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A INTERSECCIONALIDADE ENTRE GÊNERO, RAÇA E CLASSE EM O QUARTO DE DESPEJO DE CAROLINA MARIA DE JESUS Ana Paula Herrera Souza, Universidade Estadual de Maringá-Paraná, Delton Aparecido Felipe, Universidade Estadual de Maringá-Paraná, [email protected] Resumo A relação entre a literatura e a história resulta numa simbiose que testemunha os costumes, as crenças e os modelos de um tempo histórico e nesse sentido podemos analisar nos escritos de uma pessoa ações e reações do cotidiano. Partindo desse pressuposto esse texto tem como objetivo discutir como o livro Quarto do despejo: diário de uma favelada de 1960 escrito por Carolina Maria de Jesus, ao narrar as situações sociais vividas pela a autora e ao ser analisada a partir da interseccionalidade entre gênero, raça e classe nos permite construir um questionamento sobre os processos de visibilidade e invisibilidade no cânone literário brasileiro, além de oferecer subsídios para a compreensão da luta e da resistência das mulheres negras periféricas, que muitas vezes, utilizam de suas narrativas de vida para denunciar as mazelas sociais do seu cotidiano e com isso transformar a sociedade. Palavras-chave. Mulheres Negras; literatura; política de resistência Introdução Os estudos recentes sobre a produção literária têm proporcionado questionamentos de como se constrói a literatura brasileira e qual sua relação com a realidade social do/a escritor/ra, a partir de autoras como Maria Firmina dos Reis (1822-1917); Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo (1946), tem-se notado a construção de uma perspectiva teórica que propõe a problematizar quais são os critérios de classificação do que é literatura, aquilo que se convencionou chamar de cânone literário. Para Duarte (2010), o cânone literário, no decorrer de sua história, organizou-se como um modelo que passou a ser aplicado

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Page 1: A INTERSECCIONALIDADE ENTRE GÊNERO, RAÇA E ...Em o Quarto de despejo; diário de uma favelada, Carolina relata o seu cotidiano e a realidade do grupo social que vivia na favela,

A INTERSECCIONALIDADE ENTRE GÊNERO, RAÇA E CLASSE EM

O QUARTO DE DESPEJO DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Ana Paula Herrera Souza, Universidade Estadual de Maringá-Paraná,

Delton Aparecido Felipe, Universidade Estadual de Maringá-Paraná,

[email protected]

Resumo

A relação entre a literatura e a história resulta numa simbiose que testemunha os costumes, as crenças e os modelos de um tempo histórico e nesse sentido podemos analisar nos escritos de uma pessoa ações e reações do cotidiano. Partindo desse pressuposto esse texto tem como objetivo discutir como o livro Quarto do despejo: diário de uma favelada de 1960 escrito por Carolina Maria de Jesus, ao narrar as situações sociais vividas pela a autora e ao ser analisada a partir da interseccionalidade entre gênero, raça e classe nos permite construir um questionamento sobre os processos de visibilidade e invisibilidade no cânone literário brasileiro, além de oferecer subsídios para a compreensão da luta e da resistência das mulheres negras periféricas, que muitas vezes, utilizam de suas narrativas de vida para denunciar as mazelas sociais do seu cotidiano e com isso transformar a sociedade. Palavras-chave. Mulheres Negras; literatura; política de resistência Introdução

Os estudos recentes sobre a produção literária têm proporcionado

questionamentos de como se constrói a literatura brasileira e qual sua relação com a

realidade social do/a escritor/ra, a partir de autoras como Maria Firmina dos Reis

(1822-1917); Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo (1946),

tem-se notado a construção de uma perspectiva teórica que propõe a problematizar

quais são os critérios de classificação do que é literatura, aquilo que se

convencionou chamar de cânone literário. Para Duarte (2010), o cânone literário, no

decorrer de sua história, organizou-se como um modelo que passou a ser aplicado

Page 2: A INTERSECCIONALIDADE ENTRE GÊNERO, RAÇA E ...Em o Quarto de despejo; diário de uma favelada, Carolina relata o seu cotidiano e a realidade do grupo social que vivia na favela,

no campo da literatura para definir obras-primas ou clássicos, por trazerem valores

sociais humanos tidos como essenciais, segundo juízos de valor que,

ideologicamente construídos, fazem delas dignas de serem lidas, estudadas e

difundidas refletindo relações de poder, esses valores geralmente são do homem,

branco, europeu, cristão, classe média e heterossexual.

As autoras acimas mencionadas ao escreverem a partir da perspectiva de

suas vivências como mulheres, negras, pobres, colocam em questionamento o

padrão de escrita que foi consagrada como o cânone literário, Duarte (2010)

argumenta que o cânone literário, no decorrer de sua história, evoluiu para uma

espécie de modelo que passou a ser aplicado no campo da literatura para definir

obras-primas ou clássicos, por trazerem valores sociais humanos tidos como

essenciais, segundo juízos de valor que, ideologicamente construídos, fazem delas

dignas de serem lidas, estudadas e difundidas, refletindo relações de poder.

