a liberdade - maria amália

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Volume 1 Julho-Dezembro 97 Número 1 Edição: O que é o homem? Liberdade: um mito? Tereza Maria Sério 1 Maria Amalia Andery 2 Se há uma noção cara ao homem contemporâneo esta é a noção de liberdade. Defendemos que a liberdade é um direito humano inalienável. Lutamos pela liberdade: pelas liberdades democráticas, pela liberdade de ir e vir, pela liberdade de decidir, pela liberdade de pensar, pela liberdade de escolher, pela liberdade de imprensa, pela liberdade de expressão, pela liberdade da empresa, pela liberdade dos povos .... Por trás da questão da liberdade se encerra uma questão básica para qualquer proposta de explicação do homem e de suas ações: a concepção de homem. Queremos dizer que qualquer teoria ou sistema explicativo funda-se em vários supostos, entre eles uma concepção de homem. E a questão de liberdade — que se refere à questão da determinação do comportamento humano — é central. Por isto escolhemos tratar da noção de liberdade, na tentativa de discutir a concepção de homem que informa o behaviorismo radical. Para isto nos basearemos em textos de Skinner. Sentimo-nos autorizadas a utilizar esse autor para tratar de um tema tão candente como a liberdade, porque noção de liberdade foi um tema quase que constante na obra de Skinner. Citamos três exemplos que mostram essa presença marcante: a) Em 1948, Skinner publicou uma "novela" intitulada Walden II. Neste livro descreve a vida em uma comunidade utópica, organizada segundo os princípios de análise do comportamento. O tema da liberdade é recorrente no livro. O livro teve uma trajetória interessante. As 3000 ou 5000 cópias da primeira edição ficaram encalhadas por quase 20 anos. Surpreendentemente, mais de um milhão de cópias foram vendidas nos EUA na década de 60. A extraordinária venda do livro nessa época coincide com um momento em que o mundo vivia e discutia a questão da liberdade: é a década do movimento estudantil na Europa, nos EUA e na América Latina, a década do movimento pelos direitos civis nos EUA, do movimento hippie, da reação contra a Guerra no Vietnã, de grandes movimentos de trabalhadores ...

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Page 1: A liberdade - Maria Amália

Volume 1Julho-Dezembro 97Número 1

Edição: O que é o homem?

Liberdade: um mito?Tereza Maria Sério 1 Maria Amalia Andery 2

Se há uma noção cara ao homem contemporâneo esta é a noção de liberdade. Defendemos que a liberdade é um direito humano inalienável. Lutamos pela liberdade: pelas liberdades democráticas, pela liberdade de ir e vir, pela liberdade de decidir, pela liberdade de pensar, pela liberdade de escolher, pela liberdade de imprensa, pela liberdade de expressão, pela liberdade da empresa, pela liberdade dos povos ....

Por trás da questão da liberdade se encerra uma questão básica para qualquer proposta de explicação do homem e de suas ações: a concepção de homem. Queremos dizer que qualquer teoria ou sistema explicativo funda-se em vários supostos, entre eles uma concepção de homem. E a questão de liberdade — que se refere à questão da determinação do comportamento humano — é central.

Por isto escolhemos tratar da noção de liberdade, na tentativa de discutir a concepção de homem que informa o behaviorismo radical. Para isto nos basearemos em textos de Skinner. Sentimo-nos autorizadas a utilizar esse autor para tratar de um tema tão candente como a liberdade, porque noção de liberdade foi um tema quase que constante na obra de Skinner.

Citamos três exemplos que mostram essa presença marcante:

a) Em 1948, Skinner publicou uma "novela" intitulada Walden II. Neste livro descreve a vida em uma comunidade utópica, organizada segundo os princípios de análise do comportamento. O tema da liberdade é recorrente no livro.

O livro teve uma trajetória interessante. As 3000 ou 5000 cópias da primeira edição ficaram encalhadas por quase 20 anos. Surpreendentemente, mais de um milhão de cópias foram vendidas nos EUA na década de 60. A extraordinária venda do livro nessa época coincide com um momento em que o mundo vivia e discutia a questão da liberdade: é a década do movimento estudantil na Europa, nos EUA e na América Latina, a década do movimento pelos direitos civis nos EUA, do movimento hippie, da reação contra a Guerra no Vietnã, de grandes movimentos de trabalhadores ...

