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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL A LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL: DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO À SOCIEDADE UNIPESSOAL – UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL E ECONÔMICA Giovani Magalhães Martins Filho Fortaleza-CE Abril, 2010

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Page 1: A LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO … · econômica sobre a qual se assenta a noção de empresa. ... ter a característica de um direito especial, o Direito Comercial

FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

A LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL: DO PATRIMÔNIO DE

AFETAÇÃO À SOCIEDADE UNIPESSOAL – UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL E ECONÔMICA

Giovani Magalhães Martins Filho

Fortaleza-CE Abril, 2010

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GIOVANI MAGALHÃES MARTINS FILHO

A LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL: DO PATRIMÔNIO DE

AFETAÇÃO À SOCIEDADE UNIPESSOAL – UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL E ECONÔMICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Uinie Caminha.

Fortaleza – Ceará 2010

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__________________________________________________________________________ M386l Martins Filho, Giovani Magalhães. A limitação de responsabilidade do empresário individual : do patrimônio de afetação à sociedade unipessoal – uma abordagem constitucional e econômica / Giovani Magalhães Martins Filho. - 2010. 156 f. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2010. “Orientação: Profa. Dra. Uinie Caminha.” 1. Sociedade limitada. 2. Constitucionalidade. 3. Sociedades unipessoais. 4. Direito comercial. I. Título. CDU 347.724 ________________________________________________________________________

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GIOVANI MAGALHÃES MARTINS FILHO

A LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL: DO PATRIMÔNIO DE

AFETAÇÃO À SOCIEDADE UNIPESSOAL – UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL E ECONÔMICA

BANCA EXAMINADORA

________________________ Uinie Caminha

Universidade de Fortaleza – UNIFOR

________________________ José Julio da Ponte Neto

Universidade de Fortaleza – UNIFOR

_________________________ João Luis Nogueira Matias

Universidade Federal do Ceará – UFC Dissertação aprovada em: 27/04/2010

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A Deus, por tudo; Aos meus pais, que sempre me incentivaram na busca de meus objetivos, por se fazerem presentes e terem se disponibilizado a me auxiliarem na busca de mais este sonho.

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“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração eles têm pelo próprio interesse. Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse egoístico (self interest), é levado por uma mão invisível a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade”. (Adam Smith, na obra “A riqueza das nações”, de 1776)

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AGRADECIMENTOS

Neste momento, gostaria de agradecer a algumas pessoas sem as quais não teria sido

possível chegar ao resultado pretendido com este trabalho.

À minha amiga e orientadora, Professora Doutora Uinie Caminha, que, desde o

primeiro contato, ainda na época de seleção para o ingresso no Mestrado em Direito

Constitucional, mostrou-se sempre disponível para a condução do presente trabalho,

mostrando-se sempre aberta e crítica na orientação realizada.

Aos professores examinadores, por engrandecerem o trabalho apresentado, em razão

de suas participações e intervenções enriquecedoras.

Aos professores Joyceane Bezerra de Menezes, José Júlio da Ponte Neto, Francisco

Luciano Lima Rodrigues, Gina Vidal Marcílio Pompeu, Arnaldo Vasconcelos e Rosendo de

Freitas Amorim, os dois primeiros meus professores em toda a minha trajetória acadêmica,

pela contribuição que cada um, a seu modo, ofereceu em debates nas disciplinas cursadas no

decorrer do Mestrado.

A todos os colegas que conheci no Mestrado em Direito Constitucional da

Universidade de Fortaleza, na esperança de que, apesar da distância territorial de alguns e

das ocupações profissionais de outros, não se desfaçam os laços de amizade, reforçando-os

de agora em diante, e para todo o sempre.

Aos meus colegas de trabalho, professores que compõem a área de Direito

Empresarial do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza, de modo especial, além dos

professores já mencionados, à Professora Magnólia Barbosa e Silva e ao Professor Antonio

Carlos Fernandes, meus primeiros professores da área, ainda na época da Graduação, por

terem me proporcionado descobrir a beleza e a magnitude que tem o Direito Empresarial.

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Aos meus alunos das disciplinas de Direito Empresarial I e III, da Graduação em

Direito da Universidade de Fortaleza, pela contribuição referente a questionamentos que

eram levantados quando aproveitava a oportunidade da sala de aula para utilizá-la como

laboratório para testar as hipóteses levantadas neste trabalho.

Á Professora Doutora Lília Maia de Morais Sales, que, ao assumir a Coordenação do

Curso, imprimiu nova dinâmica ao Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional /

Mestrado e Doutorado, pelos constantes incentivos seja no que se refere à publicação de

trabalhos, seja no que se refere a mensagens de otimismo para a confecção da dissertação.

Ao corpo de funcionários que compõem o Programa de Pós-Graduação em Direito da

Universidade de Fortaleza, pela presteza e disponibilidade.

Por fim, à própria Universidade de Fortaleza, pelo tríplice prazer de ter sido por ela

graduado, de compor a sua área acadêmica junto à Graduação em Direito e de ter tido a

oportunidade de, abraçando o magistério, ser, por ela, titulado Mestre em Direito.

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RESUMO O tema “A limitação de responsabilidade do empresário individual: do patrimônio de afetação à sociedade unipessoal – uma abordagem constitucional e econômica” foi escolhido em decorrência do panorama atual de tratamento jurídico do patrimônio do empresário, em face principalmente do regime jurídico instaurado com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002. Este trabalho versa sobre a responsabilidade do empresário individual. Analisa o regime de responsabilidade a ele aplicado, corroborando as razões pelas quais a ordem jurídica brasileira ainda não reconheceu ao empresário individual a possibilidade de se estabelecer e de desenvolver a sua atividade, com limitação de responsabilidade. Para tanto, é feito um estudo histórico acerca da evolução das organizações empresariais, apresentando-se o modo como a limitação dos riscos empresariais foi tratado com o correr dos tempos. Após, é apresentada a base jurídico-econômica sobre a qual se assenta a noção de empresa. Também, apresentaram-se as principais discussões acerca da personalidade jurídica das sociedades empresárias, do seu ato constitutivo, seus elementos, bem como a relação existente entre as noções de personalidade, responsabilidade e patrimônio, fazendo-se um paralelo com o princípio da dignidade da pessoa humana e evidenciando o funcionamento do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias. Ademais, analisaram-se as situações excepcionais de exercício de atividade empresarial por uma só pessoa, e com limitação de riscos, já reconhecidas pelo direito brasileiro, realçando as principais estruturas sobre as quais se pode construir o novel instituto, a sua constitucionalidade, as primeiras tentativas de regulamentação, bem como algumas considerações pertinentes acerca do instituto projetado. A conclusão é a de que, tanto se olhando sob o prisma econômico quanto constitucional, o reconhecimento da limitação de responsabilidade do empresário individual é medida urgente para ser implementada, tanto como meio para coibir as sociedades fictícias quanto como mecanismo para incentivar atividades empreendedoras. Palavras-chave: Empresário individual. Sociedade unipessoal. Patrimônio de afetação. Responsabilidade limitada. Constitucionalidade.

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ABSTRACT The theme “the limitation of responsibility of the individual entrepreneur: of the patrimony of affectation to the unipessoal society - a constitutional and economic analysis” was chosen in result of the current view of legal treatment of the patrimony of the entrepreneur, in face mainly of the restored legal regimen with the advent of the Federal Constitution of 1988 and the Civil Code of 2002. This work turns on the responsibility of the individual entrepreneur. It analyzes the regimen of responsibility applied, corroborating the reasons for which the Brazilian Law not yet recognized to the individual entrepreneur the possibility of if establishing and developing its activity, with limitation of responsibility. For in such a way, a historical study concerning the evolution of the enterprise organizations is made, presenting the way as the limitations of the enterprise risks were dealt with running of the times. After, the legal-economic base is presented on which if it seats the firm notion. Also, one presented the main quarrels concerning the corporate entity of the companies, of its constituent act, its elements, as well as the existing relation enters the slight knowledge of personality, responsibility and patrimony, becoming a parallel with the beginning of the dignity of the person human being and evidencing the functioning of the patrimony of affectation in the real estate incorporations. What’s more, analyzed the bonanza situations of exercise of enterprise activity for one alone person, and with limitation of risks, already recognized for the Brazilian Law, enhancing the main structures on which if it can construct the novel institute, its constitutionality, the first attempts of regulation, as well as some pertinent contexts concerning the projected institute. The conclusion is of that, as much if looking under the how much constitutional the economic prism, the recognition of the limitation of responsibility of the individual entrepreneur is measured urgent to be implemented, as much as half to restrain the fictitious societies how much as mechanism to stimulate enterprising activities. Key-word: Individual entrepreneur. Unipessoal society. Patrimony of affectation. Limited responsibility. Constitutionality.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................14

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS ..........20

1.1 As origens .........................................................................................................21

1.2 A societas romana.............................................................................................22

1.3 A sociedade em nome coletivo.........................................................................23

1.4 A busca pela limitação de responsabilidade.....................................................25

1.4.1 As sociedades em comandita simples e em conta de participação................27

1.4.2 A sociedade em comandita por ações............................................................29

1.4.3 A sociedade anônima.....................................................................................31

1.4.4 A sociedade limitada .....................................................................................35

1.4.5 As discussões em torno da l imitação de responsabi l idade do

empresário individual .............................................................................37

1.5 A limitação de responsabilidade do empresário individual e a

doutrina brasileira .....................................................................................40

2 A EMPRESA COMO FENÔMENO JURÍDICO E ECONÔMICO...................46

2.1 O conceito jurídico de empresa ........................................................................47

2.1.1 Perfis de empresa (a teoria de Alberto Asquini) ..........................................49

2.1.2 Análise crítica dos perfis de Empresa ...........................................................52

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2.2 O Conceito econômico de empresa ..................................................................54

2.2.1 Características das transações........................................................................56

2.2.2 Características dos agentes ............................................................................58

2.2.3 As organizações eficientes ............................................................................60

2.3 O diálogo entre Direito e Economia na definição de empresa .........................61

3 A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES ..................................64

3.1 As pessoas jurídicas e o ato constitutivo das sociedades .................................65

3.1.1 Teorias anticontratualistas .............................................................................66

3.1.2 Teorias contratualistas ...................................................................................70

3.1.3 O direito brasileiro entre o contratualismo e o institucionalismo .................72

3.2 Início e fim da personalidade jurídica ..............................................................73

3.3 Principais teorias sobre a personificação..........................................................77

3.4 Corolário da personificação: a autonomia patrimonial ....................................81

3.4.1 As teorias sobre o patrimônio........................................................................83

3.5 A dignidade da pessoa humana ........................................................................87

3.6 O patr imônio como inst rumento para o l ivre desenvolvimento

da personalidade .......................................................................................90

3.6.1 A salvaguarda de um patrimônio mínimo garantidor dos direitos de

personalidade ..............................................................................................91

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3.6.2 Restrições à livre disposição do patrimônio..................................................93

3.7 O patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias................................94

4 A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO

INDIVIDUAL NO DIREITO BRASILEIRO................................................98

4.1 Panorama atual .................................................................................................99

4.2 Estruturas possíveis ..........................................................................................105

4.2.1 Empresa individual de responsabilidade limitada .........................................105

4.2.2 Estabelecimento individual de responsabilidade limitada.............................108

4.2.3 Sociedade unipessoal de responsabilidade limitada ......................................111

4.2.4 Empresário individual de responsabilidade limitada.....................................115

4.3 A constitucionalidade da limitação de responsabilidade..................................119

4.4 As primeiras tentativas de regulamentação ......................................................121

4.5 Instituto projetado.............................................................................................127

4.5.1 Constituição: a necessidade de um registro e de um nome ...........................128

4.5.2 Funcionamento: o regime jurídico aplicável .................................................130

4.5.3 Desconsideração da autonomia patrimonial: a supressão dos limites de

responsabilidade ..........................................................................................136

4.5.4 Falência: da declaração ao patrimônio a ser arrecadado 138

CONCLUSÃO........................................................................................................145

REFERÊNCIAS .....................................................................................................152

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INTRODUÇÃO

O Direito Privado Brasileiro teve uma nova fase inaugurada com a Lei nº 10.406, de

10 de janeiro de 2002, com vigência a partir de 10 de janeiro de 2003, que instituiu o Código

Civil. Com efeito, até então, o Direito Privado Brasileiro era informado por dois códigos: o

Código Civil de 1916 e o Código Comercial Brasileiro, de 1850. Vivia-se o chamado

período objetivo, em que vigorava a Teoria dos Atos de Comércio. Nesse âmbito, o direito

privado era dividido a partir de atos considerados relevantes para o Direito Comercial. Por

ter a característica de um direito especial, o Direito Comercial indicava os atos referentes à

matéria comercial, recebendo o nome de atos de comércio. Tudo o mais ficava relegado aos

auspícios do Direito Civil.

Com o advento do atual Código Civil, unifica-se, ainda que apenas formalmente, o

direito privado, passando a ser regulado somente por uma Lei Geral. Revogou-se, portanto,

o Código Civil de 1916, assim como a primeira parte do Código Comercial de 1850. A

mudança institucional que se descreve não aconteceu ao acaso, sendo fruto de intenso debate

doutrinário que se fez ecoar no legislativo brasileiro. Prova disso é o tempo de tramitação do

atual Código Civil.

Aprofundam-se questões novas como a função social, seja da propriedade, seja do

contrato, a boa-fé objetiva ou o novo foco do Direito Comercial: a empresa e os mercados.

Retomam-se, também, questões já de algum tempo caladas, resolvidas. Volta-se a debater,

por exemplo, acerca da autonomia do Direito Comercial, agora denominado Direito

Empresarial. É corrente na academia a apresentação do debate havido entre Cesare Vivante

e Alfredo Rocco, acerca da autonomia aludida.

Dentre tais questões, retoma-se o debate sobre a limitação de responsabilidade do

empresário individual. Com efeito, volta-se a discutir a possibilidade de um agente

econômico vir a exercer individualmente determinada atividade, vindo a responder pelos

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resultados desta somente com o patrimônio afetado a tal atividade. Por meio da aludida

limitação, deixar-se-ia de expor a risco o “patrimônio pessoal” daquele agente econômico

que utilizaria este patrimônio para o livre desenvolvimento de sua personalidade. Encarado

do ponto de vista constitucional, de logo se pensa em tal instituto enquanto um mecanismo

que efetivaria, em termos de relações econômicas, o princípio da dignidade da pessoa

humana previsto expressamente na Carta Magna.

Essas eram dúvidas para as quais o autor não encontrava uma resposta segura desde a

graduação em Direito. Essa é, portanto, a motivação pela qual se dedica à presente pesquisa.

O foco inicial era vislumbrar os fundamentos jurídicos pelos quais se mantinha a

responsabilidade ilimitada do empresário individual, calcada quase como um dogma

jurídico. A ideia seria fazer o levantamento das razões que existiam na base deste

entendimento, visando a analisar a sua adequação frente ao arcabouço normativo inaugurado

com a Constituição Federal de 1988.

No decorrer dos estudos relacionados ao Mestrado em Direito Constitucional, mais

especificamente diante da disciplina Direito das Obrigações e Globalização, ministrada pela

professora Uinie Caminha, o autor tomou conhecimento acerca dos estudos realizados pelo

movimento de “Law and Economics”, que no Brasil recebeu o nome de “Direito e

Economia” ou de Análise Econômica do Direito. Partindo-se da noção pela qual com

Análise Econômica do Direito se busca oferecer novas respostas para antigos

questionamentos, surge uma outra indagação, qual seja, a de como a abordagem de “Direito

e Economia” poderia contribuir para o debate do presente tema.

A discussão sobre a Análise Econômica do Direito em si é algo que escapa ao objeto

do presente trabalho. Necessário se faz, porém, tecer algumas considerações sobre o

mencionado método. Ao contrário do que possa parecer, Direito e Economia têm entre si

nítida relação. A negativa de tal concepção acontece na medida em que os operadores do

direito têm, via de regra, uma concepção simplista do que se deve entender enquanto

Economia. A Ciência Econômica, em sua feição moderna, passa a ser encarada como um

método para compreender o comportamento humano, tendo em vista que os agentes

econômicos têm objetivos e desejos ilimitados e que os seus recursos para o atendimento

daqueles objetivos e desejos são escassos. Nessa linha, a Economia vai buscar aferir de que

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modo os indivíduos deverão utilizar seus recursos finitos para satisfazer ao máximo possível

as suas necessidades.

Compreendida a Economia deste modo, verifica-se que os economistas têm uma

atividade semelhante à desenvolvida pelos juristas. Os operadores do Direito, como se sabe,

vivem discutindo sobre o “ser” e o “dever ser”, pensando em mecanismos por meio dos

quais o “ser” se transforme em “dever ser”, ou seja, que aquele mundo ideal venha a ser

verificado no mundo real.

A economia atualmente é a tentativa de estabelecer um instrumento teórico empírico

que permita aos estudiosos compreender o comportamento humano e prevê-lo. É nesse

contexto que se percebe a necessidade da existência, pelo menos, de um diálogo entre ambas

as ciências sociais anteriormente mencionadas. Cabível é destacar que até 1944, no Brasil,

não havia faculdade de Economia. Naquele ano surge o primeiro Curso de Economia do

país, na Fundação Getúlio Vargas. Até o presente momento, as lições de economia eram

ministradas em faculdades de Direito. Registre-se, ademais, que Celso Furtado, talvez o

maior nome da economia brasileira, tem formação jurídica. A análise econômica do direito

representa, assim, um resgate a essa tradição. Trata-se de uma moderna escola do

pensamento jurídico que busca a utilização de instrumental teórico empírico construído pela

economia visando a solucionar problemas jurídicos.

Existem quatro possibilidades de pesquisa, adotando-se como método a Análise

Econômica do Direito: (i) a análise econômica positiva; (ii) a análise econômica normativa;

(iii) a teoria da escolha pública; e (iv) a equiparação entre justiça e eficiência. Pela análise

econômica positiva, busca-se aferir o efeito real de uma norma jurídica vigente, tendo, como

propósito, a identificação dos comportamentos praticados e custos impostos aos agentes

econômicos, em razão de uma dada norma jurídica. Por sua vez, a análise econômica

normativa visa a perceber os possíveis efeitos de uma futura norma jurídica (não vigente,

portanto), ou seja, que condutas poderão passar a ser praticadas pelos agentes econômicos a

partir da vigência de uma nova norma jurídica. A teoria da escolha pública, um misto de

direito, economia e ciência política, busca compreender o comportamento dos agentes

públicos nas escolhas coletivas diante de um orçamento limitado. Por fim, no que se refere à

equiparação entre justiça e eficiência, a pesquisa em análise econômica do direito gira em

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torno de se avaliar a adequação das normas jurídicos àquilo que se propõem, constituindo-se

a eficiência no critério fundamental de validade de uma norma jurídica.

Dos focos anteriormente descritos, aquele que melhor se adéqua ao contexto do

presente trabalho é o da análise econômica normativa. Com efeito, trata-se de norma não

existente no direito brasileiro, a da limitação de responsabilidade do empresário individual.

Sempre imperou no direito nacional o princípio da responsabilidade ilimitada segundo o

qual a pessoa responde por suas obrigações, sejam decorrentes de relação de crédito, sejam

decorrentes de relação de dano, com todo o seu patrimônio.

Acabava sendo efeito da chamada teoria subjetiva do patrimônio. Por ela, cada sujeito

de direito teria apenas um único patrimônio, entendendo-o como o conjunto de bens e de

relações jurídicas de determinada pessoa. Pela teoria subjetiva, também conhecida como

teoria clássica, o patrimônio é inseparável do seu titular, percebendo-se a íntima ligação

entre as noções de patrimônio e de personalidade. Aquela seria o elemento de materialização

do livre desenvolvimento desta. Como o patrimônio é único e indivisível, restaria

fundamentada a noção de responsabilidade ilimitada.

A limitação de responsabilidade do empresário individual viria para modificar o

presente contexto. Certamente pelo fato de inexistir a regra da responsabilidade limitada

para o empresário individual é que se vislumbra a proliferação de constituição de sociedades

limitadas com apenas dois sócios. Perceba-se, contudo, que ambos, sócios de uma sociedade

empresária e o empresário individual, enquadram-se na noção jurídica de empreendedor por

destinarem, na visão clássica, uma parcela de seu patrimônio ao exercício de uma atividade,

procurando retirar o maior proveito econômico possível. Porém, estando-se diante de uma

sociedade empresária limitada, o empreendedor deixará resguardado, regra geral, o seu

patrimônio pessoal. Diferentemente, o empresário individual, em vista da ordem jurídica

vigente, jamais terá a mesma oportunidade acima descrita.

Diante do quadro que se delineou, projetou-se o presente trabalho, visando a responder

aos seguintes questionamentos: (i) quais os argumentos que fundamentam a

responsabilidade ilimitada do empresário individual?; (ii) tais motivações se justificam ainda

em razão da ordem jurídica vigente?; (iii) existe base constitucional a positivação da

limitação de responsabilidade do empresário individual?; (iv) de que forma a análise

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econômica do direito pode contribuir para o debate?; e (v) quais as consequências da

inserção da limitação de responsabilidade do empresário individual?

Este trabalho se desenvolveu mediante um estudo descritivo-analítico, por meio de

pesquisa bibliográfica, tendo por finalidade intervir na realidade brasileira, haja vista,

inclusive, a boa experiência obtida no ordenamento jurídico comparado, segundo uma

abordagem qualitativa. Além disso, fez-se uma análise econômica normativa do tema

apresentado, buscando-se revelar os possíveis efeitos e consequências da regulamentação da

limitação de responsabilidade do empresário individual no direito brasileiro.

O presente trabalho está estruturado em quatro capítulos, além desta introdução e da

conclusão. No primeiro capítulo, analisa-se a evolução histórica das organizações

empresariais, avaliando, ainda, o entendimento dos principais doutrinadores que se

dedicaram ao tema. No segundo capítulo, estuda-se a figura da empresa, ressaltando-a como

um fenômeno jurídico e econômico. Nesse sentido, apresentaram-se os conceitos jurídico e

econômico vigentes de empresa, demonstrando-se a necessidade de diálogo entre Direito e

Economia para a definição de empresa.

No terceiro capítulo, exploram-se as noções de personalidade jurídica e de patrimônio,

apresentando este como corolário da personificação. O foco do presente capítulo se encontra

em cima das pessoas jurídicas. Porém, o que se apresenta pode-se adotar também para as

pessoas naturais. Evidencia-se, ademais, a dignidade da pessoa humana, constatando-se,

como mandamento deste princípio, a necessidade de se assegurar um patrimônio mínimo.

Por fim, são trazidas algumas considerações acerca do patrimônio de afetação e, de modo

específico, a sua utilização em incorporações imobiliárias.

Já no quarto capítulo, apresenta-se o panorama atual, ressaltando-se as possibilidades,

a título de exceção, já reconhecidas pelo direito brasileiro de responsabilidade limitada

àqueles que se dedicam individualmente ao exercício de atividades econômicas. Após,

apresentam-se as estruturas possíveis de regulamentação da limitação de responsabilidade

limitada, evidenciando, quando for o caso, a experiência do direito comparado. A partir de

então, passa-se a verificar a sua constitucionalidade, descrevendo, sucintamente, as

tentativas de regulamentação após o advento do Código Civil. No fim do capítulo, traçam-se

considerações relativas ao instituto projetado.

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Sabe-se que o conhecimento científico é adquirido e se aperfeiçoa com o embate de

ideias. Não se vai buscar aqui a verdade absoluta sobre o tema a analisar. Longe disso. O

intuito é de tão somente expressar o entendimento do autor sobre a questão levantada,

buscando avolumar a discussão, tendo-se sempre em mente a busca de um norte seguro, de

uma interpretação coerente com o sistema jurídico em vigor. Assim, coloca-se aberto

sempre às críticas, desde que construtivas, de forma a, em recebendo-as, que por certo virão,

poder-se, após analisá-las, caminhar rumo ao progresso científico do direito, curioso que

deve ser o pesquisador da ciência jurídica.

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1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS ORGANIZAÇÕES

EMPRESARIAIS

Para que se possa discutir sobre a Limitação de Responsabilidade do Empresário

Individual, deve-se, inicialmente, estudar a evolução histórica das organizações

empresariais. Com efeito, reconhecem-se com o Código Civil Brasileiro de 2002 oito tipos

pelos quais, em tese, podem os empreendimentos econômicos, de natureza empresarial,

organizarem-se. Deve-se ressaltar que, além dos tipos previstos para o empresário

individual, a sociedade limitada e a sociedade anônima, há previsão normativa para os tipos

da sociedade em nome coletivo, sociedade em conta de participação, sociedade em

comandita simples e sociedade em comandita por ações. Não se pode esquecer, também, das

realidades econômicas informais, a saber, tanto o empresário individual não registrado

quanto a sociedade em comum.

O surgimento de cada um dos tipos acima referidos se deu a partir de circunstâncias

históricas, sociais e econômicas específicas. Cabe, portanto, avaliar, em termos de

retrospectiva, o que motivou a aparência de cada tipo mencionado. A importância do

presente exame se deve ao fato de que, por exemplo, algumas das questões atualmente

levadas a efeito por conta da discussão acerca da limitação de responsabilidade do

empresário individual anteriormente vieram à tona quando da estruturação de determinado

tipo de organização empresarial que permitisse a configuração da responsabilidade limitada

a apenas dois agentes econômicos. Tal é o tipo da sociedade limitada. Vale dizer,

organizações empresariais, em que todos os agentes econômicos tinham responsabilidade

limitada, tiveram seu início com um número elevado de sócios, reduzindo-se à possibilidade

de, apenas dois, no caso da sociedade limitada.

Assim, mostrar-se-ão inicialmente as origens das organizações empresariais,

percebendo que o ser humano primeiramente empreendeu sozinho. Com o tempo, em razão

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da necessidade, ele passou a desenvolver suas atividades em comum com outras pessoas.

Daí para a formação das sociedades, a ideia da sociedade limitada e a atual discussão sobre a

limitação de responsabilidade do empresário individual foi um salto que demorou alguns

milênios. Ver-se-á, também, toda a evolução havida na busca pela limitação de

responsabilidade para, por fim, serem analisados os principais posicionais da doutrina

brasileira sobre o tema.

1.1 As origens

O atual Direito Comercial (ou Direito Empresarial, como querem alguns) tem natureza

eminentemente empírica. Vale dizer, primeiro os agentes econômicos passam a utilizar

determinadas práticas e costumes para que, depois de sedimentados, e com um certo grau de

confiança e de aceitação social, restem positivados, de algum modo, pelo Estado. No dizer

de Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2008, p. 65):

O Direito Comercial (insistimos nesta designação) foi, é e sempre será um ramo do Direito forjado fundamentalmente a partir da utilização de usos e costumes e de contratos atípicos nascidos dentro da atividade dos comerciantes, alguns dos primeiros tornados norma e muitos dos segundos recolhidos e tutelados em leis extravagantes, tornaram-se contratos típicos.

Antes de se falar, portanto, em Direito Comercial (ou Empresarial) propriamente dito,

resta a evidência de que ordinariamente surgem as realidades econômicas fruto de

necessidades ou anseios sociais a serem, posteriormente, transformadas em normas jurídicas

positivadas pelo Estado. É natural a percepção pela qual o ser humano não consegue atender

a todas as suas necessidades. Circunstâncias culturais, sociais e de ambiente fazem com que

o homem passe a se especializar, desenvolvendo, portanto, trabalhos e atividades específicas

e, com isso, fatalmente, venha a produzir além do que necessita. Bem por isso, aproxima-se

de outros seres humanos, visando a realizarem as trocas dos produtos excedentes do trabalho

que desempenham por produtos excedentes de outrem. É exatamente da necessidade de o

homem viver em sociedade e de ter havido a especialização do trabalho, que surgem as

relações de troca e, portanto, a realidade econômica denominada comércio.

Em momento posterior, cabe ao Estado a regulação e o controle dos indivíduos que

vivem em determinada sociedade, com o fito de impedir a ocorrência de conflitos e de

solucionar os eventualmente existentes. Bem por isso, já Adam Smith (2001) sentenciou que

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“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que nós devemos

esperar nossa refeição, mas da busca de seu próprio interesse”.

O primeiro tipo a ser apreendido pelo Direito para a realização de atividades

econômicas foi o daquele que, individualmente, empreende, de modo profissional, visando

auferir lucro ao atender, com sua atividade, uma necessidade de outrem. É atualmente

chamado de empresário individual e se encontra definido no art. 966, caput, do Código Civil

Brasileiro de 2002, como sendo aquela pessoa que exerce profissionalmente atividade

econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. É de se notar,

porém, que o registro perante as autoridades competentes não tem o condão de transformar

alguém em comerciante ou empresário; o registro serve, apenas, para conferir regularidade

ao exercício da atividade econômica. Reitere-se, também, que a necessidade do registro só

surge depois, quando do advento do primeiro grande sistema de Direito Comercial, talhado

na Idade Média e calcado nas corporações de ofícios dos mercadores das comunas italianas,

após a derrocada do Império Romano.

1.2 A societas romana

O direito brasileiro tem inspiração nítida no direito romano, até mesmo por influência

do direito lusitano, que há cerca de duzentos anos ainda era aplicado no Brasil. Não se pode

deixar de notar que o Jus Civile é de origem marcadamente patriarcal, cujos resquícios se

fizeram sentir há até pouco tempo na legislação nacional. Com efeito, analisando-se sob o

prisma legislativo, tem-se que até o advento do Código Civil de 2002, o homem ainda era o

chefe da família, falando-se no pátrio poder. Apenas em 1962, com o advento do chamado

Estatuto da Mulher Casada, é que a mulher passa a ter capacidade plena, pois, até então, a

mulher, até o casamento, encontrava-se sob o pátrio poder de seu pai, acaso contraísse

matrimônio antes dos 21 anos. Depois do casamento, ficava sob o julgo do poder marital,

sendo certo que ao marido, nos termos do art. 233, do Código Civil de 1916, competia a

chefia da situação conjugal. Esse apego ao patriarcalismo ou à proeminência do homem nas

civilizações antigas se fez sentir também no Direito Comercial.

Desse modo, quando o pai passava a faltar, por morte, à sua família, os filhos deste

passavam a assumir os negócios exercidos por aquele, quando em vida. Portanto, é válido

afirmar que não somente a comunhão de interesses, mas também necessidades familiares,

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acabaram por motivar a união de bens e serviços para o atendimento de uma finalidade

comum. Nesse passo, os irmãos se uniam em comunhão e assumiam os negócios do seu pai,

dando-lhe continuidade. Essa era a societas romana, antecedente lógico da sociedade em

nome coletivo. A propósito, leciona Rubens Requião (2007, p. 372):

Os autores, em sua maioria, explicam o uso da sociedade em nome coletivo, a cujo tipo se assemelhavam as sociedades romanas e medievais, como necessidade familiar relativa ao prosseguimento do negócio pelos herdeiros do mercador falecido, ou quando se dispunham a explorar em comum os bens herdados. O consortium, neste caso, transformava-se em societas.

Fran Martins (2007, p. 229) não discrepa do aludido pensamento, ressaltando que as

sociedades em nome coletivo surgiram em substituição às antigas sociedades familiares – a

societas romana –, nas quais o patrimônio da família respondia pelas obrigações assumidas

pelos seus membros. Na mesma linha, Marlon Tomazette (2003, p. 144) ensina que “A

princípio, os irmãos continuavam a exercer a atividade do pai, constituindo uma espécie de

comunidade familiar, destacando-se o elemento da amizade familial”. Vera Helena de Mello

Franco (2009, p. 187), do mesmo modo, destaca a societas romana, a comunidade familiar,

como sendo o antecedente histórico da sociedade em nome coletivo.

1.3 As sociedades em nome coletivo e em comum

As sociedades em nome coletivo, derivadas da societas romana, foram as primeiras

sociedades mercantis a receberem a regulamentação do Direito. Surgem na Idade Média,

quando o registro passou a ser obrigatório para todos aqueles que desejassem realizar

atividades comerciais. A diferença existente entre a societas romana e a sociedade em nome

coletivo reside fundamentalmente em dois aspectos: o primeiro diz respeito à quebra do

vínculo parental para a criação de uma comunhão de trabalho; e o segundo diz respeito à

obrigatoriedade do registro, pois a partir dele a sociedade passa ter personalidade e

existência distinta das dos seus sócios. Os dois aspectos, apesar de subsistirem, surgiram em

momentos históricos distintos, como faz crer Marlon Tomazette (2003, p. 144):

[...] ela [a sociedade em nome coletivo] se transforma [de uma comunidade familiar] numa comunidade de trabalho entre pessoas que não são ligadas entre por laços de sangue, mas que se mantém unidas por laços pessoais. Por fim, evolui-se a ponto de tal comunidade adquirir a autonomia patrimonial, que no Brasil decorre de sua personificação.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2006, p. 287) demonstra, inclusive, que ao lado

das sociedades em nome coletivo surgem também as sociedades de fato ou irregulares, a

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partir da obrigatoriedade do registro. Se era com o registro que as sociedades em nome

coletivo se tornavam regulares, a falta do registro tornava irregular a existência de tal

sociedade; e a falta de contrato ou de regramento qualquer a sistematizar as relações entre os

sócios classificava a sociedade como sendo de fato. Ainda sobre a sociedade em nome

coletivo, assevera o mesmo autor:

Nossa sociedade em nome coletivo teria sido a primeira a aparecer no período medieval, antigamente conhecida como sociedade coletiva ou como companhia. Tratava-se de uma sociedade profissional ou de profissionais. Encontrou lugar na economia familiar, entendendo-se como família uma unidade doméstica com contorno mais amplo que o que se apresenta atualmente, tanto que era também conhecida como sociedade ad unum panem, aquela na qual seus membros participavam ‘do mesmo pão’. Companhia era a sociedade, e companheiros seus sócios, conforme referido em 1258 na Lei 1ª do Título X, da Partida V das antigas Siete Partidas de D. Alonzo IX, o Sábio, na Espanha. Nela a responsabilidade dos sócios era solidária e ilimitada. (VERÇOSA, 2006, p. 288)

Vera Helena de Mello Franco (2009, p. 187) preceitua sobre a sociedade em nome

coletivo:

Esta é a mais antiga das sociedades medievais comerciais tendo surgido na Itália na Idade Média, derivada da comunidade familiar (associações fundadas sobre vínculos familiares, com denominações diversas: fraternitates, societates, conjurationes, collegia, consortia etc.). Inicialmente surgiu como fraterne compagnie, composta por pessoas pertencentes à mesma casa ou que repartiam entre si ad unum panem et vinum (cum panis et vinus), de onde a expressão companhia.

Também sobre a sociedade em nome coletivo, seguindo a mesma linha, ensina Rachel

Sztajn (2008, p. 385):

A sociedade em nome coletivo, que parece ter surgido por volta do século XII e cuja organização se diz estar ligada ou à manutenção da atividade pelos herdeiros, do comerciante falecido para alguns tem como fundamento a importância de manter unificado o patrimônio do ‘de cujus’, para outros a regra visava respeitar a noção de que a atividade e os bens, direitos, deveres e obrigações a ela vinculados, resultante da reunião de esforços e recursos de pessoas que exerciam a atividade, formando uma corporação, porque se reuniam ao redor da mesa; ‘dividindo o pão’ eram companheiros, daí a denominação companhia, de cum panis. Independentemente de qual tenha sido a razão para a organização do tipo, é certo que constitui uma das mais antigas manifestações associativas para o exercício da atividade mercantil.

Peculiar ainda sobre a sociedade em nome coletivo é a exposição feita por Romano

Cristiano (2007, p. 259):

Ao que tudo indica, a sociedade em nome coletivo surgiu quando o comerciante individual deixou de exercer sozinho a atividade comercial, passando a exercê-la em conjunto com outro ou outros comerciantes individuais. A situação jurídica de cada um deles, como sócio, continuou sendo a mesma situação jurídica que ele

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tinha como comerciante individual: como sócio, com efeito, ele continuou com sua responsabilidade ilimitada e com a obrigação de ser comerciante, ao menos para que seu nome pudesse integrar a firma social. Hoje a situação se encontra fundamentalmente mudada, sendo geral e pacífico o reconhecimento da personalidade jurídica – evidentemente como regra comporta exceções – a todas as sociedades, mesmo em presença do fenômeno da responsabilidade pessoal ilimitada; de forma que ficou, em conseqüência, absolutamente superada, a partir de certo momento, a obrigação de os sócios, ou alguns deles, serem comerciantes (hoje empresários), uma vez que passou a ser tida por comerciante (ou empresária) tão-somente a sociedade.

Desse modo, percebe-se a origem comum das sociedades em nome coletivo e em

comum. Na medida em que se retiram os laços familiares da societas romana e passa a ser

obrigatório o registro das sociedades, passam a existir a sociedade em nome coletivo, como

sociedade regular – a primeira e de mais antiga regulamentação, além das sociedades

irregulares e de fato. Neste particular, anda bem o Código Civil de 2002, ao acabar com a

discussão doutrinária sobre o que se deveria entender por sociedades irregulares e de fato,

submetendo-as a um mesmo tipo, tendo, ambas, o mesmo tratamento jurídico.

Não se pode deixar de notar, por fim, que, atentando-se para a responsabilidade dos

sócios pelas obrigações sociais, ambos os tipos detêm o mesmo esquema organizacional, a

saber: a responsabilidade dos sócios é: (i) ilimitada – os sócios respondem com todo o seu

patrimônio, independente da participação societária; (ii) solidária – cada sócio pode vir a ser

demandado sozinho por todos os débitos sociais; e (iii) subsidiária – os sócios só podem vir

a perder patrimônio pessoal por débitos sociais depois de se revelar insuficiente o

patrimônio societário.

A diferença de ambos os tipos societários reside na condição de regularidade da

sociedade em nome coletivo. Neste, mesmo aquele sócio que, ocupando a função de

administrador societário, contrata pela sociedade, terá responsabilidade subsidiária, podendo

se valer do benefício de ordem previsto no art. 1024, do Código Civil de 2002. Nas

sociedades em comum, o mesmo não ocorre, já que sobre elas pairam a pecha de

irregularidade. Com efeito, o sócio que contrata pela sociedade, assumindo posição

assemelhada ao do administrador da sociedade em nome coletivo não terá responsabilidade

subsidiária, não podendo, portanto, vir a se valer do mencionado benefício de ordem.

1.4 A busca pela limitação de responsabilidade

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Consagrada a existência distinta da sociedade em relação aos sócios que a constitui,

passam os agentes econômicos a buscarem a limitação de responsabilidade. É sempre bom

notar que tal efeito tem por razão de ser, também, o fato de que aquelas pessoas que se

encontravam impedidas de exercerem atividades comerciais, passaram a fazê-lo, mediante a

organização de sociedade com quem não esteja impedido de comerciar.

Reitere-se que nos termos do Código Comercial Brasileiro, no que tange à sociedade

em nome coletivo, para que esta pudesse se constituir validamente, fazia-se necessária a

presença de pelo menos um comerciante. Apenas, com o Código Civil de 1916, é que se

consagra a existência distinta da sociedade em relação a seus sócios, dispensando-se a

mencionada característica aos sócios.

Desse modo, os impedidos de comerciar (em termos atuais, agentes políticos,

membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, servidores públicos, dentre outros),

premidos pela busca dos retornos trazidos pela atividade comercial, precisavam ser

acobertados ou ocultados, em razão do impedimento mencionado. Sobre o que ora se cogita,

leciona Rubens Requião (2007, p. 373):

O processo de limitação de responsabilidade, que hoje domina o campo do direito comercial, formou-se lentamente da Idade Média. É de notar-se que o princípio ou preocupação de ocultação dos sócios parece não ter surgido somente do propósito de restrição e limitação da responsabilidade, mas como decorrência também da prática dos que, impedidos de comerciar, acobertavam-se mediante a organização de sociedade com outrem. Esse ardil, como acentua o Prof. Huvelin, havia sido notado em Roma, onde a nobreza, os senadores e os altos magistrados procuravam enriquecer não só em seus cargos e latifúndios, como ainda ‘participando indiretamente nas atividades comerciais, seja como membros de sociedades mercantis, seja por meio de propostos responsáveis, comumente libertos’.

Seja visando a resguardar o patrimônio pessoal, ou a ocultar sócios que se

encontravam impedidos de exercer atividade comercial, o fato é que a busca pela limitação

de responsabilidade se inicia na Idade Média, limitando-se a responsabilidade de uma

categoria de sócios, como no caso das sociedades em comandita (simples ou por ações) e

das sociedades em conta de participação. Após, houve a necessidade de limitação de

responsabilidade a todos os sócios, desde que a sociedade tivesse um número mínimo

(elevado) de sócios, surgindo a sociedade anônima. Evoluindo no tempo, chega-se à

limitação de responsabilidade para sociedades formadas por apenas dois sócios, com a

sociedade limitada. A discussão atual reside na possibilidade de que o benefício da limitação

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de responsabilidade seja estendido àquele que empreende sozinho, exercendo a empresa

individualmente.

Frise-se, como já dito, que o Estado, primeiramente reconheceu a personalidade

jurídica da sociedade distinta das dos sócios que a compõem. Em momento posterior é que

surge a doutrina da limitação de responsabilidade. É curioso, contudo, notar que foi a

segurança das relações econômicas que fez mitigar o princípio da responsabilidade

ilimitada, dando origem ao princípio da limitação de responsabilidade. Convém esclarecer,

conforme Antônio Martins Filho (1999, p. 289), que o princípio da responsabilidade

limitada em matéria de direito comercial tem sua explicação em imperativos de ordem

sociológica, “que nada mais significa do que a revolta dos fatos contra a lei”. Iolanda Lopes

de Abreu (1988) lembra, inclusive, que é aspiração antiga do comerciante individual a

limitação de sua responsabilidade patrimonial e que, na medida em que não se regula tal

aspiração de modo direto, consegue-se tal intento, mediante negócios indiretos, tais quais as

sociedades fictícias e sociedades unipessoais. A limitação de responsabilidade do

empresário individual seria, assim, o último grau de evolução das organizações

empresariais.

1.4.1 As sociedades em comandita simples e em conta de participação

As sociedades em comandita simples e em conta de participação têm origem comum,

qual seja, a de um contrato de larga utilização no comércio marítimo e que depois passou a

ser utilizado, também, no comércio terrestre, chamado de contrato de comenda, em que se

confiava determinada quantia de dinheiro ou de mercadorias, seja a um mercador, seja ao

capitão de navio, visando ao seu emprego no comércio, retirando-se e repartindo-se de tal

emprego os lucros pela atividade.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2006, p. 289) sobre a origem comum de tais

sociedades, porém, olhando prioritariamente para a sociedade em comandita simples, diz:

[...] ela tem origem na sociedade então denominada commenda ou encomienda, celebrada entre um sócio capitalista (commendator ou socius stans) e outro sócio que ‘fazia trabalhar’ o capital (commendatarius, tractator, portator, portitor). Embora mais presente no comércio marítimo, não deixou de ser também utilizada no comércio terrestre. Entre nós, no CCoB o sócio capitalista tomou o nome de comanditário, e o sócio que exerce a atividade o de comanditado (arts. 311-314). O primeiro freqüentemente exercia a sociedade de forma oculta, não sendo sua

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identidade do conhecimento de terceiros, mas apenas o montante do capital a seu cargo (art. 312). A responsabilidade ilimitada dos sócios na sociedade em nome coletivo era causa de óbices ao exercício do comércio, em razão da extrema insegurança gerada quanto aos capitais nelas aportados pelos sócios. Na comandita este problema foi resolvido de forma então satisfatória, pois o sócio comanditário passou a ter suas perdas limitadas tão-somente ao montante do capital empregado. A base comum correspondente à commenda deu nascimento a uma sociedade pública (a comandita) e a outra oculta (a em conta de participação).

