a inversão da verdade - nietzsche

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  • 7/26/2019 A Inverso Da Verdade - Nietzsche

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    KRITERION, Belo Horizonte, n 117, Jun./2008, p. 127-142

    A INVERSO DA VERDADE. NOTAS SOBRE

    O NASCIMENTO DA TRAGDIA

    Cludia Maria de Castro*[email protected]

    RESUMO Este artigo desenvolve o tema da esttica no pensamento deNietzsche atravs das idias fundamentais de seu primeiro livro, O nascimentoda tragdia, ou Helenismo e pessimismo. Detendo-se especialmente naprimeira parte desta obra, o estudo destaca a relao entre a arte e a verdadeem suafilosofia, esclarecendo a unio entre a tica e a esttica, entre a vontadee o processo de simbolizao das formas atsticas.

    Palavras-chave Verdade; Esttica; Afirmao; Tragdia; Nietzsche.

    ABSTRACT This paper develops the theme of aesthetics in Nietzschesthought through the fundamental ideas presented on hisfirst book The Birthof Tragedy, or Hellenism and pessimism. Focusing mainly on thefirst partof this work, the study emphasizes the relationship between art and truth onhis philosophy, highlighting the connection between ethics and aesthetics,between will and the process of symbolization of artistic forms.

    Keywords Truth; Aesthetics; Affirmation; Tragedy; Nietzsche.

    S na criao h liberdade

    (Nietzsche, vero de 1883)

    * Professora do Departamento de Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Artigorecebido em julho de 2007 e aprovado em maio de 2008.

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    A arte um dos temas mais importantes da reflexo filosfica deNietzsche. Nela, seu pensamento mergulhou apaixonadamente desde suaprimeira grande obra, Onascimento da tragdia, at seus ltimos escritos.Sob o olhar deste filsofo, as relaes que se estabelecem entre a arte e a

    verdade configuram o campo de foras onde se joga o grande jogo da vida eda morte. Eis a tarefa da arte: conferir um sentido vida, dignific-la, para nosseduzir a continuar vivendo. Em Nietzsche, h uma profunda conexo entreo processo de simbolizao das formas artsticas e a fora, a potncia da vidaque a vontade (der Wille), nossa nica verdade: Ns temos a arte a fim deno morrer de verdade,1escreveu o filsofo em seusFragmentos pstumos.A tica e a esttica convergem de forma essencial, porque ambas se constrema partir deste trao de unio entre carne e esprito,2entre a fora e a forma,que esta filosofia pioneira veio nos revelar.

    Segundo Nietzsche, a vontade pontencializada fora que podemoschamar tambm de efuso ou euforia , por ele nomeada de embriaguez, ofundo e o motor de todo o esforo de criao. Por trs da atividade artsticatemos sempre uma espcie de subjetividade transbordada, intensiva, um eusou que excede os limites da conscincia e faz de seu jbilo a sua expresso.3Essa subjetividade sem sujeito o princpio desta esttica que tem na relaoentre a arte e a vontade seu problema central. Arte e vida se encontram porqueo trabalho de simbolizao das formas artsticas uma experincia tica, de

    afirmao e exaltao da existncia. Assim se compreende a clebre afirmaodo filsofo que fulgura luminosa j no prefcio de Onascimento da tragdia:a arte a tarefa suprema e atividade propriamente metafsica desta vida.4

    Leitor e discpulo de Schopenhauer em sua primeira fase de produo,como seu mestre, Nietzsche concebe a vida como vontade, desejo, fora

    1 NIETZSCHE, Friedrich. Smtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Org. Giorgio Colli e MassimoMontinari. Mnchen: Deutscher Taschenbuch Verlag; Berlin/New York: Walter de Gruyer, 1967-77. 15 v.

    As referncias a essa edio esto indicadas pelas iniciais KSA, seguidas do nmero do volume e dapgina. NIETZSCHE, Friedrich. uvres philosophiques compltes. Paris: Gallimard, 1968/1997. 18 v. Paraesta edio francesa, as referncias sero formadas do ttulo da obra, do nmero de classificao dofragmento, seguido do nmero do volume e da pgina onde possvel encontrar a citao. Fragments

    posthumes 16[40] 6-7, XIV, p. 250. KSA, XIII, p. 500.2 AUDI, Paul. LIvresse de lart. Nietzsche et lesthtique. Paris: Ed. Le Livre de Poche, 2003. p. 11.3 EmAssim falou Zaratustra,Nietzsche profere expressamente: Atrs de seus pensamentos e sentimentos,

    meu irmo, h um senhor mais poderoso, um sbio desconhecido ele se chama eu sou (Selbst).Habita teu corpo; o teu corpo. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos epara ningum. Traduo de Mario da Silva. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005, p. 60, modificada. (KSA, IV, p. 40).

    4 Idem, O nascimento da tragdia, ou Helenismo e pessimismo. Traduo, notas e posfcio J. Guinsburg.

    So Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 26 (KSA, I, p. 24). A partir de agora, esta edio ser citadaapenas como NT.

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    cega que escapa razo humana.5 Do ponto de vista racional, a vida, emntima imbricao com a morte, absurda. Enquanto processo constante deconstruo e desconstruo, o mundo no mais que um jogo, brincadeirade um deus criana que assenta pedras aqui e ali e constri montes de areia

    e volta a derrub-los,6

    conforme a misteriosa imagem de Herclito. Noentanto, essa filosofia pessimista exige uma arte otimista como remdio quecura e nos salva do supremo perigo da verdade insuportvel. Ao contrriode Schopenhauer, para quem a nica soluo dada ao homem consiste, emltima instncia, na negao da vontade, Nietzsche concebe um pessimismodiferente, um pessimismo da potncia ou da fortitude,7 que conta como feitio da arte para transfigurar a horrenda verdade. Longe dos filsofosmetafsicos esses amigos da verdade a qualquer preo que querem expor luz, desvelar, descobrir, tudo absolutamente que por boas razes mantidooculto,8Nietzsche no pretende desvendar o inescrutvel; ele sustenta umatica da criao, da glorificao da aparncia, da mentira e da iluso, em suacapacidade de inversoda verdade, de celebrao tonificante, que torna a vidapossvel e digna de ser vivida. A necessidade da arte explicada pela afirmaoda vida, pois s como fenmeno esttico podem a existncia e o mundojustificar-seeternamente.9Como resposta sada asctica de Schopenhauer,a vida como arte encontra seu sentido e o pensamento nietzscheano penetra nomistrio ancestral da criao artstica.