O livro foi visto de duas maneiras antagônicas. De um lado, foi lido como uma proposta libertária — quase anarquista — possivelmente por retratar uma sociedade que enfatizava a variabilidade, a escolha individual — do trabalho, da quantidade de trabalho, dos laços afetivos, do lazer. De outro lado, foi lido como uma proposta totalitária — fascista mesmo — possivelmente por abolir a família como forma de organização social, por envolver toda comunidade na educação das crianças, por abolir a propriedade privada e a hierarquia no trabalho e por propor o planejamento sistemático da cultura.

Se vale nossa opinião, ao analisar detidamente o livro concluímos (Andery, 1990) que, para Skinner, quatro valores centrais devem dirigir tanto o planejamento cultural quanto a avaliação de uma cultura: igualdade, felicidade, um impulso para o

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futuro e ... liberdade.

b) Em 1959 Skinner publicou um livro chamado Registro Cumulativo. Este livro é uma coletânea de artigos escolhidos e organizados pelo próprio Skinner. O autor dividiu o livro em nove partes. A primeira delas foi intitulada: As Implicações de uma Ciência do Comportamento para os Problemas Humanos, Especialmente para o Conceito de Liberdade. Seis capítulos compõem esta parte: Liberdade e o Controle do Homem; O Controle do Comportamento Humano, Algumas Questões Relativas ao Controle do Comportamento Humano; O Planejamento de Culturas; ‘Homem’, e O Planejamento de Comunidades Experimentais.

Se analisássemos apenas os títulos destes artigos três aspectos poderiam ser destacados: (1) a contraposição que Skinner parece estabelecer entre liberdade e controle, (2) a possível relação que parece estabelecer entre liberdade e concep-ção de homem e (3) a interação entre liberdade e planejamento — não um planejamento qualquer, mas o planejamento da cultura.

Esses três aspectos nos permitem fazer várias perguntas: Qual a concepção de homem de Skinner? Qual a relação entre sua concepção de homem e o conceito de liberdade? É possível compatibilizar liberdade e controle, liberdade e planejamento? Se a resposta a estas perguntas parecer simples, se forem respostas do tipo ‘claro que controle e planejamento se opõem a liberdade’, então podemos, como tantas vezes já se fez, simplesmente descartar Skinner como arauto do homem autômato, do homem robô.

Exatamente porque achamos que a resposta a estas questões não é simples, continuamos recorrendo a Skinner.

c) Em 1971, Skinner publicou um livro cujo título original era Beyond Freedom and Dignity que poderia ser traduzido como ‘Para Além da Liberdade e da Dignidade’. Entretanto, o livro foi traduzido para o português como O Mito da Liberdade. E é desta tradução que se originou o título deste artigo. Por que recorreríamos a um título que consideramos mal dado? Esta não teria sido uma má escolha?

Em nossa opinião, não. Isto porque acreditamos que qualquer diálogo com a análise behaviorista radical da noção de liberdade supõe pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, supõe a possibilidade de que se supere uma reação emocional inicial, quase incontrolável, do tipo: ‘liberdade um mito?! vai dizer que liberdade não existe?! que o homem não é livre?!’ Em segundo lugar, supõe a possibilidade da pergunta: seria liberdade um mito? Contando com estas duas possibilidades é que propomos este artigo.

Para isto, se tivéssemos o talento necessário teríamos começado citando, com toda veia artística que o verso exige, Raul Seixas: "prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo." O que queremos dizer é que fazer a pergunta já supõe abrir mão de crenças muito bem arraigadas, de "opiniões bem formadas". Envolver-se na busca de respostas supõe um certo gosto pela mudança. Talvez o mais correto fosse afirmar que mais que um certo gosto pela mudança, envolver-se na busca de respostas supõe ser desafiado para a mudança.

Devemos alertar que mudança, neste caso, significa muitas coisas. Mudar significa,

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por exemplo, numa época neo-liberal afirmar:

Economia livre não quer dizer ausência de controle econômico, porque nenhuma economia será livre enquanto os produtos e o dinheiro permanecerem como reforçadores. Quando nos recusamos a impor controle sobre salários, preços e a utilização de recursos naturais, a fim de não interferir na iniciativa individual, deixamos o indivíduo sob controle de contingências econômicas não planeja-das.(Skinner,1971, p.93)

Feitos todos os desafios e alertas, podemos finalmente perguntar: como o behaviorismo radical e, mais especifi-camente Skinner, analisa a noção de liberdade?