Rachel Sztajn (2008, p. 402) mantém a mesma linha de entendimento. Em

comentários à sociedade em comandita simples, a autora ressalta:

Esse tipo de sociedade foi criado para o exercício da atividade mercantil, e tem forte semelhança com a conta de participação da qual, aparentemente, tem idêntica função: agregar dois tipos de sócios, os de responsabilidade ilimitada e os de responsabilidade limitada na mesma organização econômica. Tal como a conta de participação, na origem, os sócios de responsabilidade limitada não eram conhecido por terceiros, o que facilitava a participação em atividades econômicas lucrativas de pessoas que estavam impedidas de comerciar. Recorda-se de que o impedimento, no mais das vezes, estava preso ao status social, a estatutos pessoais ou de classe. Por exemplo, aos religiosos, que deveriam dedicar-se a misteres religiosos, não se lhes permitia exercerem atividades ‘profanas’, como são as mercantis. Já aos nobres, embora a proibição também tivesse fundamento em estatuto pessoal, a idéia é de que não era compatível com o status o exercício do comércio, atividade relegada a outras pessoas que, na hierarquia social, tinham status inferior.

As sociedades em comandita simples e em conta de participação passam a se

diferenciar, segundo a doutrina, a partir de uma Lei de Florença, de 30 de novembro de

1408, quando ficaram, então, reguladas as comanditas, como sociedades com patrimônio

diverso do patrimônio particular dos sócios. Segundo Vera Helena de Mello Franco (2009,

p. 189), “Uma lei de 1408, em Florença, estabeleceu-lhe as características fundamentais,

submetendo-a a registro, e com isso denunciou-se a constituição do vínculo societário”.

A partir da mencionada lei, restaram-se diferenciadas as sociedades em comandita

simples das sociedades em conta de participação. Rubens Requião (2007, p. 374) ressalta

que a necessidade de tornar pública a existência de sociedades baseadas no contrato de

comenda se deveu aos abusos cometidos. Eles teriam sido o elemento motivador da Lei de

Florença, sendo certo que, a partir do Século XV, as corporações de mercadores passaram a

exigir contratos escritos e o registro dos contratos de comenda.

Nos termos do Código Civil de 2002, ambas as sociedades têm duas categorias de

sócios. Porém, as sociedades em conta de participação são sociedades sem personalidade

jurídica; nem o registro do contrato terá o condão de não conferir personalidade jurídica à

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sociedade. Em tal tipo societário, existem o sócio ostensivo, que é aquele que unicamente

exerce o objeto social, em seu nome, e o sócio participante (antigamente denominado de

sócio oculto), que não aparece quanto ao desenvolvimento do negócio, participando,

contudo, dos resultados correspondentes, como se percebe no caput do art. 991. Ressalte-se,

nos termos do parágrafo único do art. 991, que o sócio participante tem obrigação de modo

exclusivo, perante o sócio ostensivo, sendo este quem se obriga perante terceiros.

Já as sociedades em comandita simples têm personalidade jurídica e, para tanto,

precisam se registrar no órgão competente, sob pena de se submeterem ao regime previsto

para a sociedade em comum. Nesse tipo societário existem o sócio comanditário, que tem

responsabilidade limitada, e podem ser tanto pessoas físicas quanto pessoas jurídicas, e o

sócio comanditado, que somente podem ser pessoas físicas, responsáveis solidária

ilimitadamente pelas obrigações sociais.

Note-se, porém, a semelhança com a sociedade em conta de participação no que tange

à relação com terceiros. Na sociedade em conta de participação, o sócio participante não tem

responsabilidade ou obrigações perante terceiros, cabendo a gestão da sociedade em conta

de participação, como visto, ao sócio ostensivo. Do mesmo modo, na sociedade em

comandita simples, o sócio comanditário, que também tem responsabilidade limitada, não

pode se envolver em ato de gestão da sociedade, confiada, apenas, ao sócio comanditado.

1.4.2 A sociedade em comandita por ações

A sociedade em comandita por ações surge como uma derivação da sociedade em

comandita simples, no Código de Comércio Francês. Com efeito, até referido marco

legislativo, o capital social das sociedades em comandita era formado por quotas. A partir de

então, o capital social passou a poder se dividir tanto em quotas – para a sociedade em

comandita simples –, quanto em ações – para a sociedade em comandita por ações. Para

tudo o mais, aplicava-se o que se tinha sobre as sociedades em comandita simples para as

sociedades em comandita por ações.

Acerca das origens da Sociedade em Comandita por Ações, Haroldo Malheiros

Duclerc Verçosa (2006, p. 289) ensina:

Mais tarde no tempo surgiu uma outra modalidade de sociedade em comandita, a comandita por ações, cujo capital era dividido em ações. Esta já é encontrada em

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uso no século XVIII na França, construída como uma variante da sociedade em comandita simples, com a diferença de que as participações dos sócios eram representadas por ações e, portanto livremente negociáveis, permitindo, desta forma, a saída e a entrada de sócios comanditários sem a necessidade de alteração do contrato social.

Apesar de a doutrina apresentar como origem normativa das sociedades em

comandita por ações o Código de Comércio Francês, não se pode deixar de notar que tal tipo

societário surge em face de, à época, existir a necessidade de autorização governamental

para a criação de sociedades anônimas. A esse respeito, registre-se o comentário de Priscila

M. P. Corrêa da Fonseca (2008, p. 583):

As sociedades em comandita por ações surgiram no Direito Francês, à época em que as sociedades anônimas dependiam, para sua constituição, de autorização governamental. Foram assim criadas para facilitar a vida dos empresários que poderiam ter, nas sociedades em comandita por ações, um tipo societário que reunia a maior parte das características das sociedades anônimas, sem os inconvenientes destas, na medida em que podiam ser constituídas independentemente de controle governamental. Nestas sociedades, os sócios comanditados eram considerados comerciantes e respondiam ilimitada e solidariamente pelas obrigações sociais, enquanto os sócios comanditários eram aqueles que possuíam a titularidade das ações e tinham sua responsabilidade limitada ao montante de suas contribuições.

Em termos de Direito Brasileiro, não se pode deixar de lembrar que, em princípio,

não se reconheceu a sociedade em comandita por ações como um tipo societário. O Código

Comercial de 1850 não disciplinava a figura das sociedades em comandita por ações. A

doutrina registra a existência de algumas sociedades em comandita por ações, apesar da

inexistência do tipo. O Decreto nº 1487, de 1854, inclusive, chegou a proibir a sua

utilização, porém a Lei nº 3150, de 1882, introduziu, enfim, no direito nacional, as

sociedades em comandita por ações.

Com o passar do tempo, tal sociedade vem a sofrer modificações, do ponto de vista

legal, ganhando contornos próprios. Deixa de se fazer necessário que o comanditado seja

comerciante em face de que a sociedade passa a ter personalidade jurídica distinta da de seus

sócios, bastando que a sociedade se dedique a atividades comerciais, hoje empresariais. Do

mesmo modo, modificam-se as nomenclaturas dos participantes de tal sociedade.

Com efeito, o comanditário passa a ser chamado de acionista e o comanditado passa

a ser chamado de diretor, conforme o art. 1091 do Código Civil de 2002. Além disso, a

regência supletiva, que na origem era feita na conformidade do tipo previsto para as

sociedades em comandita simples, passa a ser o tipo previsto para as sociedades anônimas.

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Aplica-se, assim, atualmente, a previsão inerente à sociedade anônima, com as modificações

previstas nos arts. 1090 a 1092, do Código Civil de 2002.

1.4.3 A sociedade anônima

O passo seguinte a ser dado era o da conquista da limitação de responsabilidade a

todos os sócios. Do ponto de vista da evolução das organizações empresariais, o tipo

societário que veio trazer a limitação de responsabilidade a todos os sócios foi a sociedade

anônima, cujo precedente tem alguma vacilação na doutrina.

Comumente, vê-se a referência à Casa de São Jorge, de Gênova, como a primeira

sociedade anônima a ter aparecido, em 1407. Tratava-se de uma reunião de credores da

República Genovesa que lhe emprestaram dinheiro para financiar determinados interesses

públicos, como, por exemplo, a guerra contra a cidade de Veneza, no Século XIV. Registre-

se que tais empréstimos eram garantidos pela arrecadação de determinados tributos. Em

momento posterior, tal Casa passou, também, a exercer as funções de Banco, tamanho foi o

poder conquistado por tal organização. Sobre o Banco de São Jorge, ressalta Haroldo

Malheiros Duclerc Verçosa (2006, p. 290):

A reunião de credores veio a se organizar de forma corporativa, passando a operar como uma instituição bancária, cujo capital básico foi dividido proporcionalmente entre aqueles em partes inalienáveis e transmissíveis hereditariamente. Seus titulares tinham o direito de participar dos lucros e intervir na administração comparativa. O Banco de São Jorge sobreviveu até o século XIX.

Na mesma linha, ressalta Tullio Ascarelli (2008, p. 454):

Os portadores de títulos da dívida pública, nas cidades italianas da Renascença, eram portadores de títulos facilmente circuláveis. Não raro, eles se reuniam em associação, e esta obtinha, por sua vez, a administração, ou a propriedade, dos bens destinados a garantir o serviço dos títulos. Desse modo, os títulos continuavam, formalmente, a ser títulos obrigacionais, mas, em substância, passavam a representar títulos de participação na gestão dos bens que, administrados pelos próprios credores, os garantiam. Eram, por isso, substancialmente, títulos de participação numa gestão comercial e industrial, mas com responsabilidade limitada dos participantes. O Banco de San Giorgio, em Gênova, constitui o exemplo mais célebre de uma tal transformação. A circulabilidade das ações encontraria, por isso, um precedente na circulabilidade dos títulos obrigacionais.

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Apesar de a doutrina fazer referência ao Banco de São Jorge, como a primeira

sociedade anônima, esse entendimento é equivocado. Razão assiste, dentre outros, a Marlon

Tomazette (2003, p. 205) e a Rubens Requião (2007, p. 3), que as indicam como uma

instituição que já trazia algumas características das sociedades anônimas, porém não era

uma sociedade anônima propriamente dita; não era sequer uma sociedade comercial,

parecendo, mais do ponto de vista estrutural, com a atual comunhão de debenturistas do que

de uma sociedade.

A outra referência, apontada pela maioria da doutrina, como as primeiras sociedades

anônimas, é feita às sociedades colonizadoras do século XVII. A primeira delas foi a

Companhia das Índias Orientais, datada de 20 de março de 1602. Segundo Marlon

Tomazette (2003, p. 206):

Tratava-se de uma companhia constituída pelo Estado, com a conjunção de capitais públicos e particulares, representado uma descentralização política, social e econômica das funções estatais, isto é, tal companhia existia para exercer um papel que tocava ao Estado, a colonização do ‘novo mundo’.

Tullio Ascarelli (2008, p. 452) também aponta como origem da sociedade anônima, a

Companhia das Índias Orientais:

Se remontarmos à história das sociedades anônimas, depararemos com as companhias coloniais, a começar pela Companhia Holandesa das Índias Orientais, em 1602. As sociedades anônimas, instrumentos típicos da economia moderna, acham-se, assim, ligadas, em sua origem, à colonização do Oriente e do Novo Mundo, de cuja descoberta, precisamente, costumam os historiadores datar o início da história moderna.

De fato, é com as companhias coloniais que se pode afirmar, com segurança, as

origens das atuais sociedades anônimas, sendo certo notar que elas já traziam características

que, ainda hoje, diferenciam as sociedades anônimas dos demais tipos societários. A esse

propósito, ressalta Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2006, p. 290):

Foi justamente nas companhias coloniais que se cristalizaram os marcos efetivamente diferenciais das sociedades anônimas: (i) a responsabilidade limitada dos acionistas; (ii) a divisão do capital em ações; (iii) a corporificação das participações dos acionistas em títulos negociáveis; (iv) a mutabilidade do corpo social sem afetação na vida da sociedade; etc.

Das origens até a configuração atual, muitas foram as modificações sofridas no

aludido tipo societário. Tal evolução costuma ser dividida em três períodos: (i) a fase dos

privilégios; (ii) a fase da autorização governamental; e (iii) a fase da livre iniciativa.

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Na fase dos privilégios, a constituição da sociedade anônima era vinculada ao

privilégio concedido pelo poder público. Não era livre, assim, a constituição de sociedades

anônimas, tratando-se de uma opção arbitrária do Estado o seu deferimento através das

cartas ou patente real. Havia tal necessidade, pelo fato de que as primeiras sociedades

anônimas eram verdadeiras sociedades de economia mista, sendo constituídas, com capitais

público e privado, para desenvolver objetivos públicos, como a colonização do “novo

mundo”. Sobre a fase dos privilégios, ensina Marlon Tomazette (2003, p. 206):

Neste período, a constituição da sociedade anônima como um sujeito autônomo de direitos era deferida pelo poder público como um privilégio, vale dizer, tratava-se de uma opção arbitrária do Estado. Tal sistema era justificado pelo fato de tais companhias possuírem uma parcela do poder estatal, mantendo-se vinculadas diretamente ao poder soberano. No Brasil, temos como exemplo de sociedade anônima com tais feições o Banco do Brasil constituído em 1808.

O sistema dos privilégios vigeu até o advento da Revolução Francesa que, com o seu

cânone da liberdade, aboliu qualquer privilégio de classe ou que fosse concedido pelo

Estado. Diante dos abusos cometidos à época, o Código Comercial Francês, de 1807, veio a

condicionar a constituição de uma sociedade anônima à autorização governamental, ocasião

em que se dá o início ao segundo período. Sobre tal evolução, leciona Tullio Ascarelli

(2008, p. 458):

O sistema da carta individual para cada companhia cedeu o lugar a uma disciplina legislativa geral; a constituição da sociedade ficou subordinada a uma autorização, que teve, no entanto, caráter administrativo; desapareceu a concessão de monopólios, contrastante com a liberdade de concorrência, que, desde o século XVIII, vinha-se impondo às consciências; de instituto que, originariamente, se prendia ao direito público e ao direito privado, passa a sociedade anônima a constituir um instituto típico de direito privado.

A terceira e última fase de evolução das sociedades anônimas é o da plena liberdade. É

o período em que as sociedades, inclusive a sociedade anônima, passaram a contar com

legislação normativa disciplinando os trâmites de sua constituição. Cumprindo-se as

formalidades legais, tem-se por criada uma sociedade anônima, agora independente de

qualquer privilégio concedido ou de autorização governamental. É a partir do sistema de

liberdade plena que as sociedades anônimas se multiplicaram, notadamente pelo fato de que

concedia, a todos os sócios, responsabilidade limitada. Sobre o contexto, ressalta Tullio

Ascarelli (2008, p. 459):

Com a liberdade de sua constituição, é natural que as sociedades anônimas se multiplicassem, constituindo o instrumento típico da grande empresa com ações distribuídas entre o público, qual se foi espalhando em conseqüência da ‘revolução

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industrial’, e sendo também freqüentes como instrumento de média empresa e, às vezes, se bem que a princípio timidamente, da transformação de negócio individual em negócio familiar ou social. De instrumento jurídico ‘excepcional’, a sociedade anônima passou a constituir uma forma jurídica ‘normal’ da empresa econômica e a sua adoção se espalhou pari passu com a industrialização dos vários países.

As fases, porém, não se excluem. Com efeito, só pode haver a constituição de

sociedade de economia mista, na forma de lei específica, denotando-se, para tais anônimas,

a influência da fase de privilégio, na medida em que sua constituição, como dito, fica

condicionada a uma concessão do legislador. Também se percebe a influência da fase da

autorização governamental atualmente, sendo certo notar que aquelas sociedades que atuam

em mercados regulados precisam de autorização governamental para exercerem suas

atividades econômicas, de que servem de exemplos as instituições financeiras, as

seguradoras e as que operam plano de saúde.

No Brasil, percebeu-se também a passagem pelas três fases anteriormente descritas, do

ponto de vista histórico. A fase dos privilégios ocorreu no período em que o Brasil ainda era

uma das colônias portuguesas. Segundo Rubens Requião (2007, p. 9):

A princípio, na Colônia, era ela outorgada em carta real, em cada caso, como ocorreu na constituição da ‘Companhia Geral do Grão-Pará’, fundada por ordem do Marquês de Pombal. A sociedade Banco do Brasil S.A. foi igualmente fundada por alvará de D. João VI, em 1808, quando este se encontrava no Rio de Janeiro.

A fase de autorização governamental é inaugurada com o advento do Código

Comercial, de 1850. Com efeito, o revogado Código de Comércio Brasileiro permitia o

estabelecimento de sociedades anônimas desde que as mesmas se constituíssem por tempo

determinado e com autorização do governo. A fase de plena liberdade se inicia com a Lei nº

3150, de 4 de novembro de 1882. É a partir do sistema da plena liberdade que se passa a

discutir sobre o número mínimo de sócios. Mencionada lei define o número mínimo de

sócios para a constituição válida da sociedade. No caso, o número mínimo para a

constituição de uma sociedade anônima é de sete sócios, na forma do art. 1º do Decreto nº

8821, de 30 de dezembro de 1882, regulamento da mencionada Lei nº 3150. O número

mínimo de sete sócios só foi reduzido para dois por ocasião da atual lei de regência das

sociedades anônimas.

Por ocasião, portanto, do advento das sociedades anônimas, reconhece-se a

responsabilidade limitada a todos aqueles que destaquem parcela de seu patrimônio e o

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destine a uma finalidade econômica. Como visto, nas sociedades anteriores, ou os sócios

tinham responsabilidade ilimitada, apesar de subsidiária, ou era concedida a

responsabilidade limitada a uma categoria ou espécie de sócio, como era o caso do sócio

comanditário, na comandita simples. Foi com a sociedade anônima que se conferiu

responsabilidade limitada a todos os sócios, denominados acionistas, com o detalhe de que,

em tais sociedades, necessitava-se de um número mínimo de sócios, superior a dois, como

visto.

Saliente-se, ainda, a elevada complexidade para a constituição e funcionamento de

uma sociedade anônima. Com efeito, para as sociedades cujos tipos se encontram previstos

no Código Civil, basta que os sócios cheguem a um consenso, materializando-o por escrito,

para fins de registro. As sociedades por ações necessitam do atendimento a requisitos

preliminares específicos, como a integralização inicial mínima em dinheiro ou o prévio

registro perante a Comissão de Valores Mobiliários, caso a constituição ocorra mediante

subscrição pública. Além disso, diferentes das demais sociedades, as anônimas necessitam

de providências complementares para fins de constituição válida.

1.4.4 A Sociedade Limitada

A complexidade para a constituição e funcionamento de uma sociedade anônima e a

limitação de responsabilidade a um número elevado de sócios, aliada à circunstância de que

é tipo societário notadamente voltado para empreendimentos econômicos de grande monta,

foram os elementos motivadores para o passo seguinte em busca da limitação de

responsabilidade. E esse passo foi justamente o reconhecimento da possibilidade de

constituição de uma sociedade com apenas dois sócios, que pudessem se dedicar aos

pequenos e médios empreendimentos econômicos, com responsabilidade limitada.

O panorama institucional que se tinha com o advento das sociedades anônimas, do

ponto de vista do direito societário, era o da divisão das sociedades em duas categorias. De

um lado se colocavam as chamadas sociedades de pessoas de fácil constituição e

funcionamento, mas que tinham por característica a responsabilidade ilimitada de pelo

menos uma categoria de sócios. De outro lado, havia as sociedades anônimas, como

sociedades de capitais, de constituição e funcionamento complexos, mas que traziam aos

seus sócios o benefício da responsabilidade limitada. Precisava-se de um tipo societário que

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trouxesse o benefício da limitação de responsabilidade a todos os sócios, mas que não

tivesse maiores burocracias seja para a constituição, seja para o funcionamento.

Sobre as origens da Sociedade Limitada, ensina Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

(2006, p. 291):

A última sociedade a surgir na história do direito comercial da Europa Continental foi a sociedade por quotas de responsabilidade limitada, que no NCC tomou o nome, simplesmente, de sociedade limitada. Esta sociedade nasceu na Alemanha em vista da necessidade que se sentia quanto ao estabelecimento de limites aos riscos dos sócios, que até então somente eram conhecidos em relação à sociedade anônima. Mas esta apresentava maior rigor e complexidade para sua criação, com estrutura mais voltada para a grande empresa. Como resultado dos estudos desenvolvidos com o objetivo acima, convertidos na Lei alemã de 29 de agosto de 1892, veio à luz a Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH). Do ponto de vista estrutural ela se apresentaria mais próxima ao modelo da sociedade anônima, mas sob o aspecto econômico ela estaria mais familiarizada à sociedade em nome coletivo e à em comandita simples. Suas características consistiam em (i) constituição sob regras mais simples; (ii) base financeira menos rígida; (iii) organização interna mais flexível, com maior liberdade contratual, nesse sentido, para a criatividade dos sócios; (iv) participação dos sócios diretamente na administração da sociedade; e (v) maior contato pessoal entre os sócios do que na anônima.

É nessa mesma linha que, no Brasil, por intermédio do Decreto nº 3708, de 10 de

janeiro de 1919, restou regulada a constituição de sociedades por quotas, de

responsabilidade limitada. Logo, mencionado tipo passou a ser da preferência daqueles que

tinham por fim a dedicação a atividades econômicas comerciais. De acordo com Marlon

Tomazette (2003, p. 154):

No Brasil, as sociedades por quota de responsabilidade limitada representam mais de noventa por cento das sociedades empresárias e não empresárias existentes no país, desempenhando papel fundamental no dia a dia da economia do país. Conquanto, não represente tanto investimento quanto às sociedades anônimas, é certo que tal tipo societário desempenha uma posição de destaque na vida econômica do país, sobretudo pelo elevado número de relações nas quais está presente.

Após o reconhecimento da sociedade limitada como um tipo societário pelo direito

brasileiro, percebeu-se que dos tipos societários previstos, a regra é a utilização, apenas, dos

tipos que trazem para os sócios o benefício da responsabilidade limitada. Bem por isso,

Romano Cristiano (2007, p. 256) considera os demais tipos como “irremediavelmente

obsoletos”. Nessa linha de raciocínio, ressalta, também, Paula Andrea Forgioni (2009, p.

158):

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37

De qualquer forma, e também por conta da impossibilidade da limitação da responsabilidade do comerciante individual, os agentes econômicos brasileiros costumam optar pela constituição de sociedades que permitem melhor cálculo e limitação do risco, reduzindo-as praticamente aos dois tipos que mencionamos.

Apesar de lacunoso, o Decreto nº 3708 nunca foi alterado, tendo vigência integral de

1919 a 2003, quando passou a ter vigência o atual Código Civil, que trouxe uma nova

regulamentação para a sociedade em questão, mais específica e detalhada. Com efeito, a

sociedade por quotas, de responsabilidade limitada, prevista no Decreto nº 3708/1919, é

bem mais próxima das sociedades em nome coletivo do que das sociedades anônimas.

Destas, tinha a responsabilidade limitada a todos os sócios; e daquelas, a forma simples de

constituição e funcionamento. Com o Código Civil de 2002, a situação se inverte, ficando a

sociedade limitada mais próxima da sociedade anônima do que da sociedade em nome

coletivo. A esse respeito, refere-se Romano Cristiano (2007, p. 295):

Algo curioso, porém, acontece: a sociedade limitada, no âmbito de processo de metamorfose que se acentua paulatinamente e a olhos vistos, sob a pressão constante das necessidades apresentadas pelas atividades empresariais, se aproxima cada vez mais da sociedade anônima.

No direito brasileiro, assim, desde 1919, permite-se que duas pessoas constituam

uma sociedade, sendo-lhes deferido o benefício da limitação de responsabilidade. A

responsabilidade limitada a todos os sócios foi concedida primeiramente às sociedades

anônimas, com número elevado de sócios. Em 1919, reconhece-se a limitação de

responsabilidade há apenas dois sócios, por ocasião da sociedade limitada, refletindo tal

número mínimo no tipo da sociedade anônima, por ocasião da Lei nº 6404/1976.

1.4.5 As discussões em torno da Limitação de Responsabilidade do Empresário Individual

O Código Civil de 2002 perdeu a oportunidade de reconhecer a limitação de

responsabilidade do empresário individual, seja numa vertente societária, seja numa vertente

não-societária. Entretanto, é cabível demonstrar que algumas das discussões e críticas que

existiam à época da regulamentação da sociedade limitada ressurgem com as discussões em

torno da limitação de responsabilidade do empresário individual.

As críticas que se levantam à regulação da limitação de responsabilidade do

empresário individual se dirigem fundamentalmente a quatro grandes pontos. O primeiro

deles diz respeito ao princípio da unidade do patrimônio, aquele pelo qual toda pessoa tem

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apenas um patrimônio, que serve para garantir os interesses de terceiros. Um outro foco de

discussão diz respeito à definição que o direito brasileiro dá para sociedade empresária; com

efeito, deve-se ter o mínimo de dois sócios, na conformidade do art. 981 do Código Civil,

pelo que descabe, regra geral, falar-se em sociedade unipessoal. O terceiro ponto diz

respeito à pretensa novidade do tema, ou seja, o fato de não haver repercussões ou o

reconhecimento da limitação de responsabilidade do empresário individual no direito

comparado. O último dos vértices de discussão diz respeito ao entendimento pelo qual, se

for reconhecida a limitação de responsabilidade, restarão abertas as portas para o

cometimento de ilícitos e de fraudes.

No que tange à unidade do patrimônio, o direito brasileiro já fez mitigar referido

princípio, por intermédio da teoria do patrimônio de afetação (parcela de patrimônio

destacada do patrimônio geral de uma pessoa, sendo destinada a uma finalidade específica,

prevista em lei). É imperioso lembrar que a segregação patrimonial de parcela do patrimônio

para um fim específico só ocorrerá se autorizada pelo direito positivo e que, segundo Caio

Mário da Silva Pereira (1998, p. 251), “aparece toda vez que certa massa de bens é sujeita a

uma restrição em benefício de um fim específico”.

No que se refere ao art. 981 do Código Civil, de fato, ressaltar a necessidade de se

ter, duas ou mais pessoas, para a constituição de sociedades, deve-se notar que, acaso

reduzido o quadro societário a apenas um sócio, e não sendo recomposta a pluralidade de

sócios, em 180 dias, ter-se-á a dissolução da sociedade, conforme art. 1033, IV, do Código

Civil. No caso de redução do número de sócios em uma sociedade por ações, o prazo pode

variar de oito meses a dois anos e quatro meses. Com efeito, na forma do art. 206, I, d, da

Lei nº 6.404/76, a companhia será dissolvida de pleno direito pela existência de um único

acionista, verificada a unipessoalidade em assembleia geral ordinária, não sendo

reconstituída a pluralidade até a assembleia geral do ano seguinte.

Não se pode olvidar daquilo a que se propõe o ato constitutivo de sociedade. Com

efeito, a teoria que melhor explica o ato constitutivo da sociedade é a teoria do contrato

plurilateral, de Tullio Ascarrelli, que, na visão de Marlon Tomazette (2003, p. 26-29)

aponta como principais características distintivas do contrato plurilateral: (i) a possibilidade

de mais de duas partes, diferentemente do contrato bilateral em que se tem, apenas, duas

partes; (ii) o fato de que o contrato plurilateral está aberto a adesão de novas partes, sem que

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isso modifique ou implique na formação de um novo contrato. Do mesmo modo, a saída de

partes vinculadas a tal contrato não modifica o contrato em questão, que continua a ser o

mesmo.

Pode ser feita uma interpretação alternativa à primeira característica apontada

anteriormente, entendendo-a não como a possibilidade de mais de duas partes, mas no

sentido de vislumbrar no contrato plurilateral a indeterminação do número de partes neste

contrato. Sendo certo que o contrato plurilateral está sempre aberto a novas adesões, restaria

sustentada do ponto de vista teórico a possibilidade de se ter no direito brasileiro a chamada

sociedade unipessoal. A presente tese, aliada ao princípio da preservação da empresa, é que

justifica a espera de um lapso temporal para não extinguir, de plano, uma sociedade cujo

quadro societário fique restrito a apenas uma pessoa. Não se pode deixar de lembrar a tese

do contrato-organização, de Calixto Salomão Filho (1995, p. 58). Tal teoria ressalta que o

contrato-organização é uma das espécies dos chamados contratos associativos e que se

distinguem dos chamados contratos de permuta, pois “o núcleo dos contratos associativos

está na organização a ser criada, enquanto que nos contratos de permuta o ponto

fundamental é a atribuição de direitos subjetivos”.

Com relação ao terceiro aspecto, a crítica relativa à regulamentação ou ao

reconhecimento da limitação de responsabilidade do empresário individual não se sustenta

mais, por si só, ante a análise comparada. Com efeito, a 12ª Diretiva da Comunidade

Europeia generalizou o reconhecimento da sociedade unipessoal de responsabilidade

limitada no continente europeu. Sylvio Marcondes Machado (1956), Antonio Martins Filho

(1999), Calixto Salomão Filho (1995) e Sergio Campinho (2003) relatam que tal instituto

tem sido estudado com afinco e regulamentado em diversos países, tanto a título de Europa,

quanto a título de América. Marcelo Bertoldi (2008, p. 170), inclusive, explica:

a sociedade unipessoal de Liechtenstein, que era exemplificada como uma exceção à regra geral da pluripessoalidade, acabou por transformar-se, hoje em dia, em somente mais um exemplo de país que permite a existência de sociedades com apenas um sócio.

Sobre o cometimento de fraudes, é imperioso ressaltar que, com ou sem limitação

dos riscos inerentes à atividade empresarial, a possibilidade de fraudes jamais deixará de

existir. Basta que se tenham instrumentos eficientes para coibir o cometimento de fraudes,

tais como a desconsideração da personalidade jurídica, sendo certo perceber a possibilidade

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de sua aplicação, a fim de coibir as fraudes, remodelando-a para algo como a

“desconsideração da autonomia patrimonial”. Não se pode olvidar, no que tange ao

problema das fraudes, do pensamento de Antonio Martins Filho (1999, p. 312), ao enunciar:

Com efeito, certa corrente de doutrinadores considera a tese juridicamente admissível, mas afirma que êsse tipo de empresa uma espécie de porta aberta à fraude na vida prática. Daí a conclusão de que se torna perigosa e, pois, desaconselhável a sua adoção pelo direito positivo. Êste argumento, ao que nos parece, não terá fôrça suficiente para sufocar uma idéia em marcha e já em vias de concretização. [...] Os que aceitam esta hipótese como sendo a mais viável e, sob a pressão deste estado psicológico, propalam abertamente tal pensamento, não se recordam que, em oposição constante à boa fé – garantia máxima das operações fiduciárias – está a argúcia impreterível dos indivíduos inescrupulosos, os quais tanto podem agir em nome individual como coletivamente. Destarte, a possibilidade de fraude, na trepidação da vida econômica, jamais deixará de existir, com ou sem a limitação dos riscos do estabelecimento do comerciante singular.

Desse modo, percebe-se que as críticas mais contundentes feitas ao instituto ora

proposto, de nenhum modo, merecem prosperar. São, portanto, todas, críticas insustentáveis.

1.5 A limitação de responsabilidade do empresário individual e a doutrina brasileira

Percebem-se duas grandes fases de estudos acerca da limitação de responsabilidade

dos agentes econômicos na doutrina brasileira. Tem-se uma primeira fase de estudos que se

apresentaram nas décadas de 40 e 50 do século passado. Os motivadores de tais estudos

foram a aprovação legislativa do principado de Liechtenstein, com as repercussões trazidas

ao direito europeu de então, e o debate havido na Argentina a partir de reunião promovida

pelo Instituto Argentino de Direito Comercial, em 1943, e de tentativa de regulamentação

com o projeto apresentado pelo então senador Felipe Gomez, em 1949. Datam dessa

primeira fase, os estudos de Antonio Martins Filho e de Sylvio Marcondes Machado.

A segunda fase de estudos brasileiros sobre o tema em questão se origina a partir da

constatação de que a XII Diretiva Comunitária da União Europeia, de 30 de dezembro de

1989, reconhece a sociedade unipessoal com responsabilidade limitada no ambiente

europeu. A partir de tal reconhecimento, inicia-se nova fase de estudos pela doutrina

brasileira. Os estudos de maior envergadura desta segunda fase são os de Calixto Salomão

Filho e de Wilges Ariana Bruscato. Deve-se destacar, ainda, em termos de doutrina

nacional, os estudos de Romano Cristiano. Com efeito, o trabalho de Romano Cristiano

pode ser alocado nesta segunda fase de estudos, apesar de anterior à XII Diretiva

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mencionada. Em decorrência desta segunda fase, o legislador brasileiro, a partir do advento

do atual Código Civil, tem apresentado projetos de lei, visando debater a respeito do tema.

Nesta fase do estudo, faz-se mister apresentar as concepções dos autores anteriormente

mencionados. O intuito é o de averiguar as ideias que serviram de base à doutrina nacional,

e mesmo aos projetos de lei que existem atualmente no Congresso. Registre-se, antes de

mais nada, que além dos autores e estudos mencionados, houve outros, de menor

envergadura, mas que, nem por isso, deixaram de ter importância.

Com efeito, Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 89) ressalta as concepções de Adolf

Thiler, de Trajano Miranda Valverde e de Adamastor Lima. Thiler, em 1940, entendia que a

empresa individual de responsabilidade limitada, com personificação da empresa, serviria

para evitar os disfarces a que tomavam várias firmas de então. Exatamente por não existir tal

limitação de riscos foi que a inteligência dos agentes econômicos criou as chamadas

sociedades fictícias. Trajano Miranda Valverde, em 1943, propôs a criação de

estabelecimentos autônomos, em que se separavam do patrimônio do titular bens ou valores,

no intuito de limitar a sua responsabilidade até determinado montante. Tal criação poderia

vir ou não acompanhada da personalização do estabelecimento, à imagem do que se tem

com as fundações atualmente. Adamastor Lima, por fim, em 1944, sensível à ideia de

limitação da responsabilidade ao comerciante individual, propugnou pela criação de uma

sociedade individual de responsabilidade limitada.

Antonio Martins Filho, em 1950, publica tese pela qual conseguiu a cátedra de Direito

Comercial da Faculdade de Direito, na Universidade Federal do Ceará. Posteriormente,

mencionada tese, ainda em 1950, foi debatida em Congresso Jurídico realizado em Porto

Alegre, em homenagem aos 50 anos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul. O autor demonstra inexistir razões jurídicas contra as chamadas

sociedades fictícias ou unipessoais, cujo uso encontra-se generalizado atualmente,

ressaltando que é um meio indireto de limitação de riscos, e que o direito deveria prever a

possibilidade de se conseguir tal mister diretamente. Após também ressaltar a pressão dos

fatos sobre a lei em várias fases da vida econômica, conclui por um novo esquema de

classificação das empresas mercantis, prevendo o comerciante individual com limitação de

riscos, desde que lhe fosse reconhecida personalidade jurídica distinta, do mesmo modo em

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que ocorre com as sociedades, que têm sua personalidade distinta da personalidade dos

sócios que a compõem.

Sylvio Marcondes Machado, em 1956, publica tese de cátedra com a mesma temática

da apresentada por Antonio Martins Filho. Sylvio Marcondes Machado apresenta uma série

de estudos correlatos, de outros autores, nacionais e estrangeiros, agrupando-os em duas

diferentes concepções: a concepção subjetiva e a concepção objetiva. A concepção subjetiva

prima pela personalização da dita empresa. A concepção objetiva considera a empresa como

uma espécie de patrimônio. Sobre a concepção subjetiva, define Sylvio Marcondes Machado

(1956, p. 276):

A primeira delas propõe-se atribuir personalidade jurídica à emprêsa individual, a fim de congregar, em torno de sujeito de direito, diverso da pessoa do empresário, as relações jurídicas emergentes da atividade empreendedora. Em tal concepção, criado o novo titular, que, por sua capacidade, polariza aquelas relações, apartando-as da titularidade do empresário, êste, por isso mesmo, teria limitado sua responsabilidade ao ato inicial constitutivo do sujeito nascente.

A concepção objetiva, apresentada por Sylvio Marcondes Machado (1956), propõe,

para a limitação de responsabilidade do comerciante individual, que a empresa seja vista

como um patrimônio, calcada na noção do patrimônio separado. Sobre a mencionada

concepção objetiva, ensina Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 281):

Apartando do patrimônio a quantidade de bens que julga necessária à instalação de sua emprêsa, o comerciante individual constitui, com o capital, o suporte econômico imediato das relações jurídicas que surgirão em conseqüência da atividade empreendedora [...]. Refutada, entretanto, a doutrina da unicidade do patrimônio e reconhecida a sua divisibilidade pelo legislador, êste admite a existência de determinadas universalidades jurídicas subordinadas ao poder de um mesmo sujeito de direito.

Após apresentar ambas as concepções, filia-se Sylvio Marcondes Machado (1956, p.

286) à concepção objetiva, enquadrando a empresa individual “na categoria dos objetos de

direito, por exigir o melhor desvêlo na elaboração das normas adequadas à constituição do

patrimônio separado”.

Outro autor que se debruçou sobre a presente questão é Romano Cristiano. Na obra A

empresa individual e a personalidade jurídica, Romano Cristiano (1977, p. 147) defende a

ideia de se personificar a empresa, reconhecendo-a como pessoa jurídica, ressaltando:

Nós colocaríamos esse problema filosófico em outros termos, e pedimos vênia ao nosso estimado mestre. Lembrando que para Hegel o princípio fundamental das

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coisas é a idéia, e que a idéia, ou a realidade em si, é sempre a síntese de duas opostas determinações – tese e antítese, – diríamos, com base justamente na dialética hegeliana, que para facilitar a relação de troca surgiu o comerciante, genuíno elemento subjetivo, a tese; a atividade do comerciante foi evoluindo, tornando-se complexa, e exigindo, a certa altura, a criação do estabelecimento, genuíno elemento objetivo, portanto a antítese. Da luta entre os dois opostos elementos, subjetivo e objetivo, a tese e a antítese, aquele querendo conservar a sua supremacia e este adquirindo importância cada vez maior, surgiu a síntese, a empresa, elemento objetivo que se transforma em subjetivo, e que cada vez mais está a reclamar a posição que verdadeiramente lhe compete: a de pessoa jurídica.

Recentemente, mencionado autor publica a obra A empresa é risco, em que apresenta

critérios para que se possa bem interpretar a definição de empresa, trazida ao centro do

Direito Comercial, pelo Código Civil de 2002. Romano Cristiano (2007) apresenta algumas

tendências à unificação dos atuais tipos empresariais. A utilização do título de

estabelecimento no lugar do nome empresarial, a utilização de administradores estranhos e a

possibilidade de transformação em sociedade limitada são tendências vislumbradas na

utilização das empresas individuais.

Quanto à utilização do título de estabelecimento ou nome fantasia, Romano Cristiano

(2007, p. 293) demonstra o realce que tem se dado ao título de estabelecimento em

contraponto ao nome empresarial. É ressaltado o “autêntico desejo de esconder-se atrás de

nome impessoal”. Registre-se que sustenta tal ideia tanto o princípio constitucional da

inviolabilidade da vida privada quanto o fato de que um nome impessoal pode vir a ter um

maior apelo mercadológico.

Sobre a nomeação de administradores estranhos, ressalta, com razão, Romano

Cristiano (2007, p. 293):

A rigor, único administrador da atividade empresarial, no âmbito de empresa individual, deveria ser o titular desta, o qual, precisando de auxílio, deveria procurá-lo em pessoas físicas contratadas com base na legislação trabalhista. É o que dispõe, aliás, o novo Código Civil, em seus artigos 1.172 e seguintes, porquanto a figura do gerente escolhido dentre os prepostos não passa, em meu entender, de mero empregado, cujo status jurídico é determinado basicamente pelas leis trabalhistas. Surge, no entanto, às vezes, terceira figura, que não ocupa a posição de empresário (pois tal posição não admite mais do que um só ocupante), nem a de sócio deste (pois o empresário individual, por sua própria essência, não possui sócios), nem a de empregado do mesmo (pois, ostensiva e legalmente, ele age e administra, no âmbito interno da empresa individual, sem carteira assinada).

Outra tendência que se percebe, também, com Romano Cristiano (2007, p. 294) é a de

a firma individual vir a se transformar em sociedade limitada. A finalidade de tal

transformação, como se sabe, é a fuga aos riscos inerentes à responsabilidade ilimitada. Tal

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é o que se vê nas sociedades fictícias, verdadeira sociedade de fachada em que apenas um

dos sócios tem perfil capitalista – com a quase totalidade do capital social – e os demais com

participações mínimas. A confirmação de tal tendência se encontra no art. 977 do novo

Código Civil, que admitiu, mesmo limitadamente, a sociedade entre cônjuges. Mais

recentemente, nessa mesma linha, a Lei Complementar nº 128, de 2008, veio a incluir um

parágrafo terceiro, no art. 968, do Código Civil, prevendo que “caso venha a admitir sócios,

o empresário individual poderá solicitar ao Registro Público de Empresas Mercantis a

transformação de seu registro de empresário para registro de sociedade empresária”.

Calixto Salomão Filho, em 1995, publica a sua tese de doutorado com o nome A

sociedade unipessoal, em que o autor analisa com profundidade a questão da limitação de

responsabilidade do empresário individual, apresentando as fórmulas societárias e não-

societárias relacionadas pela doutrina. Vincula-se mencionado autor à regulamentação do

instituto proposto, no formato societário, e apresenta a seguinte crítica quanto às concepções

não-societárias:

A conseqüência das fórmulas não societárias é uma drástica redução da capacidade da circulação da empresa e de sua liquidez. Esses problemas traduzem-se na impossibilidade de venda parcial da empresa sem transformação de forma, ou seja, vem transformá-la previamente em sociedade. Torna-se, portanto, mais difícil a venda parcial com manutenção do controle, objetivando mera capitalização. De outro lado, reduz-se a possibilidade de preservação da empresa em caso de morte do empresário. Objeto da sucessão são diretamente os bens da empresa e não, como nas sociedades de capital, ‘os bens de segundo grau’ representados pelas ações e pelas quotas. (SALOMÃO FILHO, 1995, p-38)

Calixto Salomão Filho (1995, p. 40) chega a ressaltar, inclusive, que o patrimônio

separado não é capaz de resolver o problema da proteção dos credores, nem de fornecer um

meio de incentivo à atividade do pequeno comerciante individual. Ensina o autor que, caso

se venha a insistir na forma não-societária, a solução seria a de criar uma organização tão

vizinha à societária e com capacidade jurídica tão ampla que defini-la ou não como uma

sociedade passará a ser, apenas, uma questão terminológica. Tal método seria mais eficiente

tanto para as pequenas e médias empresas, quanto para a grande empresa.

