido! — exclamou Albanac. — Quando o sangue dele esfriar, vai querer

estar bem longe dali, mas vai ser tarde demais...

O barulho agora parecia ainda maior do que quando a casa estava s itiada — uma

gritaria, um pandemônio terrível, de que não se destacava som algum. Albanac montou em

Melynlas, e cavalgou até a beirada do círculo.

— Uthecar!

— Que é?

A voz não estava nítida.

— Como vão as coisas?

— Tem... uma chuva... de lanças no lugar... onde eu estou... Não sei... mas acho que

vou ter de recuar...

— Vou te ajudar!

— Seu idiota! — respondeu o anão.

Mas Albanac foi num trote até junto da casa, deu meia-volta em Melynlas, e avançou a

pleno galope pela estrada. Uma fileira de bodaques estava ajoelhada no limite da escuridão,

mas Melynlas passou a toda sobre eles e, enquanto apoiavam o cabo das lanças no chão de

cascalho, saltou sobre suas cabeças pelo luar adentro, para onde as crianças não

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conseguiam ver, ofuscadas pelo clarão das fogueiras. Em seguida, só dava para ouvir os

barulhos.

E, depois, Melynlas veio crescendo e voltando da noite, espumando, com os cascos

vermelhos. Ao lado de Albanac, cavalgava Uthecar, ainda cortando o ar para todo lado.

Mas Albanac estava caído sobre a cabeça do cavalo, e uma espada com punho de ouro

estava pendurada no lado do seu corpo.

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• 101 •

Os filhos de Dann

elynlas parou e Uthecar pulou no chão, ajudando Albanac a descer da sela. O

cavaleiro despencou nos braços do anão, fazendo-o perder o equilíbrio. Mas

Atlendor acudiu do outro lado e os dois acabaram levando o ferido a um ponto

mais protegido, no platô abaixo do gramado. Com muito cuidado, Uthecar retirou a

espada do ferimento. Albanac abriu os olhos, azuis e claros.

— Eu tinha a esperança de que não fosse tão cedo, esta noite — murmurou.

— Descanse até a batalha acabar — disse Uthecar. — Então você vai estar em

segurança.

— Eu estou em segurança... aqui... em qualquer lugar... O uivo de Ossar... não se pode

fazer nada quando ele chama.

Um grupo de elfos apeou, e fez uma maca com as espadas, levantando Albanac.

— Nós tomamos conta dele — disse Atlendor, e o levaram a um lugar abrigado, entre

duas paredes altas da casa.

Colin e Susan queriam segui-lo, mas Uthecar meneou a cabeça.

— Ele estará melhor em companhia deles. Têm prática dessas coisas... E nós somos

necessários aqui.

Enquanto falava, tinha se ouvido uma gargalhada, vinda das moitas do lado de fora

do círculo, e completada por gritos e vaias. E quando Uthecar mostrou que ouvira, a risada

se transformou em palavras de zombaria:

— Para onde foi aquela valentia toda? Bem que se diz que nenhuma espada é tão fiel a

seu dono quanto as esporas... Hornskin, seu Pele-de-Chifre, não quer vir me trazer minha

espada?

Era assustador ver o ódio que essa voz despertara em Uthecar. Saiu correndo até o

meio do gramado, e espetou a espada dourada no chão.

— Venha agora, com seus bodaques, Pelis, o Falso! Venha pegar sua espada — gritou. —

A passagem está livre. Mas se quando você for embora eu ainda estiver vivo, os arcos dos

lios-alfar vão cantar para você. E se eu estiver morto, então ninguém atrapalha sua ida. Aqui

está sua espada. Pegue!

Houve um minuto de silêncio. Mas depois se ouviu um barulho de passos pelo

caminho, e uma figura preta e dourada surgiu sob a luz, passando entre dois dos lios-alfar,

que olharam mas não ergueram suas armas. Trazia um escudo e andava com passos firmes

pelo gramado.