    Enquanto filsofo da cultura, Nietzsche avalia e diagnostica: a culturaocidental est doente, ela sofre de niilismo.10Uma fraqueza dos instintos cujossintomas manifestam-se em sua tradio filosfica, moral e religiosa. Psiclogodas profundezas, ao sondar as origens das formas de pensar responsveispor este processo de decadncia que corri o mundo moderno, ele encontrao socratismo, o modo metafsico de pensar que se imps como base de nossacivilizao: o niilismo do qual padece o Ocidente conseqncia direta do

    5 No entanto, preciso notar que, mesmo considerando a marca indelvel deixada por Schopenhauer nafilosofia de Nietzsche, principalmente no que concerne concepo da essncia da vida como vontade,desde seus primeiros estudos encontramos neste ltimo uma idia de vontade absolutamente diferentedaquela de seu mestre e inspirador, j que, no pensamento nietzscheano, a vontade no compreendidacomo vontade de vida, e sim como vontade criadora, que se intensifica constantemente.

    6 NT, 24, p. 142. (KSA, I, p. 153).7 NIETZSCHE, Friedrich. Tentativa de autocrtica. In: NT, p. 14. (KSA, I, p. 12).8 NIETZSCHE, Friedrich.A gaia cincia. Traduo, notas, e posfcio Paulo Czar de Souza. So Paulo:

    Companhia das Letras, 2001, p. 14. (KSA, III, p. 352).9 NT, 5 p. 47. (KSA, I, p. 47).10 com o termo niilismo, j empregado por Jacobi, Jean-Paul, Ivan Tourguenieff, Dostoiwsky e pelos

    anarquistas russos, mas que Nietzsche toma do crtico e escritor francs Paul Bourget, que ele caracteriza

    a crise mortal do mundo moderno: a desvalorizao universal de todos os valores que mergulha ahumanidade no desespero da ausncia de sentido.

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    idealismo metafsico. Seu pensamento se constri, portanto, como uma lutaincessante contra a metafsica socrtica. Neste combate, em O nascimentoda tragdia, Nietzsche confere ao verdadeiro artista, gnio transfigurador, atarefa de restaurar a sade da cultura ao fazer da arte a exaltao da fora vital

    do homem.No difcil compreender como poucas semanas aps deflagrada aGuerra franco-prussiana responsvel pela proclamao do Imprio Alemo(1870/1871), ainda convalescendo em casa de uma enfermidade contradaem campanha, Nietzsche, esse cismador de idias e amigo de enigmas,11meditava incansavelmente sobre a arte grega, os gregos e a tragdia, a questoda relao entre a arte e a vida, em suma, sobre o sentido mesmo da vida assimcomo ele se manifestou na civilizao helnica. Foi neste contexto turbulentoque a inquietao do filsofo germinou as idias que originariam, um anomais tarde, O nascimento da tragdia, obra definitiva para a sua teoria da arte.Longe de ser apenas um mero tintinar de guizos,12a arte , para Nietzsche,principalmente neste momento, o problema mais srio, o mais urgente,aquele do qual depende o futuro da cultura alem. Em seu entendimento maisprofundo, a cultura como autnticaFormao (Bildung) do homem no podeser confundida com o estado, e a vitria das armas jamais ser a sua. porisso que Nietzsche dedica este livro a Richard Wagner, cuja obra musical eleacreditou ser um verdadeiro renascimento da arte trgica na Alemanha de ento,

    embora mais tarde tenha mudado radicalmente de opinio sobre o compositor,como testemunha, dentre outros escritos, o importantssimo posfcio que estaobra recebeu dezeseis anos depois, intitulado Tentativa de autocrtica.13

    J em Onascimento da tragdiaNietzsche nos apresenta o essencial desua esttica; pela qual ele entende no somente o estudo das obras de arte,mas tambm e, sobretudo, sua genealogia e seus efeitos na cultura e na vidade um povo. Neste livro, trabalhando com imagens retiradas da mitologia,seu pensamento no visa apenas inteleco lgica (logischen Einsicht).

    11 NIETZSCHE, Friedrich. Tentativa de autocrtica. In: NT, p. 13. (KSA, I, p. 11).12 NT, p. 26. (KSA, I, p. 24).13 A partir do item 19, O nascimento da tragdiaparece sofrer uma brusca mudana de direo. O estudo

    da arte trgica deixa a frente da cena, e o filsofo passa a concentrar-se na anlise do drama musicalwagneriano, pensado como redespertar do esprito trgico na cultura alem, contaminada, aos seusolhos, pelostilo rappresentativoda opera, herdeira do socratismo esttico. Muitos contemporneos deNietzsche que no compreenderam a relao por ele estabelecida entre a tragdia e a msica de Wagnerchegaram a afirmar que este livro acaba por converter-se numa espcie de panfleto propagandstico doclebre compositor. No entanto, se o jovem Nietzsche depositou na msica wagneriana todas as suasesperanas de um renascimento alemo, mais tarde ele ir abandonar completamente esta posio,concluindo que contaminou seu primeiro livro com a presena de Wagner, cuja arte no faz outra coisa

    seno reafirmar uma concepo metafsica e moral da existncia. Cf. Tentativa de autocrtica. In: NT, p.13-23. (KSA, I, p. 13-22).