Wilges Ariana Bruscato, por fim, publica, em 2005, a sua tese de doutoramento com o

nome de Empresário individual de responsabilidade limitada. A autora critica os estudos

anteriores que, o mais das vezes, quando não propugnava pelo formato societário, tinha por

norte a ideia de atribuição de personalidade jurídica, seja de uma nova personalidade ao

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comerciante individual, seja a personificação da empresa, seja a personificação do

estabelecimento. Segundo Wilges Ariana Bruscato (2005, p. 272):

Diferentemente, o que se infere no presente estudo – que tende a afastar-se da tese da personificação da empresa, numa concepção que alia os aspectos subjetivo e objetivo do instituto – é que também parte do ponto da separação patrimonial, mas para que o acervo dela resultante tão-somente suporte a responsabilidade pelos compromissos assumidos pelo empresário em virtude de sua atividade profissional, o que não requer elaboração jurídica, pois não se cria nenhuma categoria ou gênero novo: o empresário é – e continua sendo – a figura central. O que se acresce é, apenas, a permissão legal de limitação de seu risco e sua regulação, sem que seja necessária nenhuma inovação dogmática.

Percebe-se, portanto, a atualidade da presente discussão. Como visto, primeiramente,

restou reconhecida personalidade jurídica às sociedades. Estas passaram a ter personalidade

jurídica distinta da dos seus sócios. Posteriormente, atribuiu-se o benefício da

responsabilidade limitada a determinada categoria de sócios. Depois, foi conferido o

benefício da responsabilidade limitada a todos os sócios, desde que se atingisse um número

mínimo (sete, no caso do direito brasileiro, atentando-se para as previsões iniciais acerca das

sociedades anônimas). Mais recentemente, reconhece-se a responsabilidade limitada para o

conjunto de, apenas, dois sócios, com o advento da sociedade limitada. A limitação de

responsabilidade representa, portanto, o último grau na evolução histórica das organizações

empresariais.

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2 A EMPRESA COMO FENÔMENO JURÍDICO E ECONÔMICO

Com o advento do Código Civil em 2002, o ordenamento jurídico brasileiro

experimentou a unificação do direito privado, algo que já era perseguido, sem sucesso até

então, há longo tempo. Houve, ainda, uma mudança no contexto teórico fundamental, base

do Direito Comercial, como um todo, chegando ao ponto de ser defendida, inclusive, a

modificação da nomenclatura da disciplina para Direito Empresarial. Saiu-se, então, da

Teoria dos Atos de Comércio para a Teoria Jurídica da Empresa. Não se há de olvidar que a

falha da Teoria dos Atos de Comércio está no fato de que os estudiosos não conseguiram

chegar a uma definição a contento do que seria o seu instituto fundamental, o ato de

comércio.

A experiência brasileira com a Teoria dos Atos de Comércio ocorreu com a publicação

do Código Comercial de 1850, inspirado no Código de Comércio Francês de 1808, que, para

fugir às discussões existentes na Europa sobre os atos de comércio, organizou a atividade

comercial em cima do que convencionou chamar de mercancia. É de se ressaltar, inclusive,

que o Código Comercial Francês enumerava uma verdadeira lista do que se deveria ter por

atos de comércio. Com efeito, tudo não passou de mera troca de nomenclatura. O que na

Europa se chamava de atos de comércio, aqui se denominou mercancia. Tanto é que, logo

após a publicação do Código Comercial Brasileiro, houve a necessidade de se definir o que

se deveria entender por mercancia, haja vista inexistir qualquer dispositivo no referido

Código que o conceituasse ou enumerasse os chamados atos de mercancia. Por necessidade,

portanto, foi publicado o Regulamento 737, ainda no ano de 1850, para corrigir algumas

imperfeições do Código de Comércio, dentre as quais, a de se definir o que se deveria

entender por mercancia. É mercancia o que estiver previsto neste regulamento, ou seja,

mercancia, no Brasil, assim como atos de comércio, na França, nada mais é do que aquilo

que o direito positivo definir, vale dizer, mercancia, assim como ato de comércio, é um

conceito de direito positivo.

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De longe se percebe, portanto, que uma teoria científica que não tem bem definido o

seu instituto jurídico fundamental não tem como prosperar. E foi exatamente o ocorrido com

a Teoria dos Atos de Comércio. Precisava-se, portanto, encontrar um novo alicerce ao

Direito Comercial; esse novo alicerce foi a empresa. Se bem que, se entre os atos de

comércio costumavam figurar as empresas de fábrica e manufatura, nunca se teve uma boa

sistematização sobre o que se deveria ter por empresa ou sobre quais seriam os seus

fundamentos. Apenas com o advento do Código Civil Italiano, de 1942, ocorreu a referida

sistematização, sendo por assim dizer o primeiro instrumento legislativo a positivar a Teoria

da Empresa como basilar do Direito Comercial. E grande foi o prestígio da referida tese que,

de modo geral, foi positivada no ordenamento jurídico brasileiro, em 2002, com o advento

do Novo Código Civil, cabendo notar, contudo, que o direito comercial brasileiro,

paulatinamente, já ia se transformando de um direito dos atos de comércio para o direito da

empresa. Forte é a tese de que o Código Civil de 2002 teve o condão de ser o ponto final da

mudança de perspectiva pela qual vinha passando o direito comercial brasileiro.

O excerto que ora se delineia tem por objetivo analisar a possibilidade de se ter uma

definição única para um objeto ou instituto que tanto a Economia quanto o Direito estudam.

Na medida em que a realidade a ser analisada é a mesma, razão não há, como

costumeiramente se faz, para construir conceitos diferentes. Para tanto, analisar-se-ão as

principais teorias, relativas à empresa, como é o caso da teoria dos perfis de empresa, de

Alberto Asquini, e da teoria da firma, de Ronald Coase, a primeira jurídica e a última

econômica, extraindo suas principais decorrências. A partir da Teoria da Firma se fará uma

releitura da Teoria dos Perfis, fundamentando o que aqui se quer defender, vale dizer, a

possibilidade de se utilizar um mesmo conceito para ambas as ciências, ou seja, a

possibilidade da definição jurídica de empresa ser a mesma definição econômica, não

havendo maiores razões para tal distinção, na medida em que o fenômeno estudado é o

mesmo, a empresa.

2.1 O conceito jurídico de empresa

A necessidade de se buscar um novo paradigma que pudesse servir de norte aos

estudos e aos estudiosos do Direito Comercial se deu na medida em que apareceram as

falhas do antigo Direito Comercial. O novo Direito Comercial, notadamente, com a edição

do Código Civil Italiano, em 1942, tem por base a Teoria Jurídica da Empresa, teoria essa

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que o ordenamento jurídico brasileiro já vinha adotando paulatinamente e passou a ser

adotada em toda sua plenitude (pelo menos, esta é a ideia) com o advento do Código Civil

de 2002.

O chamado “antigo Direito Comercial” era embasado na Teoria dos Atos de

Comércio, que tinha, por principal vício, o de não conseguir definir, a contento, o seu

conceito fundamental, qual seja, o de Atos de Comércio. Por todos os autores, não se pode

olvidar da doutrina professada por Alfredo Rocco, sempre lembrado nos manuais de Direito

Comercial, que, apesar de ter chegado à definição de que ato de comércio seria qualquer ato

de realização ou facilitação de interposição na troca, com intuito lucrativo, tinha por ideia

primordial a de que o conceito unitário de ato de comércio será sempre um conceito de

direito positivo. Requião (2003, p. 38) esclarece, nesse mesmo sentido, o defeito da referida

teoria:

Muito embora tenhamos considerado altamente elucidativa a teoria de Rocco, tem ela a estreiteza, de resto confessada pelo autor, de ter sido elaborada sobre o direito positivo, isto é, sobre a enumeração que oferecia o Código italiano de 1882, hoje revogado pelo Código de 1942, que unificou o direito privado naquele país.

A partir da Revolução Francesa, com o seu ideal de igualdade e da abolição do

privilégio de classes, o Direito Comercial deixou de ser, apenas, o direito dos comerciantes,

vinculados à corporação de mercadores. Saiu de foco, portanto, com o advento do Código

Comercial Napoleônico, a figura do comerciante, passando a interessar os atos praticados

por esse em razão de sua profissão, bem como os atos tidos por comerciais,

independentemente de quem os pratique. Com a falência do sistema inaugurado com o

Código Francês de 1807, sendo certo que surgiram atos que passaram a ser de interesse do

referido ramo do direito, mesmo não se tratando de mercancia ou de ato praticado por

comerciante, também não poderia, ademais, ser entendido enquanto o direito dos atos de

comércio, pelo fato de que jamais se conseguiu definir a contento o que seria ato de

comércio. Analisando a teoria de Carvalho de Mendonça, demonstra Hentz (2003, p.10-11):

Sob o ponto de vista de J. X. Carvalho de Mendonça, mesmo sendo ele próprio um estudioso do problema, as teorias para determinação científica dos atos de comércio, até então conhecidas, eram todas deficientes e inexatas. Disse que ‘os atos de comércio apresentam consideráveis matizes e prendem-se tão estreitamente às relações da vida civil que é difícil, muitas vezes, caracterizá-los devidamente’. E, em arremate, que, ‘por esse motivo, não vingaram as definições de atos de comércio que tentaram escritores de nota; todos não têm resistido à crítica.

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Foi com o Código Civil Italiano, de 1942, unificador do direito privado naquele país,

que restou estabelecida uma nova tese, baseada na empresa. A ideia de empresa, aliás, não é

nova. Antes mesmo do referido diploma legislativo, já se falava, bem como se tinha em

legislações esparsas, a figura da empresa, a que não foi dada toda a importância, sendo vista

apenas como uma sequência de atos de comércio. Apenas com o Código Italiano é que a

empresa, do ponto de vista jurídico, passou a merecer maior atenção e considerações.

Diferentemente dos institutos jurídicos em geral, a empresa não recebeu, pelo menos no

embrião, um conceito jurídico unitário. Coube a Alberto Asquini (1996, p. 109-110) aclarar

os contornos iniciais da teoria jurídica da empresa, defendendo:

O conceito de empresa é o conceito de um fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram. As definições jurídicas de empresa podem, portanto, ser diversas, segundo o diferente perfil, pelo qual o fenômeno econômico é encarado.

É de se analisar, pois, os diversos perfis de Asquini (1996) para, assim, verificar a

existência de um conceito jurídico próprio e unitário de empresa.

2.1.1 Perfis de empresa (a teoria de Alberto Asquini)

Não se pode deixar de lembrar a advertência feita pelo jurista italiano a respeito da

tradução de termos econômicos para noções jurídicas, revelando que a empresa entrou para

o Código Italiano com um determinado significado econômico, o que, de maneira alguma,

poderá significar que a noção econômica de empresa poderá ser utilizável como noção

jurídica. Aduz ainda:

Mas, defronte ao direito o fenômeno econômico de empresa se apresenta como um fenômeno possuidor de diversos aspectos, em relação aos diversos elementos que para ele concorrem, o intérprete não deve agir com o preconceito de que o fenômeno econômico da empresa deva, forçosamente, entrar num esquema jurídico unitário. Ao contrário, é necessário adequar as noções jurídicas de empresa aos diversos aspectos do fenômeno econômico. (ASQUINI, 1996, p-113)

São quatro os perfis de empresa evidenciados por Asquini (1996), a saber: perfil

subjetivo; perfil objetivo; perfil funcional; e perfil corporativo. Pelo perfil subjetivo, ter-se-

ia a empresa como empresário, vale dizer, a noção de empresa se equipararia à noção do

sujeito de direito, da pessoa, física ou jurídica, que viesse a exercer a empresa. O conceito de

empresário, aliás, definido no Código Italiano, foi praticamente importado para o Código

Civil Brasileiro e que nada mais é do que aquele que exerce atividade econômica organizada

para a produção ou circulação de bens ou de prestação de serviços, visando a atender uma

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necessidade de mercado. Asquini (1996) justifica tal metonímia ressaltando que o

empresário não somente está na empresa, em sentido econômico, como dela é a cabeça e a

alma. Muito embora seja algo utilizável, inclusive, pela linguagem jurídica, tal equiparação,

tal traslado deveria ser evitado.

O perfil objetivo, também conhecido como perfil patrimonial, é aquele pelo qual a

empresa deve ser encarada como o patrimônio especial em razão do qual o empresário atua,

inclusive, distinto do restante do patrimônio do empresário, quando se esteja diante do

empresário individual. Assevera Asquini (1996, p.118):

[...] o fenômeno econômico da empresa, projetado sobre o terreno patrimonial, dá lugar a um patrimônio especial distinto, por seu escopo, do restante patrimonial do empresário (exceto se o empresário é uma pessoa jurídica, constituída para o exercício de determinada atividade empresarial, caso em que o patrimônio integral da pessoa serve àquele escopo). É notório que não faltam doutrinas tendentes à personificação do tal patrimônio especial tendentes a nele identificar ‘a empresa’ como sujeito de direito (pessoa jurídica) distinto do empresário. Mas esta tendência não foi acolhida no nosso, nem em outros ordenamentos jurídicos.

Em arremate, conclui Asquini (1996, p.119) a respeito do que enfim se deveria ter por

empresa no que tange ao seu perfil objetivo: “A este patrimônio é dado o nome de

estabelecimento concebido como universistas iurum. Na realidade o estabelecimento, neste

sentido, quer dizer patrimônio aziendal.” Portanto, para Asquini (1996), o perfil objetivo é o

complexo de bens e/ou relações jurídicas de que o empresário titulariza no exercício da

atividade econômica a que ele se dedica.

Além dos perfis subjetivo e objetivo, outro perfil trazido à lume por Asquini (1996) é

o perfil funcional. Pelo perfil funcional, entende-se a empresa enquanto a atividade exercida

pelo empresário. Cabível destacar que é pelo tipo de atividade que se vai considerar alguém

empresário ou não, de modo que, por essa perspectiva, a empresa seria, nas palavras de

Asquini (1996, p.116), “aquela força em movimento [...] dirigida para um determinado

escopo produtivo”. Conquanto não se tenha um vocábulo simples para enquadrar o conceito

de atividade empresarial, Asquini (1996) aduz a dificuldade de resistir ao uso do vocábulo

empresa, em tal sentido, advertindo, contudo, que não se trata ou não se pode dar a tal uso

caráter monopolístico ou de conceito unitário. Assevera, contudo, o jurista que tal perfil, tal

ideia de empresa, tem enorme relevância para a teoria jurídica, afirmando:

De qualquer forma, deixando de lado a questão das palavras, não há dúvida de que o conceito de atividade empresarial tem uma notável relevância na teoria jurídica

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da empresa; antes de mais nada porque para se chegar à noção de empresário é necessário partir do conceito de atividade empresarial; segundo lugar porque da diversa natureza da atividade empresarial – agrícola ou comercial – depende a qualificação do empresário como empresário agrícola ou comercial; em terceiro lugar, para a aplicação das normas particulares relativas às relações da empresa. (ASQUINI, 1996, p-117)

Percebe-se, portanto, que a atividade empresarial passa a ser relevante para o novo

Direito Comercial, tanto que diversos juristas ocupam-se na tentativa de entender e clarear

aspectos desse perfil. Tullio Ascarelli (1998, p.183), aliás, trata sobre esse perfil, indicando,

como já se mostrou, que é pela atividade que se vai considerar alguém empresário ou não.

Diz ele:

O que qualifica o empresário – conceito central na sistemática da legislação italiana – é, em minha opinião, uma atividade econômica (assim como uma atividade econômica qualificava o comerciante) [...] É pois a natureza (e o exercício) da atividade que qualifica o empresário (e não, ao contrário, a qualificação do sujeito que determina a atividade) e nessa prioridade da atividade exercida para a qualificação do sujeito pode-se notar a persistência de um elemento objetivo, como critério de aplicabilidade da especial disciplina ditada para a atividade e para quem a exerce.

Para Ascarelli (1998, p. 183), “atividade não significa ato, mas uma série de atos

coordenáveis entre si, em função de uma finalidade comum”, devendo referida atividade ser

analisada, inclusive, como um objeto distinto dos atos que a formam, ou seja,

“independentemente dos atos singulares”, cabendo verificar ademais que “enquanto o ato é

considerado em relação aos seus destinatários, a atividade, como tal, não tem destinatário”.

Por fim, tem-se o perfil corporativo, pelo qual se analisa a empresa como instituição.

Enquanto os outros perfis consideram a figura da empresa do ponto de vista individualista

do empresário, sendo certo afirmar que tais perfis já foram apreendidos no cenário jurídico,

o perfil corporativo trata a empresa como sendo uma corporação, uma organização de

pessoas, do empresário e de seus demais colaboradores. No dizer de Asquini (1996, p. 122):

O empresário e os seus colaboradores dirigentes, funcionários, operários, não são de fato, simplesmente, uma pluralidade de pessoas ligadas entre si por uma soma de relações individuais de trabalho, com fim individual; mas formam um núcleo social organizado, em função de um fim econômico comum, no qual se fundem os fins individuais do empresários e dos singulares colaboradores: a obtenção do melhor resultado econômico, na produção. A organização se realiza através da hierarquia das relações entre o empresário dotado de um poder de mando – e os colaboradores, sujeitos à obrigação de fidelidade no interesse comum.

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Para Asquini (1996), portanto, os perfis por ele delineados nada mais são do que

âmbitos de visão, do ponto de vista jurídico, do fenômeno econômico poliédrico

denominado empresa.

2.1.2 Análise crítica dos perfis de empresa

A doutrina, em geral, após apresentar a Teoria de Asquini, faz uma crítica a tal teoria,

pois, de modo geral, entendem os autores1 que os quatro perfis de Asquini devem ser

reduzidos a três, mostrando diversos institutos jurídicos já consagrados, podendo perder de

vista o perfil corporativo, na exata medida de que tal perfil apenas refletiria o ideário

político da Itália, à época. É de se lembrar que o Código Italiano é de 1942, época de em que

vigia o regime facista. Assim, rechaçado o perfil corporativo, ter-se-ia o perfil subjetivo que,

na realidade, define o empresário; o perfil objetivo que seria o estabelecimento; e o perfil

funcional que seria a empresa, entendendo-se por empresa a atividade econômica organizada

de produção ou circulação de bem ou de prestação de serviços. A esse respeito, esclarece

Tomazette (2003, p.6):

Esse modo de entender a empresa já está superado, porquanto não representa o estudo teórico da empresa em si, mas apenas demonstra a imprecisão terminológica do Código Italiano, que confunde a noção de empresa com outras noções. Todavia, com exceção do perfil corporativo que reflete a influência de uma ideologia política, os demais perfis demonstram três realidades intimamente ligadas, e muito importantes na teoria da empresa, a saber, a empresa, o empresário e o estabelecimento.

Na mesma toada expõe Requião (2003, p.56), citando Ferrara:

Na realidade, o problema foi analisado deste modo por Asquini, que fez uma cuidadosa investigação sobre o assunto, chegando ao resultado de que a palavra empresa tem no Código diferentes significados, usada em acepções diversas: umas vezes para indicar o sujeito que exercita a atividade organizada; outras, o conjunto de bens organizados; outras, ainda, o exercício da atividade organizada e, finalmente, a organização de pessoas que exercitam em colaboração a atividade econômica. Todavia, como observamos em outro lugar, nenhuma norma se pode encontrar, com segurança, em que a palavra empresa possa ser utilizada no último sentido, de organização do pessoal, porque, na realidade, os quatro sentidos do termo – os quatro perfis de que falou Asquini – se reduzem a três. Pode-se observar, porém, que, fora dos casos em que a palavra se empresa em sentido impróprio e figurado de empresário ou de estabelecimento, e que deve o intérprete retificar, a única significação que resta é a da atividade econômica organizada.

Referido entendimento soa de modo quase unânime na doutrina. Tanto que autores

como Marlon Tomazette (2003, p. 17-18) demonstram a evolução do novo Direito 1 Veja-se a propósito: Tomazzete (2003); Requião (2007); Martins (2007); e Hentz (2003).

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Comercial, na medida em que se coloca a atividade empresarial como a figura central desse

“novo direito”, pelo que a Teoria da Empresa acaba por se alicerçar em um tripé, cujos

vértices distinguem-se pelos verbos aplicados a cada qual, em que empresa se exercita,

empresário se é e estabelecimento se tem.

Tal concepção, contudo, deve ser revista, não podendo mais prevalecer. A bem da

precisão, se, à época de Asquini, tais conceitos eram intimamente ligados, de tal sorte que,

inclusive, o próprio Asquini equiparou os conceitos, atualmente, a tese não se mantém.

Inexiste essa íntima ligação entre tais conceitos, havendo apenas uma correlação, entre eles.

Resulta claro que o essencial para qualificar alguém como empresário é a atividade

exercida, inexistindo a possibilidade de exercê-la sem antes o empreendedor se organizar,

não se pode deixar de notar a existência, no plano concreto, de empresário sem

estabelecimento, ou vice-versa. Há possibilidade, inclusive, de ocorrer o afastamento do

empresário originário, vale dizer, daquele que iniciou o empreendimento. Isso é de mais

fácil percepção no âmbito do direito falimentar. Com o advento do princípio da preservação

da empresa, as atividades econômicas relevantes que demonstrarem viabilidade econômica

devem ser preservadas, e o Estado deve ser garantidor de tal manutenção. Para a efetivação

de tal princípio, é cabível, inclusive, o afastamento do empresário falido de suas atividades,

entregando-se estas a terceiros, bem como a transferência do “perfil objetivo” para a

continuidade por outrem da exploração da atividade econômica originariamente

empreendida pelo falido, tendo em vista a função social da empresa, enquanto geradora de

postos de trabalho, fonte de arrecadação de tributos e produtora de utilidades para a

satisfação do mercado.

O contraponto maior, contudo, da concepção ora apresentada para a teoria da empresa,

refere-se ao perfil corporativo. Com efeito, diferentemente do que se costuma ver a título de

exposição da teoria jurídica da empresa e dos perfis de Asquini, deve-se dar relevância ao

perfil corporativo. Se, pelos outros perfis, analisam-se os institutos que compõem a base da

teoria da empresa, do ponto de vista individualista e estático, vale dizer, o empresário, o

estabelecimento e a atividade, é pelo perfil corporativo que se tem a empresa do ponto de

vista dinâmico. Por tal perfil, como se viu, tem-se como empresa as relações existentes entre

o empresário e seus colaboradores, organizadas por aquele. Na verdade, todos os perfis

expõem realidades e institutos relevantes para a teoria da empresa.

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Como o perfil subjetivo define o empresário, o perfil objetivo define o patrimônio e o

perfil funcional define a atividade econômica (que os doutrinadores são seduzidos a

entender como o conceito jurídico de empresa, o que, na visão do próprio Asquini, é

inexato, e com ele se deve concordar). É pelo perfil corporativo que se vai definir a

organização, vale dizer, a forma como o empresário irá estruturar o desenvolvimento da sua

atividade, cabendo ressaltar que a atividade empresarial, além de econômica, deve ser

organizada, como se vê no art. 966 do Código Civil Brasileiro, cuja redação é, por tudo,

semelhante ao que se tem no art. 2.082 do Código Civil Italiano.

2.2 O conceito econômico de empresa

Para a economia, empresa é sinônimo de firma. Vale dizer, para os economistas,

empresa é, em essência, a técnica em razão da qual se agregam capital, trabalho e demais

insumos, com vistas à produção de bens e serviços para o mercado (VERÇOSA, 2008, p.

139). Segundo a visão da economia tradicional, a firma era apenas função da produção. Com

efeito, as firmas existiam e organizavam-se apenas em razão dos custos de produção, ou

seja, via-se o que se necessitava de insumos ou de fatores da produção para determinado

empreendimento, bem como os custos de tais insumos e fatores. Foi Coase, no artigo a tratar

da natureza da firma, que deu uma nova visão ao que se tinha enquanto firma. Para ele, mais

do que apenas as firmas se organizarem em função da produção, também, e,

fundamentalmente, há necessidade de se pensar em tal organização tendo em vista os custos

de transação. Nesse aspecto, deve-se trazer à lume as palavras de Pinheiro (2005, p.138):

Nessa interpretação, a fronteira da empresa – isto é, o conjunto de contratos realizados no seu interior, em anteposição àqueles por ela firmados com outros agentes econômicos no mercado – é definida com base na minimização dos custos de transação. Vale dizer que contratos com menor risco e custos mais baixos de redação, implementação e monitoramento são executados pelo mercado; os demais são internos à empresa.

Dessa forma, pois, a firma deixa de ser apenas mera função da produção, para ser vista

enquanto um feixe de contratos, devidamente coordenados pelo empresário. Contratos que

existem em órbita tanto interna, quanto externa. Sobre tal ordem de ideias, expõe

Zylbersztajn (2007, p.1):

Muito mais do que uma relação mecânica entre um vetor de insumos e um vetor de produtos, associada a uma determinada tecnologia, a firma é uma relação orgânica entre agentes, que se realiza através de contratos, sejam eles explícitos, como os contratos de trabalho, ou implícitos, como uma parceria informal.

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A firma Coasiana é um conjunto de contratos coordenados, que levam à execução da função produtiva. [...] sob a ótica de Coase, pode se entender as relações contratuais entre firmas, as franquias, as alianças estratégicas, a sub-contratação e as parcerias como relações típicas de produção, expandindo o conceito de firma.

A ideia, portanto, não é romper com a visão tradicional da Economia, conforme se

nomeou, na exata razão de que o que se busca com a Nova Economia Institucional é ampliar

os contornos da referida visão tradicional, cabendo perceber que ambas procuram maximizar

resultados, por terem enquanto propósito reduzir custos; na “visão tradicional”, apenas

custos de produção; na Nova Economia Institucional, além dos custos de produção, os

custos de transação. A atividade do empresário é a de coordenar os contratos, que podem

ser, como dito, internos ou externos, a saber: se o contrato foi realizado no interior da firma

ou se realizado com outros empresários. No caso de haver numa firma apenas contratos

internos, o empreendedor é o natural coordenador dos mesmos, bem como na hipótese de

relações interfirmas, há que se discutir e se vislumbrar quem deveria ter o condão de

organizar referidos contratos.

Nesse ínterim, é de se pensar qual o papel dos contratos, em linhas gerais, para, com

isso, entender a forma como se organizam as firmas. E aí, têm-se concepções distintas acaso

se analise o contrato do ponto de vista jurídico ou econômico. Se do ponto de vista jurídico,

o contrato é um negócio jurídico realizado em razão de acordo de vontades, visando a

adquirir, transferir ou extinguir direitos, do ponto de vista econômico, os contratos nada

mais são do que transações com o fim de alocar os direitos de propriedade. É de ressaltar,

ademais, que a economia “pós-Coase” superou o entendimento pelo qual o mecanismo de

formação de preço seria a mola mestra de alocação de recursos, no sistema econômico.

Antes de Coase, entendia-se que o mercado funcionava apenas em função dos preços de

produtos ou serviços postos à disposição, cabendo ressaltar que para a formação de tais

preços tinha que se ter em vista os custos de produção. Caso o preço estipulado pelo

mercado não suprisse os custos de produção, dever-se-ia modificar a alocação dos fatores de

produção, visando a reduzi-los, para, com isso, obter resultados eficientes.

Após a publicação de “A Natureza da Firma”, de Ronald Coase, percebeu-se o óbvio.

E o óbvio é que o mercado funciona em vista, sim, dos mecanismos de formação de preço e

que, para a formação do preço, levam-se em conta os custos de produção; entretanto,

existem outros custos associados ao funcionamento. Tais custos são os chamados custos de

transação. Podem-se entender os custos de transação como aqueles custos que os agentes

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econômicos assumem para adquirir informação ou para negociar com outros agentes, além

dos custos inerentes à concretização e ao cumprimento da negociação pactuada.

A teoria de Coase quebra o paradigma da Teoria Neoclássica (chamada aqui de visão

tradicional), valendo, por oportuno, frisar que para Coase os agentes econômicos têm

racionalidade limitada, buscando a satisfação de interesse pessoal, cabendo ressaltar que

sempre haverá custos na transferência de capital de uma atividade para outra, custos esses

que variarão em maior ou menor grau, dado se tratar de ativos mais específicos ou de ativos

mais gerais. Assim, para bem entender a forma como se realizam as transações intra e

interfirmas, faz-se mister analisar as características das transações, para perceber como se

comportam os agentes econômicos, visando, por fim, a entender o que se deve ter como uma

organização eficiente.

2.2.1 Características das transações

Viu-se que a empresa ou a firma “coasiana” nada mais é do que um feixe de contratos

firmados entre agentes econômicos que para tanto negociam, ou seja, pactuam os termos dos

referidos contratos. Realizam-se, pois, acordos de vontades, consubstanciados em contratos,

com a finalidade de ambos os agentes trocarem entre si bens ou serviços. Os contratos

realizados pelos agentes econômicos, no fito de realizarem tais trocas, têm três

características básicas, a saber: a frequência, a incerteza e a especificidade de ativos. Mister

se faz entender cada uma das características citadas.

No que tange à frequência, deve-se levar em conta o número de transações feitas entre

os agentes, se uma só ou se mais de uma com relativa periodicidade. Com as sucessivas

transações periódicas ocorridas entre os agentes, haverá o surgimento da reputação, que é

uma das razões que os agentes têm em mente para o cumprimento do contrato. Claro fica

que em caso de transações únicas, os agentes devem negociar determinadas salvaguardas

para o cumprimento do contrato, do que serve de exemplo, dentre outros, a multa rescisória.

Essa sequência sucessiva e periódica de transações, a formar a reputação, acaba por ser,

indiretamente, também, uma salvaguarda no cumprimento dos contratos, na medida em que

os agentes econômicos tendem a cumprir as transações realizadas com aqueles nos quais se

criou referida reputação. Do que resulta que transações periódicas e sucessivas entre os

mesmos agentes econômicos, regra geral, deverão ter custos de transação menores do que

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transações únicas feitas entre esses mesmos agentes. A esse respeito, Zylbersztajn (2007,

p.4) ensina:

A repetitividade da transação, permitindo a criação de reputação, atribuindo um valor ao comportamento não oportunista dos agentes, leva à possibilidade de uma modificação nas cláusulas de salvaguardas contratuais, rebaixando os custos de preparação e monitoramento dos contratos. Em outras palavras, isso significa diminuir os custos de transação.

No que tange à incerteza, deve-se distinguir incerteza de risco. A diferença está em

que o risco pode ser mensurado e, dessa forma, alocado dentre os custos de produção. A

incerteza, por sua vez, como o nome sugere, não pode ser mensurada, não havendo como ser

introduzida nos custos de produção. Fala-se em incerteza, portanto, quando se está diante de

eventos não passíveis de previsão, não permitindo, pois, antecipar-se a situações de conflito

entre os contratantes, para assim serem elaboradas cláusulas contratuais visando à

distribuição dos impactos externos na transação em questão. Na concepção de Zylbersztan

(2007, p.5):

A incerteza pode levar ao rompimento contratual não oportunista e está associada ao surgimento de custos transacionais irremediáveis, motivados por uma das características comportamentais consideradas pela teoria, que é a racionalidade limitada [...]

A terceira grande característica das transações diz respeito às chamadas

especificidades de ativo. Com efeito, classificam-se os ativos objetos das relações em

genéricos ou específicos, tendo em vista a possibilidade de um ativo se amoldar em outra

situação, em outra possibilidade com um maior ou menor custo. Ativos há que são retirados

de uma atividade para uma outra e que nesse intercâmbio não há custos ou, em havendo, são

diminutos. Por outro lado, existem ativos que são produzidos e alocados para atividades

específicas, não podendo modificar a utilização do uso dos mesmos sem que se tenha uma

grande perda, um grande custo. Há necessidade, entretanto, de, em determinadas atividades,

serem utilizados ativos específicos, na medida em que tais ativos tendem a ser mais

produtivos do que os ativos genéricos, quando eles, ativos específicos, são usados na

atividade específica a que foram desenvolvidos. Mais uma vez, é plenamente cabível trazer

à colação as palavras de Zylbersztajn (2007, p.5):

Caso apenas uma das partes envolvidas na transação tenha feito investimentos em ativos específicos para aquela transação, certamente, haverá motivação para defender-se dos efeitos de eventual ruptura contratual pela outra parte. Salvaguardas serão necessárias para dar suporte, ou tornar viável aquela transação. [...]

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No caso das duas partes terem feito investimentos específicos, então, surge uma situação na qual ambas terão incentivos para que o contrato continue indefinidamente. Surge uma situação de dependência bilateral, que irá afetar a arquitetura do contrato desenhado para dar suporte àquela transação.

Assim, a empresa deve ser entendida enquanto esse complexo de contratos

coordenados pelo empresário, tendo por norte, sempre, a diminuição dos custos de produção

e a tentativa de minimizar os custos de transação. É cabível considerar que as transações

feitas entre o empresário e seus colaboradores, internos e externos, deverão acontecer

periodicamente, procurando-se minimizar ao máximo os eventos externos, para, assim, tais

contratos serem sempre cumpridos, tornando nulos ou irrisórios os custos de transação.

Deve-se visar ao desenho dos contratos a partir da busca de eficiência pelos agentes

econômicos que, para procurar proteção a possíveis custos surgidos após o contrato ser

firmado, fazem aderir a tais contratos, determinadas salvaguardas.

2.2.2 Características dos agentes

Analisadas, ainda que de passagem, as características das transações realizadas pelos

agentes econômicos, sempre materializadas em contrato, é preciso entender o modo como

tais agentes se comportam no mercado. Aqui reside uma das grandes distinções da “visão

tradicional da Economia” em relação à teoria dos custos de transação.

Para a economia tradicional, os agentes econômicos não agirão de modo oportunista,

visando apenas aos interesses pessoais ou egoísticos, atuando sempre visando ao melhor

para o mercado, cabendo notar, ainda, que referido agente detém todas as informações

disponíveis. Os Neoclássicos (pensadores que analisam a economia pelo modo de “visão

tradicional”) adotam como premissas o fato de os agentes econômicos terem racionalidade

ilimitada, bem como, inobstante visarem a interesses próprios, esses agentes sempre

respeitariam o pactuado.

A teoria de Coase rompe com tais pressupostos, cabendo perceber que, segundo a

teoria dos custos de transação as pessoas têm racionalidade limitada, vale dizer, os agentes

buscam sempre o que é melhor para si, mas estão sujeitos a determinadas restrições de

informação. Mesmo na remota hipótese de toda a informação encontrar-se disponível, os

agentes econômicos não conseguem absorvê-las no total. Daí se falar em assimetria de

informações e, por consequência, em contratos incompletos.

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Além da racionalidade limitada, cabível é destacar que os agentes econômicos só

respeitam as regras do jogo, só cumprem os contratos pactuados, se para eles for oportuno

cumprir. Se o custo para romper com o contrato for menor do que o custo para cumpri-lo, tal

acordo possivelmente não será cumprido de modo espontâneo. Aqui se percebe, pois, outra

importante característica dos agentes econômicos, a dizer, o oportunismo. Pacheco (2005, p.

65), ao analisar a teoria dos custos de transação, argumenta:

[...] o comportamento humano é marcado pelo oportunismo, definido como uma maneira mais forte de buscar o interesse próprio, que pode passar por práticas desonestas, incluindo mentir, trapacear e roubar. Em especial, o oportunismo pode levar as pessoas a esconder ou distorcer informações, para enganar os outros em benefício próprio. Um agente econômico oportunista só respeita as regras do jogo se isso lhe convier.

No mesmo sentido opina Zylbersztajn (2007, p.6):

Oportunismo implica no reconhecimento de que os agentes não apenas buscam o auto-interesse, que é um típico pressuposto neo-clássico, mas podem fazê-lo lançando mão de critérios baseados na manutenção de informações privilegiadas, rompendo contratos ex-post com a intenção de apropriar-se de ‘quase rendas’ associadas àquela transação [...]

Não se pode deixar de notar que existem três principais razões pelas quais os agentes

econômicos não tenderão a ter comportamentos oportunistas, ou noutros termos, o único

comportamento oportunista para tais agentes seria o cumprimento dos contratos. São as

seguintes: a reputação, as garantias legais e os princípios éticos.

A reputação está ligada a uma motivação pecuniária tendo em vista que se forma, a

reputação, a partir de transações periódicas entre os mesmos agentes, de tal modo que o

rompimento do contrato findará a reputação, deixando de haver entre tais agentes transações

posteriores, implicando, portanto, uma perda de renda. Se o rompimento dessas transações

encobertada pela reputação for maior que os benefícios trazidos para o agente, fatalmente,

tal contrato será cumprido.

Quando se fala em garantias legais, tem-se em mente que devem existir mecanismos

punitivos para o descumprimento do contrato de tal modo que, se as sanções pelo

descumprimento forem maiores que os benefícios, os agentes econômicos serão

desestimulados a praticarem quebra de contratos oportunista, cumprindo-os.

Quanto aos princípios éticos, tem-se que existem situações em que os próprios

agentes, visando a reduzir o oportunismo, acabam por criar códigos de conduta que, se de

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fato, não consegue reduzir o oportunismo e evitar com que se quebrem os contratos, deixa

claro aos agentes envolvidos que, acaso atuem de modo oportunista na quebra de contratos,

os custos de tais quebras sobre eles incidirão.

2.2.3 As organizações eficientes

Como já se teve oportunidade de aqui ressaltar o empresário é um coordenador de

contratos. Na medida em que o administrador deve organizar-se para o desenvolvimento de

sua atividade econômica, que o direito denomina de empresa, e que, para a economia,

significa um feixe de contratos, o empresário, além de praticar a atividade econômica a que

se dedica, antes até mesmo do início de tal prática, deve analisar de que forma ele vai

coordenar tais contratos, ou seja, é o empresário que vai organizar os contratos que,

enfeixados, darão origem à firma, e, depois de organizá-los, coordenará referida

organização.

No decorrer do presente estudo, viu-se que as transações, ocorridas em razão de

contratos, variam de acordo com a frequência, a incerteza e a especificidade de ativos.

Demonstrou-se, também, que o comportamento dos agentes varia na conformidade da falta

de informação ou da falta de absorção desta, vale dizer, os agentes econômicos têm

racionalidade limitada, cabendo destacar, ainda, o oportunismo na atuação dos mesmos, no

sentido de que cumprirão ou quebrarão contratos se, no primeiro caso, os custos para

quebrar o contrato superem os custos para cumpri-lo, ou, na segunda hipótese, de modo

inverso.

Diante de tudo, é preciso, pois, saber o que se tem por organizações eficientes ou, da

mesma forma, entender o que seria uma organização eficiente. Organização, como se viu, é

o trabalho que o empresário realiza para, empós, coordenar os contratos que formam a sua

firma, a sua empresa. Indaga-se: quando se poderá entender que a organização montada pelo

empresário é eficiente? Essa resposta é dada pela Economia. Com efeito, fala-se que

determinada situação é eficiente quando inexiste a possibilidade de se melhorar a posição de

um agente econômico, ou seja, alterando-se as circunstâncias da situação eficiente, poder-se-

á trazer prejuízos ou para o agente econômico que, anteriormente, estava na posição

eficiente, ou para os demais que com este contratam. Entendido tal conceito, deve-se

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perceber que a organização será eficiente sempre que montada a um menor custo de

transação possível. Sobre isso, Zylbersztajn (2007, p.12) considera:

[...] é necessário que se conheça em detalhe as características das transações existentes, para arquitetá-las de modo a economizar nos custos de transação. A análise dos detalhes da natureza das transações é a condição fundamental para que se desenhem contratos eficientes.

Destaque-se a inexistência de uma forma pronta e acabada de organização eficiente.

Poderá tanto ser uma organização apenas com contratos internos, quanto uma organização

somente com contratos externos, bem como uma organização cujo arranjo institucional seja

feito por ambas as modalidades de contratos. A organização será, portanto, tanto mais

eficiente quanto maior for a economia em custos de transação.

2.3 O diálogo entre Direito e Economia na definição de empresa

Retomando o raciocínio exposto anteriormente, discorda-se aqui da doutrina

dominante, na conceituação de empresa. A doutrina majoritária, como visto, reduz os quatro

perfis de Asquini, considerando apenas três como de relevância e de importância, que

seriam os perfis subjetivo, objetivo e funcional. Com os perfis subjetivo e objetivo, restam

definidos, respectivamente, o empresário e o estabelecimento. O perfil funcional é tido pelos

juristas como o conceito próprio de empresa. Por ele, a empresa seria a atividade econômica

realizada pelo empresário, no estabelecimento, descartando-se o perfil corporativo ou

institucional. O aludido perfil só existiu por razões políticas existentes à época de discussão

e aprovação do Código Civil Italiano.

Acontece que é justamente o perfil corporativo que os economistas se utilizam para

definir a empresa, desde que se retire do referido perfil qualquer traço ou conotação

meramente política. A definição dada por Asquini para tal perfil é, em síntese, a definição de

firma dada por Coase. O perfil corporativo de Asquini tem a mesma definição da firma de

Coase, vale dizer, a relação existente entre o empresário e seus diversos colaboradores,

visando tal relação a um fim comum, equivale, em outros termos, dizer que a firma é uma

coordenação de contratos, um feixe de contratos organizados e coordenados pelo

empresário.

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Paula Andrea Forgioni (2009, p. 82-83), após ressaltar que com a derrocada do regime

fascista houve, doutrinariamente, um movimento visando a neutralizar o conceito de

empresa, ensina:

Vimos que, nos anos 1950 e 1960, a doutrina italiana esforçou-se para içar a empresa do contexto fascista que lhe deu origem; a partir dos anos 1960, com a ligação entre empresa e liberdades econômicas, esse passado vai sendo definitivamente sepultado. Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência concretizam-se na disciplina da atividade da empresa, marcando seu perfil. Por causa dos tratados europeus que visam à integração econômica, a empresa passa de instrumento intervencionista à peça-chave da economia de mercado.

Não se pode deixar de notar que se com o perfil subjetivo se define o empresário, com

o perfil objetivo se define o estabelecimento, e com o perfil funcional se define a atividade

econômica, é com o perfil corporativo que se vai definir a organização. Empresário,

estabelecimento, atividade econômica e organização são quatro realidades distintas

ocorrendo no âmbito da empresa. Empresa, portanto, não é somente a atividade econômica,

mas sim a atividade econômica organizada pelo empresário, exercida num estabelecimento,

visando a atender ou a suprir um interesse de mercado.

