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A INSURGÊNCIA ESCRAVA DA BAHIA JOSÉ ALBERTO BANDEIRA RAMOS * RESUMO O presente artigo fornece alguns elementos de enquadramento teórico e histórico do tema. Apresenta de forma sumária os principais eventos de rebeldia escrava estudados e algumas considerações de natureza analítica sobre as características ontológico-históricas destes eventos, numa linha comparativa com conjunturas históricas semelhantes. Reúne considerações essencialmente conceituais, buscando avançar reflexões que permitam apontar as causas e especificidades da insurgência escrava da Bahia. PALAVRAS- CHAVE: INSURGÊNCIA, REBELDIA, LEVANTES, QUILOMBOS INTRODUÇÃO O presente artigo baseia-se em elementos colhidos em Tese de Doutorado, ainda inédita, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Apoia-se complementarmente em pesquisa de pós-doutorado, realizada também na USP, junto ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM). Nesse sentido, aprofunda a análise do tema da Insurgência Escrava da Bahia com um olhar crítico sobre os principais eventos de rebeldia escrava, suas características ontológico- históricas, numa linha comparativa com conjunturas históricas semelhantes. Apresenta algumas pistas que permitem identificar as causas e especificidades da Insurgência Escrava da Bahia. Este texto está dividido em três tópicos, além desta introdução. O primeiro, A Insurgência Escrava da Bahia e sua Época, contextualiza os elementos de enquadramento * Professor Aposentado da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB, Doutorado e pós Doutorado em História pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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A INSURGÊNCIA ESCRAVA DA BAHIA

JOSÉ ALBERTO BANDEIRA RAMOS *

RESUMO

O presente artigo fornece alguns elementos de enquadramento teórico e histórico do tema.

Apresenta de forma sumária os principais eventos de rebeldia escrava estudados e algumas

considerações de natureza analítica sobre as características ontológico-históricas destes eventos,

numa linha comparativa com conjunturas históricas semelhantes. Reúne considerações

essencialmente conceituais, buscando avançar reflexões que permitam apontar as causas e

especificidades da insurgência escrava da Bahia.

PALAVRAS- CHAVE: INSURGÊNCIA, REBELDIA, LEVANTES, QUILOMBOS

INTRODUÇÃO

O presente artigo baseia-se em elementos colhidos em Tese de Doutorado, ainda inédita,

defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História do Departamento de História da

Universidade de São Paulo (USP). Apoia-se complementarmente em pesquisa de pós-doutorado,

realizada também na USP, junto ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América

Latina (PROLAM).

Nesse sentido, aprofunda a análise do tema da Insurgência Escrava da Bahia com um

olhar crítico sobre os principais eventos de rebeldia escrava, suas características ontológico-

históricas, numa linha comparativa com conjunturas históricas semelhantes. Apresenta algumas

pistas que permitem identificar as causas e especificidades da Insurgência Escrava da Bahia.

Este texto está dividido em três tópicos, além desta introdução. O primeiro, A

Insurgência Escrava da Bahia e sua Época, contextualiza os elementos de enquadramento

* Professor Aposentado da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB, Doutorado e pós Doutorado em

História pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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teórico e histórico. O segundo, Cronologia Geral e Qualificação do Universo de Episódios,

apresenta de forma sumária os principais eventos de rebeldia escrava estudados e algumas

considerações de natureza analítica sobre as características ontológico-históricas destes eventos.

O último, Algumas Conclusões, reúne considerações essencialmente conceituais que apontam

para as causas e especificidades da insurgência escrava da Bahia.

1. A INSURGÊNCIA ESCRAVA DA BAHIA E SUA ÉPOCA

Desde o início da escravidão africana no Brasil, ainda no século XVI, e durante os séculos

XVII e XVIII, ocorreram episódios diversos de inconformismo dos escravos contra a sua

submissão forçada, abrangendo desde manifestações individuais de sabotagem no processo de

trabalho, agressões pessoais e fugas, temporárias ou definitivas, até à formação de comunidades

autônomas de escravos fugidos, que ficaram conhecidas com os nomes de Mocambos ou

Quilombos.