O cânone literário é um produto histórico perpassado por relações de poder

baseado em processo de exclusão histórico, que informa quem pode escrever e

como construir os personagens. É nesse contexto que a escrita literária de mulheres

negras foi essencial no processo de alcance para um novo olhar sobre estas

mesmas, suas lutas, seus modos de resistência, história e alteridade, compondo

com as forças de poder circunscritas em nossa sociedade e em sua escrita essas

mulheres interseccionam questões socioculturais, de gênero, de raça de uma forma

substanciosa, problematizando os discursos fixados, canonizados historicamente.

Com base nessa argumentação é que esse texto buscamos analisar como a

escritora Carolina Maria de Jesus em sua obra Quarto de despejo; diários de uma

favelada de 1960 ao interseccionar gênero, raça e classe coloca em questionamento

o padrão de literatura feita até então, dando visibilidade a situação da mulher negra

favelada a partir das relações sociais vividas pela própria autora.

Page 3: A INTERSECCIONALIDADE ENTRE GÊNERO, RAÇA E ...Em o Quarto de despejo; diário de uma favelada, Carolina relata o seu cotidiano e a realidade do grupo social que vivia na favela,

Carolina Maria de Jesus e o diário de uma resistente

A escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra, nascida em 1914, na

cidade de Sacramento em Minas Gerais, e filha de pais negros e analfabetos e com

apenas 2 anos de escolaridade. Após a morte de sua mãe em 1937, Carolina muda-

se para favela do e Canindé, que se localizava as margens do rio Tietê em São

Paulo. Ali ela morou com seus três filhos, João José; José Carlos e Vera Eunice, no

“barraco” de madeira construído por ela mesma e trabalhava como doméstica e

catadora de papel.

A autora do livro Quarto do despejo: diário de uma favelada foi descoberta

pelo jornalista Audálio Dantas ao realizar uma reportagem na Favela do Canindé

para retratar a vida dos/as moradores/as daquela localidade e lá encontrou-se com

Carolina, e a descreveu como “a negra que tinha muito a dizer”. Dantas ao ver a

escrita feita pela a catadora de papéis, percebeu ali um olhar que jamais suas

palavras poderiam descrever, o olhar de alguém que vivenciava e retratava em

cadernos achados no lixo, o cotidiano de um lugar totalmente excluído pela a

sociedade paulista e silenciada por seus representantes governamentais (DANTAS,

2004).

Em o Quarto de despejo; diário de uma favelada, Carolina relata o seu

cotidiano e a realidade do grupo social que vivia na favela, a partir de uma

linguagem, muitas vezes entendidas como fora do cânone literário, a autora do diário

de denunciava as mazelas sociais de sua realidade e via o ato de escrever como

uma forma de resistência para as opressões vividas enquanto mulher negra, pobre,

favelada e mãe solo. Em determinado trecho do livro supracitado Carolina afirma:

[...] o tenente interessou-se pela a educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas têm mais possibilidades de delinqüis do que tornar-se útil a pátria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os políticos? O senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso

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resolver nem as minhas dificuldades... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças. (JESUS, 1963, p.26)

No trecho acima podemos perceber que Carolina cobra um posicionamento

das autoridades da época sobre a situação de violência e fome vivida por quem está

na favela, além disso, Carolina argumenta que os governantes sabem da situação

de miserabilidade e não fazem nada, por isso ela afirma a necessidade de termos

governantes que já tenham passado fome, pois assim conseguiriam construir um

processo de alteridade e pensar nas pessoas que vivem essa situação. Situação

essa que inúmeras mulheres negras faveladas passam em cotidiano seja no período

da escrita no livro ou no Brasil atual, considerando que elas ainda são as que

recebem menor salário do Brasil.

Podemos afirmar a partir da obra mencionada de Carolina Maria de Jesus,

que a literatura escrita por mulheres negras é, discurso que necessita ser pautado

em todas suas ramificações sejam pelas vivências, pois ela permite lançar um novo

olhar para as representações padronizadas da literatura. Escritos como o de

Carolina potencializa hoje falas antes silenciadas, questionando a marginalização da

mulher negra, o machismo, a pobreza e o racismo construindo uma política de

resistência à opressão, exclusão.

Considerações finais

As narrativas como as contidas no Quarto de despejo: o diário de uma

favelada constitui uma fonte para as discussões, acerca de questões socioculturais,

ancestrais, a luta e resistência da mulher por igualdade, políticas públicas, a

adversidade aos sistemas de poder estabelecidos pelo machismo, é nesta literatura

que a mulher negra propõe sua construção literária feita para inclusão, feita para

debate, e principalmente para representatividade. É a partir a interseccionalidade

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entre gênero, raça e classe social é que percebemos a potência da literatura escritas

por essas mulheres para compreender qual foi o “lugar” estabelecido para as

mulheres negras na sociedade brasileira e a importância sua luta contra

marginalidade econômica, social, política e representacional.

Consideramos que escritos como de Carolina Maria de Jesus, assim como,

de Maria Fermina Reis, Conceição Evaristo, entre outras escritoras negras que estão

surgindo na atualidade é um mecanismo de luta e resistência, repercutindo falas de

mulheres subjugar, este silencio é na literatura que esta fala cria forma e

consistência para lutarem, para denunciarem e procurar a transformação

constantemente deste sistema. Referências

DANTAS, Audálio. Apresentação. In: JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2004

DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. Revista Terceira Margem, v. 14, n. 23, p. 113-138, 2010.

JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo. Edição Popular. São Paulo: Francisco Alves, 1963.