Particularmente, não há maiores motivos para não se utilizar, em Direito, conceitos

criados pela Economia, podendo-se, pois, utilizar juridicamente tais conceitos, na exata

forma que os são, economicamente falando. Por tudo o que foi visto, concorda-se com

Cavalli (2005, p.255) quando diz que o empresário é “quem exerce o poder de gestão e

controle sobre os bens de produção”. Em conclusão, o mesmo revela:

Este poder de gestão e controle sobre os bens de produção é, para o direito, a empresa, que se enquadra na categoria jurídica de situação jurídica complexa. Diz-se situação jurídica complexa porque ela é formada por relações jurídicas obrigacionais, relações jurídicas de direito real, por direitos potestativos e estados de sujeições, e por ônus jurídicos. Isto porque, o empresário, ao organizar os bens de produção passa a ser titular de uma série de relações jurídicas e situações jurídicas que assumem as mais diversas matizes, mas que, em comum, possuem a pertinência ao mesmo sujeito (o empresário) que lhes dá destinação unitária. (CAVALI, 2005, p-256)

É pela tese de Cavalli (2005), conforme anteriormente citado, que cabe falar-se de

empresário de fato e empresário de direito, no âmbito das sociedades. Com efeito, sabendo-

se que o empresário é quem exerce o poder de gestão e controle sobre os bens de produção,

ter-se-á a pessoa jurídica, a sociedade, enquanto empresário de direito por ser o titular, em

nome de quem será realizada a atividade, bem como se terá o administrador societário

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enquanto empresário de fato, na medida em que, de fato, é ele, administrador, que tem tal

poder de gestão e controle.

Não há, então, necessidade maior de se ter para um mesmo instituto jurídico conceitos

diferentes elaborados pela ciência jurídica e pela ciência econômica. Ambas as ciências

podem utilizar-se da mesma definição para entender qualquer instituto. O que se deve fazer,

contudo, é apenas analisar sob que aspecto, ou seja, em que categoria jurídica restará

classificado o conceito econômico em foco.

Para concluir, na medida em que os operadores do Direito não estão acostumados a

pensar os institutos jurídicos em conceitos plúrimos, mas sim mediante conceitos jurídicos

unitários, apenas, para fins didáticos, há possibilidade de se reclassificar os perfis de

Asquini, tendo em vista o que se apresenta em qualquer ramo do direito. Advirta-se que os

ramos jurídicos se sustentam mediante um tripé: sujeito, objeto e ação. Assim, para o direito

empresarial, o sujeito estaria definido pelo perfil subjetivo; o objeto, pelo perfil objetivo; e a

ação, pelo conjugado dos perfis funcional e corporativo.

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3 A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS SOCIEDADES

É inegável que atualmente tem-se preferido, para o exercício de atividades

econômicas, a utilização de sociedades, e, de modo mais específico, dentre estas, percebe-se

a constituição preferencial de sociedades limitada e anônima. Aquelas tradicionalmente

utilizadas para a realização de empreendimentos econômicos de menor envergadura; estas,

para as atividades de grande vulto. Segundo estatísticas do DNRC, desde o ano 2000, o

número de constituição das sociedades limitada e anônima superou o número de firmas

individuais. Quando se passa a analisar a importância econômica de tais empreendimentos,

verifica-se facilmente a maior relevância da empresa coletiva, desenvolvida por sociedades

empresárias, em detrimento da empresa individual, exercida pelos empresários individuais.

Viu-se até o presente momento a evolução histórica das organizações empresariais e a

concepção atual que se deve ter sobre a figura da empresa. Chega-se ao momento de se

abordar um dos mais fascinantes capítulos do Direito Empresarial. O fascínio reside tanto

nas ideias doutrinárias que cercam o tema, quanto diante de circunstâncias empíricas, diante,

por exemplo, da já aludida estatística do DNRC.

Desse modo, no presente capítulo, estudar-se-ão as pessoas jurídicas, focando, porém,

nas sociedades, pois são as únicas que podem exercer atividades econômicas. As outras

pessoas jurídicas que, no direito brasileiro, encontram-se definidas no art. 44 do Código

Civil de 2002, quais sejam, as associações, as fundações, os partidos políticos e as

organizações religiosas, exercem atividades não econômicas. É de se ressaltar, por exemplo,

que o art. 53 prevê que as associações são organizadas “para fins não econômicos” e que o

parágrafo único do art. 62 dispõe que “a fundação somente poderá constituir-se para fins

religiosos, morais, culturais ou de assistência”. Serão abordadas as principais discussões

sobre o ato constitutivo e sobre a temática referente à personificação das sociedades.

Verificar-se-á, a posteriori, a relação existente entre as noções de personalidade e de

patrimônio, apresentando-se algum debate constitucional sobre tal relação, para, no final,

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evidenciar-se o funcionamento do patrimônio de afetação, hoje a regra geral no mercado

imobiliário.

3.1 As pessoas jurídicas e o ato constitutivo das sociedades

Antes de se falar, de modo específico, sobre as pessoas jurídicas, cabe tecer

considerações a respeito de qual a noção apreendida pelo Direito sobre pessoa. Com efeito,

distinguem-se as pessoas em pessoas naturais ou físicas e pessoas jurídicas. Sejam naturais

ou físicas, sejam jurídicas, importa ressaltar que será pessoa, nos termos do art. 1º, do

Código Civil de 2002, todo aquele que for capaz de direitos e deveres na órbita civil. Enfim,

sempre que se estiver diante de um centro autônomo de direitos e obrigações, ter-se-á

presente uma pessoa. As pessoas a que o Direito chama de natural ou física são pessoas por

sua própria natureza. Já as pessoas tidas por jurídicas sequer são pessoas do ponto de vista

físico ou natural, porém, passam, como que por ficção, a serem tidas como pessoa, em razão

de o Direito a elas reconhecer o atributo da personalidade jurídica.

É assim que se reconhecem as sociedades como uma espécie de pessoa jurídica. Vale

dizer, a elas o Direito reconhece personalidade jurídica. Porém, para que se possa ter uma

pessoa jurídica como existente, há uma condição prévia: a constituição. Desse modo,

primeiramente se realiza o negócio jurídico da constituição, vale dizer, ocorre originalmente

a formatação do ato constitutivo para, por fim, vir a existir legalmente uma pessoa jurídica.

Assim, antes de adentrar no mérito das discussões sobre a personificação das sociedades,

mister se faz verificar o que é, em essência, o ato constitutivo das sociedades. Mencionado

assunto é debatido pela doutrina, apresentando as maiores controvérsias.

Registre-se, de entrada, a celeuma existente entre a doutrina, havendo autores que

negam a natureza contratual ao ato constitutivo das sociedades, bem como autores que

vislumbram natureza contratual ao mencionado ato jurídico. Dividem-se, assim, em duas

grandes correntes respectivamente denominadas de teorias anticontratualistas e teorias

contratualistas. Saliente-se que, do ponto de vista lógico-histórico, a primeira noção acerca

do ato constitutivo das sociedades foi a de que seria um contrato, de natureza bilateral.

Entretanto, em razão da dificuldade do aludido enquadramento, em razão das

especificidades que teria o “contrato de sociedade”, procurou-se fugir da natureza

contratual, dando-se ensejo às teorias do ato coletivo, do ato complexo e do ato corporativo,

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bem como, mais recentemente, à teoria do ato institucional. Pelo fato das especificidades

que existem no negócio jurídico denominado sociedade (e a sociedade é, antes de mais nada,

um negócio jurídico), também, modernamente, surge uma nova ideia contratual: a do

contrato plurilateral. Para fins didáticos, contudo, apresentar-se-ão, em sequência, as teorias

anticontratualistas e as teorias contratualistas.

3.1.1 Teorias anticontratualistas

Os autores que perfilham a ideia anticontratualista, assim o fazem pelo fato de se

contraporem à noção da sociedade enquanto um contrato bilateral, cabendo ressaltar que a

noção de contrato bilateral não se prestava para definir e regular o ato constitutivo das

sociedades, já que, neste, a vontade de partes que, por vezes, podem até se apresentar de

maneira contrária, mas que fundamentalmente se dirigem a um fim comum. Nos contratos

bilaterais, reitere-se, a vontade das partes é contraposta, cabendo ressaltar que em tais

contratos as partes visam a permutar direitos subjetivos. Bem por isso a doutrina chama os

contratos bilaterais, também, de contrato de permuta.

Cabe destacar, como se sabe, que não existe consenso entre os autores

anticontratualistas. Rubens Requião (2007, p. 381) aponta:

Os juristas alemães, como Oertmann, Kuntze e Lehmann, e os italianos, como Rocco e Messineo, sustentam que a sociedade não é formada por um contrato. Mesmo nesse grupo anticontratualista, os autores não se harmonizam. Uns acham que a sociedade se forma por ato coletivo, e, outros, que ela se origina de ato complexo.

Para os adeptos do ato coletivo, o ato constitutivo das sociedades não seria um

contrato, mas sim um ato unilateral formado a partir das vontades individuais do sócio. Os

sócios cada qual praticariam atos individuais, dirigidos no mesmo sentido, qual seja, o da

criação da sociedade. É a partir de tais atos individuais que se formaria o ato constitutivo da

sociedade, cujos atos individuais não perderiam a sua individualidade, mantendo-se visíveis

cada um dos atos utilizados para formar o ato coletivo. As vontades parciais, por assim

dizer, mantêm-se paralelas e, mesmo depois de formado o ato constitutivo, continuam a ter

individualidade.

O ato complexo guarda alguma semelhança com o ato coletivo. Assim, é um ato

formado a partir do somatório ou da união dos atos individuais ou das vontades parciais de

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cada sócio para a formação da sociedade. O ato constitutivo seria um ato complexo, na

medida em que seria um ato unilateral em que os atos individuais restariam fundidos para a

formação do ato constitutivo, perdendo, portanto, a individualidade. Sobre tais noções,

ensina com razão Tullio Ascarelli (2008, p. 376):

A distinção entre ‘ato complexo’ e ‘contrato’, no âmbito dos negócios que requerem, para a sua realização, o concurso da vontade de várias partes, costuma ser assentada, pela doutrina, na circunstância de que as partes, no contrato, são animadas por interesses contrapostos: o contrato constitui justamente o instrumento jurídico da solução dessa contraposição. As várias normas sobre o contrato encontram fundamento nessa observação. Ao contrário, no ato complexo, as partes apresentam-se animadas por idêntico interesse; encontram-se, por assim dizer, do mesmo lado; justamente, por isso, o ato complexo está sujeito a uma disciplina diversa daquela dos contratos.

A referência apresentada por Ascarelli (2008) ao ato complexo pode ser aplicada

também ao ato coletivo. Com efeito, a diferença de ambas, como se viu, reside, apenas, na

circunstância de que no ato complexo as vontades parciais perdem a individualidade, fato

inocorrente no ato coletivo. Ressalte-se, portanto, que, no caso das sociedades, a vontade

dos sócios nem sempre fica paralela, entrecruzando-se, o mais das vezes. Ademais, apesar

dos interesses contrapostos, existe uma finalidade comum inerente ao contrato de sociedade,

qual seja a maximização dos resultados e a partilha destes entre os sócios. Assim, apesar do

conflito de interesses, inerente e natural, entre os sócios, estes têm o mesmo objetivo, sendo

certa a existência de relações dos sócios entre si.

Bem por isso, critica Tullio Ascarelli (2008, p. 377) as noções apresentadas sobre o

ato coletivo e o ato complexo, referindo-se, porém, a apenas este, ressaltando: “O conflito de

interesses – evidente na constituição e subsistente durante a vida da sociedade – permite

falar de contrato e excluir o ato complexo; a comunhão de objetivo, por sua vez, distingue

esse contrato dos de permuta”.

Uma outra teoria anticontratualista é a que vê o ato constitutivo da sociedade como um

ato corporativo, de fundação ou de união. Para os adeptos de tal teoria, o ato constitutivo da

sociedade seria, na verdade, uma antecipação volitiva do ente a ser criado. O ato que cria a

corporação, que funda a sociedade, é, na verdade, um ato, antecipado, da própria

corporação, da própria sociedade a ser criada. Segundo Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

(2006, p. 57):

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Nos termos dessa doutrina, originada em Gierke, as vontades individuais das partes seriam apenas elementos de uma única declaração de vontade, justamente o ato corporativo. As vontades das partes constituiriam uma antecipação da autonomia e da personalidade da corporação, em fase de nascimento. Além disso, tendo em conta o princípio da limitação dos efeitos do contrato ao plano interno das partes, suas vontades não seriam capazes de gerar um novo ser no plano do Direito, a sociedade então constituída. Daí que o nascimento de uma sociedade se revestiria de uma natureza especial, unilateral – ou seja, o ato de fundação.

Tullio Ascarelli (2008, p. 381), acertadamente, apresenta a seguinte crítica sobre a

teoria do ato corporativo:

Essa doutrina, por sua vez, sobrestima, a meu ver, o valor da constituição da pessoa jurídica, o que resulta do fato de ser, ela, constrangida a demarcar uma profunda linha de distinção entre as sociedades que são e as que não são pessoas jurídicas. A observação demonstra, porém, que tal distinção, embora muito relevante, não pode assumir esse valor. Demonstra-o o fato de que, no direito comparado e na história do direito, o reconhecimento da personalidade jurídica das sociedades comerciais não assume um tal significado: as sociedades de pessoas, às quais se nega, na Alemanha, a personalidade jurídica, são pessoas jurídicas na concepção francesa e italiana; as sociedades civis são, também, elas, reconhecidas como pessoas jurídicas no direito francês, brasileiro, mexicano, ao passo que se nega a personalidade jurídica delas na doutrina italiana dominante. As regras fundamentais de constituição de sociedades comerciais são comuns às várias formas de sociedade, e nem se pode ver aí uma distinção que permita contrapor rigorosamente – como pertencentes a duas categorias opostas – as regras peculiares às sociedades-pessoas jurídicas e as peculiares às sociedades-não-pessoas jurídicas.

Não se pode deixar de notar a estreita relação, portanto, entre a personalidade e a

sociedade. Com efeito, na medida em que se fala em antecipação da vontade, faz-se em

virtude do ente criado ter personalidade. Bem por isso, os adeptos de tal corrente negam a

natureza contratual, afirmando que se contrato fosse, não poderia ter o condão de criar um

novo ente, sendo certo notar que o contrato deve produzir efeitos, apenas, entre as partes, e o

ato constitutivo das sociedades produz efeitos perante terceiros.

Razões de ordem lógica, contudo, descartam tal teoria. A uma porque o

reconhecimento da personalidade jurídica decorre da ordem jurídica positivada e não do

contrato ou do ato constitutivo da sociedade, sendo certo notar, portanto, a existência de

sociedades personificadas e não-personificadas. A duas porque, se o ente não existe, não

haveria modo pelo qual ele pudesse manifestar sua vontade, em face de que apenas pessoas

manifestam vontades e têm personalidades jurídicas, ao passo de que, tendo ou não

personalidade jurídica, como visto, as sociedades têm um mesmo ato constitutivo. Vale

dizer, o ato constitutivo das sociedades deve ter um mesmo formato, tendo ou não

personalidade jurídica.

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69

A última das teorias anticontratualistas, essa, porém, aplicável, de modo específico, às

sociedades anônimas, é a teoria do ato institucional. Tal doutrina tem como expoente

Maurice Hauriou. Não seria um contrato, mas sim uma instituição, o ato constitutivo das

sociedades. Deve-se registrar que tal teoria surgiu para justificar a constituição das

instituições de direito público, passando a interessar ao Direito Empresarial para justificar a

constituição de sociedades anônimas. Segundo Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2006,

p. 58):

Atribui-se a Hauriou a paternidade desta teoria. Para ele, a instituição seria ‘uma organização social, estável em relação à ordem geral das coisas, cuja permanência é assegurada por um equilíbrio de forças ou por uma separação de poderes, e que constitui, por si mesma, um estado de direito’.

Ainda sobre a teoria institucional, leciona Marlon Tomazette (2003, p. 29):

Os defensores da tese institucionalista dividem as sociedades comerciais em dois tipos, as sociedades nas quais a vontade dos sócios tem o condão de extingui-la, e a aquelas onde a referida vontade não possui tal poder. Feita tal distinção pretendem justificar a natureza jurídica do ato constitutivo das sociedades comerciais, nas quais a vontade dos sócios não tem tanto poder, basicamente as sociedades anônimas, a partir do ato institucional.

Por esta ideia, o ato constitutivo das sociedades seria um ato institucional, pelo fato de

que, em tais sociedades, a vontade dos acionistas não tem o mesmo poder que a vontade dos

sócios quotistas. Cite-se, a título de exemplo, as regras relativas à constituição, em si, da

sociedade e a obrigatoriedade da constituição do Conselho Fiscal. Aqueles que tiverem o

interesse de constituir sociedades anônimas não poderão se afastar das regras sobre a

constituição. Há, portanto, a necessidade de serem respeitadas as regras sobre os requisitos

preliminares, bem como as formalidades complementares. A vontade dos acionistas não tem

como alterar o método de constituição da sociedade anônima. Do mesmo modo, a vontade

dos acionistas não pode debater sobre a conveniência ou não de se prevê como órgão social

o Conselho Fiscal. É obrigatória a presença do Conselho Fiscal, ainda que tal conselho só

venha a funcionar a pedido dos acionistas. Assim, mesmo que os acionistas entendam, na

constituição da sociedade, pela desnecessidade do Conselho Fiscal, não poderá escapar à

previsão do referido conselho, no estatuto da companhia.

Ressalte-se que a doutrina entende de modo predominante que o ato constitutivo da

sociedade anônima é um ato institucional. É fato que o legislador de 1976 confessadamente

adotou o ato institucional como ato de constituição das sociedades por ações. Entretanto,

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deve-se entender, como adiante se verá, que mesmo o ato constitutivo da sociedade anônima

deve ser tido como um contrato.

3.1.2 Teorias contratualistas

Além dos que negam a natureza jurídica de contrato ao ato constitutivo das

sociedades, como visto anteriormente, há os chamados contratualistas que percebem o ato

constitutivo das sociedades como sendo um contrato. Registre-se, desde já, que o direito

brasileiro tem tradição fortemente contratualista. O Código Comercial, de 1850, em seu art.

300, previa que “o contrato de qualquer sociedade comercial só pode provar-se por escritura

pública ou particular”. O Código Civil de 1916, em seu art. 1363, previa que “celebram

contrato de sociedade as pessoas que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou

recursos, para lograr fins comuns”. A mesma orientação permanece atualmente com o

Código Civil de 2002, por força do seu art. 981.

Primeiramente, tentou-se encarar o ato constitutivo de uma sociedade como sendo um

contrato de natureza bilateral, o que, de logo, desconsiderou-se, haja vista as especificidades

que se verificam entre o contrato de sociedade e os contratos bilaterais como um todo.

Com efeito, deve-se verificar que nos contratos bilaterais em geral há a existência de,

apenas, duas partes. Já nos contratos de sociedade, há a possibilidade de existir no contrato

social mais de dois sócios. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de

cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da prestação do outro. Esta regra,

conhecida em doutrina como exceção do contrato não cumprido, não é aplicável nos

contratos de sociedade, tendo em vista que, nos bilaterais, a obrigação de um contratante é

vinculada à do outro; nas sociedades, entretanto, são obrigações independentes.

De outro lado, percebe-se que nos contratos bilaterais não há uma finalidade comum

entre ambos os contratantes. Cada qual tem finalidade diversa, um fim específico a ser

perseguido. Imaginando-se o contrato de compra e venda, vê-se que o vendedor tem o

interesse de receber o preço combinado pela coisa, ao passo que o comprador tem o

interesse de receber a coisa em razão do pagamento do preço acertado.

Cabível destacar, ainda, que exatamente pelo fato de que, nos contratos de sociedades

ser possível a presença de dois ou mais sócios, há possibilidade do número de partes variar,

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estando aberto a novas adesões, sem que tal fato venha a desnaturar a natureza do contrato.

A presente noção é inconcebível nos contratos bilaterais. Nestes, ter-se-ão, apenas, o

policitante e o oblato. É até admissível a presença de várias pessoas na condição de

contratante ou de contratado, porém, em termos de partes contratuais, nos contratos

bilaterais existirão somente duas partes. Bem por isso, o contrato de sociedade subsiste

diante de vícios. Assim, vindo a falecer ou a se tornar incapaz uma das partes, um dos

sócios, o máximo que ocorrerá é a resolução da sociedade em relação a este sócio,

continuando-se, se for o caso, a sociedade com os demais sócios. Nos contratos bilaterais, tal

fato não se confirma. Firmando-se um contrato de compra e venda, em que, depois de

executado mencionado contrato, verifica-se que uma das partes era incapaz e que, portanto,

não poderia ter participado sozinho de tal relação jurídica, o contrato haverá de ser desfeito,

na medida em que o vício acaba fulminando a existência do contrato bilateral.

Antevendo toda essa diferença de tratamento, Tullio Ascarelli (2008) desenvolveu a

teoria do contrato plurilateral, vendo, no ato constitutivo das sociedades, um contrato,

diferente, porém, dos chamados contratos bilaterais. Para o mencionado autor, o ato

constitutivo das sociedades é um contrato do tipo plurilateral, por apresentar as seguintes

características: (i) possível participação de mais de duas partes; (ii) direitos e obrigações de

cada parte para com os demais; (iii) finalidade comum; (iv) função instrumental; (v)

subsistência do contrato diante de vícios; (vi) não aplicação da exceptio inadimpleti

contractus; (vii) inexistência de relação sinalagmática. Vê-se, portanto, que nos contratos

plurilaterais de Ascarelli, têm-se duas ou mais pessoais que se unem em prol de uma

finalidade comum, que pode ser econômica, no caso das sociedades, ou não econômica,

quando se está diante, por exemplo, de associações.

Calixto Salomão Filho (1995) apresenta a chamada teoria do contrato organização.

Com efeito, por tal ordem de ideias, tem-se que é a finalidade ou o objetivo o que deveria

importar para a distinção entre os contratos plurilaterais e os bilaterais. Bem por isso, passa

a considerar o contrato plurilateral como um contrato associativo e o contrato bilateral como

um contrato de permuta. Calixto Salomão Filho (2006, p. 42-43) afirma:

[...] o núcleo dos contratos associativos está na organização criada, enquanto nos contratos de permuta o ponto fundamental é a atribuição de direitos subjetivos. Ou seja, enquanto a função dos contratos de permuta é a criação de direitos subjetivos entre as partes, a dos contratos associativos é a criação de uma organização.

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Organização na acepção jurídica significa a coordenação da influência recíproca entre atos. Portanto, adotada a teoria do contrato organização, é no valor organização e não mais na coincidência de interesses de uma pluralidade de partes ou em um interesse específico à autopreservação que se passa a identificar o elemento diferencial do contrato social.

Assim, percebe-se que deixa de ter relevância o número de partes quando se passa a

perceber a sociedade não como uma pluralidade de partes mas como uma organização. A

partir dessa percepção, Calixto Salomão Filho (2006, p. 49) chega a admitir tanto a

sociedade unipessoal, como a sociedade sem sócio, pois “é nessas estruturas que o contrato

que dá vida à sociedade adquire seu valor organizativo puro, ou seja, passa a ter como objeto

exclusivamente estruturar um feixe de contratos”. Tullio Ascarelli (2008, p. 424), inclusive,

reconhece o contrato plurilateral, a partir de sua função econômica, como um contrato de

organização, contrapondo-os aos chamados contratos de permuta. Nesse sentido, observa-se

na teoria do contrato-organização uma releitura do contrato plurilateral, entendendo-se a

possibilidade de participação de mais de duas partes como um número indeterminado de

partes para a constituição do contrato, passando a finalidade comum e a função instrumental

a primeiro plano.

3.1.3 O direito brasileiro entre o contratualismo e o institucionalismo

Vistas as teorias sobre o ato constitutivo das sociedades, não se pode deixar de notar

que, do ponto de vista do direito brasileiro, o entendimento predominante é o de que as

sociedades empresárias regulamentadas pelo Código Civil têm natureza contratual e as

sociedades por ações, prescritas na Lei nº 6.404/76, têm natureza institucional. Desse modo,

por exemplo, enquanto o ato constitutivo de uma sociedade limitada seja contrato, na feição

do contrato plurilateral, o ato constitutivo de uma sociedade anônima é um ato institucional.

Assim, fala-se em sociedades contratuais e sociedades institucionais.

A sociedade vai ser tida por contratual quando, a partir do seu instrumento de

constituição, venham a ser gerados vínculos jurídicos entre as partes e entre estas e a própria

sociedade. De outro lado, será institucional quando o ato constitutivo permitir, apenas, a

existência de vínculos jurídicos entre as partes e a sociedade. Marlon Tomazette (2003, p.

31) ressalta a necessidade de permanência da distinção, haja vista existirem princípios do

contrato plurilateral que não seriam aplicáveis às sociedades por ações. Ressalta o autor

citado que enquanto nas sociedades contratuais há a possibilidade de dissolução parcial do

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contrato, havendo o reembolso pela sociedade dos haveres que cabem ao sócio, tal

possibilidade inexistiria para as sociedades por ações o que reforçaria a natureza

institucional do ato constitutivo destas sociedades.

Tal entendimento, porém, tem recebido críticas. Rubens Requião (2007, p. 384)

entende que a teoria institucionalista é inapta para explicar a natureza jurídica do ato

constitutivo das sociedades. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2006, p. 58-59) também

vislumbra, mesmo na constituição de uma companhia, um contrato como elemento para a

criação da sociedade. O ato de assinar o boletim de subscrição tem natureza de um contrato

de adesão, na medida em que para assiná-lo se faz necessária a adesão ao estatuto proposto

pelos fundadores.

Do contexto, percebe-se que o direito brasileiro se encontra no limiar, dividido entre o

contratualismo e o institucionalismo como movimento teórico a servir de base ao direito

societário. Mesmo a Lei nº 6.404/76 tendo destacadamente abraçado a ideia institucionalista,

algumas de suas reformas tiveram fundamento na concepção contratualista de sociedade. A

esse respeito, ensina Calixto Salomão Filho (2006, p. 37-38):

A essa tímida declaração de princípios teóricos seguiram-se outras manifestações legislativas mais práticas, de nítido caráter contratualista. A Lei n. 10.303, de 31.10.2001, trouxe dois bons exemplos. De um lado, a nova função atribuída ao acordo de acionistas, verdadeira nova instância parassocietária de poder claramente tenta dar prevalência ao interesse do grupo de sócios – aqui, um especial: o grupo controlador. De outro, a reintrodução da oferta pública de aquisição e ações (OPA) à disciplina do fechamento do capital, realçam a tendência já existente no direito societário brasileiro de valorização do momento e do valor da saída como forma de proteção ao minoritário, o que parece indicar no sentido da idéia central do contratualismo moderno.

Do que se vê, o acolhimento da teoria do contrato-organização é bastante para resolver

o presente problema de concepção doutrinária. Com efeito, o contrato-organização

representa uma aproximação entre o contratualismo e o institucionalismo. Inobstante uma

mesma concepção para o ato constitutivo, não se pode deixar de notar a classificação quanto

à estrutura econômica das sociedades, em sociedades de pessoas e sociedades de capitais.

Esta classificação é que permite bem, do ponto de vista societário, distinguir entre uma

sociedade anônima – sociedade de capital – e uma sociedade em nome coletivo – sociedade

de pessoa –, por exemplo.

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3.2 Início e fim da personalidade jurídica

É a partir do ajuste de interesses havido entre os sócios que se pode falar na

constituição de uma sociedade. A sociedade é, assim, modalidade específica de negócio

jurídico que, a par de adotar elementos gerais comuns a qualquer outra modalidade de

negócio jurídico (previstos atualmente no art. 104, do Código Civil de 2002), caracteriza-se

pela presença de elementos específicos que serviriam para lhe distinguir dos demais

negócios jurídicos. Na visão tradicional, tais elementos seriam: a contribuição para a

formação do capital social, a participação nos lucros e nas perdas, a affectio societatis e a

pluralidade de partes.

Ocorre que não basta o acerto de vontades ou de interesses entre os sócios para, de

logo, existir a pessoa jurídica. Frise-se por oportuno, aliás, que, quanto à personalidade

jurídica, o direito brasileiro reconhece, de um lado, as sociedades personificadas, com

personalidade jurídica, por óbvio, e, de outro lado, as sociedades não personificadas, sem

personalidade jurídica. Ressalte-se que, no direito brasileiro, como espécies de sociedades

não personificadas, têm-se a sociedade em comum, tipo previsto para as sociedades em

organização, cujos atos constitutivos, mesmo que formalizados, ainda não foram levados a

registro; e a sociedade em conta de participação, sociedade em que se dispensa de qualquer

formalidade para a sua constituição, bastando, portanto, o mero acerto de vontades entre os

sócios, e que, mesmo em se levando a registro, tal fato não irá conferir personalidade

jurídica à sociedade em conta de participação.

É oportuno destacar que, mesmo sabendo-se que tal debate é mais profícuo ao se

analisar a personalidade jurídica das sociedades, enquanto espécie de pessoa jurídica, é

inegável que mesmo as pessoas naturais ou físicas têm a personalidade jurídica. Quer-se,

com isso, ressaltar que se faz necessário o reconhecimento pela ordem jurídica de que

determinado ser, seja um ser humano ou mesmo um ente abstrato, tenha personalidade,

constituindo-se em um centro autônomo de direitos e obrigações. Não custa nada lembrar,

sempre se pensando em termos de direito brasileiro, que os afrodescendentes até 1888,

mesmo sendo ser humano, eram tidos como coisas, como objetos apropriáveis. Até tal

período, não eram sujeitos, mas sim objetos de direito. Precisou-se do reconhecimento da

ordem jurídica para que os afrodescendentes passassem à categoria dos sujeitos de direitos,

vindo, a partir de então, a ser capaz de direitos e deveres na ordem civil. Atualmente,

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qualquer pessoa física ou natural adquire personalidade jurídica em razão do nascimento

com vida, pondo-se a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

No caso das pessoas jurídicas, como visto, o Estado não reconhece personalidade

jurídica a todas as sociedades. Assim como para as pessoas naturais há a condição de se ter o

nascimento com vida para se falar na aquisição ou no início de personalidade jurídica para

os seres humanos, para as pessoas jurídicas também se estabelece uma condição para a

aquisição da personalidade jurídica: o registro dos atos constitutivos. Veja-se, a propósito, a

previsão dos arts. 45 e 985 do Código Civil de 2002:

Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos.

É de fácil constatação que o início da personalidade jurídica se dá a partir do

reconhecimento do Estado que, no caso das sociedades, ocorre com o registro dos atos

constitutivos, a depender do tipo de sociedade, na Junta Comercial ou no Cartório de

Pessoas Jurídicas. Enquanto perdurar a vigência do registro dos atos constitutivos, ter-se-á

uma sociedade com personalidade jurídica. Desse modo, o fim da personalidade jurídica da

sociedade vai ocorrer sempre que, conforme a ordem jurídica, o registro dos atos

constitutivos vier a ser cancelado.

Vale ressaltar que o mesmo ocorre com a personalidade das pessoas naturais; elas

adquirem personalidade a partir do nascimento com vida e mantém-na enquanto existir. O

Código Civil de 2002, inclusive, é explícito ao que aqui se cogita, quando se vê, no art. 6º,

que a existência da pessoa natural termina com a morte. O art. 2º, por sua vez, prevê que a

personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida.

Assim, implementada a condição, o nascimento com vida, surge a personalidade civil

das pessoas naturais que é, também, jurídica. Por tal personalidade, a pessoa natural se torna

capaz de direitos e obrigações na ordem civil, permanecendo com a referida capacidade até

que a vida, condição para aquisição da personalidade, venha a cessar em face da morte. A

partir disto, os direitos e obrigações contraídos pelo falecido, quando em vida,

consubstanciados no patrimônio denominado de herança jacente, verdadeira universalidade

de direito, transmitem-se aos herdeiros. Quanto aos direitos de personalidade, apesar de os

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mesmos serem intransmissíveis e irrenunciáveis, em se tratando de morto, o cônjuge

sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau, terá

legitimação para exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito de personalidade,

reclamando perdas e danos.

Diante das pessoas jurídicas, abstraindo-se de que estas têm uma realidade

eminentemente jurídica, ao passo que as pessoas físicas ou naturais têm uma realidade

orgânica, acontece exatamente a mesma coisa. Adquire-se a personalidade jurídica, a partir

da implementação da condição prevista, qual seja, o registro dos atos constitutivos.

Permanecerá a sociedade com personalidade jurídica enquanto o registro, condição para

aquisição da personalidade, for vigente. A partir do instante em que o registro vier a ser

cancelado, procedendo-se a respectiva baixa, findará a personalidade jurídica. Para as

sociedades empresárias, reconhecem-se duas possibilidades ou motivações para a extinção

da pessoa jurídica e, portanto, da respectiva personalidade, deixando de sê-la, por si, capaz

de direitos e obrigações.

A primeira das possibilidades diz respeito ao procedimento de dissolução da

sociedade. Em síntese, ocorrendo umas das hipóteses legalmente previstas como ensejadoras

da dissolução da sociedade, passa-se, a partir da nomeação do liquidante, à liquidação da

sociedade. Encerrada a fase de liquidação, a sociedade se extingue, ao ser averbada no

registro próprio a ata da assembleia. Nesta hipótese, encerram-se concomitante a sociedade,

enquanto contrato, e a personalidade jurídica que lhe foi deferida por ocasião do registro dos

atos constitutivos.

A segunda possibilidade, esta específica, para as sociedades empresárias, encontra-se

prevista no art. 60 da Lei nº 8934/94. Trata-se da chamada inatividade empresarial. Na

conformidade do previsto em tal norma, a sociedade empresária que não proceder a qualquer

arquivamento no período de dez anos consecutivos deverá comunicar à junta comercial a

intenção de se manter em funcionamento. Não o fazendo, a atividade empresária será

considerada inativa, ocasião em que a junta comercial promoverá o cancelamento do

registro, com a perda da proteção ao nome empresarial.

Perceba-se, desde logo, que não se trata de dissolução administrativa da sociedade. O

direito brasileiro só reconhece dissolução da sociedade em razão de ato de vontade dos

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sócios, quando ambos concordam na ocorrência de uma das hipóteses previstas como

hipótese de dissolução da sociedade, ou por decisão judicial. Entretanto, não se pode deixar

de notar que a inatividade empresarial implica no cancelamento do registro, condição

necessária para a aquisição de personalidade jurídica pelas sociedades empresárias. Ao

ponto de que, para reativar a empresa, de maneira formal, e, no caso das sociedades

empresárias, concedendo-se novamente personalidade jurídica, há que se proceder a novo

registro. Acaso os sócios continuem agindo, exercendo a atividade econômica a que se

propuseram, haverá ainda sociedade entre eles, com a pecha da irregularidade, porém, diante

da falta do registro, aplicando-se-lhes o previsto para as sociedades em comum. Nesta

hipótese, ter-se-á o fim da personalidade jurídica sem que necessariamente tenha havido a

dissolução da sociedade.

3.3 Principais teorias sobre a personificação

Enquadradas na noção de sujeito de direito se encontram atualmente as pessoas físicas

ou naturais e as pessoas jurídicas. Algumas teorias surgiram, no decorrer da história, para

justificar o reconhecimento da personalidade das pessoas jurídicas. Partindo do princípio de

que, de modo geral, as noções de personalidade e de patrimônio têm íntima relação, faz-se

mister uma abordagem, ainda que prévia, das teorias sobre a personificação. Verificar as

concepções e as referidas críticas é relevante para se buscar fundamentos para o instituto a

que se estuda e se projeta.

Registre-se de início a existência da chamada Teoria Individualista, atribuída a Rudolf

von Ihering. Tal teoria não admitia a existência da pessoa jurídica, ressaltando que as

personalidades importantes seriam as das pessoas físicas ou naturais criadoras da pessoa

jurídica ou as dos destinatários destas. A primeira hipótese atrelada às sociedades e

associações; a segunda, às fundações. A principal crítica que se levanta sobre tal concepção

reside no fato da existência de conflitos de interesses entre a pessoa jurídica e os seus

membros componentes ou destinatários.

A primeira das teorias relevantes é a chamada Teoria da Ficção, cujo expoente é

Savigny. Por esta teoria, a pessoa jurídica seria um ente fictício, criado pelo legislador. A

pessoa jurídica teria uma vontade meramente aparente, sendo certo notar que vontade real

apenas teriam os seres humanos. Segundo Calixto Salomão Filho (2006, p. 179):

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As concepções de Savigny são explicáveis menos à luz de rígidas posturas dogmáticas e mais em função das condições econômicas e sociais vigentes à época. Em 1835, sobretudo na Alemanha, vigorava ainda um modo e produção pré-industrial, caracterizado pela inexistência de mercado nacional e de sistema bancário e creditício. Isso fazia com que existisse, de um lado grande necessidade de instrumentos que permitissem o agrupamento de recursos e, de outro, grande preocupação com a solvência das pequenas (e freqüentemente subcapitalizadas) empresas. Daí a preocupação em facilitar a criação de novos centros de imputação de direitos e deveres e a preocupação em negar a possibilidade de separação patrimonial livre.

Tal ideia teve o mérito de demonstrar que, apesar de ser considerada pessoa, por ser

sujeito de direito, a personalidade jurídica da sociedade é reconhecida pelo Estado.

Inexistiria do ponto de vista real; bem por isso, o legislador criaria um ser fictício, na

medida em que à época, apenas, os seres humanos poderiam ser sujeitos de direito.

Entretanto, pelo menos duas críticas foram levantadas contra a Teoria da Ficção. A primeira

das críticas se refere ao fato de que a pessoa jurídica tem uma vontade real, formada a partir

da vontade dos sócios. A segunda crítica se refere ao fato de mencionada teoria não

conseguir explicar a existência do Estado como pessoa jurídica.

Houve, também, a Teoria do Patrimônio de Afetação, cujos autores mais festejados

são Brinz e Bekker. Tais autores viam na pessoa jurídica um patrimônio que era

personificado. Olhando-se para as sociedades, os sócios destacavam uma parcela do seu

patrimônio pessoal para, agrupando-as, formar o patrimônio social que receberia

personalidade jurídica. Segundo Louzan de Solimano Trincavelli (1999, p. 248):

Esta teoria considera que a pessoa jurídica é um patrimônio ou um conjunto de direitos afetados a um fim determinado e desprovido de qualquer sujeito, real ou fictício. Não há um sujeito de direito, mas sim a garantia de certos bens que estão dedicados exclusivamente ao cumprimento de certas finalidades.2

Sobre as concepções de ambos os autores, ressalta Calixto Salomão Filho (2006, p.

180):

Ambos os autores reafirmam o princípio naturalista segundo o qual apenas as pessoas humanas podem ser sujeitos de direitos e obrigações. Admitem, como os ficcionistas, a existência de patrimônios que não podem ser atribuídos aos homens. Ao contrário destes, no entanto, não vêem uma solução para o problema na extensão do conceito de sujeito de direito.

2 Tradução livre de: “Esta teoría considera que la persona jurídica es un patrimonio o conjunto de derechos afectados a un fin determinado y desprovisto de todo sujeto real o ficticio. No hay un sujeto de derecho, sino la garantía de ciertos bienes que están dedicados exclusivamente al cumplimiento de ciertas finalidades”.

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Ressalta, ainda, o mesmo autor (2006, p. 180), quanto a Brinz, que ele não é contrário

a que este patrimônio de afetação venha a ser personificado. Já quanto a Bekker, Calixto

Salomão Filho (2006, p. 181) menciona que aquele busca uma solução intermediária entre

as teorias de Brinz e de Savigny, visando a “colocar o patrimônio de afetação no centro da

discussão sobre a personalidade jurídica, sem contudo negar a possibilidade e utilidade do

emprego desse último conceito”. Não se pode olvidar da crítica feita a tal entendimento.

Com efeito, é preciso ressaltar que o patrimônio não é condição fundamental para

haver a constituição de pessoas jurídicas. Tome-se, por exemplo, a sociedade limitada. Tal

sociedade restará constituída a partir do acordo de vontade entre os sócios, adquirindo-se

personalidade jurídica, ainda que não tenha havido a integralização do capital social da

mesma.

Outro rol festejado de teorias sobre as pessoas jurídicas são as teorias fundadas na

vontade das quais se destaca a de von Gierke. A respeito da teoria de Gierke, leciona Louzan

de Solimano Tricanvelli (1999, p. 250):

Funda a vontade da pessoa jurídica em sua estrutura orgânica. O grupo de pessoas que dá nascimento ao ente está inspirado em um fim comum que constitui a alma de tal ente, e a qual o direito reconhece como preexistente. A princípio se a utilizou para explicar a personalidade do Estado como organismo com vontade própria, e logo passou do direito público ao campo do direito privado. [...] Adotaram uma posição menos extrema e fundaram sua tese na existência de uma real e verdadeira vontade orgânica da pessoa jurídica, distinta em suma das vontades individuais de seus membros, sem base corporal ou sensível nos indivíduos físicos que a formam.

Tal teoria, como se vê, deixa de analisar a questão da personalidade jurídica em si,

considerando que é a vontade que deve ser personificada. O direito aqui reconhece a

constituição da pessoa jurídica como uma antecipação da vontade. Os adeptos de tal teoria

entendem, como visto anteriormente, o ato constitutivo das sociedades como um ato

corporativo, de fundação ou de união, expressões tidas por sinônimas.

Percebe-se facilmente a não adoção da teoria da vontade pelo direito brasileiro, tendo

em vista que este tem tradição contratualista. Ademais, e independentemente da ordem

jurídica positivada, afigura-se completamente ilógica a noção segundo a qual a vontade

criadora é uma vontade antecipada da criatura, do ente a ser criado.

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Em paralelo às teorias que ora negavam a possibilidade de um ente não humano ter

personalidade jurídica, ora compreendiam tais entes como uma mera ficção legislativa,

desenvolve-se uma linha de entendimento que passa a ver na pessoa jurídica não mais um

ente fictício, mas sim algo dotado de realidade. Aproveitou-se, por assim dizer, das ideias de

Gierke e, a partir da compreensão de que a pessoa jurídica tem uma vontade própria e

individualizada, ela passa a ser vista como uma entidade real que adquire e contrai, por si,

direitos e obrigações. Essa nova concepção recebeu o nome de Teoria da Realidade

Orgânica. Sobre aludida teoria, Marlon Tomazette (2003, p. 52) tece as seguintes

considerações:

A par das teorias que negavam a existência da pessoa jurídica, ou a consideravam uma ficção, desenvolve-se uma teoria que considera a pessoa jurídica uma realidade, realidade esta que preexiste a lei. Nas pessoas jurídicas, haveria uma vontade individualizada, própria, e onde há vontade há direito, e onde há direito há um sujeito de direitos. Concebe-se a pessoa jurídica como um organismo natural tal qual o ser humano, possuindo uma vontade própria, interesses próprios, patrimônio próprio, não tratamos de abstrações, mas de entes reais que produzem e sofrem efeitos.

O entendimento que ora se cogita foi importante por reconhecer que esses entes

denominados pessoas jurídica eram reais. Compreende-se assim a realidade inerente às

pessoas jurídicas. A crítica que se levanta contra o mencionado juízo é a de que por meio de

tal teoria se confundem ou se identificam a vontade da pessoa jurídica com a da pessoa

física. Tratar-se-ia, desse modo, de um mesmo nível ou âmbito de vontade.

A teoria mais aceita atualmente é a chamada Teoria da Realidade Técnica. Frise-se,

por oportuno, que sua construção ocorre a partir das concepções relativas às teorias da

realidade orgânica e da ficção. Por esta ordem de ideias, compreende-se a pessoa jurídica

como um ente cuja realidade é reconhecida pelo direito, vale dizer, trata-se de entes reais.

