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A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL PROCEDIMENTALISTA COMO MEIO DE CONSTRUÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Newton de Oliveira Lima 1 RESUMO: Objetiva-se analisar as possibilidades de instituição de um modelo de jurisdição constitucional procedimentalista no Brasil, a fim de concretizar direitos fundamentais dentro de uma visão processualista e democrática e não substancialista de efetividade dos direitos fundamentais pela jurisdição constitucional. PALAVRAS-CHAVE: jurisdição constitucional direitos fundamentais procedimentalismo – substancialismo – interpretação democrática 1 PROCESSO CONSTITUCIONAL, CIDADANIA E REALIZABILIDADE DA JUSTIÇA 1.1 Processualidade e democracia: civismo e institucionalização da política A fim de proteger os direitos fundamentais do cidadão insertos na Magna Carta, urge um aprimoramento da proteção jurídico-constitucional dos mesmos, fortalecendo uma jurisdição constitucional afeita à democratização da sociedade, principalmente como ação jurídica do cidadão enquanto agente de transformação social. Assim, a proteção do cidadão pelo direito, e especificamente o direito constitucional, passa pela questão da renovação das estruturas de poder através da possibilidade de manuseio de um instrumental garantista previsto na Magna Carta e orientado com fins a produzir uma jurisdição aberta, participativa, materialmente democrática, enfim, que somente com essas feições poderá denominar-se cidadã. A importância do processo constitucional está, assim, assente na possibilidade do manuseio de um instrumental acessível a qualquer cidadão, e previsto em rol descritivo no texto constitucional como garantia formal que pode ser concretizável e exercitável no âmbito de uma cidadania ativa. 1 Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista da CAPES.

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A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL PROCEDIMENTALISTA COMO MEIO DE

CONSTRUÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Newton de Oliveira Lima1

RESUMO: Objetiva-se analisar as possibilidades de instituição de um modelo de

jurisdição constitucional procedimentalista no Brasil, a fim de concretizar direitos

fundamentais dentro de uma visão processualista e democrática e não substancialista de

efetividade dos direitos fundamentais pela jurisdição constitucional.

PALAVRAS-CHAVE : jurisdição constitucional – direitos fundamentais –

procedimentalismo – substancialismo – interpretação democrática

1 PROCESSO CONSTITUCIONAL, CIDADANIA E REALIZABILID ADE DA

JUSTIÇA

1.1 Processualidade e democracia: civismo e institucionalização da política

A fim de proteger os direitos fundamentais do cidadão insertos na Magna Carta,

urge um aprimoramento da proteção jurídico-constitucional dos mesmos, fortalecendo

uma jurisdição constitucional afeita à democratização da sociedade, principalmente

como ação jurídica do cidadão enquanto agente de transformação social.

Assim, a proteção do cidadão pelo direito, e especificamente o direito

constitucional, passa pela questão da renovação das estruturas de poder através da

possibilidade de manuseio de um instrumental garantista previsto na Magna Carta e

orientado com fins a produzir uma jurisdição aberta, participativa, materialmente

democrática, enfim, que somente com essas feições poderá denominar-se cidadã.

A importância do processo constitucional está, assim, assente na possibilidade

do manuseio de um instrumental acessível a qualquer cidadão, e previsto em rol

descritivo no texto constitucional como garantia formal que pode ser concretizável e

exercitável no âmbito de uma cidadania ativa.

1 Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista da CAPES.

Afirma Baracho (2006, p.116): “O cidadão concreto exerce seus direitos e

assume deveres no ambiente político em que realiza práticas sociais. A dinâmica da

cidadania faz-se entendê-la não como um conjunto de valores, de direitos e de deveres

inscritos na Constituição do Estado, mas na prática militante do debate político.”

No intento de sintetizar as condições políticas referentes a essas práticas como o

pluralismo político, o multipartidarismo e a visão geral de um direito oriundo da ligação

com a democracia e o liberalismo, assevera Baracho (2006, p.118): “A participação do

cidadão no poder, como característica da democracia, configura-se pela tomada de

posição concreta na gestão dos negócios da cidade, isto é, no poder. Essa participação é

consagrada através de modalidades, procedimentos e técnicas diferentes.”

Matriz fundante dessa visão processualista sobre a constitucionalidade é a visão

publicista e procedimental de Häberle (1997, p.38), quando assevera que “Democracia

‘é o domínio do cidadão’ (Herreschaft des Burgens), não do Povo, no sentido de

Rousseau. Não haverá retorno a Rousseau. A democracia do cidadão é mais realista do

que a democracia popular (Die Burger-demokratie ist realistischer als die Volks-

Demokratie).”

A matriz processualista na linha de Häberle implica uma visão democrática

sobre a Constituição que incida como um construto de direitos e de instrumentalização

processual de garantias de direitos dentro de uma matriz operante processual: é uma

visão publicista e processualista em suas bases atuacionais. Implica como

desenvolvimento de suas premissas intelectuais estruturantes a construção de uma

cidadania como utilização de um instrumental garantista posto em sua configuração

formal na Carta Constitucional escrita.

Ser cidadão, desenvolvendo a visão de Häberle (1997, p.32), é agir com fulcro

no instrumental posto constitucionalmente, dando-lhe eficácia e atuando como agente

processual constitucional, procurando produzir um discurso jurídico próprio,

implementador de uma interpretação do cidadão sobre as normas e não ser somente um

sujeito-passivo destinatário da interpretação do Estado-juiz.

Um processo de democratização da estrutura jurídica e judiciária passa,

necessariamente, pela construção da cidadania ativa não em termos de ‘luta política’

enquanto representação, nem simplesmente como convivência comunitária em busca de

‘transformações sociais’.

Os comunitaristas de diversos matizes, inclusive os fenômenos em geral do

“direito comunitário”, “direito achado na rua”, são geralmente inconscientes da

processualidade constitucional, pois acreditam que a ação social “consciente” e atuante

possa mudar as instituições de poder, como se o fato de protestos políticos gerassem

ipso factum mudança jurídica. A simples adesão a um projeto político-ideológico não

garante a racionalidade procedimental da institucionalização desse projeto-utópico

enquanto juridicidade, e podem tornar-se meros meios demagógicos de expressão

política ou jurídica (LEAL, 2002, p.79).

Os comunitaristas, então, fundem apressadamente direito e ativismo político,

pois se o primeiro necessita de legitimidade é pela democratização dos métodos e dos

procedimentos de construção e proteção institucional dos direitos subjetivos do cidadão,

e não com atos de caráter predominantemente político ou ideológico que não reflitam

formas de racionalidade jurídica, porquanto nos movimentos sociais existem por vezes

motivações e práticas bem irracionais, ideológicas, para-militares, o que é

explicitamente vedado na Constituição Federal (2007) no art. 5º, inciso XVII.

Metodologicamente, deve-se distinguir entre direito formal-institucionalizado e

direito comunitário. Se esse último for um conjunto de anseio das pessoas oprimidas

que clamam por uma espécie de justiça social, deve-se tentar institucionalizar essa

pretensão jurídica à luz do ordenamento. Todavia, é necessário perscrutar a vontade

dessas pessoas através de um procedimento discursivo de formação de vontade. A

intenção de mudar a realidade social não garante ganho de conscientização, nem

aprimoramento de costumes sociais.

Ora, a democracia é participação consciente em um país realmente consciente

dos valores republicanos. A luta social é importante e uma sociologia jurídica

consciente do dever de transformação deve buscar estudá-las e compreendê-las como,

no mínimo, sintomas de uma reforma social que implique a melhoria estrutural das

condições de existência humana em sociedade.