A visão de homem autônomo

Podemos dizer que toda a proposta behaviorista para a psicologia se insere numa perspectiva anti-mentalista. Visto sob este prisma, o behaviorismo é um programa de combate ao mentalismo. É neste contexto que devemos inserir a análise da questão da liberdade:

Incapazes de compreender a maneira ou a razão de uma pessoa proceder, atribuímos seu comportamento a uma pessoa que não podemos ver e cujo comportamento tampouco podemos explicar, mas sobre a qual não somos levados a fazer perguntas. Provavelmente adotamos esta estratégia não tanto por falta de interesse ou poder, mas devido a uma antiga convicção de que inexistem antece-dentes relevantes para grande parte do comportamento humano. A função do homem interno é fornecer uma explicação que por sua vez não será explicada .... o homem autônomo serve para explicar apenas aquilo que ainda não somos capazes de explicar de outra maneira. (Skinner, 1971, p.11)

Segundo Skinner, dentre os aspectos relacionados a esta concepção de homem, encontra-se uma determinada concepção de liberdade.

Segundo o ponto de vista tradicional, uma pessoa é livre. É autônoma no sentido de que seu comportamento não tem causa. Pode-se, portanto, considerá-la responsável por seus atos e puni-la merecidamente por seus erros. (Skinner, 1971, p.17)

Liberdade, neste caso, é livre arbítrio. É ausência de determinação. Qualquer concepção científica de homem negará a liberdade definida desta forma. Esta afirmação, entretanto, não encerra a discussão. Afirmar uma oposição entre ciência e livre arbítrio é apenas o princípio de um longo percurso:

A ciência é comportamento humano e também o é a oposição à ciência. O que aconteceu na luta do homem pela liberdade e pela dignidade e que problemas surgem quando os conhecimentos científicos começam a ganhar importância nesta luta? (Skinner, 1971, p.20)

O que estamos enfatizando aqui é que a análise da noção de liberdade deve seguir este percurso: analisar compor-tamentalmente a luta do homem pela liberdade e analisar se há oposição entre esta luta e o conhecimento científico acerca do

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homem.

A luta do homem pela liberdade

Indiscutivelmente, para Skinner, há um sentido no qual todo ser humano participou e participa de uma "luta pela liberdade": a luta envolvida na relação do homem com a natureza para libertar-se de condições aversivas.

Grande parte da tecnologia física resulta dessa espécie de luta pela liberdade. Com o correr dos séculos, trilhando caminhos desordenados, os homens construíram um mundo em que se acham totalmente livres de muitas espécies de estímulos ameaçadores ou prejudiciais — temperaturas extremas, fontes de infecção, trabalho pesado, perigo — e até daquele estímulos aversivos secundários genericamente chamados desconforto. (Skinner, 1971, p.25)

Entretanto, há um sentido mais importante da expressão luta pela liberdade. É quando nos referimos "às condições aversivas que são produzidas por outras pessoas"

(Skinner, 1971, p.25). Sobre isto Skinner afirma:

(... ) a luta pela liberdade se dirige contra os agentes intencionais de controle, ou seja, contra aqueles que tratam os semelhantes de maneira aversiva, com o fim de induzi-los a se comportarem de determinado modo. (Skinner, 1971, p27)

A oposição do homem ao controle aversivo exercido por outros homens gerou e necessitou para se desenvolver de um instrumento importante, que Skinner denomina de "a literatura de liberdade" ou "filosofia democrática". De uma maneira geral, a assim chamada literatura da liberdade tem induzido os homens a se contraporem — fugindo ou atacando — a aqueles que os controlam aversivamente e às suas formas de controle. Enfatizando formas de controle aversivo, promo-vendo principalmente ataque a tais controles e ainda que produzindo contra-controle, esta literatura efetivamente promoveu, instigou e convenceu pessoas s a se oporem ativamente ao controle aversivo.

Que problemas, então, uma análise comportamental revela, com relação a esta literatura?

Em primeiro lugar essa literatura da liberdade enfatizou os sentimentos e estados de espírito e não as mudanças que ela mesma promoveu. No dizer de Skinner, ela coloca como objetivo mudar "os corações e as mentes das pessoas" e não suas ações. Deste ponto de vista, liberdade torna-se "uma posse".

Em segundo lugar, esta literatura deu pouco ou nenhum destaque às contingências de reforçamento positivo que podem originar problemas tão sérios quanto os que são produto de controle aversivo. Skinner aponta algumas situações que revelam estes problemas:

a. Quando o controle positivo apenas retarda conse-qüências aversivas atrasadas, a literatura da liberdade não parece ajudar. Nesta circunstância, o agente controlador geralmente se beneficia em detrimento do controlado.