Isto generalizadamente em todas as Províncias, ao longo do período colonial. No caso da

Bahia, com a virada do século XVIII para o século XIX, ocorre uma mudança neste padrão de

rebeldia escrava: embora continue o processo de formação de quilombos, estabelece-se um clima

de revolta que é marcado por episódios sucessivos de levantes armados, alguns espontâneos e

outros com caráter nitidamente conspirativo. Este ciclo de insurgência escrava alcança o seu

clímax em 1835, com o levante conhecido pelo nome de “Revolta dos Malês”, na cidade de

Salvador, cuja repressão marca o início de uma nova etapa histórica, caracterizada pela

consolidação do Estado monárquico, autoritário e escravista. Esta etapa, na Bahia, coincide

também com a derrota do movimento separatista conhecido pelo nome de “Sabinada”, em 1838;

e tem o seu marco nacional representado pelo “golpe da maioridade”, em 1840, quando se

estabelece a forma definitiva do Estado centralizado e autoritário, representado pelo governo

imperial constitucional-escravista.

O conceito com que se trabalha, de Insurgência Escrava, inclui o que se costuma

denominar, mais genericamente, de revoltas escravas, e abrange tanto iniciativas de levantes

armados (sejam espontâneos ou fruto de processos conspirativos), quanto as formas chamadas de

quilombos. As formas quilombistas, ou quilombolas, por sua vez, constituem modalidades de

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movimentação escrava bastante complexas, porque variadas na forma e no conteúdo, e ao mesmo

tempo, bem características, porque típicas das manifestações de escravos, tanto africanos como

crioulos, no seu processo secular de resistência à exploração escravista.

O estudo da insurgência escrava obriga também ao conhecimento de sua inserção nas lutas

dos demais segmentos explorados da população, ainda quando, como no caso da Bahia em sua

maior parte, elas guardem pouca articulação, ou aparentemente nenhuma, com os demais

movimentos de rebeldia social libertária não-escrava. Em contraste, há o caso do Maranhão, com

a “Balaiada”, em 1838, movimento que se singulariza, sob este aspecto, entre os movimentos

separatistas antimonárquicos no Brasil.

É particularmente importante levar em conta as mudanças que se insinuaram na conjuntura

econômica e política, ao nível da sociedade escravista, especialmente naqueles momentos em que

se conjugam e se entrelaçam situações de crise econômica, crise social, e especialmente, de crise

do poder político, com as fissuras que daí decorrem no seio dos segmentos dominantes.

No estudo da insurgência escrava, é necessário dar atenção especial ao fato de que ela se

inscreve, de forma inequívoca, no que aqui se conceitua como a tradição milenarista que é,

genericamente, a forma de luta que assumem as manifestações de rebeldia das camadas

oprimidas da população em toda sociedade de classe, ou de ordem, que precede à chamada Era

Revolucionária.1

2. CRONOLOGIA GERAL E QUALIFICAÇÃO DO UNIVERSO DE EPISÓDIOS

Aqui se pretende visualizar o universo de episódios de rebeldia/insurgência escrava

ocorridos na Bahia, em sua seqüência temporal e expressão territorial, e qualificar os traços

característicos de cada um.

Convém assinalar, de saída, o fato marcante representado pela grande diversidade desses

episódios, quanto ao seu conteúdo, quanto à disponibilidade de fontes para seu estudo, e quanto

1 O conceito de Era Revolucionária obedece estritamente à denominação dada por Eric Hobsbawm (1988). Já o

conceito de milenarismo, ainda muito controverso entre historiadores e antropólogos, é aqui utilizado

especificamente segundo a acepção que lhe dá Peter Worsley (1980). De todos os autores que tratam do tema

complexo das manifestações messiânico-milenaristas, desde os estudos pioneiros de Max Weber, o de Worsley é o

que assume forma mais rigorosa e coerente com o ponto de vista historiográfico adotado neste artigo.

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ao grau de conhecimento já disponível acerca de cada um. Não se tem a pretensão de esgotar a

totalidade de ocorrências, envolvendo todas as diferenciadas formas de rebeldia escrava, vez que

o foco da pesquisa foi o estudo historiográfico do fenômeno da insurgência escrava da Bahia,

visto como parte integrante da resistência dos escravos (e libertos) à exploração escravista

vigorante em todas as sociedades do Novo Mundo, estas que foram construídas no âmbito da

expansão mundial do capital mercantil centrado na Europa.