Incentivar movimentos sociais inconsciente de suas metas e politicamente

irresponsáveis, e por isso mesmo manipulável ideologicamente não faz sentido à luz de

uma visão racional e processual sobre o direito e a política: deve haver a busca da

discussão e da institucionalização racional-procedimental-discursiva dos anseios

jurídicos, não basta o mero reconhecimento do judiciário da “vontade do povo."

Ora, se essa vontade irracional ‘ativista’ mudasse algo, teríamos a muito tempo

mudanças pelo simples fato de haver revoltas: violência não gera mudança estrutural,

gera repressão estatal organizada. Que se façam instâncias de debate público para

esclarecer posições e anseios. Que se instituam instâncias de deliberação púbica:

instrumentos de uma democracia deliberativa e participativa.

O conceito de espaço público é desenvolvido por Habermas (2003, p.149),

quando coloca como premissa crítica básica a visão marxista (partir da análise da visão

política do jovem Karl Marx) de uma instância construída a partir da sociedade

burguesa em crise, da incapacidade da burguesia em instaurar uma instância pública que

gere transformações sociais. A esfera pública burguesa manipula a opinião pública

(HABERMAS, 2003, p.179):

Manipulativo é sobretudo o cálculo sócio-psicológico de ofertas

endereçadas a tendência inconscientes e que provocam reações

previsíveis, sem, por outro lado, poder de algum modo obrigar aqueles

que, assim, se asseguram a concordância plebiscitária: apoiando-se em

parâmetros psicológicos cuidadosamente elaborados e em apelos

experimentalmente comprovados, quer-se que,quanto melhor eles

devam atuar como símbolos da identificação, tanto mais eles percam a

sua correlação com princípios políticos programáticos ou até mesmo

com argumentos objetivos.

Habermas (2003, p.241) coloca que: ‘Perante a esfera pública ampliada, os

próprios debates são estilizados num show. A ‘publicidade’ perde a sua função critica

em favor da função demonstrativa: mesmo os argumentos são pervertidos em símbolos,

aos quais não se pode, por sua vez, responder com argumentos, mas apenas com

identificações.’

Afora o contexto intelectual que Habermas escreveu essas linhas, década de

sessenta para obtenção da livre-docência em Frankfurt e presa ao contexto empírico

alemão que ele pretende alienado de um processo de justificação argumentativa das

posições políticas e dominado pelo “publicitarismo” (HABERMAS, 2003, p.256) e pelo

bombardeamento do indivíduo pela pressão do consumo advinda da indústria cultural

(HABERMAS, 2003, p.284), a tese em geral é válida e retomada por teóricos modernos

e pelo próprio autor em outras obras mais recentes (HABERMAS, 2001, p.141) para

mostrar a insuficiência do conceito de esfera pública na democracia e dos Estados-

nacionais ocidentais no pós-II Guerra Mundial.

Como alternativa para desbastar a alienação da esfera pública pelos discursos

dominantes da mídia mercadológica e do poder político elitista, tem-se que intervir pela

instrumentação do sistema jurídico enquanto espaço de democratização social,

desconstrutor dos discursos dominantes e com capacidade de articulação de um discurso

de confluência das tendências sociais conflitantes e, conseguintemente, como agir

comunicativo na esfera pública, construtora de uma racionalidade lingüística dia-lógica

e não monológica e alienada da comunicação entre as pessoas (HABERMAS, 2002,

p.35).

Para Santos (1988, p.43) a reconstrução da esfera pública, especificando um

desenvolvimento da esfera jurídica, dá-se na estrutura de uma argumentação produzida

como esfera da discursividade tópica (topoí como lugares argumentativos), como

discurso problematizado por uma argumentação participativa, e não abstratizado e

burocratizado em linguagem técnica.

Santos (1988, p.44) critica o processo judicial burguês pelo seu afastamento da

realidade por um molde tecnicista lingüístico, e não de abertura para sínteses analíticas

com os agentes da comunidade, os participantes leigos do processo judicial.

Quanto ao 'direito alternativo', frise-se não se deve pressupor que um juiz possa

de maneira unilateral provocar mudanças em um sentido 'justo", deve-se indagar o que é

justiça para esse juiz; deve-se indagar qual sua procedimentalização discursiva da

matéria posta em discussão, saber se ele exauriu o contraditório e os instrumentos

processuais cabíveis in specie.

O direito alternativo pode, inclusive, gerar conseqüências anti-legais e anti-

constitucionais, pois de sua aplicação podem surtir efeitos de cunho que fira direitos

patrimoniais assegurados expressamente no Código Civil e na própria Constituição,

decisão que levam a construções anti-jurídicas sobre o pretexto de se fazer um direito

“social.”

Querer fazer justiça sem método discursivo e processual-racional de análise da

matéria é puro irracionalismo. Justiça é ‘justeza e justificação’ enquanto metodologia

racional circunscrita de uma problemática concreta, como apregoa Kolm (2000, p.7).

Querer ser o juiz um deus ex machina do processo, não leva a uma

institucionalização da justiça como procedimento democrático: uma 'jurisdição

salvadora' não é solução de salvaguarda democrática nem de transformação social.

Rosemiro Leal, em sua teoria neoinstitucionalista do processo, assevera que não

há ‘jusrisdição salvadora’: existem procedimentos discursivos implementáveis que

podem concretizar a democracia prevista constitucionalmente e construída

discursivamente. Inflar de poderes uma "jurisdição alternativa” é uma forma de "direito

livre" que pode criar uma cultura de subversão da legalidade e da própria

constitucionalidade em prol de fins justos e éticos que no fundo não são construídos

democraticamente, mas milagrosamente por iluminados, por 'dadores de sentidos' tal

quais pitonisas antigas que adivinham o justo (LEAL, 2002, p.104).

Jean Baudrillard (2003, p.55), pensador francês, também não acredita na

convivência como meio de efetividade de transformações sociais. Para ele a mediação

de sentido dos signos dominantes fulminou a idéia de espaço público, o que impede de

se reconstrua a legitimidade da democracia enquanto fonte de poder a partir da idéia de

‘massa’ (BAUDRILLARD, 1996, p.5).

Assim, tanto o uso ‘alternativo’ do direito como o ‘direito comunitário’, como

preconizado por algumas correntes de pensamento jurídico “progressistas” deve ser

concebido com bastante cautela e está passível de acuradas críticas.

Como saída a esse caos da representação política e conseguintemente da crise de

legitimidade em que se encontra a sociedade política, e que já contamina a esfera

jurídica, propõe esse modelo da cidadania participativa enquanto processualidade

jurídico-democrática.

A consciência da capacidade de instrumentação das garantias processuais

constitucionais pelo cidadão é a mais segura politicamente, a mais legítima

juridicamente e a mais eficaz materialmente forma de concretizar os direitos

constitucionais, produzir novos direitos a partir da interpretação constitucional e refazer

a sistemática de garantias e direitos subjetivos pela instrumentação de enquadramento

processual-democrático e jurídico-constitucional, publicizadora da construção de

direitos em uma ordem jurídica democrática.

Como asserta Pierre Bourdieu (2005, p.252), o campo publicista (ao contrário do

direito privado que é essencialmente capitalista) congrega a defesa premente de uma

visão social do direito, desconstrutora das ideologias de dominação, do poder simbólico

de um direito reprodutor de um sistema social excludente da maioria dos cidadãos dos

centros de manuseio do discurso e do instrumental processual jurídicos, sendo, assim,

fundamentalmente injusto.