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Embora todos nós possamos nos rebelar quando alguma sanção é imposta contingentemente a uma ação individual, não costumamos sentir nossa liberdade ameaçada quando recebemos algo em troca de nossa anuência. Certamente, os cristãos em Roma, perseguidos e atirados ao circo não se sentiam livres. Mas o que dizer dos romanos que "escolhiam" ir ao circo? Quase com certeza identificamos nossos opressores e repressores, mas sequer nos perguntamos sobre o pão e o circo que quotidianamente nos são ofertados (ou impostos). Como diz Skinner:

Aquilo de que o escravo deve ser consciente é sua miséria e a verdadeira ameaça é o sistema de escravidão concebido de modo a não produzir revolta. A literatura da liberdade teve em mira tornar o homem consciente do controle aversivo, mas na sua escolha de métodos deixou de libertar o escravo feliz. (Skinner, 1971, p.35)

b. Quando o controle sobre o comportamento é positivo, mas a quantidade de reforços não é proporcional ao comportamento exigido, a literatura de liberdade também não auxilia a análise. Ainda que o trabalhador possa ter aceito seu contrato de trabalho, ainda que ninguém o tenha ameaçado, certamente este trabalhador não é livre. A relação - tão nossa conhecida - de trabalho árduo (12, 15 horas diárias, sem falar na condução) e pouca remuneração é o exemplo mais típico.

c. É necessário ainda destacar uma outra história de reforçamento que pode estar atrás do trabalho árduo e que não permite falar em liberdade: se o reforçador for muito poderoso, como é o caso em histórias de privação intensa, as pessoas não são livres. Diz Skinner:

Podemos não nos sentir livres também sob refor-çamento positivo se ele for tão poderoso a ponto de nos impedir de fazer coisas que gostaríamos de fazer. Escravos obviamente não se sentem livres, mas trabalhadores também não se sentem livres se tiverem que trabalhar tão longa e duramente a ponto de não terem energia para nada mais. (Skinner, 1971, p.39)

A ciência do comportamento e a questão da liberdade

Em que medida este processo trilhado pela luta pela liberdade comprometeria uma análise científica do homem? Para responder esta pergunta, dois aspectos precisam ser considerados:

a. as próprias teorias científicas, fruto que são desta luta pela liberdade, acabam por refletir traços / marcas das concepções de homem defendidas pela literatura da liberdade.

Aceitando a determinação, em princípio, das ações humanas, tais teorias acabam como que atenuando esta determinação. Esta atenuação é conseguida por qualquer uma de duas estratégias.

a1) Em primeiro lugar, assumindo os determinantes da ação humana como algo tão distante da própria ação que as relações de determinação parecem quase inexistentes. Nenhum de nós parece ter sua liberdade/ autonomia ameaçada quando consulta o mapa astral, o horóscopo, ou se sente integrado nos sistema total de energia do universo. Na realidade, o que estas teorias fazem é distanciar o homem da ação. A inacessibilidade dos determinantes da ação torna o sujeito mero espectador de seu destino.

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a2) A segunda estratégia de atenuação do determinismo consiste em trazer para dentro do indivíduo estas deter-minações. Certamente, o fortalecimento do indivíduo como fonte e origem de sua ação cumpriu um papel histórico importante:

Para unir os homens contra a tirania foi necessário fortalecer o indivíduo, ensinar-lhe que ele tinha direitos e podia governar a si mesmo. Dar ao homem comum uma nova concepção de seu valor, sua dignidade e seu poder para salvar-se a si mesmo, tanto então como depois, foi freqüentemente o único recurso do revolucionário. (Skinner, 1959, p.8)

Entretanto, o papel exacerbado do indivíduo como iniciador da ação é, em si mesmo, um produto histórico que hoje tem importantes implicações: como a análise do comportamento indica, continuar valorizando o sujeito, ensimesmando-o, rompendo e obscurecendo suas relações com o ambiente físico e social pode apresentar o indivíduo como autônomo, mas acabará por destrui-lo como homem.

A consciência é um produto social. Não só não é o campo especial do homem autônomo, mas se acha fora de alcance do homem solitário. (Skinner, 1971, p. 183)

b) A luta pela liberdade e especialmente a literatura da liberdade, ao centralizarem sua análise nos sentimentos e estados de espírito e na crítica às técnicas de controle aversivo, acabaram por opor liberdade a todo controle. Esta oposição supõe uma sobre valorização da liberdade e, por conseqüência, a desvalorização e desqualificação do que se supõe ser seu antônimo, seu oposto - o controle.