M

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Pelis, o Falso, pegou a espada, arrancou-a do chão e encarou Uthecar sem dizer uma

palavra. Uthecar também não disse nada e os dois ficaram cara a cara, como dois touros ou

dois veados quando vão brigar. O ar tremia em volta.

Uthecar estava num frenesi para atacar, porque sentia a dor da culpa por Albanac ter

sido ferido e estava louco de raiva. No começo, levou vantagem. Mas estava lutando mais

com o coração do que com a cabeça, enquanto Pelis se controlava e não desperdiçava suas

forças.

Não se passou muito tempo até que a paixão deixasse Uthecar e a exaustão se

instalasse. Suas armas pesavam, seus músculos doíam com cãibras, e Pelis, o Falso,

continuava a rebater cada um de seus golpes. Não apenas isso, mas passou a comandar os

movimentos das lâminas, e era o escudo de Uthecar que fazia barulho. Começou a recuar

pelo gramado, sentindo que sua vida se despedia, e então Pelis furou sua guarda e enfiou

a espada no ombro dele, acima das costelas.

A dor limpou a mente de Uthecar de qualquer cansaço. Viu que se não aproveitasse

aquele instante, não haveria outro. Jogou o escudo longe e deu um pulo no ar, retorcendo-

se como um salmão, por cima de Pelis, caindo sobre o braço dele. A espada se cravou em

Pelis até o punho e os dois anões caíram juntos — um desmaiado e o outro, morto.

Colin e Susan tinham ficado olhando desde a beira do gramado e correram juntos,

pegaram Uthecar e o carregaram de novo para junto da parede. Colin rasgava tiras da

túnica de Uthecar para fazer ataduras e Susan limpava o ferimento da me lhor maneira que

podia.

— Consegui matar? — perguntou Uthecar.

— Conseguiu — disse Colin.

— O incrível é eu não estar também ali, caído no chão — disse Uthecar. — Era o que

eu merecia, com tanta fúria. Você se machucou?

— Só uns arranhões — disse Susan.

— E Albanac?

— Não sei.

— Vá ver como ele está. Mas tome cuidado.

Colin e Susan foram seguindo pelo lado da casa, para o canto onde os elfos estavam

com Albanac. Mas não tinham ido muito longe quando ouviram um som que deixou seus

pés pregados no chão — o uivo de um cão, muito perto da casa, na frente deles. As notas

subiram e desceram numa tristeza que varreu a mente das crianças com imagens de

paisagens isoladas de pedra, e montanhas vermelhas, e buracos cheios de água e pouca

luz, e chuva caindo em véus sobre os picos, e muito além, na distância, um brilho frio no

mar. E, nessa distância, a voz sumiu como um eco, e Atlendor veio em direção às crianças,

saindo das sombras da casa.

— Albanac não está aqui.

— Não está aqui? — repetiu Colin. — Mas estava muito ferido. Para onde foi?

— Foi cuidar do ferimento. Depois volta.

— E por que não falou conosco? — perguntou Susan.

— Não houve tempo, ele foi chamado. É sempre assim com os Filhos de Danu, já que

faz parte do destino deles nunca chegar ao fim do que realizam. Ajudam, mas não podem

salvar.

— Quando é que ele volta? — perguntou Colin.

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— Os Filhos de Danu raramente demoram — disse Atlendor.

— E nós já vamos. Cumpri o que prometi e mantive minha palavra. Agora, vamos

embora.

— Mas não podemos ir! — disse Susan. — E a Morrigana? E o Brollachan lá dentro? Se

ela o soltar, não se sabe o que pode acontecer...

— O que sei é que foi uma promessa muito cara — disse Atlendor.

Olhou para Colin e acrescentou:

— Para salvarmos uma vida pagamos com trinta. Estamos indo embora com nossos

cavalos. Aprontem-se.

Atlendor virou-se e caminhou para o canto, para onde os elfos tinham carregado

Albanac ferido.

— Como é que ele pode deixar tudo assim desse jeito? — exclamou Susan. — Não é

seguro. E não podemos deixar a Morrigana entrar de novo na casa. Será que ele não

entende?