A noção de inserção no Brasil da construction (construção), enquanto método

hermenêutico-constitucional de construção de direitos fundamentais, implica no

reconhecimento de uma não só atividade criativa e protetora da jurisdição

constitucional, mas outrossim, da configuração de espaço de dialogicidade

processualizada, isto é, da efetivação de uma linguajem jurídica que consiga revelar a

concreção fundamental da dos valores sociais de uma maneira a transformá-la não em

uma revelação de sentido simplesmente hermenêutica de um conteúdo qualquer

(metafísico, sentimental ou cultural pressuposto), mas em uma construção

processualizada, ao máximo participativa, com abertura crítica para todo cidadão atuar

como intérprete da Constituição, como asserta Rosemiro Leal (2002, p.171).

Cidadania com eficácia jurídica, sobremodo de um ponto de vista constitucional

processual, o exercício de efetivação do instrumental constitucional processual. É a

busca de uma justiça “processual” exercida enquanto cidadania ativa, trabalhando com

os instrumentais postos a disposição na lei: somente assim a justiça torna-se um

conceito de poliarquia moral e racional circunscrita, efetivada mediante um método de

justeza e justificação (KOLM, 2000, p.46).

O fato é que, sintetizando o até aqui estudado, pode-se dizer que uma

democracia fundada na publicização como fiscalização do cidadão constantemente

exercida, origina-se do próprio caráter “público” e “fiscalizador” do conhecimento em

Karl Popper (LEAL, 2002, p.159), isto é, a superação da filosofia da consciência e dos

transcendentais gnoseológicos e discursivos, que funcionam como meios retóricos de

“fetichização” das massas, incitam uma tutela estatal e jurisdicional fechada em mentes

de “experts jurídicos” ou em jurisdições ou movimentos sociais ‘salvadores’, dá-se pela

teoria da fiscalização das proposições discursivas do direito e da política que tem

origem na idéia de Karl Popper de um conhecimento objetivo formalizado a fim de

testificar as premissas da cognição erigidas momentaneamente como “certas”

(verdadeiras juridicamente).

Tal idéia de Popper vai influenciar tanto Häberle (1997, p.18) como Leal (2002,

p.159) na busca de elaboração de uma processualidade democrática passível de

construção com bases publicistas, participativas e discursivas – uma abertura na

construção da constitucionalidade dentro de um modelo de processualidade

democrática. Assevera Leal (2002, p.159): ‘só com Popper identificando-se lógica e

método como teoria evolucionária e provisória adotada para a enunciação de

conhecimentos, é que foi superada a essencialização dos métodos (hipótases).’

1.2. Justiça e processualidade constitucional

Se a justiça dá-se em efetividade como justificação e fundamentação

argumentativa, ela somente pode construir-se enquanto uma processualização discursiva

numa estrutura de argumentação justificadora (ATIENZA, 2000, p.174). Como diz

Alexy (2007, p.68), é através de um constitucionalismo discursivo de viés democrático

que se pode desenvolver a argumentação justificadora do processo na jurisdição

constitucional.

A processualidade é que garante a instrumentação do justo à luz do direito pós-

metafísico atual: sem processo de argumentação válido não há construção devida de um

raciocínio jurídico integrador de fatos, valores e normatividade enquanto fatos culturais

(REALE, 1999, p.44), pois a idealidade do justo não é mais assegurada por qualquer

concepção meta-ética ou metafísica jusnatural, ou então, oriunda de uma consciência

transcendental gnoseológica à Kant, o que originou Kelsen, Stammler entre outros

neokantianos (LEAL, 2002, p.60).

Ao contrário, somente uma visão processual assegura a legitimidade da decisão

estruturante de uma justicialidade, o que implica o manuseio do instrumental de ações

posto constitucionalmente à disposição do cidadão.

Cidadania e realizabilidade da justiça são uma estrutura co-pertinente: só há

justiça pública, efetiva, uma razão pública desenvolvida num espaço de co-

relacionamento Estado-sociedade, pela participação cidadã enquanto utilizadores do

processo constitucional ou suas derivações infra-constitucionais (processo civil,

processo penal etc), e somente encontra sentido de existência a esfera pública da

cidadania em referência processualizadora de uma poliarquia moral e racional

circunscrita - conceito de justiça para Kolm (2000, p.7).

Acessabilidade ao judiciário é utilização do instrumental de ações e garantias

posto a lume no ordenamento jurídico ao indivíduo: a noção de uma narrativa

lingüística (discurso jurídico) de justicialidade democrática implementada pela

estruturação da idéia de justiça enquanto processualização cívico-participativa

construtora de direitos fundamentais dentro do devido processo constitucional ou tendo

o mesmo como paradigma dos desenvolvimentos processuais infra-constitucionais.

Justiça a-processual é materialmente injustiça que, privada de seu motor de

desenvolvimento matricial que é a materialidade procedimental dos construtores

efetivos do processo constitucionalizado que são os cidadãos, a justiça realizada pelo

direito entendido não-processualmente eiva-se de uma mentalidade de cunho perigoso

para a democracia e a constitucionalidade, pois o guardião e efetivador da Constituição

passa a ser não o cidadão, mas o simbológico poder de uma jurisdição supra-

democratizada, voltada para a efetivação não-processual da juris-dicção (dizer o direito,

concretizar a normatividade).

Como diz Canotilho (1995, p.415), a democracia não é apenas

institucionalização formal, mas ampliação do cidadão nas instâncias de poder, na

construção da institucionalização do poder: ‘A democracia é, no sentido constitucional,

democratização da democracia (...) Daí o caracterizar-se o principio democrático como

princípio de organização da titularidade e exercício do poder (...)’

1.3. Jurisdição constitucional e processualidade constitucional

A estrutura de um judiciário efetivador de direitos e garantidor de uma justiça

processualizada constitucionalmente deve ser o parâmetro de ação e de garantia da

efetividade da jurisdição constitucional, não somente pela ação do juiz constitucional ou

do magistrado que lhe faz as vezes, mas fundamentalmente pela adoção um possível e

constante diálogo juiz-sociedade no procedimento argumentativo-lingüístico de

implementação de decisórios construtores de direitos fundamentais.

Que a obrigação de fundamentação da decisão prevista constitucionalmente no

art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988 (2007) seja efetivada tendo em vista uma

jurisdicionalidade constitucional aberta, enquanto democrático-participativa, publicista

num sentido material e sociológico: construção de direitos fundamentais enquanto meio

de transformação da realidade social injusta, desigual, alienada das próprias práticas

culturais pela colonização do poder simbólico hegemônico da cultura massificante e

consumista.

Encontrando supedâneo nestas colocações acima, vislumbra-se defender a

instauração da Jurisdição Constitucional como processualidade constitucional para a

proteção e construção dos direitos fundamentais.

Não se quer defender a supressão ou inocuidade da jurisdição constitucional

num sentido fixamente institucionalizado, vulgarmente concebida como “substancial”.

Mas, dentro de um pensamento jurídico pós-metafísico e pós-jusnaturalista, portanto,

processualista, publicista e democrático, não se pode entender a justiça enquanto

implementação pela jurisdição como uma função estanque em sua concepção conceitual

metafísica do ‘justo’ a-processual, arraigada em sua fundamentabilidade hermenêutica

advinda (ou adivinhada) dos magistrados constitucionais ou infra-constitucionais.

Enquanto a estrutura do poder simbólico dos jurisperitos e dos exclusivistas

jurisdicentes não for atacada em sua pretensiosa fundamentabilidade auto-referente,

teoricamente posta a serviço ou de interesses grupais intra-referentes (de classe) ou a

interesses gerais mascarados das elites sociais dominantes (BOURDIEU, 2005, p.227).