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    Ele opera plasticamente, livre de conceitos, com as figuras penetrantementeclaras14dos dois grandes deuses da arte grega que, segundo a interpretaoheterodoxa de Nietzsche, so Apolo e Dionsio. Compreendidos comoimpulsos (Triebe) estticos, poderes artsticos (knstlerische Mchte) que

    no pertencem ao homem mas prpria natureza, so essas duas pulsesque determinam, em sua constante contraposio de origens e objetivos, ocontnuo desenvolvimento da arte. Apolo, o deus da forma, que ilumina aarte do figurador plstico, a apolnea, e Dionsio, pai da arte no figurada damsica. Impulsos que, nesta leitura inovadora, se encontram e se reconciliam natragdia tica,15onde a forma est a servio do informe, da verdade dionisacaque encena. Observamos, contudo, que esta filosofia da arte vai alm daoposio entre forma (morph) e matria (hyl) que orienta a esttica clssica:se a arte , para Nietzsche, fruto da fora transfiguradora da embriaguez, aaparncia da forma no remete a outra coisa que no seja seu prprio trabalhode potencializao da vida. O que a forma traz consigo sua prpria condio:a verdade da vontade intensificada.

    Verdadeira fisiologia da arte,16 o pensamento esttico de Nietzscheentende o apolneoe o dionisacocomo instintos artsticos que se satisfazempor meio de estados fisiolgicos. De um lado, nosonho, onde a bela aparncia(der schne Schein) da forma se expressa, e, de outro, na embriaguez,manifestao fisiolgica do estado dionisaco. Sonho e embriaguez so, para

    Nietzsche, os estados estticos por excelncia, que exigem a libertao doslimites da conscincia emprica individual. A criao artstica no tem porautor o eu consciente de si e reconhecvel por todos, mas a potncia da vidaem sua necessidade constante de ultrapassamento de si mesma.

    Nietzsche afirma que em seu mundo onrico apolneo cada ser humano um artista consumado.17 Contudo, observa que o trao caracterstico da

    14 NT, 1, p. 27. (KSA, I, p. 25).15 A tragdia que interessa a Nietzsche apenas a tragdia tica, aquela de squilo e de Sfocles. Em

    sua compreenso, com Eurpedes, a tragdia decaiu. Ao expulsar a msica do espetculo trgico, oartista teria excludo seu elemento primordial, o dionisaco, privilegiando o dilogo e fazendo da tragdiauma arte dirigida inteligncia das arquibancadas. Segundo Nietzsche, o grande mestre de Eurpedes Scrates, para quem o grande princpio esttico : Tudo deve ser inteligvel para ser belo. Cf. NT, 12, p.81. (KSA, I, p. 85).

    16 Assim diz a famosa frmula nietzscheana: Afinal, a esttica no passa de fisiologia aplicada. Cf.NIETZSCHE, Friedrich. Nietzsche contra Wagner. Traduo Paulo Czar de Souza. So Paulo: Companhiadas Letras, 1999, p. 53. (KSA, VI, p. 418). Vale notar que no trabalhamos aqui com uma viso cronolgicado pensamento esttico de Nietzsche, como sustenta, por exemplo, Mathieu Kessler, que divide a estticado filsofo em duas fases distintas: a primeira, eminentemente romntica, denominada de metafsica doartista, e, a segunda, chamada de fisiologia da arte, compreendida como seu momento clssico. Cf.

    KESSLER, Mathieu. Lesthtique de Nietzche. Paris: PUF, 1998.17 NT, 1, p. 28. (KSA, I, p. 26).

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    bela aparncia desta realidade onrica que temos sempre a transluzentesensao de sua aparncia.18 Trata-se de uma aparncia que se sabeaparncia, iluso que se v como iluso, e jamais se confunde com a realidadeemprica. So vises que configuram cenas com as quais vivemos e sofremos,

    mas que nunca perdem a fugaz sensao da aparncia. Segundo Nietzsche,toda pessoa suscetvel ao artstico quando est diante da realidade do sonhocontempla-o prazerosamente, e a partir dessas imagens sejam elas agradveise luminosas ou tristes e sombrias interpreta a vida, exercita-se para a vida.Pois o nosso ser mais ntimo, o fundo comum a todos ns, colhe no sonhouma experincia de profundo prazer e jubilosa necessidade:19 a vontade,nossa mais ntima condio, necessita construir imagens a partir das quaisa vida se torna possvel e digna de ser vivida.20Estamos diante da alegrenecessidade da beleza reparadora, assim como o o sono e o sonho, cujaverdade superior, a perfeio, se contrape realidade cotidiana tolacurnamente inteligvel.

    Da mesma forma que em meio ao mar enfurecido e ilimitado obarqueiro de um pequenino bote permanece sereno e confiante em sua frgilembarcao a bela imagem schopenhaueriana de O mundo como vontadee representao, que descreve o homem colhido sob o vu de Mayacomoaquele que, mergulhado em uma vida de tormentos, encontra calma e apoionoprincipium individuationise confia na iluso da representao para poder

    viver , Nietzsche nos mostra o artista apolneo suportando e dignificando avida em seu mundo fictcio de beleza.21

    Em O nascimento da tragdia, se a beleza Apolo, a verdade Dionsio. E precisamente o terror que Schopenhauer diz tomar conta doser humano quando se rasga o vu da representao que nos aproxima dodionisaco: a verdade do desejo, ao mesmo tempo aterrorizante e extasiante,que experimentamos na embriaguez. Nietzsche fala das beberagens narcticasque os povos primitivos cantavam em seus hinos, da Babilnia e suas sceas

    18 NT, 1, p. 28. (KSA, I, p. 26).19 NT, 1, p. 29. (KSA, I, p. 27).20 NT, 1, p. 29. (KSA, I, p. 27).21 A filosofia schopenhaueriana sustenta uma dualidade de pontos de vista no tocante ao conhecimento

    do mundo j inscrita no ttulo de sua obra maior, O mundo como vontade e representao: do ponto devista da conscincia racional, a realidade nossa representao, iluso construda por nosso princpiode razo que percebe o mundo fenomenal, sob o princpio de individuao, no espao e no tempo, esegundo a lei da causalidade esta a marca deixada por Kant no pensamento do filsofo; mas, paraSchopenhauer, do ponto de vista de nossa experincia interna, ou seja, por intermdio de nosso corpo,estamos em contado direto com a realidade tal como ela , temos o conhecimento imediato da coisa

    em si que a vontade. precisamente neste ponto que Schopenhauer vai alm de Kant, para quem oconhecimento da coisa em simesma est vedado ao homem.