— Mas ele tem razão — disse Colin. — Não se pode pedir que se disponha a perder

ainda mais, por uma coisa que nem é importante para ele.

— Não é? — perguntou Susan.

Quando se aproximaram de Uthecar, viram que Melynlas montava guarda junto a ele.

Vendo as crianças, o cavalo ficou de orelha em pé, e chegou o focinho ao ombro de Colin.

— Como é que ele está? — perguntou Uthecar.

— Não o vimos — disse Colin. — Dizem que se foi. E os elfos também estão indo.

— Ele sabia que seria esta noite — disse Uthecar. — Não tínhamos como prendê-lo

aqui.

— Mas como é que pode ir? — perguntou Colin. — E por que deixou o cavalo para

trás?

— Não precisa mais dele — explicou Uthecar. — Vocês podem ter achado que era um

homem estranho, mas Albanac era muito mais do que isso. Era um dos Filhos de Danu,

que vieram para esta terra quando tudo era verde. Era o melhor de todos os homens.

— Ele está morto? — perguntou Colin.

— Não como vocês imaginam — disse Uthecar. — Digamos que neste mundo mudou

sua própria vida. Os Filhos de Danu nunca estão longe de nós, e todos os seus dias são

dedicados a nossa causa, mas há uma maldição sobre eles: é que nunca verão seu trabalho

completo, pois isso oxidaria o ouro de sua natureza e transformaria seu poder num

objetivo egoísta. Quando se aproxima a hora da partida, o Mastim de Conaire lhes aparece,

como vocês ouviram e viram. O uivo de Ossar paira sobre suas vidas como uma sombra.

— Não posso acreditar — disse Colin. — Faz tudo parecer tão sem sentido...

— Ele não esperava mais do que isso — disse Uthecar — e nele não havia lugar para a

tristeza. Porém ele voltará. Mas... e os elfos? Vocês disseram que eles também estão indo?

— Estão fugindo — disse Susan.

— Então minha opinião a respeito deles melhora — disse Uthecar.

— Você? — exclamou ela. — O que está acontecendo com todo mundo? Você não pode

deixar a Morrigana vencer.

— E eu lá posso detê-la? — disse Uthecar. — Ouça. Recuperamos Colin, e não

podemos fazer mais nada por aqui, já que o Brollachan está preso num círculo de magia.

Matamos muitos bodaques e liquidamos os palugues. Quando eu estava lá lutando, vi que só

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restavam uns doze. E quando eles se acabarem, a Morrigana vai ter de vir em pessoa — e

aí não é hora para eu ficar por aqui. Eu tenho muito medo dela, e não me en vergonho

disso. E também, do jeito que estou ferido, não estou especialmente adorand o a idéia de

enfrentar um bodaque, nem a morte, nem suas aflições medonhas, nem o choque daquelas

lanças azuis.

— Pois então, fico sozinha.

— Não fica, não — disse Uthecar, e começou a caminhar pelo gramado, em direção ao

ponto onde Pelis tinha caído.

Voltou com a espada dele.

Os lios-alfar estavam desmanchando o círculo e formando uma coluna, com os feridos

no meio, amarrados às selas.

— Como é que eles souberam que estavam indo embora? — perguntou Colin. —

Nunca ouvi nenhum deles falar, com exceção de Atlendor.

— Faz parte da esquisitice deles — disse Uthecar. — Eles se falam com o pensamento.

E pelas caras que eu já vi, são capazes de ouvir coisas que não passaram por meus lábios.

Relutante, Susan montou. Colin cavalgava Melynlas, que parecia tê -lo adotado. E se

reuniram à coluna dos elfos, com Uthecar.

As fogueiras estavam se apagando, por falta de atenção. O chão estava coalhado de

corpos e armas largadas. A casa continuava à espera. Susan olhou em volta, contemplando

o cenário de seu fracasso — era assim que estava encarando a situação. No começo, achara

que Colin era seu único objetivo. Fizera coisas impossíveis, por amor a ele. Mas agora

sentia que tudo isso fora apenas o primeiro passo de sua missão, que estava dei xando

interrompida.