Assim, entende-se que a função de uma jurisdição constitucional

processualizada é a construção de direitos fundamentais sob um paradigma

democrático-processualizante, com uma cidadania ativa voltada para a intervenção

processual maximizada e possível co-protagonização da decisão judicial e a

conseqüente construção de direitos pelo cidadão, evitando uma passividade jurídico-

política do mesmo que revela exatamente uma postura de conformismo dominado e de

ausência de uma consciência política da cidadania participativa e ativa juridicamente.

Ora, é de se perceber na dimensão da jurisdição constitucional a dimensão

fundante de toda a jurisdição, para a qual converge em último caso a definição de toda

lide pelo controle de constitucionalidade último exercido pelo Tribunal Constitucional,

ainda que no caso do Brasil se questione tal natureza ao Supremo Tribunal Federal

(BINENBOJM, 2003, p.141), pois ele concentra excessivos poderes de decisão e

cumula competência de corte constitucional com competência de corte judicial recursal

(BONAVIDES, 2003, p.92).

Pelos menos enquanto institucionalização posta pela própria Constituição da

República de 1988 (arts. 102 e 103) em seu sistema de competência jurisdicional e

recursal e função de defesa constitucional Supremo é a Corte Constitucional do Brasil.

A dimensão da processualidade constitucional caracteriza-se pela decisão em

torno da construção de uma constitucionalidade discursiva à Alexy (2007, p.12), com

caráter aberto, institucionalizador da racionalidade pragmática, com a fundamentação

do Estado de Direito Constitucional na discursividade, na resolução dos conflitos pelo

discurso.

Assim, o problema da caracterização de uma jurisdição constitucional passa pela

organização (distribuição de competências e funções institucionais pela lei) e,

principalmente, pela estruturação interna de processualidade discursiva com a abertura

(facilitada pela institucionalização democrática) de participação democratizante dos

cidadãos.

Então, a jurisdição constitucional processualizada é tanto uma visão

constitucionalista e democratizante-publicizante sobre o processo na ordem jurídica no

aspecto endo-processual de construção da legitimidade (democrática) decisória e da

instauração de desenvoltura do procedimento com a participação cidadã na formação da

decisão e na narrativa jurídica (constitucionalização do processo em geral), como é

também uma visão exo-processual ou objetiva-institucional sobre os mecanismos

processuais (formas institucionalizadas de ações procedimentais de defesa e concreção

de direitos fundamentais) e novamente criação pela lei processual de mecanismos de

atuação processualizáveis democraticamente (ampliação da cidadania pelo manejo de

procedimentos pelo cidadão), o que corresponde ao processo constitucional strictu

sensu.

Endo-processualidade constitucional-democrática (movimento de

constitucionalização do processo em geral) é a configuração de uma técnica de

ampliação argumentativa democrática na construção dos direitos fundamentais pelo

cidadão, especificamente pelo aumento da discussão da lide e a construção de uma

narrativa jurídica aberta a fiscalização do cidadão na formação da decisão, incidindo a

teoria neoinstitucionalista do processo de Rosemiro Leal (2002).

É a extensão do publicismo e da processualidade participativa do

constitucionalismo democrático a toda a esfera processual possível do sistema, mediante

técnicas de aprimoramento do nível de democratização da narrativa (discurso) jurídico

com a possibilidade do cidadão participar da construção da decisão e da

procedimentalização judiciais em geral (tantos dos procedimentos típica e

especificamente sediados na Constituição de 1988 como nos infra-constitucionais).

Exo-processualidade constitucional-democrática é a institucionalização de

instrumentais, ações e institutos processuais pela lei que capacitem uma legitimação

atuacional do cidadão no conjunto do ordenamento levando em consideração o manejo

de tais instrumentais, ao tempo em que se preconiza a reforma de institutos processuais

que incitam a concentração de poderes (parca legitimação para a propositura da Ação

Declaratória de Inconstitucionalidade e da Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental).

2 PARA A ESTRUTURAÇÃO DE UMA PROCESSUALIDADE

CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICA

2.1 Endo-processualidade constitucional democrática (constitucionalização do

processo em geral)

A estrutura de processualidade discursiva aplicada ao caso concreto implicaria

um remetimento e a uma situação da questão em voga (lide) à sua matriz jurídico-

constitucional, localizando os pontos controversos em função da principiologia e

valores constitucionais em interligação discursiva com o direito infra-constitucional e, o

que é mais relevante, perfazendo uma processualização da fase cognitiva enquanto

contraditório qualificado e máximo desenvolvimento do devido processo em

consonância com uma interpretação processual-constitucional (ampliação da

metodologia processual dentro do devido processo constitucional).

Em suma, pensar juridicamente a lide em termos constitucionais plenificados e

apriorísticos, tanto em nível de fundamentação material da decisão, através da

metodologia de argumentação jurídica, como no sentido de ampliar a possibilidade de

participação do cidadão no contexto processual, enquanto forma de democratização

processual a até mesmo na produção da sentença jurídica e na revisão da coisa julgada

quando inconstitucional.

O que não se faz, por exemplo, ao olvidar a função altamente processualizável

democraticamente para a construção da decisão judicial que seria a aplicação

maximizada do art. 331, parágrafo segundo, do Código de Processo Civil (2007), a

audiência preliminar como lócus processual de fixação dos pontos controvertidos da

lide, como prevê o texto normativo.

Podemos trabalhar com duas hipóteses plausíveis para esse exaurimento dos

pontos controvertidos na audiência e posterior desdobramentos probatórios e arrazoados

justificatórios de posicionamentos endoprocedimentais dela decorrentes: cogita-se da

construção de procedimentos de democratização da decisão a partir da complexidade da

demanda recebendo um enfoque que conjugue a técnica da ciência e demais saberes

como elementos informativos do julgador (participação dos técnicos no processo), até

como incremento da fundamentação técnica da decisão, e a busca de aperfeiçoamento

das partes interessadas da sociedade na condução dos procedimentos das ações

constitucionais, como o Supremo Tribunal Federal faz ao admitir o amicus curiae nas

demandas, o que traz um ganho em termos de discussão probatória e técnico-

fundamentativa à demanda.

Em suma, a hipótese de um aprimoramento da processualidade democrática da

lide revela a carência de legitimidade democrática do processo, posto que o mesmo não

pode continuar a desenvolver-se como um instrumental voltado para a monologicidade

hermenêutica estabelecida pelo juiz, senhor do processo enquanto hermeneuta

privilegiado que passa a ser um senhor dos sentidos de incidência da norma e da

interpretação do texto normacional.

A teoria neoinstitucionalista do processo (LEAL, 2002) é um instrumental

teórico que propõe um modelo democratizante do processo à luz da maximização das

possibilidades democrático-constitucionais, o que não plenifica o processo como meio

exclusivo de instauração de controle de constitucionalidade, é verdade, pois não estar-se

defendendo a supressão da jurisdição constitucional como garantia de direitos pela

confiança do cidadão na função hermenêutica do magistrado, entretanto, é de se colocar

que a função de proteção de direitos fundamentais implica a participação co-construtiva

dos mesmos pelo cidadão, tendo em constante referência a democratização dos

procedimentos.