A seguir apresentam-se os episódios em sequência temporal, seus traços e componentes

característicos mais marcantes:

1743-1763: Campanha de esmagamento do Quilombo “Buraco de Tatu”, na

periferia de Salvador, em processo de resistência/perseguição armada que durou

vinte anos;

1785: Perseguição e devassa do candomblé (chamado então Calundu) da rua do

Pasto, em Cachoeira;

1789: Levante escravo no Engenho Santana, comarca de Ilhéus (região açucareira

extra-Recôncavo, nas proximidades da foz do rio de Contas, hoje Itacaré);

engenho de propriedade particular, adquirida após confisco aos jesuítas;

composição da escravaria eminentemente crioula; levante com lances

extraordinários, envolvendo a negociação de um Tratado de Paz apresentado

pelos insurgentes ao proprietário do engenho – tendo sido objeto de repressão

traiçoeira;

1796-97: Perseguição aos quilombos de Orobó, Andaraí e Tupim, nas matas de

Cachoeira;

1798-99: “ Revolução dos Alfaiates”, em Salvador; importante movimento

libertário, com bandeiras iluministas e ampla propaganda abolicionista;

participação de camadas populares e de alguns líderes escravos urbanos; episódio

que marca a transição para o ciclo de insurgência escrava na Bahia;

1806: Repressão ao Quilombo do Oitizeiro, localizado na barra do Rio de Contas,

atual Itacaré, comarca de Ilhéus, promovida pelo governador da Capitania, o

Conde da Ponte. Quilombo com características bem diferenciadas do padrão de

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Salvador e seu Recôncavo açucareiro, no período marcante da insurgência escrava.

(1807-1835);

1807, maio e junho: Conspiração escrava em Salvador, sob liderança de escravos

hauçás islamizados; abortada no nascedouro e reprimida violentamente pelo

governador da Província, o Conde da Ponte;

Campanha de perseguição a quilombos na periferia de Salvador.

Em junho esta campanha repressiva é estendida ao Recôncavo, ocorrendo a prisão, na vila

de São Francisco do Conde, do escravo angola, de nome Antonio, acusado de ser o “presidente

dos terreiros de candomblés”; junto com ele foram presos muitos outros escravos, inclusive de

engenhos, acusados de apoiar práticas de feitiçaria, segundo devassa policial realizada;

1808-1809: Levante escravo conjunto, em Salvador e em Nazaré das Farinhas

(Recôncavo): dezembro/ 1808 - janeiro/ 1809; levante seguido de

aquilombamento, perseguido policial e militarmente pelo Conde da Ponte. Note-se

que neste levante tomaram parte escravos urbanos (fugitivos de Salvador) e

escravos de engenho. O que chama a atenção é o fato de que, apesar do grande

número de participantes, desta vez não houve traição ou vazamento de

informações.

O exame da documentação de arquivo sobre esta rebelião permite verificar-se o quanto a

Coroa portuguesa, muito mais do que o seu fiel servidor na Bahia, o Conde da Ponte, buscava

distinguir, na repressão às iniciativas de rebeldia escrava, situações diferenciadas quanto ao nível

de consciência revelado pelos insurgentes, naquilo que era decisivo à dominação escravista. Pois

uma coisa é o simples rebelar-se contra a tirania de um senhor ou de um grupo de senhores

escravistas mais renitente no abuso dos seus “direitos” (enquanto senhor absoluto da força de

trabalho); outra coisa é o rebelar-se contra esta mesma exploração escravista a partir de

convicções libertárias (sejam elas de natureza religiosa ou inspiradas no ideário iluminista) que

implicam em pôr em questão o próprio sistema da dominação escravista;

1814, 28/ fevereiro-novembro: levante escravo nas armações baleeiras de “Itapoan”,

periferia de Salvador, de propriedade de Manoel Ignácio da Cunha Meneses e de outros senhores.

Primeira rebelião com efetiva participação conjunta de várias etnias, inclusive da “impossível

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aliança” entre escravos hauçás e nagôs. Levante com características de integração cidade/campo,

sob liderança mista2, com caráter religioso e militar-conspirativo, base de apoio quilombista (o

quilombo do Sangradouro, situado em área periférica à cidade de Salvador) e com caráter de

solidariedade interétnica.