Porém, como não se pode deixar de notar, a realidade da pessoa natural é distinta da pessoa

jurídica. Não há dúvidas de que a pessoa natural tenha uma realidade orgânica. No caso das

pessoas jurídicas, existe uma realidade eminentemente jurídica, abstrata, como é a realidade

de todos os institutos jurídicos. Assim, não se vê ou não se toca em uma pessoa jurídica,

como é perfeitamente possível diante de uma pessoa física.

Destaque-se que não é a todo ente que o Estado reconhece personalidade jurídica.

Veja-se a propósito a situação da herança jacente ou da massa falida. No âmbito do direito

societário, inclusive, há espécies de sociedades que não recebem o reconhecimento da

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personalidade jurídica. No direito brasileiro, por exemplo, as sociedades em conta de

participação não terão personalidade jurídica, ainda que eventual contrato social venha a ser

levado a registro perante o órgão competente. Ressalte-se, também, que os grupos de

sociedade, em termos de direito brasileiro, conquanto registrados, inclusive, perante a Junta

Comercial, não têm personalidade jurídica.

3.4 Corolário da Personificação: a autonomia patrimonial

A principal decorrência da personificação das sociedades se refere ao fato de ser

criado um centro autônomo de direitos e obrigações, distinto dos sócios que as compõem.

Disso resulta a existência distinta e autonomia patrimonial da sociedade em relação aos

sócios. Em face da personificação, portanto, a sociedade passa a ter um nome, nacionalidade

e capacidade não necessariamente igual à dos sócios. A existência distinta era consequência

expressa no Código Civil de 1916, prescrita no art. 20. Inexiste disposição expressa a

respeito no atual Código Civil, devendo tê-la enquanto norma implícita. Sobre a existência

distinta, ensina Marlon Tomazette (2003, p. 62):

[...] é o reconhecimento da sociedade como um centro autônomo de imputação de direito e obrigações. Assim sendo, os atos praticados pela sociedade são atos dela e não de seus membros, produzindo efeitos na sua órbita jurídica, e apenas excepcionalmente afetando os sócios, por problemas de aparência.

O mais importante dos efeitos, contudo, trata-se da autonomia patrimonial. Na medida

em que a sociedade se torna sujeito de direito passa a adquirir direitos e a contrair

obrigações, por si. Segundo F. Santoro Passarelli (1964, p. 24):

Ao assumir a personalidade jurídica, a organização tem uma vontade própria que forma e a expressa através de seus órgãos, e um patrimônio próprio, completamente autônomo no que diz respeito aos patrimônios daqueles que tenham provido à formação do fundo e à organização.3

A autonomia patrimonial da sociedade em relação aos sócios pode ser absoluta ou

relativa, a depender da responsabilidade subsidiária dos sócios para com os débitos sociais.

A regra geral é da autonomia relativa, sendo certo afirmar que, em tese, os bens dos sócios

poderão servir como garantia para o pagamento de débitos sociais. Ressalte-se, ademais, a

existência de benefício de ordem, cabendo destacar que os bens dos sócios só poderão servir

3 Tradução livre de: “Al asumir la personalidad jurídica, la organización tiene una voluntad propria, que forma y expresa a través de sus órganos, y un patrimonio propio, completamente autónomo respecto a los patrimonios de quienes han provisto a la formación del fondo y a la organización”.

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de meio para adimplemento das obrigações da sociedade depois de executados os bens

sociais. A autonomia patrimonial relativa encontra-se prevista no art. 1024 do Código Civil,

sobre o qual comenta Rachel Sztajn (2008, p. 332):

A norma parte da separação patrimonial decorrente da personificação da sociedade. Patrimônio social não se confunde com patrimônio dos sócios; dado que o patrimônio ativo é a primeira garantia de credores, que ocupam as posições passivas, ainda quando a separação patrimonial seja incompleta [...], o benefício de ordem aqui previsto é de rigor. Benefício de ordem não equivale à limitação de responsabilidade pessoal dos sócios, mas serve para impedir que os credores da sociedade exerçam suas pretensões imediatamente sobre bens de um, alguns ou de todos os sócios antes de procurar satisfazê-las com bens da sociedade. Importante norma porque dá aos sócios a oportunidade de apresentarem bens sociais, exigir eventuais saldos não integralizados pelos sócios, enfim, tomar medidas de composição do capital social para evitar que seus bens pessoais sofram constrição de credores da sociedade.

De outro lado, fala-se nas hipóteses de autonomia patrimonial absoluta quando, depois

de integralizado o capital social, de nenhum modo os bens dos sócios poderão ser

executados para pagamento de obrigações imputadas à sociedade. É o que ocorre diante das

sociedades limitadas e das sociedades anônimas. Nestes tipos societários, depois de os

sócios contribuírem com o que se comprometeram para a formação do capital social da

sociedade, e desde que não a utilizem com desvio de finalidade, abusando da personalidade

daquela, os sócios não se responsabilizarão por obrigações da sociedade. Bem por isso,

Paula Andrea Forgioni (2009, p. 155-158) demonstra que, exatamente pela impossibilidade

da limitação da responsabilidade do empresário individual, os agentes econômicos em geral

têm preferido optar pela constituição das sociedades anteriormente referidas, por permitirem

um melhor cálculo do risco por conta do investimento realizado.

A doutrina reconhece a classificação anteriormente mencionada, no que tange aos

efeitos da autonomia patrimonial como sendo perfeita ou imperfeita. À autonomia

patrimonial perfeita se equipara a autonomia absoluta e à autonomia patrimonial imperfeita,

a autonomia relativa. Nesse ínterim, tem-se a lição de Cristiana Moreira Batisda (2008, p.

478-479), a saber:

No caso da autonomia patrimonial perfeita, os credores privilegiados pela afetação ficam adstritos ao conjunto de bens e direitos integrantes daquele patrimônio segregado, não podendo satisfazer seus créditos no patrimônio geral do sujeito, assim como os demais credores não podem atingir aquele patrimônio afetado. Já no caso de autonomia patrimonial imperfeita, aqueles credores privilegiados pela afetação podem satisfazer seus créditos não só com os bens e direitos formadores do patrimônio afetado, mas também, no caso de insuficiência deste, com os outros

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bens integrantes do patrimônio geral do devedor, sendo certo, todavia, que os demais credores continuam adstritos ao que restar daquele patrimônio geral.

Ressalte-se, por fim, que as noções de patrimônio e de personalidade não foram

reconhecidas ao mesmo tempo pelo direito brasileiro. José da Silva Pacheco (1979, p. 30), a

propósito, ensina: “O patrimônio independe da personalidade e pode existir antes e até sem

esta. O patrimônio pode estar separado por sua finalidade específica, por regulamento

próprio ou por cláusula contratual ou estatutária”. O Código Comercial de 1850, por

exemplo, já reconhecia, no seu art. 350, a autonomia patrimonial, nos mesmos termos do

previsto atualmente no art. 1024 do Código Civil de 2002, antes mencionado. A

personalidade jurídica das sociedades só veio a ser reconhecida pelo Código Civil de 1916,

em dispositivo semelhante ao art. 44 do Código Civil atual.

3.4.1 As teorias sobre o patrimônio

O Direito reconhece dois sistemas para explicar o patrimônio. De um lado, tem-se a

teoria subjetiva, também denominada de corrente clássica, segundo a qual restam

equiparadas as noções de personalidade e de patrimônio. Além desta, existe a teoria

objetiva, reconhecida, outrossim, como corrente moderna, pela qual se desvencilham tais

conceitos, passando a serem tratados autonomamente.

Tendo em vista a vinculação dos conceitos de patrimônio e de personalidade, tem-se

que o patrimônio, na teoria subjetiva, é informado por três princípios: (i) a unidade; (ii) a

indivisibilidade; e (iii) a inseparabilidade. Assim, toda pessoa tem um único patrimônio,

variando-se, apenas, o montante da massa patrimonial. O patrimônio não pode ser dividido

por vontade de seu titular, constituindo-se numa universalidade de direito. É incabível

destacar parcela patrimonial para destiná-la a servir, de modo específico e isolado, como

garantia aos credores determinados, sendo certo notar que todos os credores têm no

patrimônio do devedor como um todo a sua garantia. Uinie Caminha (2005, p. 118), ao

discorrer sobre a teoria subjetiva do patrimônio, destaca:

A teoria clássica vincula de forma absoluta as noções de patrimônio e personalidade. O patrimônio é considerado o conjunto de direitos e deveres de uma pessoa determinada, sendo então uma universalidade de direito. Por ser o patrimônio uma emanação da personalidade, podem ser inferidas as seguintes conseqüências: a) só as pessoas, naturais e jurídicas, possuem patrimônio; b) toda pessoa possui patrimônio, mesmo que não possua nenhum bem; c) toda pessoa só pode ter um patrimônio, sendo ele, em princípio, uno e indivisível.

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Como se percebe, o contexto subjetivo do patrimônio se refere a ser ele o conjunto de

bens e de relações jurídicas de determinado sujeito de direitos. Assim, na regra geral, o

patrimônio é inerente à condição de pessoa, natural ou jurídica. Apesar de o ordenamento

jurídico reconhecer patrimônios sem sujeito, despersonalizados, tal reconhecimento não

passa, aos olhos da teoria subjetiva, de mera exceção legal. Bem por isso, ensina José da

Silva Pacheco (1979, p. 331):

Ao complexo de direitos e obrigações, pecuniariamente apreciáveis de qualquer pessoa, física ou jurídica, denomina-se patrimônio. Afora os patrimônios despersonalizados, que, apesar de existirem, constituem exceções dignas de nota especial, toda pessoa tem o seu patrimônio, motivo por que somente por este ângulo, o mais saliente, era ele visto, como projeção econômica da pessoa. A idéia do patrimônio foi logo associada à personalidade, do que resultava que só as pessoas naturais ou jurídicas poderiam tê-lo; toda pessoa o teria, necessariamente, mas de forma singular e exclusiva, de modo que cada pessoa só teria um único patrimônio, que seria dela inseparável. Confundiam-se as duas noções distintas, a de patrimônio e de personalidade, com o intuito de explicar aquela.

Pela teoria objetiva, o patrimônio perde o vínculo intrínseco com a personalidade e

passa a ter relação com os fins a que se destinará determinada massa de bens e de relações

jurídicas. É a partir desta concepção que se passa a falar sobre patrimônio geral ou pessoal e

patrimônio especial, separado ou afetado. Desta feita, passa o sujeito a poder ter mais de um

patrimônio, tendo-se tantos patrimônios em separado quantas finalidades forem dadas aos

destaques patrimoniais. Desse modo, sempre que houvesse uma destinação específica, a

pessoa, física ou jurídica, poderia destacar, separando, do seu patrimônio geral, uma parcela

patrimônio para o atendimento da aludida destinação. Sobre a temática da separação

patrimonial, explica José da Silva Pacheco (1979, p. 333):

Fala-se, amiúde, em patrimônios separados para significar os conjuntos de bens que são concebidos e tratados autônoma e desvinculadamente, embora integrantes do patrimônio geral de uma única pessoa física ou jurídica, ou de uma estrutura despersonalizada, como se vê, por exemplo, no caso de falência póstuma, em que há distinção do patrimônio do espólio sujeito à quebra, distinto dos patrimônios dos herdeiros; no caso do dote; de patrimônio do ausente; da herança jacente e da massa falida.

Não destoa do entendimento acima transcrito, a doutrina mais recente. Com efeito,

demonstra Uinie Caminha (2005, p. 119):

Já a teoria moderna adota concepção objetiva do patrimônio, procurando justificar a coesão dos elementos, não por estarem ligados a uma pessoa, mas por terem destinação comum. A finalidade comum seria o ponto de unificação do conjunto de direitos e obrigações, formando o patrimônio. Dessa forma, de acordo com tal concepção, patrimônio seria um conjunto de bens coesos por serem afetados a um mesmo objetivo. Ao contrário da teoria clássica, pela teoria moderna é factível uma pessoa possuir mais de um patrimônio, desde que afetados a fins diferentes.

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É perceptível que as discussões sobre a limitação de responsabilidade do empresário

individual passam a ganhar corpo a partir do reconhecimento da concepção objetiva de

patrimônio. Nesse âmbito, Cinira Gomes Lima Melo (2005, p. 51-52) considera:

O conceito de separação patrimonial e afetação de parte de um patrimônio a um fim específico está intimamente ligado à idéia de limitação de responsabilidade do empresário. Ocorre que, na concepção tradicionalmente concebida pela doutrina e legislação, um mesmo sujeito de direito não pode ser titular de dois patrimônios: um geral (particular) e outro especial (destinado à exploração da atividade. Assim, inerente ao conceito de separação patrimonial está a criação de um novo sujeito de direito: a pessoa jurídica. É esse ente personificado que será titular do patrimônio afetado.

Com efeito, apesar de se concordar com a autora de que a concepção tradicional é a de

índole subjetiva, pede-se a devida vênia para ressaltar que não se torna necessária a criação

de um novo sujeito de direito para a materialização da separação patrimonial. A concepção

objetiva do patrimônio torna supérflua a constituição de uma pessoa jurídica para a

implementação do patrimônio de afetação. O efeito, aliás, é o mesmo, tanto em se tratando

de adotar a concepção objetiva de patrimônio, quanto em se entender a noção de patrimônio

separado, segregado, de afetação ou autônomo, como exceção à regra da inseparabilidade

anteriormente enunciada. A constituição da pessoa jurídica serve, assim, como um, e não o

único, dos mecanismos para operacionalizar o patrimônio de afetação.

O Código Civil de 1916 adotava uma concepção subjetiva do patrimônio, apesar de

reconhecer a afetação de parcelas do patrimônio, como o dote ou o patrimônio do ausente.

Neste particular, o tratamento dado pelo atual Código Civil à questão patrimonial é

diferente. Assim, percebe-se que paulatinamente o legislador passa a adotar uma concepção

mais objetiva do patrimônio. Apesar de o patrimônio constituir-se em uma universalidade de

direito, não se pode deixar de notar que o Código Civil reconhece, no seu art. 90, a

possibilidade de as universalidades de fato virem a ser objeto de relações jurídicas próprias.

Vislumbra-se, pois, uma maior aproximação da concepção objetiva pelo legislador de 2002.

Cabível é destacar situações específicas, dentro do âmbito do Direito Empresarial, que

demonstram essa aproximação à concepção objetiva. Destaque-se o reconhecimento da

independência do patrimônio da empresa, pelo atual Código Civil, em detrimento do

patrimônio geral do empresário, ao ponto de que, na forma do previsto no art. 978, o

empresário casado, independentemente do regime de bens e sem a necessidade de outorga

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marital, pode alienar os bens imóveis da empresa ou gravá-los de ônus real. Ressalte-se,

ademais, a continuidade de empresa por incapaz antes exercida por ele enquanto capaz, por

seus pais ou pelo autor da herança. Neste caso, na forma do art. 974, o incapaz exercerá

atividade empresarial ficando sujeito aos resultados da empresa apenas os bens afetados ao

empreendimento econômico. Sobre tais institutos, será feita uma abordagem mais

contundente no próximo capítulo.

Resta, por ora, apresentar situação, no mínimo, curiosa e que se choca frontalmente

com a concepção subjetiva anteriormente apresentada, no âmbito do Direito Societário. Com

efeito, mire-se no artigo 988: “Art. 988. Os bens e dívidas sociais constituem patrimônio

especial, do qual os sócios são titulares em comum”.

Não se pode deixar de notar que aludido dispositivo trata da situação patrimonial da

sociedade em comum; ambas, sociedades às quais o direito brasileiro não reconhece

personalidade jurídica. Já aí se percebe algum afastamento da concepção subjetiva pelo

legislador de 2002, por reconhecer a existência de patrimônio de uma sociedade não

personificada, mesmo entregando a sua titularidade aos sócios. Ainda que se entenda pela

literalidade dos dispositivos, ao ver do autor uma interpretação equivocada, tendo-se como

titulares dos patrimônios os próprios sócios, a situação não muda, pois passaria a ser

reconhecida aos sócios a existência de dois patrimônios: o geral e o especial. Desse modo,

ou se terá um patrimônio pertencente a um ente despersonalizado – primeira interpretação –

ou haverá pessoas – os sócios, na sociedade em comum – sendo titulares de mais de uma

massa patrimonial.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2006, p. 297) apresenta o dispositivo em exame

como uma novidade do Código Civil. Ao tempo de vigência do Código Comercial Brasileiro

de 1850, os bens direcionados ao exercício da atividade comercial eram apenas simples

destaques do patrimônio dos sócios. Avalia, então, o autor antes referido:

Examinando-se por contraste o tratamento que veio a ser dado à sociedade em comum pelo NCC, verifica-se uma mudança fundamental, consistente no reconhecimento da existência de um patrimônio separado, àquela atribuído – distinto, portanto, dos patrimônios individuais dos sócios. Sob tal regra de regência, o credor particular do sócio estaria impedido de penhorar algum bem daquele patrimônio separado, pois a separação já não seria meramente funcional, mas de direito material, formando uma unidade juridicamente autônoma, embora não dotada de personalidade jurídica. (VERÇOSA, 2006, p-298)

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Sobre o patrimônio especial apresentado, comenta Rachel Sztajn (2008, p. 165):

O patrimônio constituído ao longo do período em que a sociedade foi contratada, cujo ativo proveio dos sócios e cujo passivo resulta do exercício em comum da atividade, de terem operado em nome e por conta da pessoa jurídica em processo, a sociedade, dá origem a uma universalidade distinta, separada das massas patrimoniais de cada sócio e que é, ao mesmo tempo, comum a todos. Essa a idéia do patrimônio especial de que os sócios são titulares em comum, como que se houvesse quotas ou frações que se ligam ao patrimônio particular de cada membro da sociedade. A inseparabilidade efetiva dessas “partes do patrimônio comum”, o patrimônio especial, isto é, o conjunto de bens e direitos (posições ativas), está finalizada para o cumprimento das obrigações (posições passivas) resultantes da atividade exercida em comum e, dessa forma, produz-se o denominado benefício de ordem. O reconhecimento da existência de um patrimônio especial fruto de relações típicas de sociedade, mantém os credores particulares dos sócios aqueles credores por obrigações individuais que não se prendem à constituição da sociedade, afastados dos bens afetados ou separados e conferidos ao exercício da empresa. Regra geral, qualquer patrimônio especial está contido no patrimônio geral de um determinado titular, vinculando um ou mais ativos a certo ou certos passivos. Entretanto, no caso deste patrimônio especial, a vinculação não se faz em face de um titular único, mas do futuro titular daquele patrimônio, a sociedade em fase de personificação; por isso, só se pode supor que a cada patrimônio individual está presa uma ‘fração ideal’ do patrimônio especial e que essa fração ideal dele se desprende quando a sociedade adquirir personalidade jurídica. Portanto, a definição desse patrimônio especial destina-se à defesa dos interesses dos credores em conjunto de sócios da sociedade não personificada e, igualmente, à defesa dos interesses dos credores particulares dos sócios [...]

Percebe-se, portanto, a partir do contexto apresentado que, diferentemente do seu

antecessor, o Código Civil de 2002 aproxima-se da concepção objetiva de patrimônio, ao

reconhecer a existência de patrimônios especiais, separados e destinados a finalidades

específicas, quais sejam, o exercício de atividades empresariais.

3.5 A Dignidade da pessoa humana

Já faz muito tempo que o Código Civil perdeu a função de ser a “constituição das

relações privadas”. Com efeito, na época do Estado Liberal, a Constituição tinha por função

regular as relações políticas, tendo o Código Civil o atributo de regular as relações entre as

pessoas, codificação marcada pelo predomínio de interesses individuais, sem se dar

nenhuma relevância a aspectos sociais. Com o advento do Estado Social, muda-se o presente

panorama.

O Código Civil que tratava de todos os assuntos particulares das pessoas, com o

tempo, deixa de fazê-lo, passando alguns assuntos a serem tratados por microssistemas

legislativos, os chamados estatutos, à margem do próprio Código Civil, com princípios, por

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vezes, até contraditórios aos da codificação, cabendo esclarecer que tais microssistemas

existem e têm fundamento em princípios e interesses sociais. De tal sorte que, com o

advento do Estado Social, e com a fragmentação do Direito Privado, nova função é dada à

Constituição. Sobre o que se cogita, explica Daniel Sarmento (2006, p.75):

Com a fragmentação do sistema de Direito Privado, a Constituição, que no contexto do Estado Social passara também a disciplinar as relações econômicas e privadas, vai converter-se em centro unificador do ordenamento civil. [...] Deveras, a posição hierárquica superior da Constituição, a abertura das suas normas, e o fato de que estas, por uma deliberada escolha do constituinte, versam também sobre relações privadas, possibilitam que se conceba a Lei Maior como novo centro do Direito Privado, apto a cimentar as suas partes e a informar o seu conteúdo. Ao invés de um ordenamento descentrado e fragmentado, tem-se um sistema aberto, um cujo vértice localiza-se a Constituição.

É dentro desse contexto que se fala em constitucionalização do Direito Privado.

Entretanto, uma observação é assaz necessária. A constitucionalização do Direito Privado

não é apenas a assunção pela Constituição de temas que outrora eram afeitos e disciplinados

inteiramente pelo Código Civil. Além disso, há de ser feita uma releitura crítica do Direito

Privado à luz da Constituição. O norte relativo a tal constitucionalização e a releitura crítica

do direito privado encontram-se justamente no primado da dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, diz Daniel Sarmento (2006, p.85-87):

[...] o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, CF), e que costura e unifica todo o sistema pátrio de direitos fundamentais, ‘representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e no mercado [...] a dignidade da pessoa humana é o princípio mais relevante da nossa ordem jurídica, que lhe confere unidade de sentido e de valor, devendo por isso condicionar e inspirar a exegese e aplicação de todo o direito vigente, público ou privado. [...] O princípio da dignidade exprime, por outro lado, a primazia da pessoa humana sobre o Estado. A consagração do princípio importa no reconhecimento de que a pessoa é o fim, e o Estado não mais do que um meio para a garantia e promoção dos seus direitos fundamentais.

No mesmo sentido, contextualiza Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p.113-114):

[...] todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias á dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência [...] o princípio da dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção (respeito), mas também condutas positivas tendentes a proteger a dignidade dos indivíduos

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[...] o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade.

Assim, como se vê, a dignidade da pessoa humana tem servido como vértice para onde

convergem todas as regras, princípios e fundamentos de direito privado. É em razão da

dignidade da pessoa humana que se deve fazer tal releitura crítica do direito privado.

Referido princípio aliás se espraia por todo ordenamento jurídico, em geral, e, de modo

específico, pelos direitos fundamentais, sendo tais direitos decorrências ou concretizações

do princípio da dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana, como visto, é o maior dos princípios, o princípio de

maior envergadura e hierarquia, o valor fundamental do ordenamento jurídico. O ser

humano, enquanto pessoa, para poder desenvolver sua personalidade, deve viver com

dignidade. E esse desenvolvimento deve se dar de modo livre, discutindo a doutrina que

concepção se deve ter por tal liberdade, havendo uma concepção ampla e outra restrita.

Pela concepção ampla, o direito ao desenvolvimento da personalidade integrará todas

as condutas humanas; pela concepção restrita, apenas as condutas em que o homem expresse

a essência de sua personalidade. Para os fins deste trabalho, descabe procurar o sentido que

vale ao ordenamento jurídico. O que importa salientar é que em razão de se ter uma vida

com dignidade, é que é dado ao ser humano o direito ao livre desenvolvimento de sua

personalidade. Para o atendimento a tal finalidade, deve ser resguardado o mínimo

existencial, na medida em que tal “mínimo” é o mínimo de que se necessita e de que não se

pode abrir mão, sob pena de ser frustrado o chamado direito ao livre desenvolvimento de sua

personalidade. Para Daniel Sarmento (2007, p. 89):

[...] o princípio traduz um norte para a conduta estatal, impondo às autoridades públicas o dever de ação comissiva, no sentido de proteção ao livre desenvolvimento da personalidade, com o asseguramento das condições mínimas para a vida com dignidade. É por isso que, do princípio em tela, é possível extrair prestações estatais positivas, ligadas à garantia do mínimo existencial, mesmo quando relacionadas a direitos não contemplados expressamente no texto constitucional. [...] Maria Celina Bodin de Moraes, num notável esforço de síntese, desdobrou juridicamente o princípio da dignidade da pessoa humana em quatro postulados essenciais: direito à igualdade, tutela da integridade psicofísica, direito à liberdade e princípio da solidariedade social.

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Corolário, portanto, dos Direitos de Personalidade, em suas mais diversas vertentes,

como que é decorrência mesmo, é o livre desenvolvimento dos atributos da personalidade do

ser humano, enquanto ser que vive em condições dignas e que, para tanto, deve ser garantido

e resguardado um mínimo existencial.

De longe, portanto, avista-se o tempo em que o direito civil, e o privado como um

todo, era nitidamente vinculado ao patrimônio, vale dizer, o direito privado, à época da

codificação oitocentista, era nitidamente individualista e, por consequência, eminentemente

patrimonial. Com a elevação do princípio da dignidade da pessoa humana enquanto valor

fundamental do ordenamento jurídico, despatrimonializa-se o Direito Privado. Para Daniel

Sarmento (2007, p.91):

A despatrimonialização implica, isto sim, o reconhecimento de que os bens e direitos patrimoniais não constituem fins em si mesmos, devendo ser tratados pela ordem jurídica como meios para a realização da pessoa humana. Antes, prevalecia o ter sobre o ser, mas agora vai operar-se uma inversão, e o ser converter-se-á no elemento mais importante do binômio. Esta nova perspectiva provoca a necessidade de redefinição dos próprios direitos patrimoniais e institutos que lhes são correlatos, como a propriedade, a posse e o contrato, cuja tutela passará a sujeitar-se a novos condicionamentos, ligados a valores extrapatrimoniais sediados na Constituição. Despatrimonialização significa, portanto, o outro lado da moeda da personalização do Direito Privado.

Despatrimonializar o direito privado quer dizer, portanto, que o patrimônio sai de

foco, dando lugar à pessoa que deve existir de modo digno. Entretanto, os bens não são

retirados do sistema privado, apenas, devendo ser considerados enquanto instrumentos em

razão dos quais se tornará efetivo o princípio da dignidade da pessoa humana. É com o

patrimônio, portanto, que o indivíduo, enquanto pessoa considerado pelo estado social, vem

a desenvolver a sua personalidade, devendo, pois, ser resguardada uma “parcela” desse

patrimônio que, por definição, é uno e indivisível, para garantir o gozo desse direito.

3.6 O Patrimônio como instrumento para o livre desenvolvimento da personalidade

Viu-se até aqui que o ser humano deve viver com dignidade, em homenagem ao

princípio da dignidade da pessoa humana, valor fundamental do ordenamento jurídico

pátrio. Para tanto, deve-lhe ser garantido o mínimo existencial, ou seja, na medida em que

um dos objetivos do princípio acima referido é o livre desenvolvimento da personalidade

(cabendo relembrar que se tem por direito geral da personalidade justamente a dignidade da

pessoa humana), ao ser humano, enquanto pessoa que deve viver com dignidade, haverá de

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lhe ser dado condições mínimas com o fito de que o referido objetivo seja atingido com

eficiência. A esse respeito, profícuas são as palavras de Luiz Edson Fachin (2006, p.1):

A pessoa natural, ao lado de atributos inerentes à condição humana, inalienáveis e insuscetíveis de apropriação, pode ser também, à luz do Direito Civil brasileiro contemporâneo, dotada de uma garantia patrimonial que integra na sua esfera jurídica. Trata-se de um patrimônio mínimo mensurado consoante parâmetros elementares de uma vida digna e do qual não pode ser expropriada ou desapossada. Por força desse princípio, independente de previsão legislativa específica instituidora dessa figura jurídica, e, para além de mera impenhorabilidade como abonação, ou inalienabilidade como gravame, sustenta-se existir essa imunidade juridicamente inata ao ser humano, superior aos interesses dos credores.

É cabível, desde já, destacar que a garantia ao mínimo existencial, a garantia de

condições mínimas para o livre desenvolvimento da personalidade ou, noutros termos, a

vedação de redução à miserabilidade, ainda que por vontade própria, já existe, porém, de

modo um tanto quanto tímido. Com efeito, tal proposição, além de guardar assento

constitucional, na medida em que a Carta Magna de 1988 garante a todos o direito à vida e

condiciona a ordem econômica a assegurar a todos existência digna (respectivamente nos

arts. 5º e 170), existem algumas previsões legais que asseguram o direito a esse patrimônio

mínimo como mais um dos atributos da personalidade.

Para bem ficar esclarecido, portanto, sobre a função desse patrimônio mínimo

enquanto mais um atributo da personalidade, faz-se necessário, ainda que de passagem,

visando ao que aqui se quer demonstrar, analisar o que deve ser definido como esse

patrimônio mínimo. Sua função, portanto, é a de garantir o livre desenvolvimento da

personalidade, na medida em que é elemento integrante da esfera jurídica da pessoa humana.

O chamado patrimônio mínimo, portanto, nada mais é do que um dos atributos inerentes à

personalidade do homem; é o móvel por meio do qual esta é livremente desenvolvida.

3.6.1 A salvaguarda de um patrimônio mínimo garantidor dos direitos de personalidade

Antes de se falar sobre o que se deve ter por patrimônio mínimo, há que serem feitas

algumas observações sobre o que seria patrimônio e as evoluções havidas no referido

instituto.

Primeiramente é preciso distinguir patrimônio de propriedade. Com efeito, fala-se em

propriedade quando se tem em mira bens ou o conjunto de bens que é da titularidade de um

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sujeito. Já no que tange a patrimônio, tem-se em mira o conjunto de relações jurídicas,

economicamente apreciáveis, de uma pessoa. Apesar da relação de interconexão, de

natureza lógica entre ambos os institutos, parece clara a sua distinção. Pode-se dizer que o

patrimônio de uma pessoa é composto de suas propriedades acrescido de um plus, qual seja,

as suas demais relações jurídicas com projeção econômica. A propriedade seria assim um

dos elementos componentes do patrimônio.

É de se destacar, desde já, que é projeção da personalidade do ser humano, o

complexo de relações jurídicas que esse ser realiza e que se denomina, como se viu, de

patrimônio. Caio Mario da Silva Pereira (1998, p. 246-247):

Se, como vimos, todo homem em sociedade efetua negócios e participa de relações jurídicas de expressão econômica, todo indivíduo há de ter patrimônio, que traduz aquelas relações jurídicas. Só em estado de natureza, com abstração da vida social, é possível conceber-se o indivíduo sem patrimônio. Em sociedade, não. Por isso, e em conseqüência de não se a pessoa sem patrimônio, é que não é possível dissociar as duas idéias e é neste sentido que ele foi definido como a projeção econômica da personalidade [...]

Esse aspecto de projeção da personalidade humana, esse atributo da personalidade,

como visto, tem duas características peculiares, segundo a doutrina tradicional: é uno e

indivisível. Quer isto significar que todo ser humano tem patrimônio, na proporção de um

para um, ou seja, não existe ser humano com mais de um patrimônio, nem tampouco mais

de um ser humano com apenas um patrimônio. É o que se pode chamar, como visto, de

teoria subjetiva do patrimônio. Tal teoria, se no início era percebida de modo absoluto,

relativizou-se, como visto, com o correr dos tempos. Com efeito, segundo Caio Mario da

Silva Pereira (1998, p.251):

Os escritores modernos imaginaram a construção de uma teoria chamada da afetação, através da qual se concebe uma espécie de separação ou divisão do patrimônio pelo encargo imposto a certos bens, que são postos a serviço de um fim determinado. Não importa a afetação na disposição do bem, e, portanto, na sua saída do patrimônio do sujeito, mas na sua imobilização em função de uma finalidade. Tendo sua fonte essencial na lei, pois ela não é possível senão quando imposta ou autorizada pelo direito positivo, aparece toda vez que certa massa de bens é sujeita a uma restrição em benefício de um fim específico.

O patrimônio de afetação nem sempre será considerado um patrimônio diferente do

patrimônio desafetado. A afetação só terá por condão constituir um novo patrimônio caso,

em razão da referida afetação, surja a necessidade de criação de uma outra personalidade,

como ocorre com as fundações; caso contrário, ocorre a mera segregação do patrimônio em

razão da finalidade afetada, sendo tratado independentemente do patrimônio geral do

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indivíduo, como ocorre com as afetações em incorporações imobiliárias reguladas pela Lei

nº 10.931/2004, adiante analisadas. Seja como for, o que importa destacar é que a teoria da

finalidade ou da afetação do patrimônio não põe fim à teoria subjetiva; apenas a tempera,

com ares de modernidade, na medida em que a teoria subjetiva do patrimônio era, em

essência, individualista, o que não subsiste mais após a constitucionalização e

despatrimonialização do direito privado, vale dizer, os absolutismos que havia no direito

privado tradicional, em face do seu individualismo, passam a ser relativizados, em face do

caráter social que adquire o direito privado moderno.

É nessa perspectiva, portanto, que já se ousou falar em um patrimônio mínimo

inerente à esfera jurídica individual do homem, que jamais poderá ser daquele desapossado,

sob pena de lhe serem cerceadas as condições mínimas de uma existência digna. Um

patrimônio de afetação, cuja finalidade seria o livre desenvolvimento da personalidade, seria

concretizar com eficiência o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no texto

constitucional.

3.6.2 Restrições à livre disposição do patrimônio

Apesar de restar demonstrada a necessidade de um patrimônio para o livre

desenvolvimento da personalidade, há que se destacar a inexistência, no direito atual, da

possibilidade de serem praticados atos de livre disposição, sem qualquer empecilho,

fundado, apenas, no interesse egoístico e individual do ser humano. O homem deixa de ser

um mero indivíduo e, com a nova ordem, transforma-se em pessoa e a ela o ordenamento

jurídico deve garantir condições mínimas de existência digna, inclusive contra a própria

vontade, na exata razão e medida de que o princípio da dignidade da pessoa humana é

fundamento da República Federativa do Brasil.

O ordenamento jurídico traz algumas restrições à livre disposição do patrimônio, de

que serve de exemplo, pela relação com o objeto de estudo ora sob análise, a vedação de

doação universal, por ser nula. Com efeito, o art. 548 do Código Civil Brasileiro de 2002

prevê que é nula a doação de todos os bens, sem reserva de parte, ou renda suficiente para

a subsistência do doador. Sobre referido dispositivo, esclarece Luiz Edson Fachin (2006,

p.94):

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Enfeixa-se aí a hipótese que, obstando a auto-redução à miséria, prevê limites às liberalidades intervivos. A nulidade da doação traduz essa contenção, um óbice à prodigalidade. Mais ainda, a invalidade está além da criação de obstáculos à dilapidação patrimonial. Aí pode se localizar a gênese de um feixe de valores articulados em torno da pessoa e de sua respectiva proteção, como aqui se faz, sem embargo do respeito indispensável a diverso modo de olha, à alteridade no ver, eis que não chama a tese lugar de verdade mas sim espaço de possibilidade que não pode, nem deve, excluir do cenário a antítese. A regra protetiva do Código Civil não pode ser afastada pela vontade da parte que se choca com a hipótese nela prevista. Trata-se de preceito não derrogável pela força volitiva da parte.

Mais adiante, arremata o mesmo autor:

Esse modo de ver admite comparar o doador da universalidade de seus bens, sem estipulação de reservas, ao pródigo. Afirma-se expressamente: ‘aquele que não reserva o usufruto dos bens e efetua doação universal equipara-se ao pródigo’. Vê-se que estes institutos são informados por um mesmo princípio, a proteção da pessoa, e, hoje, à luz da Constituição de 1988, dir-se-ia princípio da dignidade do ser humano. (FACHIN, 2006, p. 101-102)

Assim, na conformidade do previsto no art. 1.228 do Código Civil de 2002, o

proprietário tem o direito de usar, gozar e dispor da coisa, bem como, e porque não dizer,

de todo o seu patrimônio, desde que esse usar, gozar e dispor do patrimônio estejam

consentâneo ao primado da dignidade da pessoa humana.

3.7 O patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias

A definição de incorporação imobiliária não causa maiores polêmicas, porque

instituída já desde 1964 pelo legislador. Note-se apriori o entendimento de Orlando Gomes

(2001, p. 446), segundo o qual a sistemática da incorporação imobiliária implicaria numa

atividade complexa que abrangeria pelo menos três contratos: (i) de alienação da fração

ideal do terreno; (ii) da construção do edifício; e (iii) do condomínio a ser constituído. Tal é

o teor do dispositivo da Lei nº 4591/64 que prescreve a definição do negócio jurídico da

incorporação imobiliária:

Art. 28. As incorporações imobiliárias, em todo o território nacional, reger-se-ão pela presente Lei. Parágrafo único. Para efeito desta Lei, consideração incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas.

Neste tipo de negócio jurídico, verifica-se a presença do incorporador, do adquirente

de unidade autônoma, além da possibilidade de outras partes nesse contrato, não havendo

falar-se na confusão entre o dono do terreno e o incorporador, bem como não se podendo

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confundir o incorporador com o construtor. Trata-se, portanto, de negócio jurídico

plurilateral em que o número de partes de tal contrato vai depender de quem venha a assumir

a posição de incorporador, figura jurídica também legalmente definida. A propósito, prevê o

art. 29 da Lei nº 4591/64:

Art. 29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas.

Como se vê, apesar de, no caso concreto, o incorporador puder ser tanto o dono do

terreno quanto a construtora, é factível, também, sê-la um terceiro envolvido no negócio

jurídico da incorporação. Com efeito, é de notar-se que são os adquirentes das unidades

autônomas que acabam por financiar a própria construção. Bem por isso, é inegável o efeito

social que têm os contratos de incorporação. Entretanto, é imprescindível notar que a

incorporação imobiliária, tal como originariamente imaginada pelo legislador de 1964, não

colocava a salvo os adquirentes dos riscos inerentes à insolvência ou falência do

incorporador, que não precisava ser necessariamente um comerciante. Desse modo, até a

quitação do valor pelo qual se comprometiam os adquirentes das unidades autônomas, estas

continuavam a pertencer ao patrimônio do incorporador, sendo certa a possibilidade de

serem utilizadas para a satisfação de créditos que não tivessem qualquer relação com a

incorporação.

Imaginou-se, assim, a utilização do patrimônio de afetação para a solução de proteção

aos adquirentes das unidades autônomas, sem se trazer qualquer prejuízo ao incorporador,

como se vê em Cristiana Moreira Batisda (2008, p. 491):

Diante disto, a teoria da afetação patrimonial mostrou-se como um instrumento a mais de proteção dos adquirentes de unidades imobiliárias em construção, já que tais unidades ficariam segregadas do patrimônio geral do incorporador a fim de cumprir a finalidade precípua de uma incorporação imobiliária, qual seja, a construção e a entrega das unidades, prontas e acabadas, aos seus adquirentes e, por sua vez, exclusivos credores daquele patrimônio afetado. Além de ser uma proteção a mais para os adquirentes, a aplicação do patrimônio de afetação às incorporações imobiliárias não traz nenhuma desvantagem ao incorporador já que as unidades imobiliárias não são excluídas do seu patrimônio, mas sim separadas a fim de cumprir uma finalidade específica, e, por esta razão, todo e qualquer lucro que venha a ser apurado na comercialização de tais unidades, após efetuado o pagamento de todas as dívidas e obrigações daquela

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incorporação afetada, continua a pertencer ao incorporador, integrando o seu patrimônio geral.

Na mesma linha ensina Luiz Antonio Soares Hentz (2003, p. 212-213):

O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva. Mas o incorporador responde pelos prejuízos que causar ao patrimônio de afetação e os bens e direitos dele integrantes somente poderão ser objeto de garantia real em operação de crédito cujo produto seja integralmente destinado à consecução da edificação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.

O primeiro regime de patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias se deu

com a Medida Provisória nº 2221/01 que inseriu os artigos 30-A a 30-G na Lei nº 4591/64.

Cristiana Moreira Batisda (2008, p. 492) apresenta as duas grandes críticas feitas pela

doutrina no que tange ao patrimônio de afetação da Medida Provisória acima referida: (i)

não era obrigado a constituição de patrimônio de afetação pelo incorporador, podendo,

portanto, optar ou não pela afetação patrimonial – na forma do art. 30-A; e (ii) não obstante

a incomunicabilidade entre os patrimônios geral e afetado, na falência do incorporador, os

adquirentes só poderiam continuar a obra se pagassem todo o passivo tributário, trabalhista e

previdenciário, não só do patrimônio afetado, mas também relativo ao patrimônio geral – de

acordo com o disposto no art. 30-C e, especificamente, seus parágrafos primeiro e segundo.

Com a devida vênia, a primeira crítica apresentada pela autora não procede. Não se

pode olvidar que a incorporação imobiliária é um negócio jurídico em que deve imperar a

autonomia da vontade. É certo que a autonomia da vontade não é absoluta, relativizando-se

naquilo que se convencionou chamar de dirigismo contratual. Porém tal dirigismo deve

ocorrer dentro de certos limites, sob pena de se negar vigência ao princípio da autonomia da

vontade, norma basilar e uma das fundamentais do direito privado. Orlando Gomes (1967, p.

68-69), a propósito do que ora se cogita, ensina:

Tem a ordem jurídica, no reconhecimento da autonomia privada, sua pedra angular. Outra não é a razão por que o negócio jurídico, principal instrumento dessa autonomia, se coloca no centro do sistema de Direito Privado. Reconhecê-la, não significa, porém, contestar a conveniência de restringi-lo no propósito de estabelecer o equilíbrio de interêsses individuais, subordinando-os ao autêntico interêsse coletivo. A redução vem se realizando, a olhos vistos, sob a inspiração de política legislativa de cunho manifestamente anti-individualista. Dois fatôres concorrem, diferentemente, para as limitações da autonomia privada: a concentração de capitais e a intervenção do Estado. Em essência, porém, conserva-se incólume o princípio. As limitações sempre existiram, apenas se apertaram na atualidade, apanhando o campo econômico e se tornando tanto mais

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numerosas quanto mais se compenetra o Estado da necessidade de intervir com o objetivo de realizar superior justiça social.

Assim, ao ver do autor do presente trabalho, a primeira das críticas não procede, em

razão da necessidade de se prestigiar, ainda que relativizado, o princípio da autonomia da

vontade. No caso, é legítimo deixar a escolha pela constituição do patrimônio de afetação ao

exclusivo critério do incorporador. Para resolver a segunda das críticas e dotar de incentivos

o incorporador na constituição do patrimônio de afetação, foi promulgada a Lei nº

10.931/04, que reestruturou a segregação patrimonial nas incorporações imobiliárias.