2.2 Exo-processualidade constitucional democrática (direito constitucional

processual em sentido estrito)

O processo constitucional em sentido estrito, em função da construção de ações

e procedimentos previstos na Constituição Federal de 1988 implica, pois, um conjunto

de garantias processuais da cidadania, dispostos explicitamente no texto constitucional e

nas legislações complementares que integram o processo constitucional (daí porque

denominar-mos exo-processo constitucional, a processualidade constitucional externa,

objetiva em norma).

O fato é que as formas procedimentais de ações constitucionais para defesa de

direitos e exercício de garantias previstas explicitamente na Constituição pode ser

elencada como a exteriorização de um processo em ditames estritamente vinculados à

constituição, dela dimanando diretamente. São as chamadas ações constitucionais

típicas, assim denominadas por Pacheco (2002, p.29): mandado de segurança,

individual e coletivo, habeas corpus, habeas data, ação popular etc.

As ações constitucionais vinculadas ao controle concentrado, como a Ação

Direta de Inconstitucionalidade, a Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental, regidas por leis federais 9.882 de 1999 e 9.868 de 1999 respectivamente,

também integram o processo constitucional e a jurisdição constitucional

(BINEMBOJM, 2001, p.241).

Na instauração procedimental de tais ações é que ocorre a efetividade do

manuseio dos representantes dos cidadãos a fim de conferir a proteção aos direitos

fundamentais expressos na Carta Política, bem como a defesa das prerrogativas

constitucionais de Estado, quando há uma declaração de constitucionalidade ou de

inconstitucionalidade que sirva de interesse ao Poder Público, sob o enfoque, pelo

menos formal, de defesa da coisa pública.

2.3 Justiça constitucional e jurisdição constitucional

O fato da jurisdição constitucional existir, portanto, como exteriorização das

garantias do cidadão, pressupondo que o Estado de Direito serve ao povo enquanto

assegurador do rol de direitos inscritos na Magna Carta, revela a necessidade de uma

processualização instrumentalizadora dessas garantias processuais-constitucionais.

A jurisdição constitucional somente existe como eficácia de tutela mediante

uma processualidade constitucional que a revela enquanto espaço de realização da

cidadania e de construção de direitos fundamentais, mesmo os não explicitados no rol

expresso do texto formal da Constituição.

Assim, dizer o justo constitucionalmente, preconizar o justo enquanto fim do

Direito e fito específico de uma jurisdição constitucional é a tarefa de estruturação de

discursos jurídicos conflitantes dentro de uma estrutura (espaço) processual

possibilitadora de tal discursividade, com capacidade isocrítica constante para os

participantes (LEAL, 2002, p.46).

Ora, o conceito de justiça é a de um discurso construído dentro de uma instância

de poder, e construído dentro de uma processualidade - afinal, definir a justiça é definir

a verdade jurídica, o que somente pode ser feito dentro de análise dos jogos de

linguagem que se cruzam, que se combatem, pois como diz Lyotard (1990, p.42) não

existe um discurso a priori correto, mas narrativas entrecruzantes, e a legitimação dos

procedimentos lingüísticos que se interpenetram dá-se no confronto dos jogos de

linguagem.

Assim, deve haver um esclarecimento e a capacidade de utilizar a linguagem

para se atuar socialmente, as instancias de linguagem jurídicas devem ser manuseadas

com base em um poder de análise da linguagem pelo cidadão.

Somente o processo isocrítico e com estruturação dentro de um paradigma

democrático-constitucional de fiscalização constante das premissas discursivas

produzidas no discurso jurídico-processual pode levar a um processo justo e a um

direito justo em algum sentido.

Assim, justiça, e também justiça constitucional, é a busca da processualidade

para que os agentes partícipes do processo e, lato sensu, toda a sociedade possam

participar e controlar a institucionalização do justo – daí a função da participação do

cidadão na estruturação da jurisdição constitucional como busca de uma justiça

processual.

Paradigma conceitual interessante dessa construção do justo é o traçado por

Kolm (2000, p.18), para quem justiça é poliarquia moral e racional circunscrita,

efetivada dentro de um método de justeza e justificação: justiça é justificação de

posições morais, éticas, filosófica e qualquer idéia que as partes queiram firmar (não há

verdades essenciais), mas construídas dentro de um processo de discussão da

processualidade da narrativa e operando com a justificação à luz do ordenamento

jurídico e seus valores intrínsecos (democraticamente decididos no marco

constitucional).

Não há um conceito apriórico de justo, há entrecruzamentos de narrativas que

constroem discursos que pretendem ser justos, que pretendem defender posições dentro

da linguagem jurídica. Assim, a jurisdição constitucional somente pode ser definida

como um marco procedimentalista, definível, então, como uma jurisdição de construção

e não de decisão unilateral do magistrado: a processualidade das ações constitucionais

típicas e atípicas deve servir a esse propósito, de alargar a participação do cidadão na

construção dos direitos fundamentais.

Uma concepção de jurisdição como processualidade e não como ‘decisionista’

ou ‘substancialista’, implica além do alargamento da participação cívica na esfera da

manipulação (ingresso) das ações previstas no processo constitucional pelo cidadão, na

feitura de formas procedimentais que dêem mais espaço para a participação do cidadão.

A construção de uma jurisdição constitucional democrática passa, assim, pela

possibilidade do cidadão integrar a ordem jurídica como um agente privilegiado no

manejo do instrumental processual constitucional e não como mero espectador,

recebedor de uma prestação jurisdicional advindo de “juízes salvadores”.

Justiça processualizada (não pré-definidora de conceitos) e jurisdição

constitucional procedimentalista (democratizante-publicizante) são faces de uma mesma

moeda, como apregoa Habermas (1997, p.344): o tribunal constitucional move-se

dentro das regras de aplicação do direito, legitima-se nelas (procedimento), mas busca

construir-se como instancia procedimental discursiva, daí, processual-discursiva.

E o papel do cidadão não é o de um virtuose político como queria Rousseau

(HABERMAS, 1997, p.345), nem de um “comunitarismo republicano” tipo

estadunidense (HABERMAS, 1997, p.347), mas de um agente partícipe do discurso,

processualizável e procedimental dentro das regras argumentativas e da reconstrução

discursiva da comunicação social muitas vezes colonizada pelo poder social e

ideológico (HABERMAS, 1997, p.353).

É próprio espaço público burguês-liberal-privatista-alinenado que é reconstruído

discursivamente em parâmetros democráticos. Melhor: ele só ganha sentido

democrático se re-construído discursivamente, e nesse processo de reconstrução

discursiva, o próprio discurso jurídico pré-decidido no texto constitucional também é

constantemente fiscalizável e re-produzido pelo cidadão. E tudo isso dentro de uma

lógica de constante processualização e publicização como radicalização da democracia

cívica, como efetivamente uma sociedade aberta de intérpretes constitucionais,

efetivando o modelo-ideal de Peter Häberle (1997, p.13):

no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados

todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e

grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com

numerus clausus de intérpretes da Constituição (...) A interpretação

constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta (...) os

critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto

mais pluralista for a sociedade.

E mais, a Jurisdição Constitucional deve servir a uma acepção processual de

justiça constitucional dentro de uma teoria processualista da democracia, como bem

coloca Leal (2002, p.98) :

A jurisdição constitucional no direito democrático se opera pelos conteúdos do

devido processo constitucional que é instituição discursiva e legalmente

garantidora, a todos, de correição procedimental permanente da falibilidade do

ordenamento jurídico e de confirmação popular das garantias e direitos

constitucionalmente legislados, e não pela atividade guardiã do Estado-juiz

numa relação jurídica entre pessoas (partes e decididores) sob a presidência

majestática e livremente decisional do julgador.