Os lios-alfar saíram a galope pela estrada e, se não fosse por suas espadas e pela vista

aguda de Uthecar, não teriam conseguido manter a velocidade, e as lanças que choveram

sobre eles teriam atingido muitos mais. Mesmo assim, três dos cava los tinham perdido

seus cavaleiros quando finalmente chegaram ao descampado.

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• 20 •

A última cavalgada

velocidade dos lios-alfar em direção ao Tor Brilhante lembrava um vento de

inverno, já que a lua brilhava sem obstáculos e eles estavam acostumados com sua

luz. Mas quando mal estavam começando a subir a encosta da colina, a sensação

de que aquilo estava errado começou a pesar demais para Susan.

— Esperem! — gritou.

Os elfos se detiveram e todos os olhares se dirigiram a ela.

— Temos de voltar. Nunca estaremos seguros desta maneira. A Morrigana precisa ser

mantida fora daquela casa.

— Não temos obrigação nenhuma — disse Atlendor. — Venha.

— Uthecar, você vai comigo?

— A única coisa que sei fazer é lutar com a espada, e isso agora me está negado —

disse Uthecar. — E tenho mais medo da Morrigana do que da desonra. Vamos embora.

— Colin?

— O que é que há, Sue? Você sabe perfeitamente que não podemos fazer mais nada.

— Está bem — disse ela, dando meia-volta e avançando a toda em direção a Errwood.

— Susan! — gritou Uthecar.

— Ela vai voltar quando perceber que não a estamos seguindo — disse Colin.

Mas Susan nem olhou para trás. Foi até a colina redonda que havia no alto do vale e,

em vez de seguir pela estrada, do lado direito da colina, resolveu se aproximar da casa por

uma picada estreita que ia pela esquerda.

— Ela está indo mesmo! — disse Colin, e esporeou Melynlas para ir atrás dela.

Mas Melynlas não saiu do lugar. Quanto mais Colin tentava, mais o animal o

ignorava. Não era a teimosia natural de um cavalo. Ele estava tran qüilo e dócil. Mas não

saía do lugar.

Colin apeou de Melynlas e desatou a correr. Xingando, Uthecar tentava segui -lo, mas

Melynlas deu um coice em seu cavalo e lhe mostrou os dentes. O animal não ousou se

mexer. Uthecar sabia que estava fraco demais para confiar nas próprias pernas. Os lios-alfar

continuaram imóveis.

A picada era cheia de mato e escorregadia. Bem lá embaixo, o riacho corria sobre

pedras. O rosto de Susan era chicoteado pelos galhos, mas isso não era nada, em

comparação com o frio que tomava conta de seu pulso.

A picada terminou. Ela estava diante da casa. E bem ali, na estrada, informe em suas

túnicas, cercada por bodaques e palugues, estava a Morrigana.

A

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Susan puxou as rédeas e, ao vê-la, os bodaques e palugues berraram, pois, para eles, ela

estava transformada. Seus corações tremeram e eles fugiram. Mas o encanto do bracelete

não estava agindo sobre a Morrigana. E ela levantou a mão.

Então Susan sentiu todo o peso do perigo que corria, quando olhou no fundo daqueles

olhos luminosos como os de uma coruja, e viu que lá dentro a escuridão girava como um

redemoinho chamando para as profundezas. A lua transmitia tamanho poder à Morrigana

que quando ela levantou a mão até mesmo o barulho do riacho tremeu, e o ar amoleceu de

medo.

— Vermias! Eslevor! Frangam! Beldor!

Alguma coisa parecida com um relâmpago negro saiu da mão da Morrigana,

dardejando em direção a Susan, que levantou o braço para se proteger. Ao fazer isso, viu a

palavra de poder se destacando da Marca. E embora não fosse a mesma palavra que tinha

visto no Tor Brilhante, a menina pronunciou-a bem alto, com toda sua vontade:

— HURANDOS!