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    orgisticas que celebravam a unio dos homens entre si e com a natureza, daprimavera que chega impregnando a atmosfera de alegria Todos exemplosdo que capaz de despertar o transporte dionisaco onde o subjetivo seesvanece em completo auto-esquecimento.22No estado dionisaco o homem

    no mais artista, tornou-se obra de arte: a fora artstica de toda a natureza,para a deliciosa satisfao do Uno-primordial (Ur-Einen), revela-se aqui sobo frmito da embriaguez.23

    Desenvolvendo em um sentido excntrico a teoria aristotlica da artecomo mmese, a esttica de Nietzsche define o artista como um imitador noporque sua tarefa seja a reproduo, a representao de uma natureza j dada a mera realidade emprica , mas na medida em que capaz de encarnar ospoderes artsticos da prpria vida, o apolneo e o dionisaco, imitando essesdois estados artsticos imediatos da natureza.24Seja como artista apolneoda forma, onrico, seja como artista dionisaco do xtase ou, como na tragdiaticae seus antepassados, apoesia lricae a cano popular, enquanto artistaao mesmo tempo apolneo e dionisaco.

    Ao analisar a relao do artista helnico com esses arqutipos em Onascimento da tragdia, Nietzsche sublinha a diferena decisiva que separaosgregos dionisacosdos brbaros dionisacos, distino fundamental para acompreenso de sua esttica. Na Grcia, em seus dias de transfigurao, aocontrrio, por exemplo, das sceas babilnicas e sua retrogradao do homem

    ao tigre e ao macaco, a experincia aterrorizante do dionisaco transformou-se em fenmeno artstico: as festas dionisacas gregas conheceram a msica,a embriaguez se fez arte; apenas com elas o rompimento do principiumindividuationistornou-se um fenmeno esttico. Entre os gregos, o elementodevastador que prprio da vontade foi neutralizado pelo processo artsticode simbolizao. Preciosa concluso: Dioniso necessita ser expresso paraque no se torne destruidor. Neste ponto, vislumbramos de forma concentradatoda a tica que a esttica de Nietzsche nos prope: aquela da relao entre aarte e a vida, o prprio sentido da cultura comoFormao, como processo detransformao do desejo, trabalho infinito de dar forma s paixes humanaspara que, transfiguradas, elas possam descarregar-se artisticamente.

    Nietzsche acredita que at o sculo VII a.C. os gregos no conheciam averdadeira msica: a msica dionisaca; eles conheciam somente a msica

    22 NT, 1, p. 30. (KSA, I, p. 29).23 NT, 1, p. 31. (KSA, I, p. 30). Neste momento da obra de Nietzsche, a realidade pensada como

    vontade nica, como indica a expresso Uno-primordial. J nos escritos da ltima fase esta expresso

    abandonada, e a realidade aparece descrita com o termo vontade de potncia.24 NT, 2, p. 32. (KSA, I, p. 30).

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    tocada por aedos que recitavam os poemas de Homero acompanhadospela ctara, a msica apolnea. Uma msica que foi qualificada como talpor impreciso de linguagem, j que manejava apenas as foras plsticas earquiteturais do som: enquanto batida ondulante do ritmo recortava figuras

    no tempo. Para Nietzsche, s mais tarde surge na Grcia a msica propriamentedita, a dionisaca, que expresso direta do querer, do prazer e da dor, daquiloque h de metafsico no mundo fsico. Caracterizada pela comovedoraviolncia do som, pela torrente unitria da melodia e o mundo absolutamenteincomparvel da harmonia,25 esta msica, ento tocada principalmentepela flauta, era capaz de incitar o homem mxima intensificao de suascapacidades simblicas. Com ela, a vontade, o ntimo da natureza, encontravasua expresso corporal completa, na mmica, na dana e no canto cultual emhonra a Dionsio, o ditirambo dionisaco.

    Seguindo os passos de pensadores como Hlderlin e Bachofen quetambm viam a Grcia como solo do incomensurvel , embora trilhandosua prpria senda, o trao distintivo da interpretao nietzscheana do mundohelnico o dionisaco. Em sua filologia-filosfica, que escandalizou acomunidade dos fillogos de seu tempo, ele rompe com a imagem tradicionalda Grcia como imprio da medida e da beleza (idia sustentada porclassicistas alemes como Schiller, Goethe e Winckelmann) e enxerga por trsde todo comedimento apolneo, da serenojovialidade idlica dos gregos, a

    desmedida, a hybris, todo o ilimitado do desejo, enfim, a verdade impetuosada vontade e revela seu mistrio: o trabalho artstico de transfigurao. Se oshelenos conseguiam entrever em cada canto o riso de Helena, filha de Zeus e amais bela dentre as mulheres, porque traziam em seu corpo o filtro mgicoda arte.

    Foi na sabedoria popular grega que Nietzsche deparou com o dionisaco,encarnado na figura do sbio Sileno. Preceptor e servidor de Dionsio, filhode P o deus grego dos rebanhos e dos pastores cuja flauta suscitava sbitose infundados terrores , Sileno um semideus, representado quase semprecomo um velho careca, de nariz chato e arrebitado, sempre bbado e montadonum asno ou amparado por stiros que acompanhavam o cortejo do deus portoda parte. Para Nietzsche, de sua ebriedade que fala a voz mais profunda dosaber e da filosofia: o conhecimento trgico da finitude, do carter efmero davida humana, a convico de que o melhor para os homens, filhos do acaso

    25 NT, 2, p. 34. (KSA, I, p. 33).

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    e do tormento, seria no ter nascido, no ser, nadaser,26e, depois disso,logo morrer.