Esse é o modelo de uma democracia constitucional deliberativa como construção

de direitos pelo cidadão através de sua atuação cívica utilizando o processo

constitucional. Como assevera Carlos Silva (2008), sintetizando o pensamento

republicano sobre a jurisdição constitucional em diálogo com a ‘democracia

deliberativa’, aquela deve ser um meio de expressão da sociedade e de formação da

vontade do cidadão, e não a vontade de uma instância judicial decisora concentrada,

compulsória e unilateral de valores que julga aplicar em prol do ‘bem comum”:

O “republicanismo renovado” vê o Tribunal Constitucional como o garantidor

desta “democracia deliberativa” – “one of the distinctive features of this

approach is that the outcome of the legislative process becomes secondary.

What is important is whether it is deliberation – undistorted by private power –

that gave rise to that outcome” (12). Sob os olhos destes autores o Poder

Judiciário ou qualquer outro órgão não pode funcionar como representantes de

uma sociedade civil “incapaz” (no sentido do Código Civil), mas sim servir de

canalizador da vontade que ela de alguma forma já tem.

2.4 Metodologia de construção de direitos fundamentais numa visão processual-

constitucional

O fato de que as ações constitucionais são manuseáveis pelo cidadão pode

incitar a produção da esfera de juridicidade que satisfaz a premissa democrática com

maior ênfase e que alargue a esfera de concretização dos direitos fundamentais tendo

em vista a cláusula de abertura do art. 5º, parág. segundo, da Norma Ápice de 1988

(2007): "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros

decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais

em que a República Federativa do Brasil seja parte."

Ora, a construção de direitos fundamentais é necessária à existência da vida

social na ordem jurídico-democrática, pois é necessário atualizá-la, acompanhando as

mudanças fáticas e reconstruindo o sentido da normatividade, abarcando, dessarte, a

formação de novos direitos fundamentais, estendendo e ampliando o rol dos direitos

elencados no texto constitucional.

A metodologia processual implica numa construção das normas constitucionais

prioritariamente dentro de uma hermenêutica participativa, na possibilidade de

construção democrática da decisão judicial, mas sem pretender reduzir o problema da

complexidade dos casos constitucionais como coloca Dworkin (2007, p.151), nem de

reduzir a matéria jurídica a uma formação de cunho exclusivamente técnico-processual,

mas reconhecer na facticidade da mesma uma estrutura de natureza complexa,

implicando problemas morais, políticos etc.

Daí dizer Baracho (2003, p.537): "os direitos elencados na Constituição podem

ampliar-se, de modo que a juridicidade, a efetividade e a justiciabilidade possam tornar

concretos os direitos da cidadania. A jurisprudência constitucional propiciou a

ampliação dos conceitos básicos de direitos e liberdades fundamentais."

Para a instrumentalização das ações constitucionais, faz-se necessário, também,

a construção da principiologia processual inserta no âmbito da Magna Carta, ora, tal

visão principiológica infere-se do direito de ação, do contraditório e da ampla defesa, do

devido processo legal, enfim, dos norteamentos de princípios existentes na Constituição.

Esse instrumental de garantias e de princípios deve ser utilizado dentro de uma

visão endo-processualista democrática, isto é, na perspectiva de uma democratização da

utilização dos meios principiológicos com alargamento da tonalidade democrática dos

mesmos. Daí a necessidade de se realizar a construção de legitimidade partindo da

estruturação em uma visão discursiva, pois, no fundo, somente entendendo o processo

constitucional como um discurso institucionalizado aberto a todos os participantes da

vida cidadã é que se pode democratizar o direito.

Abertura à participação cidadã implica a busca de uma justiça constitucional

efetivadora de garantias instrumentais enquanto atuação dos poderes públicos à luz de

uma construção democrática de novos direitos fundamentais e de sínteses interpretativas

e criadoras de novos sentidos de incidência para direitos considerados explícitos no

ordenamento constitucional.

Uma teoria processual da constituição deve pontificar, pois, a instrumentalização

basilar de dois princípios-chave: o devido processo legal, inserto explicitamente na

Constituição de 1988 (2007), no art. 5º, LIV: ‘ninguém será privado da liberdade ou de

seus bens sem o devido processo legal’ e o princípio da proporcionalidade, implícito ao

texto constitucional, mas decorrente de seu sistema global (FREITAS, 1995, p.46), mas

cunho construtor açambarcador de uma mediação de sentido crítica entre casos difíceis

postos à lume na jurisdição constitucional.

O princípio da proporcionalidade está inserto no bojo da sistemática

constitucional, advindo de sua estrutura total como princípio objetivável e como vetor

axiológico possibilitador da construção de novos direitos fundamentais, implícitos na

ordem constitucional. Argumenta Freitas (1995, p.46), conceituando o sistema jurídico:

uma rede axiológica e hierarquizada de princípios gerais e tópicos, de normas e

de valores jurídicos cuja função é a de, evitando os superando antinomias, dar

cumprimento aos princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático

de Direito, assim como se encontram substanciados, expressa ou

implicitamente, na Constituição.

Assim, a partir da conjugação entre processo e proporcionalidade, pode-se dizer

que ocorre uma instrumentação do princípio do devido processo legal-constitucional e

do princípio do contraditório, enfim, unidos e instrumentalizados em função de uma

construção de cunho discursivo, procedimental-processual.

Unir as funções da estrututação principiológica dos direitos fundamentais,

buscando o respeito ao procedimento como regularidade institucional e segurança

jurídica, mas sem olvidar a construção de um processo-discursivo como meio

instrumentalizador dos conflitos.

Para Guerra Filho (2000, p.185) o princípio da proporcionalidade é o mais

importante porque integra a ordem jurídica, assegurando-lhe unidade e coerência,

conferindo àquela estruturação em moldes de uma transformação radical da

procedimentalidade como meio estruturador da emancipação das aspirações sociais,

uma vez que funciona como campo objetivo da querela entre as partes, podendo um

espaço processualizado aferir a importância das suas demandas e o peso relativo dos

valores em jogo.

No entanto, essa proporcionalidade como instrumento de mediação e equilíbrio

entre princípios constitucionais não pode tornar-se um instrumento de extensão

indefinida de poderes aos juízes, porquanto, assim o sendo, subverterá a própria idéia de

vinculação do sistema constitucional ao princípio republicano e democrático, de

vinculação, também do magistrado, aos princípios da fundamentação das decisões, do

devido processo, da democracia participativa, da limitação e divisão dos poderes e o

princípio republicano.

A reconstrução da legitimidade das decisões impõe-se como problema

sociológico-jurídico fundamental, ante a um judiciário abalado em sua credibilidade e

aos poderes públicos esvaziados de efetiva correlação com os processos reais de

formação de vontade política e de opinião pública na atualidade, levam a um apelo no

sentido de uma democratização do judiciário em todos os níveis de ação administrativa

que possui, bem como incita a uma reforma no tratamento dos mecanismos de

participação do cidadão como mais ênfase no processo constitucional, a exemplo da

instituição do amicus curie como possibilidade de extensão de intervenção de terceiros

no âmbito do processo constitucional, ampliando a discussão da lide (STAMATO,

2007, p.242).