O incentivo dado ao incorporador é de ordem tributária. Trata-se do chamado regime

especial tributário do patrimônio de afetação. Por tal regime, na forma do art. 4º da Lei nº

10.931/04, as incorporadoras que optarem pela constituição de patrimônio de afetação

ficarão sujeitas à tributação na alíquota de 7% sobre a receita mensal recebida, referente aos

tributos a seguir: Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, Contribuição para o PIS/PASEP,

Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e COFINS. Ressalte-se, por oportuno, que

apenas as incorporadoras que se submeterem ao regime do patrimônio de afetação poderão

se submeter ao regime especial tributário.

Sobre a solução da segunda das críticas levantadas pela doutrina, no que tange ao

patrimônio de afetação previsto na Medida Provisória nº 2221/01, a Lei nº 10.931/04 passou

a aplicar o princípio da incomunicabilidade dos patrimônios de afetação no seu total. Com

efeito, no regime anterior, em regra eram incomunicáveis os patrimônios geral e de afetação.

Em termos de falência e insolvência, porém, relativizava-se tal incomunicabilidade, pelo

fato de que, desejando continuar a obra, os adquirentes de unidades imobiliárias precisavam

adimplir o passivo tributário e trabalhista do patrimônio de afetação e do patrimônio geral

do incorporador. A nova legislação relativa ao patrimônio de afetação nas incorporações

imobiliárias, entretanto, mantém a incomunicabilidade dos patrimônios, mesmo em sede de

falência ou de insolvência do incorporador, à vista do art. 31-F da Lei nº 4591/64, incluído

pela Lei nº 10.931/04. A Lei nº 11.101/05, conhecida como a nova Lei de Recuperação de

Empresas e de Falências, reconhece, do mesmo modo, a incomunicabilidade total dos

patrimônios de afetação, em relação ao patrimônio geral do incorporador.

Desse modo, o legislador concede incentivos de ordem tributária para que o

incorporador venha a constituir patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias. Tais

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incentivos são importantes, na medida em que se estimulando que o incorporador venha a

realizar a conduta de constituir o patrimônio de afetação, assegura-se uma maior garantia

aos adquirentes. Funciona, assim, como prêmio aos incorporadores que adotarem a conduta

desejável pelo ordenamento jurídico. Além disso, a relevância do patrimônio de afetação na

limitação de responsabilidade pelo risco da atividade é tamanha que prevalece, até mesmo,

diante da falência ou insolvência do incorporador.

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4 A LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO

INDIVIDUAL NO DIREITO BRASILEIRO

Analisada a evolução histórica das organizações empresariais, apreendida a noção de

empresa enquanto um fenômeno jurídico e econômico e repassadas as principais teses sobre

a personificação e sobre o ato constitutivo da sociedade, é chegada a hora de se lançar

diretamente ao tema objeto desta pesquisa. Com efeito, é cabível afirmar que o tema da

“limitação de responsabilidade do empresário individual” tem sido discutido em sede de

direito comparado. No Brasil, inclusive, muito já se discutiu sobre o tema, voltando a

constar na pauta de discussão, após a aprovação do Código Civil de 2002.

Percebem-se, do ponto de vista geral, duas formas de limitação de responsabilidade: a

forma societária e a forma não-societária. Quanto ao modelo societário, utiliza-se da

chamada sociedade unipessoal. De outro lado, reconhecem-se pelo menos três estruturas, na

forma não-societária, possíveis: a empresa individual de responsabilidade limitada, o

estabelecimento individual de responsabilidade limitada e o empresário individual de

responsabilidade limitada.

Essa distinção de tratamento é percebida quando comparados os ordenamentos

jurídicos dos países da América Latina e da Europa. A esse respeito, ressalta Calixto

Salomão Filho (1995, p. 9-11):

Na América Latina essa desconfiança se mantém. Poucas são as legislações que a reconhecem. Os poucos ordenamentos em que se reconhece a limitação de responsabilidade do comerciante individual optam pela forma não-societária, da empresa individual de responsabilidade limitada. [...] O mesmo não ocorre na Comunidade Econômica Européia. A recente XII Diretiva Comunitária em matéria societária generalizou o reconhecimento da sociedade unipessoal com responsabilidade limitada no ambiente europeu. Reconhecimento que já se vinha impondo na Europa antes da diretiva. Com efeito, a Alemanha, a França, a Bélgica, a Holanda e a Dinamarca já reconheciam expressamente a sociedade unipessoal com responsabilidade limitada antes da existência da diretiva.

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Esta, portanto, é a perspectiva inicial que se tem. De uma mera curiosidade teórica,

passando da regulação inicial em Liechtenstein ao reconhecimento positivo em diversos

países que não tenham a alcunha de paraíso fiscal como aquele, propõe-se aqui a discutir e a

analisar a possibilidade de se instituir no direito brasileiro a limitação de responsabilidade

do empresário individual.

4.1 O panorama atual

Ao contrário do que pode parecer, o direito brasileiro já reconhece, há algum tempo,

estruturas de limitação de responsabilidade de uma só pessoa, quebrando, assim, o

paradigma da responsabilidade ilimitada dos agentes econômicos. Com efeito, a Lei nº

6.404/76, que dispõe sobre as sociedades por ações, regula a figura da Subsidiária Integral

no seu art. 251, que a define como sendo a sociedade por ações que, mediante escritura

pública, é constituída com acionista único, desde que seja sociedade brasileira. Além disso,

o art. 206, I, “d”, da referida Lei, regula a unipessoalidade superveniente da sociedade,

cabendo ressaltar que, caso a sociedade tenha se reduzido a um único acionista, a

pluralidade de sócios deve ser recomposta até a Assembleia Geral Ordinária seguinte, sob

pena de dissolução da companhia. Some-se a tais hipóteses a continuidade da empresa por

incapaz, com limitação de responsabilidade, prevista no art. 974 do Código Civil de 2002,

além do regramento legal da unipessoalidade temporária da sociedade, no art. 1.033, IV, do

mesmo Código, antes permitido apenas jurisprudencialmente.

A subsidiária integral é uma sociedade anônima que tem por característica o fato de

ser unipessoal e ter, por único sócio, sociedade nacional. Reconhece-se, portanto, desde

1976, no direito brasileiro, a possibilidade de se ter sociedade com apenas um sócio em seu

quadro social. Sobre a Subsidiária Integral, leciona Rachel Sztajn (1989, p. 86):

A subsidiária integral definida no art. 251 da Lei n. 6.404/76 indica uma forma de separação patrimonial com limitação de responsabilidade que pode ser utilizada por qualquer sociedade, mas não por pessoas naturais; que se trata de separação patrimonial e não de verdadeira reunião de esforços e recursos não há dúvida, pois o texto do art. 251 já citado trata da constituição, mediante escritura pública, de companhia que tem como único acionista sociedade brasileira.

É relevante, portanto, o entendimento a que chegou o legislador brasileiro, já de longa

data, colocando-se, portanto, em posição de destaque entre os países que reconheceram a

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possibilidade da existência de sociedade com um único acionista. Fran Martins (1985, p.

296), após fazer referida constatação, esclarece:

Na verdade, desde longos anos os estudiosos do direito comercial se preocupam em encontrar uma solução para a limitação de responsabilidade do comerciante individual, o que levaria, em última conseqüência, ao reconhecimento da sociedade anônima com um único acionista, visto como nessas sociedades a responsabilidade dos sócios é sempre limitada e, se todas as ações pertencem a uma só pessoa, conseqüentemente essa pessoa teria limitada sua responsabilidade, como proprietário da totalidade das ações da sociedade, o que dá resultado idêntico ao que obteria um comerciante individual que limitasse sua responsabilidade.

Percebem-se duas possibilidades de constituição de Subsidiária Integral. Há a

constituição originária, em que, mediante escritura pública, separa-se o patrimônio da

sociedade que figurará como acionista da Subsidiária Integral, visando a compor o

patrimônio da sociedade a constituir. A outra possibilidade ocorre mediante a incorporação

de ações. Com efeito, na medida em que uma sociedade nacional venha a adquirir todas as

ações do capital social de outra sociedade, incorporando-as ao seu patrimônio, poder-se-á

converter a sociedade emissora das ações em Subsidiária Integral da sociedade titular destas,

nos termos do art. 252 da Lei nº 6.404/76.

No que pertine, ainda, à Subsidiária Integral, é forçoso esclarecer que não há regra

sobre a responsabilidade, afirmando Calixto Salomão Filho (1995, p. 188):

[...] existem apenas três artigos: um, prevendo a existência e constituição (art. 251); outro, sua constituição através de incorporação de ações (art. 252) e o último prevendo os direitos dos antigos acionistas da sociedade incorporada caso essa sociedade resolva admitir novos acionistas (art. 253).

Apesar de inexistir regra expressa sobre a responsabilidade da Subsidiária Integral,

não se pode deixar de notar que se trata de uma sociedade por ações. Dessa forma, é cabível

ressaltar a responsabilidade limitada da Subsidiária Integral, ou seja, a sociedade, única

acionista da Subsidiária Integral, responde apenas pelo valor das ações subscritas, não

podendo ter bens do seu patrimônio expostos à constrição judicial em face de negócios ou

relações jurídicas travadas perante a Subsidiária Integral. Assim, pode-se dizer que desde

1976, o direito brasileiro reconhece uma forma de limitação de responsabilidade de uma só

pessoa que se dedique a atividades econômicas dirigidas a mercados, outrora chamadas de

mercantis, hoje empresariais.

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A unipessoalidade, no caso da Subsidiária Integral, não é meramente aparente. Deve-

se destacar, como já visto, que uma das decorrências da personificação das sociedades é o

fato de elas terem existência autônoma e, portanto, personalidade distinta da dos sócios que

a compõem. Com efeito, sabendo-se que o seu único acionista é uma sociedade, segundo a

definição do referido art. 251, não estaria afastado o dogma da necessária coletividade para

se ter sociedade. Nesse sentido, ensina Wilges Ariana Bruscato (2005, p. 303-304):

A reunião de pessoas em torno de um mesmo objetivo, seja em forma de associação, fundação ou sociedade, merece ser considerada um ente, distinto das pessoas de seus integrantes, porque há um traço fundamental em sua composição: a vontade do ente, que é a somatória das vontades individuais de seus membros. A nosso ver, a coletividade é essencial na personalização. Por esse motivo, é que sendo coerente com esse raciocínio, é possível se admitir a sociedade unipessoal quando o único titular das cotas ou ações for uma sociedade: o princípio da pluralidade – que materializa a necessária coletividade – está atendido, ainda que de modo indireto.

A outra modalidade reconhecida de limitação de responsabilidade, ainda na vertente

societária, é a chamada unipessoalidade temporária superveniente. Vale ressaltar, por

oportuno, que afora a já citada Subsidiária Integral, o direito brasileiro não reconhece a

possibilidade de sociedade unipessoal ab initio, pois se deve ter o mínimo legal de duas

pessoas, na condição de sócio. Entretanto, resta reconhecido às sociedades o direito de não

serem dissolvidas, acaso tenham o seu quadro societário reduzido a apenas um sócio se, no

prazo legal, a pluralidade de sócios vier a ser recomposta. Admitindo a hipótese da ulterior

recomposição, tem-se que, pelo período legal determinado, a sociedade, em sendo anônima

ou limitada, funcionará com apenas um sócio, de responsabilidade limitada.

Sob os auspícios do Código Comercial de 1850, sempre que a sociedade reduzisse seu

quadro societário a um sócio, a sociedade deveria ser considerada dissolvida de pleno

direito. A partir do momento em que as empresas economicamente viáveis passaram a ter

que ser preservadas, por serem o locus onde o Estado arrecada tributos, onde os

trabalhadores auferem rendas para a própria manutenção e onde os consumidores buscam

produtos e serviços para satisfazer as próprias necessidades, precisou-se garantir a

permanência da personalidade da sociedade que teve reduzido o seu quadro societário a um

sócio, mas que desenvolvesse atividades economicamente viáveis. No início, utilizava-se do

regramento previsto na Lei nº 6.404/76, por analogia, aplicável aos demais tipos societários.

Com o advento do Código Civil, em 2002, agora há regramento legal para todos os tipos

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societários. O previsto na Lei nº 6.404/76, para as sociedades por ações; o previsto no

Código Civil, para as sociedades contratuais.

Por este fato é que se, no prazo estipulado, for recomposto o número mínimo de

sócios, a sociedade continuará perpetuamente em funcionamento regular, estando regular,

também, no período em que se manteve com apenas um sócio. O prazo é o da realização da

Assembleia Geral Ordinária do ano seguinte para as sociedades por ações e de 180 dias para

as demais sociedades. Para a sociedade por ações, o prazo é contado a partir da verificação

da concentração de ações sob a titularidade de um único acionista, na assembléia geral

ordinária da companhia. Para as demais sociedades, o prazo deve ser contado a partir da data

do arquivamento da alteração do ato constitutivo que indicar a existência de apenas uma

pessoa como membro componente do quadro societário.

Sobre a questão da unipessoalidade temporária superveniente, ressalta Luiz Antonio

Soares Hentz (2003, p. 180):

Diz-se modernamente da necessidade de preservação da empresa, o que, na visão de Peixoto implica em se procurar evitar, a todo custo, a dissolução da sociedade, ‘permitindo sua continuação por um determinado período, independente da existência da coletividade’ [...]

No mesmo sentido, leciona Sérgio Campinho (2005, p. 57-58):

As sociedades unipessoais temporárias (Código Civil, artigo 1.033, IV e Lei nº 6.404/76, artigo 206, I, d) não emergem como uma exceção, porquanto em não sendo reconstituído número mínimo legal de dois sócios no prazo previsto em lei, a sociedade estará dissolvida de pleno direito. A sobrevida que se concede à pessoa jurídica tem inspiração na preservação da empresa por ela desenvolvida.

Não é diferente a lição advinda de Marlon Tomazette (2003, p. 196-197), como se vê,

apesar de tratar especificamente sobre as sociedades reguladas pelo Código Civil de 2002:

Nesses casos, desde o fato não se poderia falar em contrato, na medida em que não há duas partes. Todavia, tendo em vista o princípio da preservação da empresa a sociedade não se dissolve de imediato. A legislação brasileira admite a unipessoalidade temporária, assegurando um prazo de 180 dias para a reconstituição da pluralidade de sócios, o que não implica em um novo contrato, tendo em vista a natureza aberta do contrato plurilateral. Não havendo a reconstituição da pluralidade de sócios, a sociedade entra de pleno direito em processo de dissolução, podendo haver a continuação da atividade individualmente, mas não por meio daquela sociedade.

Além das duas formas societárias de limitação de responsabilidade, já reguladas,

inclusive, pela Lei nº 6.404/76, em termos de direito brasileiro, o Código Civil inova, ainda

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que timidamente, a matéria regulando uma possibilidade de limitação de responsabilidade

no formato não-societário, diante de incapacidade superveniente ou de transmissão causa

mortis para um incapaz, no seu art. 974, prevendo:

Art. 974. Poderá o incapaz, por meio de representante ou devidamente assistido, continuar a empresa antes exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor de herança. §1º Nos casos deste artigo, precederá autorização judicial, após o exame das circunstâncias e dos riscos da empresa, bem como da conveniência em continuá-la, podendo a autorização ser revogada pelo juiz, ouvidos os pais, tutores ou representantes legais do menor ou do interdito, sem prejuízo dos direitos adquiridos por terceiros. §2º Não ficam sujeitos ao resultado da empresa os bens que o incapaz já possuía, ao tempo da sucessão ou da interdição, desde que estranhos ao acervo daquela, devendo tais fatos constar do alvará que conceder a autorização.

Vê-se, portanto, que a continuidade da empresa por incapaz, ainda que por

incapacidade superveniente, ou mesmo diante de sucessão causa mortis, dar-se-á mediante

limitação de responsabilidade. Entretanto, tal continuidade está condicionada à prévia

autorização judicial. Sobre tal dispositivo, comenta Priscila M. P. Corrêa da Fonseca (2008,

p. 114):

[...] contempla o novo Código Civil, desse modo, significativa alteração acerca da responsabilidade do sócio ou do empresário individual. Com efeito, se prosseguir o incapaz como empresário individual, não responderá ele ilimitadamente pelas obrigações que contrair, dada a exceção albergada pelo §2º, ora examinado. Ou seja, os bens que já possuía ao tempo da sucessão manter-se-ão estranhos ao acervo social e permanecerão fora do alcance dos eventuais credores [...]

Sérgio Campinho (2005, p. 22), após ressaltar que se trata de qualquer incapaz, como

os menores não emancipados, e não apenas os interditos, assevera:

Com o intuito de preservar o patrimônio do incapaz, o Código põe a salvo dos resultados da empresa os bens por ele já titulados ao tempo da sucessão ou da interdição, desde que estranhos ao acervo utilizado para o exercício da atividade econômica, o que deverá constar do alvará de autorização. Tais bens, portanto, ficam imunes à ação dos eventuais credores.

Como se percebe, o art. 974 do Código Civil, após autorização judicial precedente,

regula a limitação de responsabilidade ao incapaz que continua o exercício de empresa. É

forma não-societária, na medida em que baseada no patrimônio anteriormente afetado ao

exercício de atividade econômica. Vale dizer, o juiz deve verificar a conveniência do

incapaz na continuação da empresa e, acaso positivo, mediante alvará determinará a

continuidade com limitação da responsabilidade. Como não ficam sujeitos ao resultado da

empresa os bens que o incapaz já possuía, ao tempo da sucessão ou da interdição, tem-se

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que apenas o patrimônio afetado à atividade empresarial é que servirá de móvel para o seu

exercício e para a satisfação dos interesses de terceiros, sejam obrigações decorrentes de

crédito, sejam de dano.

Ressalte-se a previsão do art. 978 do Código Civil de 2002, que, apesar de inovadora,

apresenta, em si, um contrassenso. Prevê mencionado dispositivo que “o empresário casado

pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os

imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real”. A esse respeito,

leciona Ricardo Fiuza (2002, p. 884) que o art. 978: “[...] veio a consolidar o entendimento

mais evoluído de que qualquer dos cônjuges pode, sem necessidade de outorga uxória

alienar ou gravar de ônus reais bens que integrem o patrimônio da empresa que cada um,

isoladamente, participe”.

Priscila M. P. Corrêa da Fonseca (2008, p. 123-124), após mostrar as previsões do art.

978 em paralelo com as previsões do art. 1647, comenta:

Ao assim estatuir [no art. 1647], o legislador objetivou, sem dúvida, proteger o patrimônio comum constituído em casamentos celebrados sob regimes que permitam a sua formação. Entendeu, contudo, o legislador, em contrapartida, que a observância de tal norma, no âmbito empresarial, poderia implicar manifesta inconveniência para o prosseguimento da atividade desenvolvida pelo empresário, podendo até, quiçá, obstaculizá-lo. O rigor da norma poderia determinar, ademais, a transferência, para o recôndito do lar conjugal, da sede das decisões empresariais, o que se afigura, à evidência, inconcebível. Assim, sempre que um dos cônjuges for empresário individual, poderá, independentemente da outorga uxória, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis e pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos. Observe-se, contudo, que o art. 978 não dispensa a outorga uxória nas hipóteses dos incisos III e IV do art. 1.647 [...]

Na mesma toada, discorrendo sobre o já aludido art. 978, destaca Haroldo Malheiros

Duclerc Verçosa (2008, p. 257):

Assim sendo, tomando-se o texto do art. 978 do NCC, o patrimônio do empresário casado seria cindido por sua própria vontade na constituição de sua empresa, a qual seria titular de um patrimônio separado, dentro do patrimônio geral daquele. Esse patrimônio, constituído pelo estabelecimento comercial e por outros bens, inclusive imóveis, seria responsável em caráter especial e exclusivo pelas dívidas da própria empresa, e não por aquelas pessoais do empresário e de seu cônjuge.

Não obstante a presente inovação, que é digna de aplausos, por reconhecer do ponto

de vista jurídico uma realidade econômica, andou mal o legislador ao não ser explícito, no

sentido de definir como deve ficar a responsabilidade patrimonial do empresário individual.

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Com efeito, na medida em que o legislador reconhece a independência do patrimônio da

empresa, a ponto de o empresário individual ter a faculdade de aliená-lo sem necessitar de

outorga marital, deveria o legislador ter reconhecido, também, a independência de

responsabilidade. Perdeu a oportunidade, portanto, de prever que pelos débitos empresariais

responderia apenas o patrimônio separado para o exercício de atividades empresárias.

Em termos de direito brasileiro, por fim, pode-se dizer que é reconhecida a limitação

da responsabilidade do empresário individual, na modalidade societária, diante da

Subsidiária Integral e da Unipessoalidade Temporária Superveniente. Além dessas, o

Código Civil reconhece a limitação, na modalidade não-societária, porém, de modo

excepcional, ao incapaz que continua a empresa exercida por ele, antes da interdição, ou por

seus pais ou pelo autor da herança, antes da sucessão. Ressalte-se ademais que as exceções

que se têm hoje podem tranquilamente virar a regra devido ao fato de o legislador brasileiro

já reconhecer o patrimônio da empresa como distinto do patrimônio pessoal do empresário

individual.

4.2 Estruturas possíveis

A partir da teoria poliédrica de Asquini, percebem-se três institutos distintos que, a par

de formarem as pilastras do Direito Empresarial, acaso trabalhados, podem dar ensejo a

quatro estruturas possíveis de regulamentação do instituto, ora em análise. Como visto, por

perfil subjetivo se entende a figura do empresário (definido em termos de direito brasileiro,

no art. 966 do Código Civil); ao perfil objetivo se enquadra o estabelecimento (previsto no

art. 1.142 do Código Civil); da análise conjunta dos perfis funcional e corporativo, chega-se

à noção de empresa, enquanto atividade econômica organizada, exercida de modo

profissional e dirigida a mercados.

Nesta seara, é preciso perceber, a partir desses institutos basilares, que estruturas

possíveis podem ser delineadas, a fim de se evidenciar, das estruturas possíveis, aquela que

melhor se apresenta para a formatação do instituto em criação. Com efeito, algumas

alternativas se abrem. As duas primeiras seriam pensar na personificação, ora da empresa,

ora do estabelecimento, com o que se teriam as figuras da empresa individual de

responsabilidade limitada e do estabelecimento individual de responsabilidade limitada. Para

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além destas alternativas, tem-se a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada e o

empresário individual de responsabilidade limitada.

4.2.1 A empresa individual de responsabilidade limitada

A primeira das estruturas possíveis a se imaginar como forma ou como método para se

regular a limitação de responsabilidade do empresário individual seria a empresa individual

de responsabilidade limitada. Por esta possibilidade, personifica-se a empresa. Assim, o

empreendimento econômico passa à condição de sujeito de direito, distinto, portanto, da

pessoa do empresário individual. Esta é das alternativas que se tem a que mais tem sido

apregoada pela doutrina e pela legislação comparada.

Neste ínterim, não se pode olvidar o estudo realizado na década de 1950, por Antônio

Martins Filho (1999, p. 314-315), que conclui:

Nessa convicção, passamos em revista o sistema do direito comercial vigorante em nosso país, no que respeita à figura jurídica do comerciante, pessoa individual ou societária. E atendendo ao grau de responsabilidade que os membros titulares assumem para com a organização, formulamos o esquema de nova classificação das empresas mercantis, nele incluindo a do comerciante individual com limitação de riscos, de jure constituendo, desde que lhe é possível reconhecer personalidade jurídica, a igual do que ocorre em relação às sociedades comerciais. [...] A seguir, tentamos demonstrar que o instituto da empresa individual com limitação de riscos não é contrário aos princípios latinos tradicionais sobre o patrimônio, nem pode ser considerado prejudicial ponto de vista de sua aplicação na prática, sob o fundamento de constituir incentivo à fraude. E mesmo na hipótese de ser considerado derrogatório do princípio da indivisibilidade do patrimônio poderia ser admitido à guisa de mais uma exceção daquele princípio, conforme ocorre em relação ao instituto do abandono liberatório, já existente no âmbito do direito comercial marítimo.

Ecoa na legislação comparada, precipuamente em termos de América Latina, a figura

tal como delineada pelo Prof. Antônio Martins Filho (1999) se encontra regulada no

Paraguai, desde o advento da Ley nº 1.034/83, que em seu art. 15 prevê:

Artigo 15. Toda pessoa física capaz de exercer o comércio poderá constituir empresas individuais de responsabilidade limitada, destinando-lhes um capital determinado. Os bens que formam o capital constituirão um patrimônio separado ou independente dos demais bens pertencentes à pessoa física. Aqueles bens estão destinados a responder pelas obrigações de tais empresas.

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A responsabilidade do instituidor fica limitada ao montante do capital afetado à empresa. Em caso de dolo, fraude o descumprimento das disposições ordenadas nesta Lei, responderá ilimitadamente com os demais bens de seu patrimônio4.

Não se pode deixar de notar que, por força dos arts. 16, 17 e 18 da mesma lei

paraguaia, a empresa individual de responsabilidade limitada deve se constituir por escritura

pública, sendo considerada comercial para todos os efeitos, cabendo notar que a empresa

individual de responsabilidade limitada não poderá iniciar suas atividades antes da inscrição

no Registro Público do Comércio. Percebe-se, portanto, que a partir da inscrição da escritura

pública de constituição da empresa individual de responsabilidade limitada, no Registro do

Comércio, passa-se a reconhecer à empresa individual personalidade distinta da do seu

criador, vale dizer, o empresário institui uma pessoa jurídica, destinando-a bens para o

exercício de atividade econômica, separando referido patrimônio dos demais bens do

empreendedor, exatamente pelo fato de a empresa ter sido personificada.

O único efeito da personificação da empresa, segundo a experiência paraguaia, é a

limitação dos débitos do empreendedor perante a sociedade e perante terceiros. Perante a

sociedade, utilizando-se ainda do modelo paraguaio para fins de análise, na medida em que

o capital afetado à empresa necessita estar inteiramente integralizado; perante terceiros, pelo

fato de que apenas tais bens afetados é que serviram de garantia para estes. Perfeita, pois, a

síntese feita por Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 280):

Em suma: a criação legislativa da empresa individual de responsabilidade limitada, como sujeito de direito, importaria, necessariamente, na instituição de uma nova classe de pessoa jurídica de direito privado. Além disso, quanto à limitação, sua eficácia consistiria, apenas, em limitar a dívida do empresário, perante a empresa e terceiros.

Não se pode deixar de ressaltar que empresa é a atividade econômica organizada pelo

empresário, sendo exercida a partir de um estabelecimento e dirigida ao mercado. Verifica-

se, facilmente, que quem tem aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações continuaria

sendo o empresário individual ou a sociedade empresária. São eles sujeitos de direito, noção

que parece ser incompatível com a de empresa. Mais do que sujeito de direito, é fato jurídico

4 Tradução livre de: “Artículo 15º: Toda persona fisica capaz de ejercer el comercio podrá constituir empresas individuales de responsabilidad limitada, asignándoles un capital determinado. Los bienes que formen el capital constituirán un patrimonio separado o independiente de los demás bienes pertenecientes a la persona física. Aquellos bienes están destinados a responder por las obligaciones de tales empresas. La responsabilidad del instituyente queda limitada al monto del capital afectado a la empresa. En caso de dolo, fraude o incumplimiento de las disposiciones ordenadas en esta Ley, responderá ilimitadamente con los demás bienes de su patrimonio”.

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complexo, como se viu anteriormente. Procedentes, portanto, as indagações e conclusões de

Wilges Ariana Bruscato (2005, p. 100-101):

Do contrário, como conciliar a empresa explorada por uma sociedade empresária? A quem se confeririam os direitos de personalidade? E, no caso da empresa exercida de modo singular, a empresa se desvincularia de seu titular, teria autonomia e vontade própria? Como se formaria essa vontade? Considerar a empresa como sujeito de direito parece esbarrar em questões de ordem prática. A empresa não é dotada de capacidade negocial nem processual. Os titulares da aptidão legal para adquirir e exercer direitos e contrair obrigações são o empresário individual ou a sociedade empresária. Não há como limitar a responsabilidade da empresa, já que é pressuposto da responsabilidade, a capacidade de se obrigar, o que não é concebível para a empresa. ‘Buscada como solução do problema da limitação da responsabilidade do empresário individual, os que a preconizam estão mais atentos aos efeitos desejados do que à causa capaz de produzi-los’.

Dessa forma, resulta impossível, logicamente, pensar-se na personificação da empresa

para fins de limitação de responsabilidade. Com efeito, como já se disse, empresa é a

atividade desenvolvida pelo empresário no estabelecimento; é, por assim dizer, uma

sequência de atos pensada e organizada pelo empresário. Não há, portanto, possibilidade de

a empresa adquirir direitos e contrair obrigações em face de ninguém, sendo certo afirmar

que é da empresa, ou em decorrência dela, que surgem direitos e obrigações.

4.2.2 O estabelecimento individual de responsabilidade limitada

O Código Civil Brasileiro, em 2002, trouxe uma definição legal de estabelecimento,

dizendo, em seu art. 1.142, que deve se entender por estabelecimento “todo complexo de

bens organizado, para exercício da empresa, por empresário ou sociedade empresária”.

Como se viu, é atividade a ser desempenhada pelo empresário que o qualificará enquanto

tal, tornando-o submisso ao regime jurídico empresarial. Ocorre que não há como

desenvolver atividades econômicas empresariais, sem antes o empreendedor reunir todos os

elementos de que precisa para a realização da atividade, organizando-os. Wilges Ariana

Bruscato (2005, p. 103) ensina:

O estabelecimento, portanto, não se compõe apenas do prédio, dos utensílios, dos equipamentos e mobiliários, dos estoques, dos livros e documentos, que servem à execução da atividade; mas também de elementos imateriais e incorpóreos que são necessários à consecução dos objetivos empresariais, como o nome, as marcas, os programas de treinamento de empregados, a freguesia ou clientela, o tipo de atendimento, os softwares, a filosofia da empresa, o método de trabalho etc.

Apesar da opinião da autora, é preciso deixar claro, nesse ínterim, que, conforme

dicção do próprio Código Civil, estabelecimento é o complexo de bens, valendo, por

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oportuno, destacar que a clientela e o aviamento (também conhecido por fundo de

comércio), muito mais do que elemento, trata-se, na verdade, de atributo da empresa, ou

mesmo do estabelecimento. Sobre a clientela, ressalta Rachel Sztajn (2008, p. 785):

A clientela, atributo do estabelecimento, resulta dessa organização de pessoas e bens, da soma de esforços, ações que, ao longo do tempo, criam uma relação de fidelidade que faz com que os interessados nos bens ou serviços ofertados no estabelecimento satisfaçam suas necessidades ali, ainda que para isso se desviem de seu percurso cômodo.

Por todos que, também, entendem o aviamento ou o fundo de comércio, enquanto

atributo da empresa, ou mesmo do estabelecimento em que se desenvolve tal empresa, a

mesma Rachel Sztajn (2008, p. 784) ensina:

Há quem associe o estabelecimento à noção de fundo de comércio, gerando imprecisão conceitual. A concepção de fundo de comércio tem que ver com a aptidão do estabelecimento para atrair e manter clientela, portanto, com a produção de resultados. O fundo de comércio é atributo de alguns estabelecimentos, mas não se confunde com eles.

Não destoa do entendimento acima esposado Wilges Ariana Bruscato (2005, p. 104-

105), que também enxerga no aviamento uma qualidade do estabelecimento, ressaltando:

À aptidão do estabelecimento para gerar lucro dá-se o nome de aviamento. O aviamento se traduz na organização dos elementos integrantes do estabelecimento, resultante de elementos subjetivos (atributos pessoais do empresário e o comando da equipe) e objetivos (localização ou ponto do estabelecimento, ausência de concorrência, especialidades oferecidas, exclusividade de produto ou serviço, as instalações, os equipamentos etc.). Assim, as habilidades dos titulares da empresa constituem fator diferenciador num mercado competitivo. O aviamento é uma qualidade do estabelecimento. Por isso é que integra o valor de um estabelecimento, entre outros fatores, o fluxo de clientes ou fregueses, ou seja, a capacidade de atrair compradores, já que o objetivo empresarial é o lucro.

A segunda das estruturas em que se pode imaginar como modelo a ser utilizado para a

limitação de responsabilidade do empresário individual é o estabelecimento individual de

responsabilidade limitada. Com efeito, a sistemática para tal modelo consiste na afetação de

uma parcela do patrimônio do empresário, em que o valor do patrimônio afetado consistirá

no capital inicial do estabelecimento que ganhará personalidade jurídica distinta, a partir do

registro do ato constitutivo.

Em Portugal, desde o advento do Decreto-Lei nº 248, de 25 de agosto de 1.986, já se

reconhece a limitação de responsabilidade do empreendedor individual, sob o manto do

estabelecimento individual de responsabilidade limitada, também conhecido pela sigla

abreviativa de EIRL. Pela referida legislação, tem-se que para se constituir o

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estabelecimento individual de responsabilidade limitada, faz-se mister a separação de um

patrimônio mínimo, no valor de cinco mil euros, só podendo haver um estabelecimento

individual de responsabilidade limitada, por pessoa. Tal patrimônio mínimo precisa estar

inteiramente liberado, ou seja, integralizado, quando da constituição, que se dará a partir do

registro do ato constitutivo, no Registro de Comércio. A segregação patrimonial é tão

grande que, inclusive, encontra-se o titular do estabelecimento individual de

responsabilidade limitada proibido de desafetar qualquer quantia que exceda os lucros

líquidos anuais. Assim, para poder haver a referida desafetação, impõe-se, inclusive, a

liquidação do estabelecimento, com a posterior extinção deste, mediante registro do

encerramento da liquidação.

A personificação do estabelecimento, nos mesmos moldes da personificação da

empresa, também não é isenta de críticas. Nos mesmos moldes que a personificação da

empresa, a personificação do estabelecimento não se sustenta, na medida em que este nada

mais é do que o complexo de bens que o empresário utiliza para desenvolver aquela; é,

portanto, um objeto de direito. Impende-se frisar que não é o estabelecimento que vai

adquirir direitos ou contrair obrigações; quem os fará será ou a sociedade empresária ou o

empresário individual. O estabelecimento é, apenas, o móvel a partir do qual serão travadas

relações com o empreendedor individual ou coletivo. Atribuir personalidade jurídica ao

estabelecimento é, por outros termos, conceder ao titular do empreendimento, sujeito de

direito, portanto, a possibilidade de ser senhor de um outro sujeito de direito, quando se sabe

que são distintas as personalidades da pessoa jurídica e das pessoas que a compõe. A esse

respeito, a lição de Francesco Messineo (1957, p. 275) ao ressaltar que da personificação:

Deriva, outrossim, a independência da sorte (ainda que econômica) da pessoa jurídica daquela que a constituiu ou que dela faz parte: são esses os fundadores (ou o fundador) ou os sócios... os direitos e os deveres patrimoniais (obrigações, débitos) da pessoa jurídica perante terceiros, não afetam os direitos e deveres patrimoniais (obrigações, débitos) dos membros dela perante terceiros5.

A referida distinção ou independência de personalidades sumiria com a personificação

do estabelecimento, na medida em que quem contrata é o empresário. Haveria, portanto, um

sujeito de direito (o estabelecimento) contratando por interposta pessoa (o empresário). Não

5 Tradução livre de: “Ne deriva, altresí, l’indipendenza della sorte (anche econômica) della persona giuridica de quella di coloro Che la constituiscomo, o ne fanno parte: siano essi il fondatore (o i fondatori), o gli associati… i diritti e i doveri patrimoniali (obbligazioni, debiti) della persona giuridica verso i terzi, no incidono sui diritti e doveri patrimoniali (obbligazioni, debiti) dei componenti di essi verso e i terzi”.

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é, assim, de nenhum modo, o estabelecimento que vai adquirir direitos ou contrair

obrigações, ainda que personalizado. Procedentes são as críticas de Wilges Ariana Bruscato

(2005, p. 117-118):

Sua natureza não é própria à assunção de direitos e deveres. Não é o estabelecimento que é sujeito de direito. Ele não titulariza a si mesmo. Ele é a reunião de bens para que a empresa, funcionalmente considerada, se desenvolva. Esta também não é sujeito de direitos e deveres. É o empresário, ou a sociedade empresária, quem detém o estabelecimento.

A mesma Wilges Ariana Bruscato (2005, p. 120) ressalta, e com ela há de se

concordar, que a única vantagem da personificação do estabelecimento seria a proteção ao

nome, vale dizer, ao título de estabelecimento. É de se lembrar, ademais, que inexiste

proteção formal a tal elemento de identificação. Frise-se, por oportuno, que a doutrina

reconhece a natureza jurídica do estabelecimento como sendo uma universalidade de fato,

na medida em que, como visto, nada mais é do que o conjunto de bens que o empresário

organiza para o desenvolvimento de seus empreendimentos. Rachel Sztajn defende a

necessidade de rever a posição da doutrina, diante do art. 1146 do Código Civil, haja vista

que, por tal dispositivo, o empresário adquirente de um estabelecimento responde por

débitos anteriores ao trespasse. Comenta Rachel Sztajn (2008, p. 791):

O teor do artigo instiga rever a posição da doutrina sobre ser o estabelecimento universalidade de fato. Universalidade de fato é a pluralidade de bens singulares pertinentes a uma pessoa e com destinação específica. Universalidade de direito – complexo de relações jurídicas de uma pessoa suscetíveis de avaliação econômica. Sublinho as palavras bens e relações jurídicas enfatizando o que extremam com nitidez os dois conceitos. Bens são ativos, relações jurídicas representam posições ativas e passivas. Portanto, se o adquirente do estabelecimento responde por dívidas existentes antes da aquisição, está-se frente à sucessão em obrigações, portanto trata-se de patrimônio. (grifos da autora)

Deve-se verificar, desde logo, que, mesmo havendo a modificação na doutrina

propagada pela citada autora, tal alteração não terá o condão de motivar a personalização do

estabelecimento. O espólio e a massa falida são considerados universalidades de direito, mas

nem por isso têm personalidade jurídica, sendo considerados como entes despersonalizados.

É fato que tanto o espólio quanto a massa falida podem praticar atos jurídicos, porém, só os

fazem se for essencial ao cumprimento de sua função ou se expressamente autorizado. Nesse

sentido, inclusive, até são sujeitos de direito, porém sem personalidade jurídica, pois é

limitada a sua capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações. Ainda que venha a se ter

o estabelecimento enquanto patrimônio, universalidade de direito, praticando relações

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jurídicas que tenham que ver com a finalidade essencial de sua organização, jamais se

poderá concedê-lo aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações.

4.2.3 A sociedade unipessoal de responsabilidade limitada

Uma outra possibilidade de se estruturar um modelo que venha a garantir ao

empreendedor individual a limitação de responsabilidade ao patrimônio destinado ao

empreendimento se dá por intermédio da chamada sociedade unipessoal de responsabilidade

limitada. Com efeito, partindo do princípio de que não se confundem a personalidade dos

sócios com a da sociedade, cada qual tem seu respectivo patrimônio. Deve se ressaltar,

ademais, que, segundo a Teoria Poliédrica da Empresa, a sociedade é sujeito de direito, ou

seja, é alguém com personalidade distinta dos sócios que a compõe, que será titular de

patrimônio, também distinto, com o fito de adquirir direitos e contrair obrigações.

Entretanto, não é tão fácil, nem tranquila, a adoção do referido modelo, da estrutura sob

exame. Com efeito, o sistema societário brasileiro é fortemente contratualista, apesar de a

Lei nº 6.404/76 ter sido concebida segundo a teoria do ato institucional. Em sendo assim,

percebe-se a necessidade de haver pelo menos duas pessoas para se poder falar em contrato

social. É o que se vê no art. 981 do Código Civil, ao prever: “Celebram contrato de

sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços,

para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”.

Apesar da necessidade da contribuição dos sócios para a formação do patrimônio

social, denotando a ideia de pluralidade, deve-se notar que o direito brasileiro já reconhece

algumas possibilidades de sociedades unipessoais. Antes, porém, de apresentá-las, é preciso

definir-se o que se deve entender enquanto sociedade unipessoal. Há de se destacar também

as espécies de sociedade unipessoal reconhecidas pela doutrina.

De início, é preciso separar da noção de sociedade unipessoal as chamadas sociedades

fictícias. Estas são aquelas sociedades que, quanto ao quadro societário, atende-se à

formalidade da pluralidade de sócios, mas que um destes tem participação tão relevante no

capital social, sendo certo afirmar que se trata nada mais do que um mecanismo indireto

para se conseguir a limitação dos riscos e, portanto, a limitação de responsabilidade. Não

estando regulado diretamente, os empreendedores buscarão, como é natural, por outro

meios, fórmulas ou estruturas que deem ensejo à efetivação da limitação de responsabilidade

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ao patrimônio empregado para o exercício da atividade. A este respeito, leciona Luiz

Antonio Soares Hentz (2003, p. 172):

A negação da responsabilidade limitada para o empresário individual resultou, na prática, em todos os lugares, na utilização de métodos condenáveis. Dentre os meios de que se tem valido a engenhosidade jurídico-empresarial para se furtar à responsabilidade patrimonial plena, como sucede com a firma individual, está a sociedade fictícia ou pro forma. No Brasil, jamais se deu grande importância à má utilização do modelo societário para o exercício da empresa.

Assim, o fato da não positivação da responsabilidade limitada ao empresário

individual dá ensejo à formatação das sociedades fictícias que nada mais são do que aquelas

em que um dos sócios é quem, de fato, exerce a atividade empresarial, sendo os demais

sócios, apenas, pessoas que cedem seus nomes para a formação do quadro societário. O

mesmo Luiz Antonio Soares Hentz (2003, p. 173) ressalta:

Com efeito, é sabido que a responsabilidade patrimonial do comerciante em nome individual pelas dívidas contraídas na sua atividade empresarial é irrestrita. Abrange todo o seu próprio patrimônio, não só o destacado para sofrer os riscos da empresa, como se dá na sociedade empresária. A fim de evitar a responsabilidade ilimitada, trata-se de criar sociedades fictícias, constituídas mediante simulação, o que, também no direito brasileiro, não as torna inválidas senão quando houver intenção de prejudicar terceiros ou de violar disposição de lei. Caracterizam-se a sociedades fictícias pela existência de um ‘sócio’, o empresário, e outro ou outros que apenas cedem o nome para integrar o quadro social. O que o empresário deseja e alcança é a limitação da sua responsabilidade patrimonial pelas dívidas provenientes da atividade empresarial. Para efeitos jurídicos, tem-se uma sociedade – e com a conseqüência da divisão patrimonial [...] Com o mecanismo das sociedades pro forma, favorece-se também a sociedade, que não será demandada por dívidas dos sócios (art. 292, do antigo CCom, cujo princípio prevalece no novo CCB, embora sem que esteja expressamente consignado no texto).

Não é de se admirar, contudo, que é justamente da praxe das sociedades fictícias que

surge um dos maiores argumentos em prol da adoção da chamada sociedade unipessoal,

como se percebe com Calixto Salomão Filho (2006, p. 199-200):

No caso ora em análise, dever-se-ia imaginar uma realidade de empresários que exercitam todos a atividade em nome próprio e querem escolher a forma organizativa mais conveniente para o exercício do comércio. Nesse caso, e somente, nesse caso, poder-se-ia pensar em escolhas de política legislativa, como a de manter a coerência sistemática, ainda que em prejuízo de um maior incentivo à pequena e média empresa. Uma tal situação, porém, não existe. E são os próprios legisladores a admitir. A introdução de uma forma de limitação de responsabilidade do comerciante individual decorre exclusivamente do reconhecimento de uma situação de fato, consistente na utilização de sociedades fictícias, com um ou mais homens-de-palha, introduzidos com o único objetivo de permitir a limitação de responsabilidade.