    Ao compreender o estreito liame entre o maravilhoso mundo apolneoque se expressa, antes de tudo, nas grandiosas figuras dos deuses olmpicos,

    e essa terrvel sabedoria de Sileno, Nietzsche nos mostra sua recprocanecessidade: O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir:para que lhe fosse possvel de algum modo viver, teve de colocar ali, entreele e a vida, a resplendente criao onrica dos deuses olmpicos.27Ao versua existncia ser vivida por estes seres super-humanos, ela ganha sentido,dignidade para ser vivida. Abre-se ento a montanha mgica do Olimpo, eo filsofo desvenda o segredo e a necessidade da arte: a arte, esse mundointermdio, vem encobrir e subtrair ao olhar a verdade pessimista de Sileno.Os gregos criam deuses para poderem viver; sem o vu de beleza apolneo, avida humana seria simplesmente insuportvel. Com uma esplndida metforaNietzsche descreve: suas obras de arte so como rosas a desabrochar damoita espinhosa.28 Ao lado da exacerbada aptido para o sofrimento, oshelenos possuem seu talento de artistas. Se este povo to impetuoso no desejofoi capaz de suportar a existncia, porque esta transformada pela arte,mgico espelho transfigurador que legitima a vida humana, intensifica-a,afirmando-a. Assim, entre os gregos, a sabedoria trgica do velho Sileno invertida, e a pior coisa de todas para eles morrer logo; a segunda pior

    para eles morrer um dia.29Porque a vontade anseia veementemente pelaexistncia quando ela envolvida pela glria da arte.Nietzsche sublinha que os modernos insistem em atribuir aos gregos

    uma ingenuidade que eles no tm; que a harmonia grega contempladanostalgicamente pelo classicismo para a qual Schiller cunhou o termoartstico naf no de forma alguma um estado simples e natural que seencontra na origem de toda cultura, como idlico paraso primeiro. Aocontrrio, aquela serenojovialidade, a calma e nobreza caractersticas dosgregos, constitui o efeito supremo da cultura apolnea, que teve primeiroque domar a dor, fazendo-se vitoriosa sobre uma horrvel profundeza daconsiderao do mundo [Weltbetrachtung] e sobre a mais excitvel aptidopara o sofrimento.30 Com a beleza de Apolo, o grego inverte a verdadedemonaca presente em sua sabedoria popular. Segundo o filsofo, a iluso

    26 NT,3, p. 36. (KSA, I, p. 35).27 Idem,ibidem.28 NT, 3, p. 37. (KSA, I, p. 36).

    29 Idem,ibidem.30 NT, 3, p. 38. (KSA, I, p. 37).

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    apolnea semelhante quela que a natureza freqentemente emprega paraatingir seus objetivos: a verdadeira meta, a possibilidade da vida, encobertapela imagem ilusria da arte em direo qual estendemos as mos.

    Nesta interpretao, a cultura grega tem a divinizao da vida como

    valor supremo. Trata-se de uma autntica celebrao da existncia acima dequalquer avaliao metafsica e moral. A religiosidade grega, eminentementeartstica, a esfera superior do mundo dos deuses, desprovida de imperativosou censura e, em sua perfeio, a vontade se glorifica. Na religio primitivados gregos, a vida transfigurada em beleza, a verdade se faz arte. Eis a lioque os helenos nos legam em seus mitos e que na avaliao de Nietzscheganha uma atualidade surpreendente e transformadora. Sem nostalgia, esta aherana que nos foi deixada por este povo singular, cujo aprendizado constituia tarefa mais urgente, capaz de transformar o presente e salvar o futuro dacultura ocidental, segundo a convico de Nietzsche.

    Na esteira de Schopenhauer, para Nietzsche, na aparncia que averdade encontra sua redeno. A simbolizao da forma vista como umpoder da individuao que se ope fora desagregadora da vontade. Aquijaz o parentesco entre o artista e o filsofo: se para o olhar deste ltimo nossaexistncia emprica, assim como a do mundo em geral, uma representaoda vontade, do Uno-primordial, que enquanto eterno padecente e plenode contradio necessita, para a sua constante redeno, tambm da viso

    extasiante, da aparncia prazerosa,31a arte ento a aparncia da aparncia(Schein des Scheins), uma mais elevada satisfao do impulso primeiro pelaaparncia. Da eterna dor primordial, nico fundamento do mundo,32eleva-se o mundo visional das imagens de Apolo. E a arte pe em cena a grandesuposio metafsica de Nietzsche: a relao entre aparncia e verdade. J queapenas com o filtro mgico da aparncia podemos ter acesso verdade.

    Em sua busca para desvendar o mistrio da unio do apolneo e dodionisaco em O nascimento da tragdia, Nietzsche depara com Arquloco,33pai da poesia lrica. Ao lado de Homero, o grande poeta pico, surge oapaixonado e belicoso poeta lrico, que canta as vissicitudes de suas paixese sempre diz eu, podendo assim representar o prottipo do artista subjetivo.No esforo de esclarecer esta potica e solucionar o problema esttico relativo possibilidade do poeta lrico enquanto artista j que s podemos conceber

    31 NT, 4, p. 39. (KSA, I, p. 38).32 NT, 4, p. 40. (KSA, I, p. 39).33 Este famoso poeta grego, que viveu aproximadamente no sculo VII a.C., apaixonado por Neobule e

    impedido de despos-la pelo pai da moa, Licambes, vingou-se com stiras to mordazes que, dizem,pai e filha enforcaram-se.