Outro meio de democratização do processo constitucional, é a adoção da teoria

do auditório, de Chaim Perelman (ATIENZA, 2000, p.110), onde se defende a estrutura

de argumentação como fonte de legitimação da decisão judicial, argumentação essa que

passa por um controle de qualidade a partir da sociedade como um todo, que funciona

assim, como um auditório universal, capaz de contra-argumentar no âmbito do processo

constitucional- daí a importância da comunicação social, para se atingir um nível

excelente de argumentação, uma verdadeira comunidade ideal de comunicação

preconizada por Habermas (ATIENZA, 2000, p.110) e das teorias de construção endo-

processual (democratizantes das formas processuais praticadas e da decisão judicial

produzida, como a teoria neoinstitucionalista do processo de Rosemiro Leal) e exo-

processual (ampliação da legitimação ativa nas ações constitucionais Adin, ADC,

ADPF etc, reforma no sentido de derrogação de prerrogativas processuais que favoreça

certas partes como o Estado-Administração, transparência e controle das instituições nas

quais se realiza o processo por mecanismos legais e facultáveis de operacionalização

pelo cidadão).

O fato é que o judiciário, principalmente e especialmente o judiciário

constitucional, deveria atuar como promovedor de discussão e de posicionamentos

processuais das partes e da sociedade, servindo de extensão do espaço público

juridicamente enriquecido e desenvolvido como processo constitucional, apenas

atuando construtivamente ‘quando estão ausentes as condições de abertura e de

participação de todos os envolvidos tanto em grau quantitativo como qualitativo’, como

diz Stamato (2005, p.224).

Ao não existirem as condições de desenvolvimento da discussão processual

extensível aos cidadãos é que o judiciário aplica diretamente a proporcionalidade – isso

é o judiciário constitucional minimalista, no modelo proposto por Ely (LEAL, 2007,

p.147) nos Eua e em conjugação com as teses democratizantes de estruturação do texto

(norma) e da processualidade constitucionais já expostas, da lavra principalmente de

Habermas, Carlos Nino, entre outros, no sentido de processualização da jurisdição

constitucional e de construção de um espaço de discussão aberto, público,

constantemente controlado e re-avaliado não somente pelas instituições estatais mas

pela ação interferente do poder argumentador da sociedade como um todo em cada um

de seus membros, daí a concepção ideal de cidadania ativa.

Cattoni de Oliveira (2002, p.78), ao discorrer sobre a relação entre processo

legislativo e processo judicial-constitucional, almeja encontrar na processualidade

discursiva em todos os níveis institucionais uma base de legitimação para a atuação

democrática da sociedade civil e do controle desta sobre o judiciário :

O que garante a legitimidade das decisões são antes garantias processuais

atribuídas às partes e que são, principalmente, a do contraditório e a ampla

defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões. A construção

participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de

saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da

atuação do juiz, mas também do Ministério Público e fundamentalmente das

partes e dos seus advogados.

3 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DEMOCRATIZAÇÃO DO

PROCESSO CONSTITUCIONAL

Levando em consideração a necessidade de democratização do processo judicial

como um todo, em suas formas externas (exo-processuais) e em sua feitura interna, em

sua hermenêutica estruturante e concretizadora do texto legal e constitucional, é de se

conceber que além do esforço da cidadania e dos meios de comunicação no sentido de

uma mudança estrutural da instituição pública onde se processam as lides, é de se

cogitar que os órgãos institucionais sejam receptivos a esse movimento de

democratização, que é uma exigência constitucional a partir de uma implementação

decididamente publicista da concepção democrática assentada na Magna Carta, e atuem

no sentido dessa modificação de modus operandi na condução do processo, a fim de

garantir a manutenção de sua própria legitimidade (AGRA, 2005, p.307).

Assim, imprescindível uma mudança na postura do judiciário, que enquanto

depositário formal da função judicativa e dentro de sua competência constitucional de

efetivador dos direitos, pela interpretação ‘oficial’ da norma legal, deve alargar sua

esfera de democratização na construção da decisão judicial e na condução do processo

em geral, mormente no caso da matéria constitucional, já que na debilidade social da

cidadania ativa como autotuteladora da efetividade constitucional, faz-se necessária a

presença de um judiciário que atue tanto no controle difuso como no concentrado de

maneira a salvaguardar as garantias fundamentais e democráticas do cidadão ainda

refém da miséria, da ignorância e da falta de consciência para o exercício da cidadania.

Assim, deve haver um judiciário concretista de direitos (ativista), atuante na

construção de direitos fundamentais a partir de uma visão hermenêutica sobre o texto

constitucional, que não se reduz à literalidade de sua redação nem esgota a possibilidade

de interpretação dos direitos fundamentais dentro do numerus clausus explicitado na

norma escrita da Norma Ápice.

A atividade judicial em geral e a jurisdição constitucional atuam como defesa e

concretização dos direitos fundamentais, inclusive os das minorias, em sua senda de

efetividade das conquistas de liberdade e da existência oriundas das transformações

sociais, o que implica na efetivação de tais direitos pelo ativismo, sendo que este deve

ser efetivado em substituição ou no máximo em conjugação ao processo constitucional

(e infra-constitucional) democratizado endo e exo-processualmente (hermenêutica

participativa endo-processualmente realizada e democratização das formas processuais

exo-processualmente efetivada).

Existe um fator de valorização da jurisdição constitucional que deve ser posto

em voga: nos casos difíceis postos a lume perante a Corte Constitucional existem

questões técnicas, filosóficas, técnico-jurídicas, e principalmente morais não podem

simplesmente ser colocadas diretamente à uma solução democrática, pois remontam ao

fato de que sua complexidade exige exatamente o processo como instancia qualificado

do debate, onde não conta tão-somente a participação processuais de interessados e

amicus curiae, mas a integridade técnica no trato da matéria, com a participação de

técnicos e peritos que se debrucem sobre a causa.

O fato da estrutura complexa e técnica de determinadas matérias de direito não

desqualifica o princípio democrático aplicado ao processo, mas, pelo contrário, elucida

a participação dos interessados na lide e circunscreve a demanda dentro de padrões

racionais e procedimentais de análise, eivando o processo de uma racionalidade

procedimental que também é um ganho em termos de segurança e racionalidade para a

própria democracia, mormente o princípio da fundamentação da decisão, a qual deve ser

fundamentada com razões plausíveis, o que implica também tecnicismo na discussão da

lide – o equilíbrio entre tecnicismo e democratização deve ser buscado dentro do

princípio da proporcionalidade.

Filosoficamente cogitando, a hermenêutica não se reduz também a uma

hermenêutica participativa, democratizante, e a moral não é apenas construção com

bases políticas consensuais e democráticas, mas existem questões morais que vão além

da moralidade construída socialmente, assim como deve haver um resguardo na posição

técnica dentro do processo, o que por si somente garantem e legitimam a existência de

uma jurisdição constitucional como foro de discussão das matérias complexas em sua

faceta procedimental-democratizante por um lado e técnico-procedimental por outro.

Não que a moralidade e a técnica não devam ser tratadas dentro da

procedimentalização da estrutura jurídico-processual (MAIA, 2008, p.87), pelo

contrário, é na processualidade democrática que a moralidade encontra um ponto

necessário de discussão de seus fundamentos, mas estes, por si só, existem, quer seja

dentro da subjetividade do indivíduo ou da objetividade de uma teoria ou realidade para

além dos processos racionais e democráticos. Assim, tudo pode submeter-se ao processo

‘democrático’, mas nem tudo pode ser construído por ele e nem tudo dele decorre: a

hermenêutica e a tecnicidade não se esgotam na democratização.