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[...] Em caso de instituição de uma forma que não ponha à disposição do empresário as mesmas vantagens da sociedade, esse continuará a fazer uso das sociedades fictícias.

Dentro desse mesmo contexto, não se pode deixar de lembrar a diferenciação exposta

por Wilges Ariana Bruscato (2005, p. 242):

Como exposto, muitos apenas adotam a forma societária com a única intenção de proteger o patrimônio pessoal, em caso de insucesso da empresa, quando não há outra alternativa. Em casos tais, existe, na realidade, uma empresa, individualmente explorada, e, formalmente, uma sociedade empresária, somente na aparência, em que o empreendedor é o titular da grande maioria das quotas e o sócio de mero favor aparece com tímida participação, por que, em realidade, dela não participa, nem na constituição, nem no desenvolvimento da empresa. Esta é a sociedade fictícia. Atualmente, ela se diferencia da sociedade unipessoal. A sociedade unipessoal, no entanto, não é uma simulação: existe reconhecimento legal de formação do ente composto por um único membro. A sociedade unipessoal tem sido definida como aquela ‘em que todas as partes sociais são pertença de uma única pessoa, singular ou coletiva’.

Diferençada, portanto, a sociedade unipessoal da sociedade fictícia ou pro forma, é

preciso que se apresentem as espécies de sociedades unipessoais reconhecidas pela doutrina.

Quanto ao momento da constituição, classificam-se as sociedades unipessoais em: sociedade

unipessoal originária, sociedade unipessoal superveniente, esta subdividida em sociedade

unipessoal superveniente temporária e sociedade unipessoal intercorrente.

A chamada sociedade unipessoal originária ou ab initio é aquela que surge apenas com

um sócio como membro componente do quadro societário. Já a sociedade unipessoal

superveniente é aquela constituída com mais de uma pessoa no quadro societário, mas que

passa a ter apenas um sócio, em razão do falecimento, do recesso ou da expulsão dos demais

sócios.

Fala-se, de um lado, em sociedade unipessoal superveniente temporária quando se está

diante daquelas sociedades constituídas com mais de um sócio e que, por qualquer razão,

passam, temporariamente, a ter apenas uma pessoa como membro componente do quadro

societário, recompondo-se a pluralidade de sócios em certo período de tempo. Vale ressaltar

que, em sendo recomposta a pluralidade de sócios, no tempo previsto pelo ordenamento

jurídico, a sociedade terá funcionado com apenas um sócio; perdendo-se referido prazo, será

considerada dissolvida de pleno direito, não lhe restando outra coisa que não seja a

liquidação e posterior extinção. É acidental, portanto, a redução do quadro societário a um,

nesta hipótese.

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Por fim, tem-se a sociedade unipessoal intercorrente, que é aquela sociedade que nasce

plurilateral, mas que se torna unipessoal e assim continua com o correr da existência, sem

limitação temporal e sem se tornar irregular. A redução aqui é preordenada, vale dizer, a

sociedade tem origem plurilateral, porém, já se encontra acertada a redução do quadro

societário.

Sobre a classificação que ora se apresenta, em comentários ao art. 981 do Código

Civil, Rachel Sztajn (2008, p. 131) aduz:

A exigência de pluralidade de pessoas, duas ou mais, na formação do contrato, constante deste artigo, afasta a legislação brasileira da mais recente orientação nos ordenamentos da Europa Continental, de admitir-se a organização de “sociedades unipessoais”. A unipessoalidade, comum no Brasil na organização da empresa pública, ganha, com a Décima Segunda Diretiva Comunitária, legitimidade desde a constituição. Sobre a unipessoalidade intercorrente, isto é, número de sócios ficar reduzido a um, embora originariamente a pluralidade existisse, também não é admitida pelo ordenamento pátrio.

Apesar de concordar com a autora acima citada no que tange à unipessoalidade

intercorrente, é preciso que se diga que a legislação brasileira não se afasta, mas sim tem se

aproximado dos ordenamentos da Europa Continental, haja vista a regulamentação, ainda

que de modo excepcional, da unipessoalidade superveniente temporária, pelo Código Civil.

Com efeito, a par de vedada a unipessoalidade intercorrente, o direito brasileiro

reconhece uma possibilidade de sociedade unipessoal originária e uma possibilidade de

sociedade unipessoal superveniente temporária, com prazo de recomposição a variar, caso se

esteja diante de sociedade empresária regida pelo Código Civil ou pela Lei nº 6.404/76.

Tratam-se, respectivamente, da Subsidiária Integral (prevista nos arts. 251 e seguintes, da

Lei nº 6.404/76) e da unipessoalidade com prazo para recompor a pluralidade de sócios em

180 dias (art. 1033, IV, do Código Civil) ou em prazo variando entre oito meses e dois anos

e quatro meses (art. 206, I, “d”, da Lei nº 6.404/76), anteriormente relatadas.

4.2.4 O empresário individual de responsabilidade limitada

A última das estruturas possíveis para se regular o instituto que ora se propõe é o

empresário individual de responsabilidade limitada. Vale dizer, atualmente vige, no direito

brasileiro, o princípio da responsabilidade ilimitada para o empresário individual. Frise-se,

por oportuno, a regra geral é a de que por obrigações decorrentes da atividade empresarial,

sejam referentes a débitos ou a danos, o empresário individual irá responder com todo o seu

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patrimônio, inclusive o pessoal, não havendo, portanto, separação patrimonial, relativa aos

bens e relações jurídicas inerentes à atividade empresarial daqueles relativos à vida pessoal

do empresário.

Diz-se regra geral pois, como visto, o direito brasileiro, com o Código Civil,

reconhece uma possibilidade de exercício de atividade empresarial com limitação de

responsabilidade. Trata-se da continuidade do exercício de empresa por incapaz antes

exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor da herança. Neste caso, desde

que com precedente autorização judicial, não ficam sujeitos ao resultado da empresa os bens

estranhos ao acervo empresarial que o incapaz possuía antes da interdição ou da sucessão.

Apesar de, como também já ressaltado, a opinião da doutrina seja a de que tal limitação de

responsabilidade decorra do entendimento pelo qual o incapaz não poderia sofrer os ônus do

insucesso empresarial, exatamente por lhe faltar de algum modo o discernimento, o fato é

que acabou-se por materializar a ideia do patrimônio de afetação para fins empresariais, no

ordenamento jurídico brasileiro.

Não se pode aqui olvidar que já Asquini (1996, p. 118), como anteriormente citado e

transcrito, asseverava que o patrimônio empresarial, em razão de seu escopo, é um

patrimônio especial distinto do restante patrimonial do empresário. O próprio Asquini

ressalta que, em razão desta segregação patrimonial, construíram-se as teorias sobre a

personificação da empresa, que não se sustentam, nem foram acolhidas. A quarta das

estruturas possíveis é exatamente a de se limitar a responsabilidade do empresário ao

patrimônio envolvido na atividade empresarial. Adotando-se o princípio da unidade

patrimonial, como tal reconhecido no direito brasileiro, pode-se reconstruir a ideia

apresentada no sentido de que se buscaria a limitação da responsabilidade do empresário

individual à parcela patrimonial afetada à sua atividade. Nesta perspectiva, são as palavras

de Wilges Ariana Bruscato (2005, p. 269):

O patrimônio de afetação é uma forma de excluir, por exceção, bens em situações específicas e determinadas, como já ocorre no bem de família, nos bens sujeitos à comunhão de bens dos cônjuges, no usufruto, no espólio em relação ao herdeiro, etc. Essa possibilidade se abre, vencendo-se o caráter indivisível do patrimônio. No entanto, se se considerar tal questão insuperável, basta entendê-la como mero destaque de bens de um patrimônio único. [...] A operacionalidade de tais massas patrimoniais se dá através do sujeito único de direito, que as utilizará tendo como divisor de águas a finalidade empresarial, a destinação específica, devidamente inscrita. E por isso o empresário não deve dela se afastar, sob pena de responsabilização pessoal.

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Tradicionalmente, como se viu, o empresário individual, em razão das obrigações

oriundas do exercício da atividade empresarial, tem responsabilidade ilimitada. Sylvio

Marcondes Machado (1956, p. 19) explica:

O princípio da responsabilidade ilimitada, consagrado nas legislações e segundo o qual a pessoa responde por suas dívidas com todos os bens, constitui o eixo de um inteiro sistema organizado no plano jurídico para prover à segurança das relações dos homens, na ordem econômica. Sujeitando a massa dos bens da pessoa à satisfação de suas obrigações, a lei, de uma parte, confere aos credores garantias contra o inadimplemento do devedor; de outra, impõe a êste (sic) uma conduta de prudência na gestão dos próprios negócios. E, assim, refreia a aventura, fortalece o crédito e incrementa a confiança.

É curioso, contudo, notar que é, também, a segurança das relações econômicas que fez

mitigar o princípio da responsabilidade ilimitada, dando origem ao princípio da limitação de

responsabilidade. Convém esclarecer, conforme Antônio Martins Filho (1999, p. 289), que o

princípio da responsabilidade limitada em matéria de direito comercial tem sua explicação

em imperativos de ordem sociológica, “que nada mais significa do que a revolta dos fatos

contra a lei”. O principal argumento para o não reconhecimento da limitação de

responsabilidade do empresário individual se deve à chamada teoria da unidade do

patrimônio. Contradita tal argumento Antonio Martins Filho (1999, p. 292), ressaltando:

O tradicional argumento da ‘indivisibilidade do patrimônio’ e outros que tais, poderão ser invocados, à guisa de resposta a essas interrogações. Mas, a êles (sic) teremos o ensêjo (sic) de abordar, em outro capítulo dêste (sic) trabalho.

Por enquanto limitamo-nos a reconhecer a emprêsa (sic) individual de responsabilidade limitada representa um imperativo da hora presente, isto é, mais uma pressão dos fatos sôbre (sic) a lei.

A teoria da unidade do patrimônio e, por decorrência, o princípio da responsabilidade

ilimitada vêm sofrendo um abrandamento, haja vista a tese do patrimônio de afetação, pela

qual se concebe uma segregação ou divisão do patrimônio, que ficam vinculados a uma

finalidade específica e, portanto, só respondem por obrigações oriundas de tal patrimônio.

Assim, não há comunicação dos patrimônios, geral e afetado, na constância da afetação

patrimonial. Credores do patrimônio de afetação deverão se contentar com este patrimônio

separado, não podendo visar ao patrimônio geral para garantir seus interesses, e vice-versa.

Sobre o patrimônio de afetação, bem explica Caio Mário da Silva Pereira (1998, p. 251):

Com a construção da teoria da afetação, uma corrente de juristas pretendeu atingir a doutrina tradicional da unidade do patrimônio, sustentando que aqueles bens constituem patrimônio de afetação, distintos e separados. Opera-se, assim, a cisão do complexo bonitário, sustentando-se que, afora o patrimônio geral, há os

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especiais, destacados pela afetação. Desta sorte, abrir-se-ia uma brecha na noção da unidade e indivisibilidade, pois que, enquanto a doutrina tradicional considera o patrimônio como uma relação subjetiva (‘cada pessoa tem um patrimônio’), a teoria da afetação entende que existem bens a compor os patrimônios da pessoa (natural ou jurídica), objetivamente vinculados pela idéia de uma afetação a um fim determinado.

Apesar de o próprio Caio Mário da Silva Pereira (1998) entender que a afetação só

implica em patrimônio caso seja verificada a criação de uma personalidade, o direito

brasileiro reconhece o patrimônio de afetação sempre que parcela de um patrimônio é

destacada para um fim determinado e que, como tal, não se mistura, nem comunica com o

chamado patrimônio geral. Pode se sentir perfeitamente o acolhimento da referida teoria,

quando se lê o art. 119, IX, da Lei nº 11.101/05, que prevê:

Os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.

O patrimônio de afetação seria, assim, o meio pela qual poderá ter consagrada a

limitação de responsabilidade do empresário individual. A responsabilidade do empresário

individual restaria limitada à parcela do patrimônio afetada à atividade econômica. O

patrimônio empresarial seria, assim, um patrimônio especial e distinto do patrimônio geral

do empresário, dentro do que defende, inclusive, como visto, Alberto Asquini. Percebe-se,

inclusive, que o patrimônio empresarial é distinto do patrimônio geral do empresário, em

dois momentos, no Código Civil: o art. 974, já transcrito, que regula a continuação da

atividade empresarial por incapaz com limitação de responsabilidade; e o art. 978, que

prevê: “O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja

o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de

ônus real”. Priscila M. P. Corrêa da Fonseca (2008, p. 123), sobre o art. 978, comenta:

O referido dispositivo legal assegura a independência do patrimônio da empresa em relação ao de seu titular ou sócios. Visa, outrossim, evitar que a empresa possa sofrer solução de continuidade em sua atividade negocial em razão de eventuais desentendimentos entre cônjuges – sejam eles sócios ou não –, ou mesmo em razão de resistência injustificada por parte de um deles quando a alienação de bem móvel ou imóvel se fizer indispensável ao andamento dos negócios sociais.

Não é difícil perceber que o patrimônio empresarial é independente do patrimônio

pessoal do empresário titular. É assim, o patrimônio empresarial, nada mais do que uma

parcela do patrimônio de uma pessoa que é destacada para ser utilizada especificamente em

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um empreendimento econômico, ou seja, trata-se de patrimônio de afetação. Com efeito, se

há independência entre o patrimônio da empresa e o patrimônio do titular, há patrimônio de

afetação, pelo que as obrigações vinculadas a tal patrimônio deveriam ser apenas por ele

garantidas. Demonstra-se, portanto, ser insustentável o não reconhecimento da

independência do patrimônio da empresa em relação ao do seu titular, mantendo-se o

princípio da responsabilidade ilimitada do empresário individual.

Como se viu, o Direito Empresarial é bem representado através do binômio atividades

empresárias e mercado. Com efeito, mediante a noção de viabilidade econômica atrelada à

função social da empresa6, tem-se que as atividades empresárias que se revelarem

economicamente viáveis devem ser preservadas, e o Estado precisa garantir tal preservação,

para o bem e o bom funcionamento do mercado. É a atividade que qualifica o sujeito

enquanto empresário; é a atividade empresária que passa a primeiro plano, quando da

mudança de perspectiva da disciplina. Este é o entendimento da Rachel Sztajn (2004, p. 10):

Mercado e organizações, creio, são o cerne do moderno Direito Comercial. Portanto, os princípios norteadores do Direito Comercial, mesmo com a unificação do direito privado, não afastam a antiga concepção sobre ser ele um direito especial em relação ao direito comum, direito civil, agora, entretanto, não mais relacionado aos atos de comércio, de criação francesa, mas como direito dos mercados e das empresas. Não um direito classista ou corporativista, mas um direito de caráter econômico que replica a microeconomia.

Atenta-se contra a função social da empresa a manutenção do status quo. Urge que se

regule a limitação de responsabilidade do empresário individual. Deve, portanto, o

patrimônio da empresa ser o alvo único de obrigações empresariais, não se misturando, nem

se confundindo, do ponto de vista de responsabilidades, o patrimônio empresarial e o

6 Tem sido extremamente rico o debate em torno do que seria a denominada função social da empresa. De um lado há aqueles, como Milton Friedman (1988), na obra Capitalismo e Liberdade, que evidenciam que a função social da empresa não pode ser outra senão a maximização dos lucros. Existe todavia uma corrente doutrinária que entende que o lucro não poderia ser colocado em primeiro plano, como um fim em si mesmo, havendo a necessidade de inserção do empresário no que tange às “preocupações sociais e ambientais por parte das empresas nas suas operações e na interação com a comunidade”, como se percebe em Eduardo Tomasevicius Filho (2005, p. 40). Nesse viés, só teria função social aquelas empresas que empregassem seus esforços a partir de um compromisso ético e socialmente responsável. Como se percebe, na verdade, esta segunda corrente confunde as noções de função social da empresa e de responsabilidade social da empresa. Aquela é obrigatória de ser cumprida e deve ser entendida, em seu conteúdo material, como sendo a busca pelo lucro, desde que atendidas as condicionantes legais, ou seja, as prescrições do ordenamento jurídico; a responsabilidade social, por sua vez, não pode ser vista como outra coisa que não seja um mero ato de voluntariedade do empresário, que só vai praticá-lo se, e até o momento em que lhe parecer interessante, da prática de tais atos socialmente responsáveis seja viável ao ponto de se poder retirar dela algum proveito. É desse modo que ressalta Viviane Perez (2008, p. 212): “Como se percebe, pois, a distinção se acentua no fato de a responsabilidade social ser uma postura voluntária do empresariado, enquanto a função social incide sobre o exercício da atividade empresarial e é de observância cogente por força do comando constitucional”.

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patrimônio pessoal, ambos já separados desde Alberto Asquini. Percebe-se, assim, que a

atividade empresarial passa a ser relevante para o novo Direito Comercial, e não mais o

sujeito ou o ato por este praticado. Dessa forma, se é a atividade econômica organizada

voltada a atender a um interesse de mercado o viés importante, torna-se imperioso que se dê

à referida atividade o mesmo tratamento jurídico e não tratamentos distintos acaso se esteja

diante de atividade desenvolvida por pessoa física ou por pessoa jurídica.

4.3 A constitucionalidade da limitação de responsabilidade

Sob o foco constitucional, a regulamentação da limitação de responsabilidade do

empresário individual também se impõe. Com efeito, o art. 5º, XX, diz que “ninguém poderá

ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”; o art. 170, por sua vez, dispõe que

“a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem

por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,

observados os seguintes princípios”, dentre outros, “propriedade privada, função social da

propriedade, livre concorrência e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte

constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.

Na medida em que não se tem a limitação de responsabilidade do empresário

individual, de modo direto, o mesmo se vê compelido a se associar e a permanecer

associado, por intermédio de sociedades que só o são formalmente. Apenas um dos sócios é

que tem interesse no empreendimento econômico; os demais, por mera liberalidade, acabam

por emprestar seus nomes a fim de que se constitua validamente, apenas, do ponto de vista

formal, a sociedade. Esclarece, a propósito, António de Arruda Ferrer Correia (1948, p. 17):

Eles não aspiram a ter qualquer ingerência efetiva na direção da empresa, mas prometem prestar em todo o caso, gratuita ou interessadamente, o quantum satis de cooperação pessoal para a manutenção da aparência criada: assinando as atas das assembléias gerais, a que não assistem, subscrevendo os balanços que aliás não lêem e que, portanto, não podem querer aprovar. Nenhuma pretensão alimentam a haver parte nos lucros do negócio.

A limitação de responsabilidade do empresário individual vem ao encontro do

princípio constitucional da livre concorrência. Haverá concorrência desleal entre uma

sociedade limitada e um empresário individual que tenham o mesmo porte econômico, o

mesmo número de funcionários, o mesmo faturamento, o mesmo nicho de mercado, diante

da limitação de risco em razão do insucesso da atividade empresarial diante de sociedade

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limitada, limitação inexistente no que tange ao empresário individual que responde com

todo o seu patrimônio por débito oriundo do patrimônio afetado ao empreendimento

empresarial, inexistindo sequer benefício de ordem.

Note-se que a limitação de responsabilidade do empresário individual pode funcionar,

também, como um incentivo e um tratamento favorecido ao empresário brasileiro de

pequeno porte. Ressalta Calixto Salomão Filho (1995, p. 67):

É bastante claro que o empresário individual é, na sua forma típica, um pequeno e médio empresário, com poucos dependentes e pouca utilização de capital. É exatamente nessa característica típica que a sociedade unipessoal encontra sua justificação econômica mais evidente. O apoio à pequena e média empresa é o principal fundamento econômico para o reconhecimento da sociedade unipessoal com responsabilidade limitada.

Limitando-se, pois, a responsabilidade do empresário individual, aqueles que se

dedicam a empreender atividades econômicas isoladamente alocariam mais capital à

atividade, visando dela auferir mais lucros. Incrementar-se-ia, indiretamente, a economia

nacional, como um todo, na medida em que criaria possibilidades de aumento de emprego,

tributo e renda.

Relembre-se, por oportuno, que a ordem econômica tem por finalidade assegurar a

todos vida digna e que a dignidade da pessoa humana se constitui, inclusive, em fundamento

da República Federativa do Brasil, como se vê no art. 1º, III, constitucional. Pois bem, a

partir do momento em que se regulamentar o instituto sub examine, ter-se-á atendido aos

ditames do princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que se deixará livre o

patrimônio pessoal daquele que exerce atividade de empresa, dos ônus de tal atividade,

ficando referido patrimônio a garantir o livre desenvolvimento da personalidade do

empresário.

4.4 As primeiras tentativas de regulamentação

O Brasil, como se viu, não admite a possibilidade de uma pessoa, individualmente,

iniciar o exercício de atividades econômicas com limitação de responsabilidade. Com o

advento do Código Civil, em 2002, e em face dos ideais de preservação da empresa,

estabelecem-se possibilidades da continuidade do exercício de atividades empresariais, com

responsabilidade limitada, ainda que seu exercente seja uma pessoa natural. Tudo,

entretanto, no âmbito da superveniência e da temporariedade. É o que se vê,

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respectivamente, na continuidade do exercício de atividade empresarial por incapaz e na

unipessoalidade temporária em face da resolução do vínculo societário em relação a um

sócio.

O incapaz, pelo período que viger sua incapacidade, caso autorizado previamente pelo

Judiciário, poderá exercer atividade empresarial, não estando sujeitos ao resultado da

empresa os bens que o incapaz já possuía e que forem estranhos ao acervo daquela. Cessada

a incapacidade, seja em razão do advento da maioridade ou emancipação, seja em razão de

se alcançar o desenvolvimento mental completo ou o necessário discernimento para a prática

dos chamados atos da vida civil (art. 3º), cessará a limitação de responsabilidade em análise,

na medida em que perderá, pelos meios jurídicos próprios, os efeitos da sentença de curatela

ou de interdição. Por todo o período, portanto, que intermediar da autorização judicial para a

continuação da atividade por conta da sucessão ou da interdição até cessar a incapacidade do

agente, o mesmo exercerá atividade empresarial, com a responsabilidade limitada ao

patrimônio empresarial. Tem-se aí uma alternativa não-societária.

Diante de sociedades empresárias, e a sociedade limitada é sempre o melhor dos

exemplos, pode ocorrer de uma sociedade vir a ficar com apenas uma pessoa enquanto

componente do seu quadro societário, seja em razão da morte, da saída ou da exclusão dos

demais sócios. Aqui, estabelece-se um prazo de 180 dias, a fim de que seja recomposta a

pluralidade dos sócios. Havendo tal recomposição, referida sociedade terá funcionado, sob

este aspecto, por todo o sempre, de modo regular. Entretanto, mire-se no lapso temporal que

vai do dia em que acaba a pluralidade de sócios, até a data em que é recomposta, dentro da

baliza legal. A sociedade empresária limitada funcionaria aí regularmente, com um só sócio

e com a limitação de responsabilidade que é peculiar ao tipo societário. Percebe-se, portanto,

uma alternativa societária.

Algumas tentativas de regulamentação da limitação da responsabilidade do empresário

individual já ocorreram no Brasil. Nesse ínterim, tomar-se-á como objeto de análise os

projetos de lei advindos posterior à publicação e vigência do Código Civil atual. Com efeito,

existiram projetos anteriores, como a proposta feita por Antonio Martins Filho (1999, p.

316). Na medida em que o Código Civil de 2002 tenta unificar as obrigações, bem como

implementar, em termos gerais, a teoria da empresa, no direito brasileiro, demonstra-se a

necessidade de tê-lo como foco inicial da pesquisa legislativa.

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124

Os legisladores brasileiros apresentaram, entre os anos de 2003 e 2005, projetos de lei

para inserir a sociedade unipessoal no Código Civil vigente. O primeiro deles foi o projeto

de lei nº 2.730/2003, que foi aprovado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico,

Indústria e Comércio. A justificativa para a criação de tal projeto, apresentado pelo então

deputado Almir Moura (PL/RJ), era a de que este incentivaria as pequenas empresas e,

consequentemente, daria um estímulo à economia do país.

Seria incluído no Código Civil de 2002, em seu Título II, que trata “Da Sociedade”, o

art. 985-A, que teria a seguinte redação:

Art. 985-A. A sociedade unipessoal será constituída por um único sócio, pessoa singular ou coletiva, que é o titular da totalidade do capital social. § 1º. A sociedade unipessoal também pode resultar da concentração das quotas da sociedade num único sócio, independentemente da causa da concentração. § 2º. A firma da sociedade deverá ser formada pela expressão ‘Sociedade Unipessoal’ ou ‘Unipessoal’, antes da palavra ‘Limitada’ ou da abreviatura ‘Ltda’. § 3º. Somente o patrimônio social responderá pelas dívidas da sociedade unipessoal.

A justificativa da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio

para apoiar o projeto foi que a situação atual do empresário individual acaba por prejudicá-

lo severamente, pois, ao se confundirem os patrimônios, o risco do pequeno negociante é

muito maior. E ainda reforçou dizendo que a situação atual do empresário individual em

relação à limitação de responsabilidade vai na contramão de tantos avanços, como o

SIMPLES e o Estatuto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, entre outras tantas

que melhoraram as condições do empresário individual.

O projeto de lei nº 2.730/2003 foi, portanto, aprovado por parecer do então Relator, o

deputado Lupércio Ramos (PPS/AM), contra os votos dos deputados Osório Adriano e Jorge

Boeira, que acompanharam o voto em separado do deputado Reginaldo Lopes, que, apesar

de concordar com a ideia do projeto, apresentava alguns receios que não se sustentavam.

Entretanto, tal projeto de lei foi arquivado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados,

nos termos do art. 105 do Regimento Interno, por ter findada a legislatura em que ocorrera

tal propositura.

Outro projeto de lei foi apresentado em 2004. Tratava-se do projeto de lei nº

3.667/2004 que, dentre outras alterações ao Código Civil, propunha a possibilidade de

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constituição de sociedade limitada por apenas um sócio, contanto que fosse pessoa física

residente no país. A redação da proposta era a seguinte:

Art. 13. A sociedade limitada pode ser constituída e existir legalmente por um único sócio, que seja pessoa física residente no país. Parágrafo Único. Este dispositivo aplica-se às sociedades simples (arts. 997 a 1.038 da Lei 10.406, de 10 da janeiro de 2002, Código Civil) e de advogados (arts. 15 a 17 da Lei 8.906, de julho de 1994, Estatuto da Advocacia).

Diante do dispositivo em análise, percebe-se a admissão de que tanto o empresário

individual como as sociedades simples e de advogados podem constituir uma sociedade

unipessoal limitada. E a justificativa para o apoio a este projeto foi o fato de diversos países

já terem, em seus ordenamentos, essa forma societária. Apesar de o referido projeto ter sido

aprovado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio, optou-se

por retirar dito dispositivo em razão do projeto de lei nº 2.730/2003, já mencionado, ser

considerado mais abrangente e adequado. Assim, recebeu aprovação final da aludida

Comissão e da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo sido remetido ao

Senado Federal, em novembro de 2007.

Em 2005, o deputado Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB/SP) apresentou o projeto

de lei nº 5.805. O projeto de lei nº 5.805/2005 teve por objetivos: definir a figura do

“pequeno empresário”; instituir o “empresário individual de responsabilidade limitada”; e

estabelecer normas para o tratamento favorecido das microempresas e empresas de pequeno

porte. O dispositivo que criava uma forma de limitação de responsabilidade do empresário

individual era o art. 3º do aludido projeto de lei, que previa:

Art. 3º. Fica criada a figura do empresário individual de responsabilidade limitada, enquadrado na forma do inciso II do art. 2º da Lei nº 9.841, de 5 de outubro de 1999, com responsabilidade patrimonial limitada ao montante do capital social, o que deverá ser anotado em sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis. § 1º. O empresário individual de responsabilidade limitada poderá ser constituído pela concentração de todas as quotas da sociedade empresária sob titularidade de apenas um sócio, por meio de procedimento de conversão, perante o Registro Público de Empresas Mercantis.

Referido projeto de lei foi aprovado na Comissão de Desenvolvimento Econômico,

Indústria e Comércio, tendo o deputado Fábio Ramalho (PV/MG) apresentado parecer à

Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania opinado pela constitucionalidade,

juridicidade e técnica legislativa, em 5 de dezembro de 2008. Entretanto, em 8 de dezembro

de 2008, o mesmo deputado apresentou requerimento à Mesa Diretora da Câmara dos

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Deputados, pedindo a declaração de prejudicialidade do projeto de lei nº 5.805/2005, na

medida em que entende que “a proposição perdeu a oportunidade pela transformação em

diploma legal”. No mesmo requerimento, aduz que a prejudicialidade do referido Projeto de

Lei se apresenta nos vetos a dois dispositivos da Lei Complementar nº 123/2006.

A mencionada Lei Complementar instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da

Empresa de Pequeno Porte e trouxe na sua redação original outra tentativa, em seu art. 69,

de inserir uma limitação de responsabilidade ao empresário individual, que foi vetado.

Referido dispositivo previa:

Do Empreendedor Individual de Responsabilidade Limitada Art. 69. Relativamente ao empresário enquadrado como microempresa ou empresa de pequeno porte nos termos desta Lei Complementar, aquele que somente responderá pelas dívidas empresariais com bens e direitos vinculados à atividade empresarial, exceto nos casos de desvio de finalidade, de confusão patrimonial e obrigações trabalhistas, em que a responsabilidade será integral.

A motivação para o veto ao referido dispositivo foi a acolhida, no seu total, de

manifestação dos Ministérios da Fazenda e Trabalho e Emprego, cujas razões merecem

transcrição:

Razões do veto Na relação tributária, que é o que interessa para o presente estudo, verifica-se, logo em uma primeira análise, a ocorrência de afronta ao texto constitucional. Com efeito, dispõe o art. 146, II, a, in fine, da Constituição Federal de 1988 que cabe à Lei Complementar ‘estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre [...] contribuintes’. Ora, o Código Tributário Nacional, que regulou toda a matéria relativa à responsabilidade tributária (arts. 128 a 138), restou recepcionado com eficácia passiva de Lei Complementar, atendendo pois, ao comando acima transcrito. Não se pode, agora, por meio de norma que sequer tem como objeto principal dispor acerca de normas gerais em matéria tributária, alterar a disciplina já instituída pelo CTN. Tal pretensão afigura-se de todo inoportuna, podendo ser até coimada de inconstitucional. Por fim, o argumento de que o desvio de finalidade e a confusão patrimonial são bastante para caracterizar a responsabilidade integral do empresário vai de encontro às circunstancias de fato que apontam para uma fiscalização da administração pública que não tem qualquer condição material de verificar a ocorrência de tais eventos. Hoje, quando há tal constatação, a mesma invariavelmente é tardia, tornando o trabalho ineficaz e os créditos perdidos. A situação torna-se pior quando o credor é particular, posto que não tem o mesmo acesso probatório e não pode exercer a auto-executoriedade típica dos atos emanados do poder público. Os debates no Ministério da Fazenda levaram à conclusão de que é possível consagrar, por meio de adequadas alterações normativas, a responsabilidade limitada para o empresário individual. Entretanto, restou especial preocupação em relação à interação do dispositivo proposto no Projeto de Lei em análise com as normas relacionadas à responsabilidade do empresário, em especial aquelas atinentes às

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responsabilidades tributárias, trabalhistas, previdenciárias e frente ao consumidor, dentre outras, as quais deverão merecer análise mais profunda. De fato, os contornos dados à responsabilização do empresário restaram dúbios, em vista das expressões ‘desvio de finalidade, de confusão patrimonial e obrigações trabalhistas, em que a responsabilidade será integral’. Não se vislumbra óbices, todavia, a que o Governo aprofunde os estudos sobre o tema e, oportunamente, apresente uma proposta que contemple as alterações normativas adequadas para o fim desejado.

É interessante ressaltar que as razões destacadas para o veto do art. 69 da Lei

Complementar nº 123/06 não gozam de amparo constitucional. Com efeito, nada há a

impedir que uma lei complementar específica excepcione matéria atinente à

responsabilidade tributária prevista no Código Tributário Nacional, pois, ao contrário do que

dispõe o veto, na Constituição Federal nada se percebe sobre a necessidade de se ter apenas

uma lei complementar sobre o assunto; inexiste dispositivo constitucional para isso. Pode-

se, pois, ter como regime geral o Código Tributário Nacional e, como específico, o disposto

na lei complementar especial. No veto, há a alegação de ser a Lei Complementar

inconstitucional, mas o que se vê é uma demasiada preocupação, não com uma possível

afronta à Constituição Federal, mas sim com a facilitação da fiscalização tributária.

Não se pode deixar de considerar que, apesar de não ter fundamento as razões do veto,

a forma como o instituto seria regulado não seria das melhores. Com efeito, inobstante tentar

se limitar a responsabilidade do empresário ao patrimônio afetado à sua atividade, no

tocante a questões trabalhistas a responsabilidade seria integral. Frise-se, pois, por oportuno,

que a afetação patrimonial não seria levada em conta no que tange aos créditos decorrentes

da legislação do trabalho. A ser assim, nada obstaria que no futuro também viesse a se

excluir os créditos decorrentes da relação de consumo, da relação tributária etc., caindo por

terra o instituto projetado.

Recentemente, foi apresentado na Câmara dos Deputados, pelo deputado Marcos

Montes (DEM/MG), projeto de lei, em 4 de fevereiro de 2009, recebendo o nº 4.605. Tal

projeto se encontra atualmente tramitando perante a Comissão de Desenvolvimento

Econômico, Indústria e Comércio, desde 13 de fevereiro de 2009. A referida proposta

pretende criar a empresa individual de responsabilidade limitada, sendo constituída por

pessoa natural, definindo, ainda, que a responsabilidade por obrigações empresariais, seja

oriunda de débitos ou de danos, limita-se ao patrimônio afetado à atividade empresarial.

Propõe-se a inserção de um art. 985-A, nos seguintes termos:

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Art. 985-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é o titular da totalidade do capital social e que somente poderá figurar numa única empresa dessa modalidade. § 1º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. § 2º A firma da empresa individual de responsabilidade limitada deverá ser formada pela inclusão da expressão ‘EIRL’ após a razão social da empresa. § 3º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio pessoal do empresário, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue à Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda. § 4º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada os dispositivos relativos à sociedade limitada, previstos nos arts. 1.052 a 1.087 desta lei, naquilo que couber e não conflitar com a natureza jurídica desta modalidade empresarial.

O mencionado projeto busca positivar uma espécie de sociedade unipessoal, ainda que

sob o nome de empresa individual de responsabilidade limitada. Com efeito, percebe-se a

possibilidade da constituição inicial de sociedade unipessoal, bem como da sua constituição

superveniente, a partir da concentração de quotas. Cabível ressaltar que, em ambos os casos,

“somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de

responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio

pessoal do empresário”.

De tudo o que se percebe, vê-se que tais projetos oscilam entre adotar um formato

societário ou um formato não-societário para a regulamentação da limitação de

responsabilidade do empresário individual. É preciso salientar que à primeira vista o

ordenamento jurídico não validaria tal disciplinamento, ante o fato de o direito brasileiro

adotar a teoria da unidade do patrimônio, bem como para o direito societário haveria a

necessidade de se ter o mínimo de dois sócios, na conformidade do art. 981, do Código

Civil, pelo que descabe, regra geral, falar-se em sociedade unipessoal.

4.5 O instituto projetado

Do que aqui se viu, ainda que arquivadas, ou, quando aprovadas, vetadas, as tentativas

de regulamentação da limitação de responsabilidade do empresário individual, no Brasil,

oscilam entre soluções societárias e não-societárias. Resulta claro, entretanto, que,

independente da solução preconizada, é fato a constitucionalidade do instituto projetado,

pelas razões anteriormente expostas. Percebe-se uma certa variação nos modelos delineados

pela doutrina brasileira, indo dos modelos de personificação da empresa de Antonio Martins

Filho (1999) e Romano Cristiano (1977), passando-se pelas propostas societárias (sociedade

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unipessoal) como a de Calixto Salomão Filho (1995), até se chegar à proposta não-societária

(patrimônio de afetação) de Wilges Ariana Bruscato (2005).

Chega-se ao momento, portanto, de trazer alguma contribuição ao presente debate, no

sentido da idealização de um modelo que venha, na sua completude, a regulamentar o

exercício individual de atividade empresarial com limitação de responsabilidade, tanto para

a pequena e média, quanto para a grande empresa. Desde que se atente ao fato de que é o

binômio atividade empresarial e mercados o que fundamenta o âmbito do “novo” Direito

Comercial, agora Direito Empresarial, e provada a constitucionalidade do instituto sob

análise, é preciso que se busque uma estrutura que venha a atender a empresa de qualquer

tamanho. Faz-se necessário que, num mesmo modelo, tenha-se estrutura que sirva tanto ao

empresário que se dedique, sozinho, a uma pequena empresa e que possa atuar com

limitação de responsabilidade, quanto ao empresário individual dedicado a grandes

empreendimentos.

4.5.1 Constituição: a necessidade do registro e de um nome

A temática relativa à constituição da limitação de responsabilidade do empresário

individual remete, de início, à questão da necessidade de registro. Com efeito, sabe-se, até

por imperativo do Código Civil, em seu art. 967, que “É obrigatória a inscrição do

empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início

de sua atividade”. Antes de mais nada, deve-se ressaltar que, apesar da dicção literal do

dispositivo anteriormente não transcrito, não é o registro que vai dar a qualidade de

empresária à pessoa que vier a efetivá-lo. Com efeito, o que vai qualificar alguém enquanto

empresário é o exercício de atividade considerada empresarial. Vale dizer, é a atividade que

qualifica o sujeito e não o registro. Se o registro tivesse o condão de qualificar alguém

enquanto empresário, as sociedades cooperativas deveriam ser consideradas espécies de

sociedade empresária e não as são, como se percebe da leitura do parágrafo único, do art.

982, do Código Civil.

Para além da mera previsão legal das finalidades insculpidas na Lei nº 8.934/94, em

seu art. 1º, pode-se dizer que o registro tem basicamente duas grandes funções: (i) a

regularização do exercício das atividades empresariais; e, (ii) no caso das sociedades

empresárias, a atribuição de personalidade jurídica. Ora, percebido que não é o registro que

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vai dar a alguém a condição de empresário, é preciso que exista alguma vantagem que se

traduza em motivação para que os empresários se registrem. Tal motivação é, justamente, a

regularização do exercício da atividade empresarial com o que, a partir do registro, o

empresário passa à condição de “regular”, podendo usufruir de todos os privilégios inerentes

aos exercentes de tais atividades, tais como a possibilidade de pedir falência de algum

credor ou mesmo a possibilidade de pleitear a própria recuperação.

Paralela à questão do registro, encontra-se a problemática em relação ao nome. E, por

ser o nome a identificar um empresário ou o exercício de empresa, o direito positivo o

reconhece como nome empresarial. O nome empresarial é o único meio que o empresário

tem de vincular-se a terceiros, donde facilmente se vislumbra a importância do instituto em

análise, mas que, somente por intermédio do Código Civil de 2002, é que o direito brasileiro

veio receber regulamentação adequada, na medida do seu notável interesse para o Direito

Empresarial. Antes da normatização dispensada ao nome empresarial por intermédio do

Novo Código Civil, havia apenas legislações esparsas tratando do tema, de que serve de

exemplo a Lei nº 8.934/94, que disciplina o Registro Público de Empresas Mercantis e

Atividades Afins, bem como de vários atos normativos expedidos pelo Departamento

Nacional do Registro do Comércio – DNRC, órgão de cúpula do Sistema Nacional de

Registro de Empresas Mercantis.

O Novo Código Civil traz, em seu art. 1.555, a definição do que se pode considerar

como sendo nome empresarial, a saber:

Art. 1.155. Considera-se nome empresarial a firma ou a denominação adotada, de conformidade com este Capítulo, para o exercício de empresa. Parágrafo Único. Equipara-se ao nome empresarial, para os efeitos da proteção da lei a denominação das sociedades simples, associações e fundações.

Como é de fácil percepção, o nome empresarial é o elemento de identificação do

empresário, por meio do qual este exerce a sua atividade, a sua empresa, valendo frisar que,

quer seja para produzir, quer seja para fazer circular bens ou serviços, faz-se mister a

contratação e o envolvimento negocial do empresário com terceiros, seja empregados,

clientes ou fornecedores. Pertinente é a lição de Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 296):

[...] a emprêsa individual, projetada como objeto de direito, pertence ao empresário e, por isso, o nome comercial a ser adotado há de exercer a função subjetiva de exteriorizar a titularidade do sujeito. Entretanto, de outra parte, a responsabilidade objetivamente limitada, que acompanha a separação patrimonial, centralizando na universalidade as relações jurídicas do empresário, imporá que o

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referido nome exerça, também, a função objetiva de designar e individualizar a emprêsa.

Pode-se levantar como principais funções do nome empresarial o fato de ser por meio

dele que o empresário adquire direitos e contrai obrigações, bem assim o nome empresarial

traduz, para quem contrata com o empresário, uma série de informações da empresa

contratada. Não é por outra que o Código Civil, nos arts. 1.156 a 1.162, estipula uma série

de normas para a formação do nome empresarial. Assim, estando diante de uma sociedade

com o nome empresarial da espécie firma social nos seguintes termos: Marinho, Cavalcante

& Cia., saber-se-á que se está diante de uma sociedade cujo quadro societário é composto

por sócios que têm responsabilidade ilimitada. Nesse caso, pelo menos, Marinho e

Cavalcante estão nessa condição de sócios ilimitadamente responsáveis, exercendo, ainda, a

administração da sociedade empresária que poderá ser ou uma sociedade em nome coletivo

ou uma sociedade em comandita simples.

Do que se vê, é viável, portanto, a indicação, no próprio nome empresarial, de que se

está diante de alguém que exerce a sua atividade com responsabilidade limitada ao

patrimônio utilizado para o desenvolvimento de tal fim. Sylvio Marcondes Machado (1956,

p. 297), aliás, propõe que “o nome que mais se lhe ajusta será uma denominação que indique

o objeto da atividade empreendedora e a responsabilidade limitada do empresário”. Percebe-

se, desse modo, a necessidade de constituição de um nome para os devidos fins de não

incidir o contratante em erro.

4.5.2 Funcionamento: o regime jurídico aplicável

Antes de tecer considerações sobre o regime jurídico aplicável e a operabilidade ou o

funcionamento do instituto projetado, necessário se faz apresentar o regime jurídico

aplicável aos empresários. Nesse sentido, pode-se dizer que aludido regime jurídico se pauta

em três ordens de obrigações: (i) obrigações de registro; (ii) obrigações de escrituração; e

(iii) obrigações de demonstração. As obrigações de escrituração, por sua vez, são de três

espécies: (a) a de seguir ordem uniforme de escrituração; (b) a de autenticar os livros

obrigatórios na Junta Comercial; e (c) a de conservar a escrituração pelo prazo de prescrição

das obrigações inseridas nos livros. Desse modo, o empresário que deseja se beneficiar dos

privilégios inerentes à profissão, tais como a possibilidade de ter a seu favor o deferimento

de recuperação judicial, pleitear a falência de um devedor ou mesmo o direito de se manter

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em locação empresarial, ainda que contrariamente à vontade do locador, deve se submeter às

obrigações anteriormente referidas.