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    o artista subjetivo como um mau artista, pois a arte exige acima de tudo asubmisso do subjetivo e a objetiva e pura contemplao desinteressada34,Nietzsche encontra as pistas que lhe permitem solucionar o enigma da tragdia:o poeta lrico s possvel enquanto artista porque sua poesia, aparentemente

    subjetiva, se inicia com um estado de nimo musical, e portanto dionisaco,onde sua subjetividade emprica se esvanece, que, em seguida, se descarregaem um mundo de imagens apolneo.

    Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisaco, totalmente um s com o Uno-primordial, com sua dor e contradio, e produz a rplica desse Uno-primordialem forma de msica, [] agora porm esta msica se lhe torna visvel, como umaimagem similiforme do sonho, sob a influncia apolnea do sonho.35

    No processo dionisaco, o poeta lrico j renunciou sua subjetividade. desse fundo de embriaguez, dessa subjetividade transbordada, que nascemas imagens cuja colorao, causalidade e velocidade so completamentediferentes daquelas presentes na poesia pica. O que aqui se simboliza o abismo do ser, a vontade, o gnio universal, nica eudade (Ichheit)verdadeiramente existente e eterna, em repouso no fundo das coisas.36Se, naesttica de Nietzsche, o indivduo o adversrio da arte, neste caso preciso,o poeta torna-se obra de arte da vontade, o grande artista dionisaco dosmundos. Somente assim ele pode saber algo a respeito da perene essncia da

    arte, onde a embriaguez que impulsiona a criao: uma subjetividade paraalm de si mesma, pura afetividade que extrapola os limites da conscinciasubjetiva. Este todo o mistrio do poeta lrico.

    A msica o espelho do mundo. Dentre todas as artes, s ela tem opoder de expressar a essncia das coisas, a vontade, embora seja incapaz delibertar-nos desta: assim ensina Schopenhauer em sua profunda metafsica damsica que tanto influenciou Richard Wagner e Nietzsche. O item 16 de Onascimento da tragdiareproduz, em sua longa extenso, uma passagem de Omundo como vontade e representao que conduz ao cerne dessa compreenso

    34 Idem, 5, p. 43. (KSA, I, p. 43). A esttica de Nietzsche tem sua matriz na Terceira Crtica de Kant. Odesinteresse, qualidade fundamental da contemplao esttica segundo a Crtica da faculdade do juzokantiana, decisivo tanto para a esttica de Schopenhauer, onde a contemplaco das belas formasrepresenta uma libertao provisria da escravido da vontade, quanto para aquela de Nietzsche, jque apenas despido de seus interesses individuais pode o homem entrar no reino da arte. No entanto,segundo Nietzsche, Kant, como todos os filsofos, em vez de encarar o problema esttico a partir daexperincia do artista (do criador), refletiu sobre a arte e o belo apenas do ponto de vista do espectador.Cf. NIETZSCHE, Friedrich.Genealogia da moral: uma polmica. Traduo, notas e posfcio Paulo Czarde Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, III, 6, p. 93. (KSA, V, p. 346).

    35 NT, 5, p. 44. (KSA, I, p. 43).36 NT, 5, p. 45. (KSA, I, p. 45).

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    da arte musical, presenteando-nos com pequenas prolas shopenhauerianasfundamentais para o entendimento da esttica de Nietzsche. SegundoSchopenhauer, a msica o reflexo imediato da prpria vontade, portanto,representa o metafsico para tudo que fsico no mundo.37De forma que

    poderamos chamar o mundo todo tanto de msica corporificada quantode vontade corporificada.38 Enquanto linguagem universal, a msicaproporciona o acesso ao ncleo mais ntimo, que precede toda configurao,ou seja, o corao das coisas.39Ela a Idia imediata dessa vida,40escreveNietzsche. Somente a msica permite a coneco com o nico verdadeirocriador do mundo da arte: a eterna vontade. por isso que, diferente dasartes figurativas, a msica, em sua incomensurabilidade, no se deixa medirsegundo a categoria de beleza.

    Na cano popular (Volkslied), Nietzsche tambm verifica a unio daimagem e da msica, ou seja, do elemento apolneo e do dionisaco. Ela msica e letra: enquanto espelho musical do mundo, a cano popular melodia primignia que se exprime em poesia. Mas, para Nietzsche,a melodia sempre primeira, mais importante e universal, pois a palavrajamais poder volver para fora o imo da msica.41Essa a nica relaopossvel entre poesia e msica, palavra e som. Um dos temas principais queatravessa todo o primeiro livro de Nietzsche, como destaca Rosa Dias,42 oda supremacia expressiva da msica em detrimento da significao sempre

    limitada das palavras. Nietzsche est convicto de que impossvel com alinguagem alcanar por completo o simbolismo universal da msica. Posioque reivindica uma nova concepo da verdade filosfica, liberada do registrodiscursivo e da lgica caractersticos da metafsica socrtica, se confundindocom a beatitude trgica que a msica capaz de suscitar.43

    Para adentrar no verdadeiro labirinto que a emergncia da tragdia ticarevela ser, Niezsche emprega o mesmo argumento dado tanto para a poesialrica quanto para a cano popular: a origemda tragdia est no esprito damsica. No drama trgico, a msica primria, e o dilogo secundrio.Como obra de arte apolneo-dionisaca, a tragdia rene sonho e embriaguez,

    37 NT, 16, p. 97 (KSA, I, p. 104).38 NT, 16, p. 99. (KSA, I, p. 106).39 NT, 16, p. 100. (KSA, I, p. 106).40 NT, 16, p. 102. (KSA, I, p. 108).41 NT, 6, p. 51. (KSA, I, p. 51).42 Cf. DIAS, R. Nietzsche e a msica. Rio de Janeiro: Imago, 1994.43 Sobre a relao entre msica e verdade em Nietzsche, remetemos aqui ao grande livro de Clement

    Rosset,Alegria: a fora maior, traduo de Eloisa Arajo Ribeiro (Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2000.p. 44 et seq.).