Ao lutar pela liberdade, os defensores da literatura da liberdade "cometeram o erro de supor que estavam suprimindo controle em lugar de corrigi-lo."(Skinner, 1971, p. 173)

Com tudo isso, a literatura da liberdade se encontra hoje "despreparada para o próximo passo, que não consistirá em libertar os homens do controle, mas sim em analisar e modificar os tipos de controle a que estão expostos. (Skinner, 1971, p. 40)

Se voltarmos à nossa pergunta - afinal em que medida o processo da luta pela liberdade compromete uma análise científica do homem - aí está a oposição irreconciliável entre a concepção tradicional de homem e a concepção behaviorista. Após todo este percurso, voltamos, ainda que das mais diferentes formas ao problema da determinação humana. E qual a importância disto?

Para o behaviorista isto é fundamental porque "o homem, como o conhecemos, melhor ou pior, é o que o homem fez do homem"(Skinner, 1971, p. 197).

E para o behaviorista o homem vem se construindo ao construir o mundo no qual vive. E, para nossa tristeza, o mundo que construímos " ... é um padrão pobre. Qualquer sociedade sem fome e sem violência pareceria esplêndida contra esse fundo." (Skinner, 1948, p. 286)

Afinal, liberdade é um mito?

Se até aqui a resposta a esta pergunta ainda não está clara não queremos correr o

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risco da ambigüidade. Temos duas respostas para a pergunta.

Liberdade não é um mito. Se definida como o conjunto de sentimentos produzidos por contingências de reforçamento positivo com características bem claras: contingências que ocorrem na ausência de privação intensa, na ausência de uma relação desigual entre a quantidade de resposta e reforçamento, na ausência de acesso desigual e hierarquizado ao refor-çamento e na ausência de quaisquer contingências aversivas sustentando as positivas. Esta liberdade não é um mito. Ela pode ser um sonho, mas não é um mito. No entanto, é um sonho que só poderá ser realizado mudando as contingências, transformando o mundo e não "os corações e mentes dos homens", como tantas vezes disse Skinner.

Sim, liberdade é um mito. Se entendida como ausência de determinação, como existência de livre arbítrio, como defesa de um homem autônomo, livre e avesso a qualquer relação de controle com o ambiente, como o indivíduo que se auto-produz.

Mito aqui tem o preciso significado de uma explicação mítica: um tipo de explicação que pode ter tido um papel na construção do pensamento racional; papel que se cumpriu exatamente na medida em que o pensamento racional se expande, estrutura e difunde e que hoje na defesa da não-razão (des-razão ou pós-razão) acaba hoje por ocultar a realidade cumprindo agora o papel de manutenção e não de trans-formação da realidade. E o apego a este mito é um problema. Ele indica que :

nossas práticas atuais não representam uma posição teórica bem definida ... não abandonamos totalmente a filosofia tradicional da natureza humana, ao mesmo tempo que estamos longe de adotar sem reservas um ponto de vista científico. Aceitamos em parte o pressuposto do deter-minismo, mas permitimos que nossa simpatia, nosso primeiro compromisso e nossas aspirações pessoais se levantem em defesa da visão tradicional ...Se este fosse apenas um problema teórico não teríamos razão para alarme, mas teorias afetam práticas. Uma concepção científica do comportamento dita uma prática, uma filosofia de liberdade pessoal, uma outra. Confusão na teoria significa confusão na prática. As infelizes condições atuais do mundo podem ser devidas em grande parte à nossa vacilação (Skinner, 1953, pp. 8,9)

Esta é a concepção de liberdade defendida pelo behaviorismo radical e este o desafio que, no nosso entender todo behaviorista radical deveria assumir: o de produzir conhecimento e tecnologia que nos permitam adquirir o tipo de liberdade que aqui chamamos de um sonho, o de se envolver na transformação do mundo com a perspectiva de um dia vivermos no mundo com que todos, um dia, sonhamos.

Referências

Skinner, B.F. (1948) Walden II. New York: Macmillan

Skinner, B.F. (1953) Science and Human Behavior. New York: Macmillan

Skinner, B.F. (1959) Cumulative Record. New York: Appleton-Century-Crofts

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Skinner, B.F. (1971) Beyond Freedom and Dignity. New York: Bantam Books

Andery, M.A. (1990). Uma Tentativa de (re) construção do mundo: a Ciência do Comportamento como ferramenta de intervenção. Tese de Doutorado apresentada ao programa de Psicologia Social da PUC-SP.

Notas

1 Dra. em Psicologia. Professora da disciplina Psicologia Compotamental na PUC-SP.

2 Dra. em Biologia. Professora da disciplina Psicologia Comportamental na PUC-SP.

http://www.ufba.br/instituicoes/ufba/faculdades/psicologia/liberdad.html

26/09/2003