Sobre as obrigações de registro, já se falou no item anterior. Importa, apenas,

ressaltar que, no caso da limitação de responsabilidade do empresário individual, é condição

de sua implementação o arquivamento dos atos constitutivos. Trata-se do procedimento que

vai dar regularidade ao exercício da atividade empresarial. Em vista do prescrito no art. 967

do Código Civil, comenta Priscila M. P. Corrêa da Fonseca (2008, p. 91-92):

Muito embora o art. 967 torne obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público das Empresas Mercantis, a verdade é que não impõem quaisquer sanções para o empresário que dê início à sua atividade independentemente do referido registro. Sob este aspecto, há entre os arts. 966 – que conceitua o empresário como sendo aquele que ‘exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços’ – e 967 – que estabelece a obrigatoriedade da inscrição do empresário no Registro Público das Empresas Mercantis antes do início de suas atividades – nítido descompasso. Com efeito, segundo o art. 966, é empresário aquele que desenvolve a atividade ali descrita; já consoante o art. 967 só pode ser considerado empresário aquele que obtenha a prévia inscrição junto ao Registro Público das Empresas Mercantis. Por todos esses motivos, não se pode deixar de admitir que todo aquele que exerce atividade econômica organizada para produção e circulação de bens e de serviços e que não tenha obtido a sua inscrição junto ao Registro Público das Empresas Mercantis não deixa de ter, nem mesmo por essa circunstância, a sua condição de empresário, podendo ser considerado, todavia, como empresário irregular ou de fato. [...] Em suma, a inscrição do empresário junto ao Registro Público das Empresas Mercantis, malgrado requisito imposto pela lei, não é condição suficiente que o iniba de exercer atividade empresarial. Insista-se, todavia, que a falta de registro torna o empresário irregular e ilimitada a sua responsabilidade pelas obrigações contraídas no exercício da empresa.

Outra obrigação inerente ao regime jurídico empresarial é a de escrituração. Com

efeito, o direito brasileiro, segundo Rubens Requião (2003, p. 168), adota o sistema francês

de escrituração. Desse modo, são indicados pela ordem jurídica os livros obrigatórios, bem

como o método e os requisitos de escrituração. Assim, na forma do estatuído no art. 1179 do

Código Civil, percebe-se a necessidade de escriturar as obrigações do empresário de

maneira uniforme. Por sua vez, estabelece o art. 1180 do mesmo Código o livro Diário como

obrigatório a todo e qualquer empresário, definindo-se os requisitos extrínsecos – arts. 1181

e 1182 – e intrínsecos – art. 1183 – da escrituração. Complementa-se a obrigação de o

empresário escriturar suas relações jurídicas com a necessidade de autenticá-las perante o

Registro Público de Empresas Mercantis, vale dizer, na Junta Comercial, seguindo o

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disposto nos arts. 32 e seguintes da Lei nº 8934/94, bem como a conservação dos livros pelo

prazo de prescrição das obrigações nele escrituradas, conforme o teor do art. 1194:

Art. 1194. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a conservar em boa guarda toda a escrituração, correspondência e demais papéis concernentes à sua atividade, enquanto não ocorrer prescrição ou decadência no tocante aos atos neles consignados.

As obrigações de demonstração se referem ao fato de o ordenamento jurídico impor

que o empresário periodicamente realize demonstrações contábeis. Desse modo, percebe-se

a nítida relação entre as obrigações de escrituração e de demonstração. É certo afirmar,

inclusive, que esta é decorrência daquela. No que tange às obrigações de escrituração, vê-se

a relevância do ponto de vista interno, ou seja, a sua importância reside no fato de servir de

instrumento para a condução dos negócios. De outro lado, a relevância das obrigações de

demonstração é perceptível do ponto de vista externo, vale dizer, as demonstrações

contábeis periódicas têm por função informar aos interessados – investidores, Estado,

trabalhadores, consumidores etc. – sobre a situação econômico-financeira daquele que se

aventura ao exercício de atividades empresariais.

Como se sabe, as demonstrações contábeis devem ser realizadas periodicamente,

sendo certo que a periodicidade é definida pelo legislador. Regra geral, anualmente, o

empresário deve, de acordo com o art. 1179, in fine, do Código Civil, realizar o balanço

patrimonial e o de resultado econômico. As sociedades por ações, entretanto, podem

excepcionar tal regra, tanto no que tange à periodicidade, bem como no que concerne às

demonstrações contábeis a realizar. Com efeito, o art. 204 da Lei nº 6404/76 estabelece a

possibilidade de serem realizadas demonstrações contábeis semestralmente, tanto por força

de lei quanto de estatuto, para que, no mesmo período, sejam pagos dividendos. Além disso,

o art. 176 da mesma lei estabelece a necessidade de as sociedades por ações levantarem a

demonstração de lucros e prejuízos acumulados, a demonstração de fluxo de caixa e, se

companhia aberta, a demonstração de valor adicionado, em acréscimo às demonstrações

relacionadas no art. 1179 do Código Civil.

O regime jurídico que acaba de ser descrito é excepcionado quando se está diante de:

(i) o pequeno empresário; e (ii) a sociedade de grande porte. Deve-se, de entrada, destacar

que a definição de pequeno empresário é atualmente distinta das noções de microempresa e

de empresa de pequeno porte, todos conceitos insculpidos pelo legislador. O empresário, na

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condição de microempresa ou de empresa de pequeno porte, recebe um tratamento

diferenciado referente à sua constituição e extinção, recebendo privilégios no âmbito do

acesso ao mercado público (licitações e contratos administrativos), da fiscalização

trabalhista e de acesso à justiça, dentre outros. Porém, do ponto de vista do regime jurídico

empresarial, tal como aqui descrito, submete-se à regra geral, sendo certo notar a presença

de regras que visam a desburocratizar o seu funcionamento, como a dispensa de instalação

de conclave para deliberações sociais.

O pequeno empresário, na forma do art. 68 da Lei Complementar nº 123/06, e para os

efeitos dos arts. 970 e 1179, ambos do Código Civil, é conceituado como o empresário

individual caracterizado como microempresa, tendo faturamento anual máximo de trinta e

seis mil reais. Registre-se, portanto, o óbvio: todo pequeno empresário é microempresa, mas

nem toda microempresa será considerada pequeno empresário. Compreendida a

conceituação de pequeno empresário, cumpre estabelecer o seu regime jurídico. Desse

modo, o pequeno empresário se encontra dispensado, para fins empresariais, ressalte-se, de

escriturar e de realizar demonstrações contábeis periódicas, cingindo-se o seu regime

jurídico à obrigatoriedade de registro perante o Registro Público de Empresas Mercantis.

A sociedade de grande porte é também uma definição legal. Trata-se da sociedade,

independentemente do tipo escolhido para a constituição, que tenha, no exercício social

anterior, ativo total superior a duzentos e quarenta milhões de reais ou receita bruta anual

superior a trezentos milhões de reais, conforme previsto no parágrafo único do art. 3º da Lei

nº 11.638/07. Para tais sociedades, o regime jurídico é diferenciado, havendo a necessidade

de as obrigações de escrituração e de demonstração obedecerem ao disposto para a

sociedade por ações, mesmo que não se trate de sociedade anônima. Deve, ainda, submeter-

se à auditoria independente realizada por auditor com registro na Comissão de Valores

Mobiliários, mesmo que não atue perante o mercado de capitais.

A separação patrimonial do empresário não traz, em si, qualquer modificação ao

regime jurídico apresentado. A limitação de responsabilidade do empresário individual fica

adstrita ao registro perante a Junta Comercial e à comprovação da integralização do capital

empregado para o desenvolvimento da atividade. Como se vê, no art. 968 do Código Civil, é

requisito indispensável para a inscrição do empresário individual a definição do capital a ser

utilizado na empresa. Ocorre que, tendo em vista a teoria subjetiva do patrimônio e a

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responsabilidade ilimitada, não há maiores preocupações com a integralização do capital do

empresário individual, diferentemente do que ocorre em se tratando de sociedades

empresárias. Tanto faz integralizar ou não o capital, o empresário individual continuará a ter

responsabilidade ilimitada, podendo, portanto, vir a perder bens pessoais em razão de

débitos empresariais. Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 299-300) considera:

Por isso, a formação do capital social das emprêsas coletivas surte efeitos jurídicos, quer na relação entre o patrimônio destas e o das pessoas que as constituem, quer perante os credores sociais. O mesmo não ocorre nas emprêsas individuais, onde a destinação de bens para o capital apenas realiza uma separação de ordem econômica, juridicamente ineficaz contra os credores do empresário, aos quais pouco interessa seja maior ou menor o montante separado.

Havendo o reconhecimento do patrimônio de afetação para fins empresariais, como

regra geral ou mesmo com uma possibilidade de escolha daquele que venha a se dedicar a

atividades econômicas, o contorno muda de figura. Como o que passará a ter

responsabilidade direta não é mais a pessoa do empresário, mas o patrimônio destinado ao

exercício de atividade empresarial, faz-se mister comprovar que o capital indicado no

requerimento de inscrição é efetivo, ou seja, que houve a integralização. Desse modo, para

haver a limitação de responsabilidade do empresário individual, precisa-se atender a duas

condições registrárias: (i) o ato constitutivo; e (ii) a prova da integralização. Sobre a questão

relativa à integralização do capital, ensina Wilges Ariana Bruscato (2005, p. 286):

É fundamental, que além dos dados de identificação, dê-se especial atenção à declaração do capital ou destaque de capital destinado a iniciar a empresa. Não há necessidade da lei determinar um valor mínimo. Mais importante que o montante do capital é a sua efetivação, porque, seja quanto for, constará da declaração, cujo teor é público. Porém, a verificação de sua completa integralização é uma das providências mais básicas, porque o que se prega nesta proposta é a capitalização do empresário individual para, com base nisso, limitar-lhe a responsabilidade. É, então, essencial a integralização total e imediata, o que pode ser feito em dinheiro, em bens ou combinando-se as duas espécies de entrada. Se a capitalização for em dinheiro – ou a parte que se integralizar em dinheiro – deve haver um depósito em estabelecimento bancário, de livre escolha do titular, em nome do E.I.R.L. ‘em organização’, que ficará indisponível até a regular inscrição na Junta. O recibo de depósito deve acompanhar a declaração de inscrição. É de se permitir para a composição do capital a comprovação de despesas feitas em razão da constituição da empresa, como o recolhimento de taxas e emolumentos, já que o capital é, também, utilizado para fazer frente a esses custos.

A preocupação com o capital integralizado já era corrente na doutrina clássica. É o que

se percebe em Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 301):

Cifrando-se no capital o valor do patrimônio separado, ao tempo da constituição da emprêsa, o seu montante representa o limite da responsabilidade patrimonial do

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empresário, na garantia das relações passivas resultantes da atividade empreendedora. Assim, embora tenha significação econômica o tamanho do capital, o que vale, juridicamente, é a efetividade de sua realização. Nesse objetivo é que devem ser concentradas as cautelas do legislador.

Abstraída a cautela de o registro da segregação patrimonial do empresário ser feito já

com provas relativas à integralização do montante destinado ao exercício de atividade

empresarial, as demais obrigações podem se manter enquanto tais. Assim, deve o

empresário manter livros obrigatórios, seguindo uma ordem uniforme de escrituração, para

registrar as relações jurídicas travadas em razão da massa patrimonial destinada ao exercício

da atividade empresarial. Há de se manter, também, a obrigatoriedade de conservação dos

livros empresariais, até a expiração dos prazos decadenciais e prescricionais dos atos e

negócios jurídicos neles registrados. Estando-se diante de patrimônio de afetação que tivesse

por faturamento anual a quantia de até trinta e seis mil reais, tornar-se-ia dispensável

escriturar suas relações jurídicas e realizar demonstrações periódicas. De outro lado, se

mencionado patrimônio de afetação viesse a ter ativo em valor superior a duzentos e

quarenta milhões de reais ou receita bruta anual superior a trezentos milhões de reais, as

obrigações de escrituração e de demonstração devem ser feitas consoante o disposto na

legislação do anonimato, permanecendo a necessidade de auditoria independente.

Aqui cabe tecer algumas considerações sobre outra experiência do direito comparado

acerca do tema, desta feita não tendo sido positivada. Trata-se do Projeto Champaud, de

origem francesa, que consistia numa alternativa não societária para a limitação de

responsabilidade do empresário individual. O patrimônio da pessoa natural seria dividido em

três grandes massas. Uma primeira massa patrimonial serviria para o desenvolvimento da

empresa, tendo acesso a ela, visando garantir obrigações decorrentes de crédito ou de dano,

as pessoas que mantiveram relações com tal massa, ou seja, os credores empresariais. Uma

segunda massa patrimonial serviria como que uma espécie de faixa de transição. À primeira

vista, tal faixa patrimonial não caberia aos credores empresariais; estes só teriam acesso a

ela, caso a primeira massa não fosse suficiente para suportar todos os credores. Haveria, por

fim, uma última massa patrimonial, que seria o patrimônio mínimo necessário à

sobrevivência do empresário e de sua família. É uma parcela patrimonial, por assim dizer,

indisponível. Tamanha é a indisponibilidade que Calixto Salomão Filho (2006, p. 194)

afirma:

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Para proteger a integridade desse patrimônio prevê-se até mesmo a nulidade das garantias pessoais prestadas. Em compensação, para a tutela dos credores prevê-se a adesão obrigatória a uma Caisse de Garantie, uma caixa comum à qual os empresários devem contribuir em proporção ao seu pecúlio.

Registrem-se os objetivos de tal projeto, segundo Calixto Salomão Filho (2006, p.

194-195):

Em primeiro lugar, evitar o abalo de crédito descrito acima, através da existência de uma parte flexível do patrimônio. Em segundo lugar, eliminar os privilégios dos credores com maior poder de barganha, como os bancos, que podem exigir garantias pessoais do empresário individual. O próprio projeto reconhece, entretanto, que uma garantia efetiva não foi criada. Sendo as quotas da Caisse de Garantie transferíveis, é óbvio que os credores economicamente mais fortes poderão exigi-las como garantia.

A motivação para a não implementação do projeto Champaud, vale dizer, o sistema de

separação patrimonial, em que as massas patrimoniais como que se misturavam, é

facilmente resolvido. Basta que se utilize da autonomia patrimonial absoluta ou perfeita,

tornando-se verdadeiramente independentes os patrimônios geral e especial do empresário,

de sorte que os credores particulares do empresário, em tese, teriam a seu dispor o

patrimônio geral do empresário. Do mesmo modo, os credores empresariais deverão se

satisfazer com o patrimônio especialmente destinado à atividade empresarial. Apenas na

hipótese de liquidação do patrimônio de afetação é que as massas patrimoniais voltariam a

se encontrar. Cabe destacar: se o patrimônio líquido fosse positivo, os bens excedentes

retornariam para o patrimônio geral; se negativo, os credores empresariais passariam a

concorrer com os credores inicialmente vinculados ao patrimônio geral.

4.5.3 Desconsideração da autonomia patrimonial: a supressão dos limites de responsabilidade

Sem sombra de dúvidas, o ponto alto da discussão relativa à limitação de

responsabilidade do empresário individual se refere à autonomia patrimonial. Com efeito, a

autonomia patrimonial pode dar margem ao cometimento de fraudes e outros ilícitos. Trata-

se, portanto, da maior das preocupações relativas ao instituto projetado o tratamento atinente

à utilização abusiva da autonomia patrimonial, bem como das circunstâncias pelas quais

haveria a supressão dos limites de responsabilidade, vigorando a responsabilidade ilimitada.

Aproveita-se, nesse ínterim, de todas as discussões acerca, e da evolução, da teoria da

desconsideração da personalidade jurídica. Com efeito, deve-se lembrar que a pessoa

jurídica surge para facilitar a realização de determinados empreendimentos econômicos,

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unindo-se várias pessoas e evitando o comprometimento de todo o patrimônio ao se investir

em determinadas atividades. Marlon Tomazzete (2003, p. 65) ensina:

A fim de incrementar o desenvolvimento de atividades econômicas produtivas e, consequentemente, aumentar a arrecadação de tributos, produzindo empregos e imcrementando o desenvolvimento econômico e social das comunidades, era necessário solucionar os problemas mencionados, encontrando uma forma de limitação dos riscos nas atividades econômicas. Para tanto, se encaixou perfeitamente o instituto da pessoa jurídica, ou mais exatamente, a criação de sociedades personificadas.

Desse modo, a personificação das sociedades, com os corolários da existência distinta

e da autonomia patrimonial, só teria validade quando a sociedade fosse utilizada pelos seus

empreendedores para fins lícitos e na conformidade com a ordem jurídica. Sempre que

houvesse, portanto, a utilização abusiva ou mesmo ilícita da sociedade personificada, as

consequências da personificação acima referidas não deveriam prevalecer. Dentro dessa

linha, conceitua Marlon Tomazzete (2003, p. 67):

A desconsideração é, pois a forma de adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais ela foi criada, vale dizer, é a forma de limitar e coibir o uso indevido deste privilégio que é a pessoa jurídica, vale dizer, é uma forma de reconhecer a relatividade da personalidade jurídica. Este privilégio só se justifica quando a pessoa jurídica é usada adequadamente, o desvio da função faz com que deixe e existir razão para a separação patrimonial.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica se encontra prevista no art. 50

do Código Civil, que prescreve:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

De maneira geral, pode-se entender como requisitos para a aplicação do instituto

examinado: (i) a personificação; (ii) a utilização abusiva da personalidade jurídica; e (iii) a

imputação dos atos praticados à pessoa jurídica. Resulta óbvia a impossibilidade de

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica diante de sociedade

despersonificada, de que servem de exemplos as sociedades de fato ou irregulares. Não se

pode, entretanto, concordar com Marlon Tomazzete (2003, p. 77), com o que se pede a

devida venia, quando demonstra que atrelada à personificação deve estar ligada a exigência

da limitação de responsabilidade. Com efeito, sabendo-se que a desconsideração da

personalidade jurídica pode ou não ter efeitos econômicos, pouco importará que a

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desconsideração seja aplicável a sociedades com sócios de responsabilidade solidária e

ilimitada, como é o caso da sociedade em nome coletivo, ou de responsabilidade limitada,

de que a sociedade limitada e a sociedade anônima servem de exemplos.

Da utilização abusiva da personalidade jurídica, resultam as duas possibilidades de

aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se das teorias subjetiva e

objetiva da desconsideração. Pela teoria subjetiva, tem-se que a desconsideração deve ser

aplicada diante do desvio de finalidade caracterizado pela fraude ou pelo abuso de direito

relacionado à autonomia patrimonial, oriunda da personificação. Já segundo a teoria

objetiva, o abuso da personalidade ensejador de aplicação da desconsideração da

personalidade jurídica é revelado pela confusão patrimonial. Por fim, não se pode deixar de

notar que o ato motivador da retirada episódica dos efeitos da personificação deve ter por

responsável original ou primário a própria pessoa jurídica. Tal consideração é de suma

importância, na medida em que não se há de confundir as consequências de aplicação da

teoria da desconsideração, com outras hipóteses reconhecidas pelo Direito como de

responsabilidade dos sócios, pessoal e direta ou solidária, ou dos administradores, em caso

de prática de atos ultra vires.

Trazendo-se a autonomia patrimonial a primeiro plano, e desvinculando-a da noção de

personalidade, é cabível inferir que o direito brasileiro já reconhece mecanismo eficiente

para combater a utilização abusiva ou fraudulenta da limitação de responsabilidade. Basta

um remodelamento da disregard doctrine, transformando-a na doutrina da desconsideração

da separação patrimonial. Desse modo, alguns atos ou omissões do empresário que se

beneficie da separação patrimonial podem render ensejo à supressão do limite de

responsabilidade, sempre que a autonomia patrimonial for utilizada de modo abusivo. Para

Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 315): “[...] com fundamento nos princípios que

informam a matéria, a responsabilidade ilimitada se recomenda como meio eficiente de

estimular o empresário no respeito à separação, incentivando-o a manter e fortificar o

patrimônio especial”.

Os requisitos de aplicação para a desconsideração da autonomia patrimonial, portanto,

seriam: (i) a separação patrimonial do agente; (ii) a utilização abusiva da separação

patrimonial; e (iii) a imputação dos atos à responsabilidade do patrimônio afetado. Por fim, é

oportuno ressaltar que a aplicação da desconsideração da autonomia patrimonial teria por

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foco a prática de atos lícitos, porém, abusivos. Diante de atos jurídicos ilícitos, caberia falar

na responsabilidade pessoal e direta do empresário, podendo ter consequências no âmbito

administrativo e penal, tendo, ainda, sempre, efeitos econômicos.

4.5.4 Falência: da declaração ao patrimônio a ser arrecadado

Se a discussão no que tange à autonomia patrimonial e a sua utilização de maneira

abusiva ou fraudulenta são pontos altos da discussão, é diante de situações de crises

econômico-financeiras insuperáveis que a limitação de responsabilidade do empresário

individual vai produzir os seus maiores efeitos. É curial notar que enquanto as relações

jurídicas travadas entre o empresário, de qualquer tipo e com qualquer responsabilidade, e

os seus credores são cumpridas na forma do pactuado, pouco importará o tipo e o nível de

responsabilidade. O problema surge quando o empresário vem a incidir numa das condutas

previstas como hipóteses de insolvência jurídica, atreladas ora à questão da impontualidade,

ora a uma relação de atos em que o legislador de modo absoluto presume a insolvência.

Nesse sentido, pondera Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 327-328):

Considerando que o objetivo precípuo do instituto é limitar a responsabilidade do titular, torna-se evidente que, seja qual fôr a sua concepção, a insolvência da emprêsa não pode acarretar a falência do empresário. Admitir o contrário inutilizaria, nas bases, uma das razões de ser da responsabilidade limitada.

Desse modo, tem-se que a separação patrimonial deve prevalecer, mesmo diante das

hipóteses de insolvência legalmente reconhecidas. Não pode ser a insolvência em si a causa

da supressão dos limites de responsabilidade assegurados com a separação patrimonial. Esta

só deve cair, sendo desconsiderada, mediante a sua utilização abusiva, como visto.

Entretanto, é oportuno frisar que falar de insolvência não significa que a separação

patrimonial foi utilizada de modo abusivo. Assim, mesmo diante de falência, os patrimônios

geral e separado do empresário não devem perder a independência de que lhe é inerente.

Sobre o que ora se cogita, já ensinava Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 328-329):

Pertencendo ao empresário a titularidade das relações jurídicas emergentes da atividade empreendedora será êle o sujeito passivo das ações dos credores, ainda no caso de execução geral decorrente de insolvência verificada no patrimônio separado. Entretanto, como os atos executórios devem ficar adstritos aos bens existentes nesse patrimônio, a execução coletiva perde o caráter de concurso universal, abrangendo tão sòmente as relações ativas e passivas do titular, concernentes à empresa. [...] Esta falência particular é limitada à emprêsa: assim, a falência da emprêsa privada com responsabilidade limitada não acarreta a de seu titular, nem de outras emprêsas que êste possuir.

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É de se notar que, se do ponto de vista geral, a preocupação atual do Direito Comercial

não é mais com o sujeito, mas sim com a atividade empreendida, o sistema falimentar

brasileiro tem, ainda, índole nitidamente subjetiva. Com efeito, em sede de Direito

Falimentar, decreta-se a falência do sujeito de direitos, ora o empresário individual, ora a

sociedade empresária, arrecadando-se todo o patrimônio de tais pessoas, para o pagamento

dos credores. Não se pode olvidar que, se no caso das sociedades empresárias, todo o

patrimônio delas deve estar direcionado à consecução do objeto social, tal não ocorre diante

do empresário individual. Este, como se sabe, resolvendo se aventurar na arte de empreender

e desejando exercer, em nome próprio e com habitualidade, uma atividade econômica,

deverá destacar do seu patrimônio um conjunto mínimo de bens que entenda necessário e

suficiente para o estabelecimento e o desenvolvimento de tal atividade.

Uma questão preliminar sobre o presente assunto precisa ser enfrentada. Trata-se de se

saber quem ficará no polo passivo do pedido de falência. Isto porque, como visto, o sistema

falimentar atual tem caráter subjetivo. É o empresário ou a sociedade empresária, com todo

o patrimônio que lhes é inerente, o alvo no processo falimentar. Nesse sentido, pertinente é

recordar que da noção de personalidade jurídica decorra a de capacidade, um dos seus

principais atributos ao lado do patrimônio. Desvinculando-se a noção de patrimônio de

personalidade, dando àquele uma concepção mais objetiva, há de se relativizar também a

ligação conceitual havida entre a capacidade e a personalidade jurídica. A capacidade

jurídica pode ser classificada em: (i) capacidade contratual – a aptidão de ser parte por si só

em contratos, o poder de celebrar negócios jurídicos; e (ii) capacidade processual – a aptidão

de ser parte em processos judiciais, o poder de estar em juízo ativa e passivamente. Sobre

tais formas de capacidade, ensina Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 331):

[...] observa-se que o sujeito pratica, no exercício da capacidade contratual, relações de direito material; no da capacidade processual, relações de direito formal. A titularidade destas duas categorias de relações, sejam ativas ou passivas, normalmente se concentra na mesma pessoa. O titular do patrimônio, por exemplo, dono dos bens, credor ou devedor de obrigações (relações substanciais), é, ao mesmo tempo, o autor ou réu das ações que lhes concernem (relações formais). Em certos casos, porém, a lei, por diferentes motivos, determina a decomposição da titularidade, nas duas categorias de relações.

Seja por fatos jurídicos, de ordem natural, seja por fatos de ordem econômica, poderá

haver a decomposição anteriormente referida. É o que acontece, por exemplo, diante do

falecimento de uma pessoa. Na forma do que prescreve o art. 1.784 do Código Civil de

2002, aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e

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testamentários. Assim, sobre a massa de bens em que é composta a herança jacente, passam

os herdeiros a terem capacidade contratual. Porém, na forma do disposto no art. 12, V, do

Código de Processo Civil, cabe ao espólio a legitimidade para estar em juízo, ativa e

passivamente, sendo representado pelo inventariante. A falência, por sua vez, é hipótese, em

razão de ordem econômica, pela qual a capacidade contratual, nos limites da lei, ainda

continua com o falido, na forma do previsto no art. 103 da Lei nº 11.101/05. Desse modo,

não é pelo fato de que o falido perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor

que estará impedido de ser parte em contratos. Entretanto, consoante o disposto no art. 12,

II, do Código de Ritos, a titularidade das ações judiciais passará para a massa falida, que

será representada pelo administrador judicial.

Diante do contexto que se apresenta, dever-se-ia declarar a falência do patrimônio que

se revelasse insolvente, na forma do que prescreve a ordem jurídica vigente. Ao empresário

titular do patrimônio empresarial seriam imputados todos os deveres e obrigações do falido,

no âmbito processual, tal qual se faz com o administrador diante da sociedade empresária

falida. Assim, arrecadar-se-ia apenas o patrimônio empresarial insolvente, restando

incólumes os outros eventuais patrimônios empresariais existentes, bem como o patrimônio

pessoal. Nessa linha, doutrina, mais uma vez, Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 334):

“Numa tal concepção, dada a permanência do desdôbro da capacidade de exercício, a figura

do empresário assumiria natureza híbrida: titular das relações substanciais – representante

da emprêsa nas relações formais”.

O direito brasileiro já reconhece a incolumidade patrimonial, em sede de falência,

quando destaca no art. 119, IX, da Lei nº 11.101/05, que o patrimônio de afetação se

mantém separado do patrimônio do instituidor mesmo diante da falência deste, em

consonância, inclusive, com a atual legislação sobre o patrimônio de afetação nas

incorporações imobiliárias. Havendo a falência da incorporadora, os bens do patrimônio de

afetação permanecerão separados do patrimônio geral daquela, até o advento do respectivo

termo ou até o cumprimento de sua finalidade.

Admitindo-se a limitação de responsabilidade do empresário individual, ocorreria, por

assim dizer, uma inversão do raciocínio albergado pelo art. 119, X, anteriormente

comentado. Com efeito, declarando-se a falência, somente o patrimônio afetado é que

deveria ser arrecadado pelo administrador judicial para pagamento dos credores

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concernentes a tal patrimônio. Não se comunicariam, nesta perspectiva, nem mesmo para

fins falimentares, os patrimônios geral e afetado do empresário individual que viesse a se

submeter ao regime da limitação de responsabilidade.

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CONCLUSÃO

Esta pesquisa demonstrou a necessidade de regulamentação da limitação de

responsabilidade do empresário individual. De um simples anseio dos agentes econômicos, a

responsabilidade limitada passa à condição instrumental de duas grandes finalidades

constitucionais estabelecidas no Texto Magno de 1988: (i) a proteção da dignidade da

pessoa humana; e (ii) o incentivo ao desenvolvimento econômico. Aludidos objetivos

podem parecer, à primeira vista, contraditórios entre si. Porém, a contradição é aparente haja

vista que a própria Constituição Federal, em seu art. 170, determina que a ordem econômica,

fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a

todos existência digna. Aliás, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República

Federativa do Brasil que tem, dentre outros, por objetivos fundamentais garantir o

desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

sociais e regionais.

Pela limitação de responsabilidade do empresário individual, tem-se que a

responsabilização patrimonial dos agentes econômicos ficaria atrelada ao patrimônio

especificamente destinado ao exercício de determinada atividade. Nesse ínterim, admitindo-

se visualizar o patrimônio do ponto de vista objetivo, a responsabilidade, tanto por contratos

quanto por indenizações, em tese, restaria vinculada ao complexo patrimonial que ensejou a

relação jurídica. Desse modo, o credor resultante de obrigação decorrente do patrimônio

afetado empresarialmente teria à sua disposição, para satisfazer o seu crédito, somente o

patrimônio empresarial. O patrimônio pessoal restaria incólume em face dos resultados da

empresa.

Dois efeitos básicos se retiram da presente visão. O primeiro é o de conferir aos

contratantes do empresário a certeza e segurança jurídicas de somente pessoas ligadas ao

patrimônio empresarial poderem excuti-lo para a respectiva satisfação. O segundo é o de não

ser facultado aos que se relacionaram em razão da empresa, buscar o atendimento de seus

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interesses no patrimônio pessoal do empresário. Em sentido inverso ao exposto, não se pode

deixar de notar a limitação de responsabilidade como um mecanismo eficiente para

assegurar a proteção ao mínimo existencial necessário ao livre desenvolvimento da

personalidade. Representaria, por assim dizer, mais uma construção que serviria para

implementar o princípio da dignidade da pessoa humana.

A manutenção do status quo se afigura indevida. As bases que fundamentavam o

princípio da responsabilidade ilimitada restam seriamente abaladas. A teoria subjetiva do

patrimônio tem sido mitigada de modo cada vez mais relevante pela noção de patrimônio de

afetação. O patrimônio de afetação é utilizado de maneira eficiente nas incorporações

imobiliárias, demonstrando, portanto, a eficácia do seu aproveitamento em atividades

dirigidas a mercados. Rememore-se, outrossim, a novidade trazida pelo atual Código Civil

consistente na possibilidade de o incapaz continuar com o exercício de empresa, desde que,

mediante alvará judicial, seja constatada a viabilidade econômica da empresa e blindado o

acervo patrimonial estranho a esta (art. 974.) Insista-se de passagem que o Código Civil,

inclusive, reconhece a independência do patrimônio da empresa (art. 978) ao ponto de o

empresário individual poder fazer aquilo que melhor lhe aprouver com o patrimônio

empresarial sem necessitar de outorga para tanto.

Nunca é demais lembrar que as teorias do contrato-organização e da preservação da

empresa, quando analisadas reciprocamente, dão sustentação segura à sociedade unipessoal.

O direito brasileiro reconhece-a desde 1976, valendo, por oportuno, ressaltar o

reconhecimento do legislador nacional de hipóteses de unipessoalidade superveniente

temporária, nos termos do art. 1033, IV, do Código Civil, e do art. 206, I, d, da Lei nº

6404/76. A subsidiária integral não é outra coisa senão uma sociedade anônima composta

por um único acionista. No caso de uma sociedade limitada, se a pluralidade de sócios vier a

ser recomposta no período de cento e oitenta dias, em tal período ela terá funcionado tendo

em seu quadro societário apenas um quotista. Tratando-se de sociedade anônima, o prazo é

condicionado à sua aferição em A.G.O., devendo a pluralidade ser recomposta até a A.G.O.

do ano subsequente. No período em que medeia as duas A.G.Os mencionadas, a sociedade

funcionou como um único acionista. Frise-se que são todas possibilidades lícitas e regulares.

A experiência do direito comparado demonstra o acerto na positivação dessa medida.

Paulatinamente e visando a atender a objetivos diversos, os países têm inserido-a nos

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respectivos ordenamentos jurídicos sob diferentes estruturas. A legislação paraguaia

disciplina a empresa individual de responsabilidade limitada. A legislação portuguesa, por

sua vez, prevê o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada.

Ressalte-se, ademais, Diretiva da Comunidade Europeia recomendando a sua normatização.

O receio quanto à eventual prática de fraude e abusos congêneres, também, não tem

razão de ser. Com efeito, a desconsideração da personalidade jurídica é reconhecida e

utilizada, vale ressaltar, de modo exacerbado pelos tribunais brasileiros. Apesar de a

desconsideração ser da personalidade jurídica, tem-se por certo que a desconsideração deve

ocorrer sempre quando se estiver diante de uma pessoa jurídica que foi utilizada ou criada

de maneira abusiva, com desvio de finalidade. Contudo, desprendendo-se as noções de

patrimônio e de personalidade, a partir de uma concepção objetiva daquele, com a

constituição de um patrimônio de afetação destinado a determinada atividade econômica,

sempre que o patrimônio afetado viesse a ser utilizado de maneira abusiva, para o

cometimento de fraudes, ocorreria a desconsideração da autonomia patrimonial reconhecida

pelo legislador.

Algumas observações devem ser feitas, a título de fechamento. A primeira é a

percepção que se tem no que tange à aplicação das soluções apresentadas como meios

possíveis para a regulamentação da limitação da responsabilidade do empresário individual.

Com efeito, costuma-se apresentar o empresário individual de responsabilidade limitada

como mecanismo possível para atender à pequena e média empresa e a sociedade unipessoal

para se atender à grande empresa e aos conglomerados econômicos.

Firme na convicção de que o “novo” Direito Comercial é o direito das empresas e dos

mercados, é preciso que se pense numa sistemática que atenda, de um lado, ao pequeno

empresário e de outro à grande empresa. O importante é que se tenha um modelo de

limitação de responsabilidade do agente econômico ao patrimônio afetado à sua atividade,

independentemente do tipo ou do tamanho de sua empresa. Nesse ínterim, a estrutura deve

atender tanto ao empresário que necessita de pouca organização quanto à grande empresa

que atua perante o mercado de capitais, por exemplo.

Apesar de os autores que se dedicaram ao estudo do tema, no Brasil, entenderem pela

adoção de um modelo único, qual seja, a limitação de responsabilidade do empresário

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individual, via patrimônio de afetação ou sociedade unipessoal, ao sentir do autor a melhor

solução é aquela que consagra ambos os modelos. Assim, para a pequena e para a média

empresa, é bastante a afetação patrimonial. Entretanto, para a grande empresa, atuante no

mercado de capitais, faz-se primordial uma alternativa societária.

Apresentou-se modelo que, atento a tais circunstâncias, mescla estrutura societária e

não-societária para a regulamentação do instituto a ser inserido no ordenamento jurídico

brasileiro. É imprescindível, porém, destacar que o formato que venha a tomar a criação sob

análise deve ser relegado a segundo plano. O que realmente importa, e é imprescindível, é o

seu reconhecimento. Com efeito, pelo fato de se segregar patrimônio, fazendo surgir, em

todos os aspectos um patrimônio especial, distinto do patrimônio geral do empresário, a

separação patrimonial serviria, por função econômica, como um mecanismo eficiente para

se fomentar o empreendedorismo. Desse modo, os empresários, em geral, tenderão a alocar

mais recursos em suas empresas.

Afora os ressaltes já realizados, do ponto de vista constitucional é cabível ainda dizer

que a separação patrimonial do empresário, tornando autônomo o patrimônio da empresa,

em face do seu patrimônio pessoal, promove a efetivação de direito fundamental segundo o

qual ninguém pode ser forçado a se associar ou a permanecer associado. Deve ser resguarda

e protegida, portanto, a afeição ou o intuito de se associar. Apenas nesta perspectiva,

tornam-se garantidos a criação e o funcionamento das entidades associativas de que são

espécies as sociedades e as associações. Vislumbra-se na separação patrimonial do

empresário um incentivo eficiente a que os empresários venham a formalizarem suas

empresas, perdendo-se a motivação para a constituição de sociedades fictícias.

Pode-se, também, facilmente perceber o atendimento aos princípios fundamentais da

ordem econômica, inseridos no art. 170 constitucional. Frisem-se as dúvidas do autor quanto

à existência e ao conteúdo da função social da propriedade. Porém, em se admitindo a sua

existência, limitando-se a possibilidade de execução aos bens e demais direitos apreciáveis

economicamente do patrimônio de afetação, tais bens seriam utilizados segundo a sua

função social, até o seu final. Perceba-se, por sua vez, que deve ser dado tratamento

favorecido a empresas e não a empresários de pequeno porte. Nesse sentido, garantir a

limitação de responsabilidade aos empresários individuais registrados é de rigor, mostrando-

se consentâneo com a norma constitucional. Note-se, contudo, que o aludido tratamento há

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de ser dado tanto aos brasileiros, natos ou naturalizados, quanto aos estrangeiros que aqui se

estabelecem com ânimo de permanência e, por óbvio, de acordo com os normativos legais

pertinentes.

É de se perceber o atendimento aos princípios constitucionais da livre concorrência e

da livre iniciativa. Tais princípios, também, são informadores da ordem econômica

brasileira. Não se pode, entretanto, assegurar a aplicação deles diante de um tratamento

patrimonial diferenciado a pessoas que atuem numa mesma atividade econômica. Com

efeito, o empresário individual sempre estará em posição de inferioridade em relação à

sociedade empresária. Enxergando-se o sócio e o empresário individual como espécie de

empreendedores, é forçoso perceber que o empreendedor de empresa coletiva pode vir a não

responder com bens pessoais por débitos da empresa. Basta que venha a adotar um dos tipos

societários em que se preveja a responsabilidade dos sócios como sendo limitada. Há, por

assim dizer, uma possibilidade melhor de cálculo do risco empresarial. O empresário

individual, por sua vez, não tem tal direito de escolha. Não pode, portanto, equacionar os

riscos inerentes à atividade realizada.

Dentro dessa linha, a análise econômica do direito contribui substancialmente para o

debate. Entendida a Economia como um método para a descrição dos efeitos e

consequências das normas jurídicas, verifica-se que as pessoas reagem a incentivos. O

Direito, para a análise econômica, representa um sistema ou estrutura de estímulos às

condutas praticadas pelas pessoas em sociedade. Se forem eficientes, os agentes econômicos

se comportarão em conformidade com a norma; do contrário, tenderão a transgredi-la. Cabe

ao Direito, portanto, afiançar o direito de escolha dos agentes econômicos. Assim, os

empreendedores devem poder optar, a partir de uma ponderação relativa ao custo-benefício

ou à causa-consequência, por não terem seus bens pessoais expostos aos riscos inerentes à

atividade empresarial.

Tal direito de escolha é garantido ao empreendedor de empresa coletiva. Acaso deseje

blindar o seu patrimônio pessoal, poderá, por exemplo, fazer uso das regras da sociedade

limitada para a constituição da empresa. Para tanto, bastaria encontrar outro empreendedor

que tivesse o interesse de investir parcela de seu patrimônio na mesma atividade. De outro

modo, querendo liberar o seu patrimônio pessoal para servir de anteparo ao risco

empresarial, pode constituir regularmente o empreendimento sob a forma da sociedade em

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nome coletivo. Não se pode deixar de registrar que ao empreendedor coletivo é permitido,

inclusive, o não desenvolvimento de suas atividades de maneira regular, tendo por

consequência a responsabilidade ilimitada.

Esse direito de escolha, todavia, não é assegurado ao empreendedor de empresa

individual. Para ele tanto faz, do ponto de vista da responsabilidade patrimonial, atuar

regularmente. Não lhe é possibilitado escolher se disponibiliza o patrimônio pessoal para

atender às vicissitudes da empresa. Atuando na irregularidade recebe o mesmo tratamento

do empreendedor coletivo. A crueldade, entretanto, ocorre ao se pensar no exercício regular

da atividade empresarial. Ao empreendedor individual regular, de qualquer modo, na forma

da ordem jurídica vigente, será aplicado o princípio da responsabilidade ilimitada.

Nessa perspectiva, inexiste qualquer incentivo eficiente para a regulamentação das

empresas individuais. Mais do que isso, a lei acaba estimulando e albergando simulações ao

reconhecer, porque incabível punição, as sociedades de palha. Faltando tal incentivo, o

empreendedor individual é movido a não legalizar o seu negócio. Não resta dúvidas de que o

exercício regular de empresas implica em custos que precisam valer a pena se aventurar para

que venham a ocorrer. Com o registro, a Fazenda Pública, os fornecedores e demais

credores terão maior facilidade de encontrá-lo, podendo, ainda, ver seus interesses atendidos

em cima do patrimônio pessoal do empresário. Na medida em que os indivíduos são levados

a cumprir o ordenamento jurídico a partir do sistema prêmios-punições, tem-se que inexiste

incentivo positivo ao cumprimento da norma inserida no art. 967 do Código Civil. Ao

contrário, acumula-se uma série de incentivos negativos, valendo exemplificar a maior

probabilidade de localização, tanto do agente econômico quanto de seu patrimônio (por

inteiro) pelos credores e a certeza de lhe ser obrigado o pagamento de tributos.

Por fim, é mister salientar que o reconhecimento por parte do legislador da limitação

de responsabilidade do empresário individual é medida salutar. Do ponto de vista

constitucional, é imperativa a sua regulamentação. A abordagem econômica da temática

oferece um suporte mais seguro do que a mera intuição oriunda da compreensão do material

bibliográfico e legal utilizado. Não se trata de se fazer defesa do interesse da classe

dominante. Trata-se, na realidade, de dotar o Direito de eficiência. Entendendo a justiça

como a finalidade de qualquer norma jurídica, e percebendo aquela como intuitiva ou

subjetiva, certificar a norma jurídica de eficiência significa estabelecer um critério científico

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para avaliar a sua justeza. As normas jurídicas, além de justas, necessitam ser eficientes.

Portanto, legislação que venha a possibilitar a limitação de responsabilidade do empresário

individual é válida, justa, constitucional e eficiente.

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