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    luz e sombra, aparncia e essncia, imagem e msica. A tragdia nasceu damsica, do canto em louvor a Dionsio, entoado por um grupo de pessoasque percorrendo florestas faziam-se passar por stiros, seres naturais-fictcios,homens com ps de capro e pequenos chifres. Em estato exttico, com o rosto

    pintado da seiva de diferentes plantas e a testa coberta de flores, estas criaturashbridas erravam pelos matos cantando, danando e tocando flauta rstica.Esse coro de stiros, conjunto de seres transformados, a um s tempo atorese expectadores, via desenrolar diante de si um espetculo visvel apenas paraaqueles que participavam da excitao dionisaca. Apenas posteriormente atragdia passou a apresentar-se em um teatro.

    O fenmeno de possesso provocado pela msica, a embriaguez, a condio e o princpio da arte dramtica. Porque, acredita Nietzsche, elasuscita o despojamento da civilizao e a participao da realidade primordial,anterior individuao. nesta ltima que penetram os stiros. Cantando edanando, eles anulam o eu humano e se transformam em autnticos seresnaturais. Eis a importncia e o significado do coro na tragdia: como Schilleresclarece, o coro como uma muralha viva que a tragdia estende sua voltaa fim de salvaguardar para si o seu cho ideal e a sua liberdade potica.44Com o fingido estado naturalproduzido pela msica, a tragdia est, desde oprincpio, desobrigada de efetuar uma penosa retratao servil da realidade: elase relaciona imediatamente com a verdade do desejo, a realidade originria.

    A embriaguez musical descortina um real que mais real que a realidadeemprica, uma realidade reconhecida em termos religiosos.45Na imagemprecisa de Richard Wagner, a civilizao suspensa pela msica tal comoa claridade de uma lmpada o pela luz do dia.46E o efeito imediato datragdia no , como afirmou Aristteles naPotica, a catarse, este misto depiedade e medo que faz com que os espectadores, enlevados pelas melodiassagradas, deixem o teatro com a alma acalmada e os afetos em estado depureza. De forma muito diferente, para Nietzsche, o efeito da tragdiadionisaca tonificante, confunde-se com a experincia da prpria liberdadeque dissolve a arbitrariedade e as convenes da civilizao, substituindo-as por um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao corao danatureza.47A embriaguez promete embriaguez. O consolo metafsico oefeito da tragdia: a certeza imediata de que a vida, no fundo das coisas,

    44 NT, 7, p. 54. (KSA, I, p. 54).45 NT, 7, p. 54. (KSA, I, p. 55).

    46 NT, 7, p. 55. (KSA, I, p. 56).47 NT, 7, p. 55. (KSA, I, p. 56).

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    apesar de toda mudana das aparncias fenomenais, indestrutivelmentepoderosa e cheia de alegria.48Com a tragdia, os gregos, esse povo movidopelo mpeto, encontram seu conforto: ele salvo pela arte, e atravs da artesalva-se nele a vida.49

    Smbolo da vontade, da onipotncia sexual da vida, o stiro anunciaa sabedoria que vem do seio mais profundo da natureza. ele quem diz averdade. E a arte que dele se origina, o drama trgico, o conjunto da msicae do mito trgico, constitui a sua mais autntica expresso. Ela nos apresentaa verdade da natureza em contraste com a mentira da civilizao. Porqueo grego dionisaco quer a verdade e a natureza em sua mxima fora.50Definida como coro dionisaco a descarregar-se sempre de novo em ummundo de imagens apolneas,51a tragdia ao mesmo tempo diz a verdade ea transfigura. A cena viso, a nica realidade o coro que contempla nessavisibilidade o padecimento e a glorificao de seu mestre e senhor Dionsio,que, como sbio, do corao do mundo enuncia o conhecimento trgico. Aquitemos a fora e a forma, o desejo e suas imagens que, enquanto produto doprocesso de simbolizao, potencializam a vontade, intensificam-na.

    Na filosofia de Nietzsche, a criao artstica a fora transfiguradora daembriaguez. E a prpria existncia humana pode ser concebida como um atoartstico contnuo, uma constante criao de si que parte dessa afetividadeoriginria, solo de todas as coisas. Assim, esta esttica pensa a forma como o

    prprio contedo da arte, sua nica matria. Se na obra de Nietzsche existe umprincpio esttico, nesta curta passagem que ele o enuncia: Se artista sob acondio de sentir como contedo, como a prpria coisa, o que os no artistaschamam de forma.52Para Nietzsche, a aparncia da forma no remete aoutra coisa seno a ela mesma, sua tarefa de intensificao. Testemunho dafora, visibilidade da vontade que permanence invisvel, a forma traz consigosua prpria condio e ao mesmo tempo a produz, a cria a partir de si. Comofora, a forma tem o poder de criar seu prprio contedo, criao de si quefaz cair por terra a distino metafsica entre ser e aparecer que uma primeira

    48 Idem,ibidem. A alegria , na viso de Nietzsche, opathostrgico por excelncia. Neste sentido, possvelpensar que em O nascimento da tragdiaj se encontra presente, mesmo que de forma embrionria, aidia central da filosofia nietzscheana, o pensamento do eterno retorno: a compreenso do tempo comorepetio, que traz consigo a exigncia de afirmao radical da vida, onde a intensidade do instante alegreabriga toda a eternidade. Quase ao final de seu primeiro livro, Nietzsche escreve, referindo-se aos gregos:[] o presente mais prximo havia de se lhes apresentar desde logosub specie aeterni[sob o aspectoda eternidade] e, em certo sentido, como intemporal. NT, 23, p.137. (KSA, I, p. 147).