Outro fator de complexidade é a demanda constitucional por si mesma, onde os

direitos fundamentais em jogo e sua interpretação com base em princípios

constitucionais que refletem valores os mais complexos socialmente, devem ser

analisados de modo a se perceber o choque de bens e valores jurídico-constitucionais e

realizar-se a regulação com base em critérios metodológicos, como os propostos por

Alexy, Müller, Canotilho, ou com base no método hermenêutico da construção de

direitos fundamentais (DWORKIN, 2000) enfim, com base não apenas no processo

democratizado, mas em formas metódicas estruturantes e concretizadoras da

normatividade constitucional que tratam do aspecto técnico da demanda.

Complexidade da demanda, como reflexo da complexificação das relações

sociais na pós-modernidade, e processo judicial democrático e aberto à crítica dos

cidadãos se exigem mutuamente: uma solução de compromisso entre ambos é a chave

da renovação da jurisdição constitucional. A razão de ser do processo é o tratamento

racional da demanda, expondo a complexidade à baila das exigências democráticas na

construção do procedimento (endo-processualidade democrática) e à força da análise

técnica acerca da matéria.

O fato, assim, é que o Supremo Tribunal Federal vem demonstrando em algumas

decisões conjugar ambas as facetas – a democrática e a técnica, em alguns nos casos

complexos postos sob sua análise nos últimos tempos. No caso da Ação Direta de

Inconstitucionalidade n. 3510 a larga presença de amicis curiae tanto em favor

Presidente da República e do Congresso Nacional, como em favor do Ministério

Público Federal (autor da Adin), implicou na presença de partes que elevaram a

discussão a um patamar ético-filosófico-científico e democratizaram o processo que

tratava de tema controverso, qual seja a utilização de células-tronco em pesquisas

biológicas.

O fato é que no referido processo houve também a utilização da audiência

pública para a discussão de pontos de vista sobre matérias controversas, como o início

da vida e o próprio conceito e significação ético-filosófica da vida humana, o que

mostra que nos casos constitucionais a matéria não se restringe a técnica processual,

mas a conotações filosóficas, morais, políticas enfim, que repercutirão em toda a

sociedade, inclusive historicamente, direcionando-a em novos rumos e renovando

estruturas sociais retrógradas.

Outro caso paradigmático de incidência do instituto processual do amicus curiae

no processo civil pátrio é o da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

(ADPF) n. 54, interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, com

o fim de obter interpretação conforme a Constituição (art.1º, III; art.5º, II; art. 6º, caput

e art. 196) dos arts. 124, 126 e 128, I e II do Código Penal (2007), o que implicaria no

reconhecimento da constitucionalidade da interrupção da gravidez em que haja

anemcefalia fetal diagnosticada, o que não seria aborto, portanto, tratar-se-ia de respeito

à dignidade materna e não ilicitude penal.

Nesse segundo caso em comento, o STF foi mais cauteloso em conceder a

intervenção de amicus curiae, negando-a em diversos momentos processuais, mas

realizou uma interpretação construtiva da incidência dos artigos art. 1º, III; art. 5º, II;

art. 6º, caput e art. 196 da Constituição Federal (2007), concedeu-se liminar para a

autorização da retirada do feto (depois cassada).

Decidiu-se que o direito à vida da mãe e o direito a dignidade do feto (que deve

nascer somente quando houver viabilidade) superou a interpretação restritiva dos artigos

do Código Penal que permitem aborto somente em caso de estupro e risco de vida

materna. Essa interpretação constrói um espaço de juridicidade até então deixado em

aberto, que é a possibilidade de ampliação da autorização de cirurgias autorizatórias de

interrupção de gravidezes inviáveis ou de risco tanto para a progenitora como para o

feto, e que constitui grave problema de saúde pública no Brasil.

4 CONCLUSÃO

O espaço público numa democracia deve ser a instância crítica das mazelas sociais,

através da juridicização das demandas políticas elo cidadão ativo que deve participar do

processo como co-construtor da decisão judicial e como utilizador do instrumental

processual posto a disposição na legislação em prol da defesa de direitos fundamentais.

Ora, para a construção meios de tutela da cidadania deve haver a legitimação de

procedimentos judiciais na esfera da institucionalização das vias de participação

democrática: a questão da vinculação com a democracia deve se sobrepor à pretensão de

construção de um processo de cunho não participativo, em que o juiz, mormente o juiz

constitucional, situe-se num plano de efetivação de direitos fundamentais a partir de sua

visão hermenêutica sobre o processo constitucional.

Se as questões complexas nas democracias contemporâneas das sociedades pós-

metafísicas e multiculturais devem ser tratadas como questões de direito (envolvendo

uma pretensão de justiça), como quer Dworkin (2000, p.103) e não como matéria de

lutas políticas que muitas vezes resvalam na radicalização dos valores e incitam

discriminação e desejo por decisões judiciais conservadoras, como se observa no

recrudescimento da direita norte-americana e sua pressão política sobre o judiciário

constitucional (SANDEL, 2005, p.281).

Assim, pode-se dizer que uma teoria processual do direito constitucional implica

na construção de um sistema de contraditório cada vez mais eficiente e aberto à crítica

intersubjetiva e democraticamente auto-fiscalizatório (Leal-Popper), construído

enquanto sociedade aberta de interpretação (Häberle), capaz de dar azo a demandas

complexas (hard cases, num sentido dworkiano) e de concretizar prioritariamente

direitos sociais enquanto conquistas democráticas (Canotilho-Bonavides), tudo isso a

partir de uma idéia de hermenêutica concretizadora e, por assim dizer, estruturante

(MÜLLER, 2007, p.101) e construtiva (DWORKIN, 2007).

Essa hermenêutica concretizadora passa tanto por um paradigma de

interpretação com a maximização do tratamento discursivo da decisão judicial no

sentido de buscar sua construção enquanto um meio de expressão e de participação

maximizada do cidadão na discussão processual, na medida de criação de ampliação das

possibilidades de incidência do principio da proporcionalidade – a conjugação do

mesmo com o devido processo legal dentro dos mecanismos postos a disposição do

magistrado.

Isso aprimoraria hermeneuticamente o tratamento em termos de contraditório e

ampla defesa, perfazendo uma endo-processualidade constitucional democratizante

(extensão dos princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório de forma

maximizada a todo o processo e à estrutura processual produtiva da decisão judicial,

como preconiza Rosemiro Leal, 2002).

Deve haver também um aprimoramento da exo-processualidade constitucional

(mecanismos em geral do processo constitucional strito sensu, desenvolvimento das

formas processuais decorrentes diretamente da Constituição), nos moldes de uma

modificação nas legislações pertinentes, no sentido de aprimorar as possibilidades de

manejo pelo cidadão das ações constitucionais e no sentido de reformar o processo em

geral para acaba com prerrogativas de recurso e de outras naturezas procedimentais, em

termos de agilização e descentralização de procedimentos, que favoreçam o cidadão e

não o Estado-Administração.

O STF vem tutelando os direitos fundamentais em sede de processo constitucional,

buscando em algumas decisões a construção de direitos fundamentais a partir de uma

ótica construtiva e ampliadora da participação do cidadão na implementação das formas

processuais como se mostrou na análise realizada acima da ADIN n. 3510 e da ADPF n.

54, daí a importância do instituto processual do amicus curiae como fator de

acompanhamento pelos cidadãos das demandas complexas em sede constitucional e da

interpretação construtiva como meio instituidor de direitos fundamentais.

ABSTRACT : Objective to analyze the possibilities of institution of a model of

procedural constitutional jurisdiction in Brazil, in order to inside materialize basic rights

of a vision democratic and not substantial procedure and of effectiveness of the basic

rights toward constitutional jurisdiction.

KEYWORDS : constitutional jurisdiction – basic rights – procedural constitutionalism

– substantial constitutionalism – democratic interpretation

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