E da Marca jorrou uma lança de chama, que encontrou o raio negro da Morrigana a

meio-caminho do alvo, e as duas forças se entrelaçaram, estalando e se retorcendo como

duas serpentes.

— Salibat! Reterrem! — gritou a Morrigana.

O raio negro se encheu de ondas, engrossou, e devagar foi empurrando o branco de

volta ao bracelete.

Susan ergueu-se sobre os estribos e, sem que olhasse o bracelete, as palavras

começaram a jorrar de seus lábios. Palavras que nunca tinha sabido ou ouvido:

— . . . per sedem Baldery et per gratiam tuam habuisti...

A luz branca cresceu de novo, mas a Morrigana respondeu. Susan sentiu que estava

enfraquecendo. O negrume a estava envolvendo como se fosse um tentáculo.

— Não devia ser eu. Por que eu?

E então o poder da Morrigana a alcançou. Susan caiu do cavalo e mergulhou no nada.

Quando Susan abriu os olhos, viu a Morrigana de pé, de costas para ela, de frente

para a casa. A Morrigana tinha confiado demais em seu poder, desprezado demais o

bracelete de Susan, e o que deveria ter destruído ficou apenas entorpecido. Mas Susan

achou que não podia fazer mais nada. Tentara e falhara. Agora era seu dever avisar

Cadellin ou Angharad Mão-de-Ouro. Eles que cuidassem da situação.

— Besticitium consolatio veni ad me vertat Creon, Creon, Creon, cantor aludem omnipotentis et non

commentur...

A Morrigana cantava sem tom, com os braços estendidos.

— ... principiem da montem et inimicos o prostantis vobis...

Susan foi se arrastando até o cavalo, que estava parado, como se estivesse encantado,

e o alcançou no momento em que a voz da Morrigana chegava ao clímax:

— ... passium sincisibus. Fiat! Fiat! Fiat!

Houve um barulho de trovão na casa, e começou a escorrer uma fumaça de uma das

janelas do segundo andar. Depois, toda a parede da frente explodiu, e uma nuvem se

espalhou, derramando-se da casa. E nessa nuvem havia duas poças vermelhas.

Susan não esperou mais nada. Pulou de qualquer jeito sobre o cavalo, e ele ganhou

vida sob seu corpo. Enquanto se afastavam a toda velocidade, ela ouviu a Morrigana

gritar, mas logo virou a curva e estava na picada que seguia por cima do riacho.

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O Brollachan crescia sobre Errwood, forte por seu próprio poder, e pelo poder da lua,

e mais o poder de sua guardiã. E via o cavalo correndo no vale, e os elfos no alto da colina,

e se preparou para cobrar pelos longos séculos em que tinha ficado preso nas mãos deles.

Susan sentiu o céu ficar negro em cima dela. Olhou para o alto e só via a noite.

Levantou a Marca de Fohla, mas a prata não brilhava e as palavras não apareciam. A

colina tinha desaparecido. Não conseguia ver nada. O ar batia no ritmo de seu sangue e a

noite nadava para dentro de seu cérebro. O mundo todo ia sumindo. E então Susan ouviu

uma voz, urgente, a voz de Angharad Mão-de-Ouro, gritando:

— A cornetinha com a guirlanda de ouro no aro! Todo o resto está perdido!

Susan foi rasgando tudo, em busca da faixa em sua cintura, com dedos que resistiam à

sua vontade. E levou a cometa aos lábios.

Sua nota era música, como o vento nas cavernas de gelo. Da distância, lá longe nesse

gelo, vinha um tropel de cascos e vozes gritando: Vamos cavalgar! Vamos cavalgar! E a

escuridão se derreteu. Junto a Susan, surgiu um homem em cuja cabeça crescia uma

imponente galhada de veado-rei, e ele vinha correndo com a mão apoiada no pescoço do

cavalo. E em volta, por toda parte, apareciam capas infladas ao vento, vermelhas, azuis,

brancas e pretas, e cristas que voavam no ar. E ela foi varrida por elas, levada como se

fosse palha.