    49 Idem,ibidem.50 NT, 8, p. 58. (KSA, I, p. 59).

    51 NT, 8, p. 60. (KSA, I, p. 62).52 NIETZSCHE, Friedrich. Fragments posthumes,18[6], XIV, p. 281. (KSA, XIII, p. 533).

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    leitura de O nascimento da tragdia pode sugerir53, excedendo os limitesdentro dos quais toda a filosofia da arte anterior a Nietzsche moldou seusconceitos. Estamos diante de uma espcie de aparncia pura, como nomeouPaul Audi, que extrapola as noes de forma e matria legadas pela esttica

    clssica.Em O nascimento da tragdia, o contedo da arte no da ordem de umsignificado que lhe seja exterior, passvel de tornar-se objeto de um logosou inteleco. Esse contedo significativo,54diz respeito a um certopathosprimordial que Nietzsche chamar mais tarde de sentimento de existir.A significatividade da forma um valor, aprovao, divinizao daexistncia; no fala apenas ao nosso entendimento, mas totalidade de nossoser. Desta maneira, ao abrir o campo dosentido, a arte est investida do poderde deslocar a transcendncia para o plano de imanncia da vida.

    Desde seus primeiros estudos Nietzsche nos ensina que preciso amaraforma por isto que ela : afirmao. nica sada para a decadncia. Em outraspalavras, para esta filosofia, a existncia da obra de arte se origina da foratransfiguradora do amorque, na efuso infinita de sua embriaguez, se liberacomo generosidade e transbordamento. A essncia da criao s se realizano e pelo amor, a forma suprema do jbilo. Com essa nobre idia, unem-se definitivamente a tica e a esttica, como um dos ltimos Fragmentospstumosdo filsofo enuncia maravilhosamente:

    At onde pode ir a fora transfiguradora da embriaguez, dela se quer a prova maissurpreendente? Essa prova o amor, isso que se chama amor em todas as lnguas, emtodos os mutismos do mundo. [] como uma febre que tem razes para se transfigurar,uma embriaguez que faz bem em mentir por sua prpria conta Em todo caso, semente bem quando se ama, mentimos, mentimos por sua conta: nos imaginamostransfigurados, mais fortes, mais ricos, mais perfeitos, somos mais perfeitos Nsencontramos aqui a arte como funo orgnica: ns a encontramos infiltrada noinstinto mais anglico da vida: ns a encontramos como o maior estimulante da vida arte portanto, de maneira sublime adaptada aos seus fins, no seu mentir Mas nsnos enganaramos se permanecssemos em sua faculdade de mentir: preciso mais,

    ela desloca os valores O amoroso tem mais valor, mais forte. Nos animais, esse

    53 Notamos aqui que muitos comentadores reafirmam a viso que o prprio Nietzsche mais tarde passaa ter de seu primeiro livro: uma obra marcada pela contradio dialtica entre Apolo e Dionsio, entre aessncia e a aparncia, que cheira a hegelianismo. Mesmo Gilles Deleuze que, em Nietzsche e a filosofia,de 1962, apresentou uma leitura atualssima desta obra, responsvel em muito pelo seu reflorescimentoem todo o mundo, no deixa de marcar que ainda encontramos em O nascimento da tragdiaa presenado dualismo e da oposio caractersticos do pensamento dialtico que busca uma reconciliao, posioque ser abandonada por Nietzsche quando este alcana a verdadeira afirmao. Cf. DELEUZE, Gilles.Nietzsche e a filosofia. Traduo Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Rio, 1976.

    p. 7 et seq.54 AUDI, Paul. Op. cit., p. 42.

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    estado faz surgir novas substncias, novos pigmentos, novas cores, novos ritmos,novos gritos de chamada e novas sedues. No homem no diferente. Seu fundogeral mais rico que nunca, mais potente, mais inteiroque naquele que no ama.O amoroso se torna perdulrio: ele rico suficiente para isso. Doravante se arrisca,se torna aventuroso, se torna um verdadeiro asno de magnanimidade e inocncia;ele acredita novamente em Deus, ele acredita na virtude porque cr no amor: e, deum outro lado, nesse idiota da felicidade, ele faz nascer asas e faculdades novas, emesmo as portas da arte se abrem para ele. Tiremos do lirismo musical e verbal assugestes nascidas desta febre intestinal: o que resta do lirismo e da msica?A artepela artetalvez: o coachar virtuoso das rs resfriadas que desesperam no mar Todoo resto, foi o amor que criou55

    Referncias

    AUDI, Paul.LIvresse de lart. Nietzsche et lesthtique. Paris: Le Livre de Poche,2003.DELEUZE, Gilles.Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962.DELEUZE, Gilles.Nietzsche. Paris: PUF, 1965.DIAS, Rosa Maria.Nietzsche e a msica. Rio de Janeiro: Imago, 1994.KESSLER, Mathieu.Lesthtique de Nietzsche. Paris: PUF, 1998.

    NIETZSCHE, Friedrich. Smtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Org. GiorgioColli e Massimo Montinari. Mnchen: Deutscher Taschenbuch Verlag; Berlin/NewYork: Walter de Gruyer, 1967-1977. 15 v.

    NIETZSCHE, Friedrich. Fragments posthumes. In: uvres philosophiques completes.Paris: Gallimard, 1968-1997. 18 v.NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragdia, ou Helenismo e pessimismo.Traduo, notas e posfcio J. Guinsburg. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.

    NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polmica. Traduo, notas eposfcio Paulo Czar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.NIETZSCHE, Friedrich.Nietzsche contra Wagner. Traduo Paulo Czar de Souza.So Paulo: Companhia das Letras, 1999.

    NIETZSCHE, Friedrich.Esttica y teoria de las artes. Prlogo, seleo e traduo A.

    Izquierdo. Madrid: Editorial Tecnos, 1999.NIETZSCHE, Friedrich. A gaia cincia. Traduo, notas e posfcio Paulo CzarSouza. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    NIETZSCHE, Friedrich.Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ningum.Traduo de Mario da Silva. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005.ROSSET, Clement.Alegria: a fora maior. Traduo de Eloisa Arajo Ribeiro. Rio deJaneiro: Relume Dumar, 2000.

    55 Idem, 14[120], XIV, p. 89-90. (KSA, XIII, p. 299).