E na distância, como se andassem sobre um campo, vieram a seu encontro nove

mulheres, com falcões pousados nos punhos e galgos que as acompanhavam, em coleiras.

A alegria desse momento carregou Susan para longe, limpando de sua cabeça todos os

pensamentos, exceto a lembrança de Celemon, filha de Cei, que o gosto amargo da Mothan

lhe tinha arrancado.

Esporeou o cavalo para que corresse mais e encontrasse aquela celebração de boas -

vindas, que cantava pelo meio da noite e libertava os cavaleiros de seu cativeiro nos

montes escuros... Mas a voz de Angharad falou de novo:

— Deixem-na! Ela ainda está com os poderes muito verdes! Ainda não está pronta!

Então o Caçador soltou a mão de Susan e foi se afastando lenta mente, enquanto ela

prosseguia sua cavalgada. E foi como se a menina estivesse despertando de um sonho que

desejara por muito tempo, e acordasse numa manhã fria, num mundo vazio demais para se

suportar. Mais do que viver, o que ela queria era participar do triunfo que estava por toda

parte, à sua volta.

Os Einheriar empalideceram, foram sumindo, suas formas ficaram rarefeitas, virando

ar e luz, e subiram para os céus.

— Celemon!

Mas não adiantou. Susan ficou para trás, foi deixada, espuma sobre a colina. E uma

voz chegou até seus ouvidos, vinda dos distantes contornos das estrelas:

— Ainda não está pronta! Vai estar! Mas ainda não!

E morreu o fogo dentro de Susan, e estava mais uma vez sozinha no descampado, o

vento da noite em seu rosto, alegria e angústia misturadas em seu coração.

•••

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Colin estava chegando à colina quando viu o Brollachan crescer por cima das árvores

no mesmo momento em que Susan surgia, vindo do vale. E ficou olhando, impotente, sem

poder fazer nada.

O Brollachan fazia a colina parecer pequenina e se aproximava de Susan a tamanha

velocidade que parecia que ela estava galopando para trás. A nuvem se ergueu e formou

uma ponta como se fosse a raiz de um redemoinho, que girou bem baixo sobre a cabeça de

Susan e, então, golpeou. A massa toda do Brollachan se abateu sobre aquele único ponto.

Os ouvidos de Colin ficaram momentaneamente surdos com uma explosão que o jogou no

chão. A parte da colina onde estava Susan deslizou para dentro d'água e o Brollachan ficou

pairando por cima.

Mas à medida que sua mente foi clareando, Colin ouviu outro som, tão bonito que

nunca mais o esqueceu: o som de uma corneta, belo como o luar na neve. Pelo meio do

Brollachan correram relâmpagos de prata. E ouviu barulho de cascos galo pando, e vozes

chamando:

— Vamos cavalgar! A galope! A galope!

E a nuvem inteira virou prata, brilhando tanto que ele não podia olhar.

O som do galope se aproximava e a terra tremia. Colin abriu os olhos. Agora a nuvem

corria sobre o solo e se partia em glórias separadas, que murmuravam e se aguçavam em

brilhos de estrelas. E nelas havia cavaleiros, e na frente deles havia um que era pura

majestade, coroado com uma galhada magnífica, imponente como o sol.

Mas quando estavam cruzando o vale, um dos cavaleiros ficou para trás. Colin viu

que era Susan. Ela foi perdendo terreno, embora continuasse com a mesma velocidade. A

luz que a formava foi se apagando, e em seu lugar ficou apenas um vulto menor e sólido,

parado, abandonado, acordando na claridade da cavalgada.

Os cavaleiros subiram pela encosta da colina e continuaram se elevando, pelo ar

acima, cada vez mais vastos no céu, e a seu encontro vieram nove mulheres de cabelos de

vento. E juntos eles se afastaram, cavalgando pela noite, sobre as ondas, além das ilhas, e a

Velha Magia estava livre para sempre. E a lua era nova.

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Conheça também, de Alan Garner, pela Salamandra:

A pedra encantada de Brisingamen

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