Este movimento causou grande comoção na província da Bahia e na sede da colônia, no

Rio de Janeiro; foi reprimido com grande violência, militar e processualmente, com a

condenação e a execução exemplar de vários líderes, na praça da Piedade, em Salvador, em

novembro de 1814.Deve-se assinalar que esta repressão ocorreu no governo “Ilustrado” do

Conde dos Arcos, neste período muito criticado, todavia, por senhores de engenho da Bahia e

por setores influentes do comércio– que o acusavam de ser condescendente com os escravos;

1814, Junho: Episódio de conspiração malograda. Caso fertilíssimo de articulação

rural/urbana, com liderança de libertos em aliança com escravos ladinos dos

“cantos” 3de Salvador; cooperação interétnica e mobilização com motivos

africanos contextualizados; e também com apoio em base quilombista, (o mesmo

quilombo do Sangradouro).

Pode-se especular, pelo que já se conseguiu apurar, que se tratou, no caso, de uma

conspiração abortada que seria, provavelmente, um desdobramento da rebelião de 28 de

fevereiro, ocorrida nas Armações de Itapoan. Em artigo publicado na coletânea organizada por

REIS e GOMES (1996), Stuart Schwartz trás novas luzes sobre este episódio, apoiado no

conhecimento de documento manuscrito levantado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

O eixo da descoberta que tal documentação desvela reside na confirmação do processo

(característico do período da insurgência escrava na Bahia) de estreita articulação entre atividade

quilombista e gestação do processo conspirativo. A importância deste episódio reside exatamente

no fato de que, confirmado este padrão, ele constitui uma como que antecipação do processo de

insurgência que se intensifica e se amplia na segunda década do século XIX, na esteira da crise

agudizada do sistema colonial. Crise que desemboca nas lutas pela Independência Nacional que

resultaram, no caso da Bahia, em enfrentamentos armados com o destacamento militar português

2 Nesta rebelião houve dois líderes, um religioso, liberto; e outro escravo, crioulo, nunca encontrado.

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nela sediado (muito embora sob a liderança e a hegemonia dos senhores de escravos); estes,

segmento dominante desde a sociedade colonial, tiveram reforçado o seu papel dirigente na

sociedade escravista imperial, esta que perdurou ao longo de mais de meio século, apesar dos

abalos oriundos das idéias liberais. Idéias que, desde antes da Independência, já se disseminavam

na Bahia e que encontraram o seu principal desaguadouro na assim chamada “Revolução dos

Alfaiates”, em 1798;

1816, 12 de fevereiro: levante escravo em engenhos do Recôncavo,

nas proximidades de São Francisco do Conde. Caso importante pelos

impactos causados na política senhorial de repressão escrava; última

rebelião escrava conhecida, anterior à guerra da Independência da

Bahia; depois disso, dominam a cena os movimentos políticos voltados

para a conquista da Independência nacional, na esteira da crise

agudizada do sistema de dominação colonial, começando pela chamada

Revolução Pernambucana de 1817; esta, na verdade, não foi um

processo localizado apenas em Pernambuco, espraiou-se por quase todo

o Nordeste, incluindo a Bahia;

1822/1823/24: Levantes escravos durante a guerra da Independência na Bahia. O

padrão de tais levantes mantém estrita semelhança com os do período inicial, no

que respeita à predominância do elemento africano, tanto em sua liderança quanto

na massa de participantes. Há porém uma conjuntura de muito maior cisão entre as

frações dominantes da sociedade escravista, marcadamente entre os comerciantes

portugueses e os senhores de engenho, ambos utilizando-se dos escravos como

massa de manobra para a solução da crise do regime, mas recorrendo, e com igual

ferocidade, à repressão e ao esmagamento das iniciativas de levante escravo

havidas. Ocorrem além disso, após a Independência, sucessivos movimentos de

rebeldia, de natureza militar e separatista, no âmbito das lutas que se

3 Os “cantos” eram locais de concentração de escravos urbanos, chamados “de aluguel”, que prestavam pequenos

serviços a senhores diversos; os pagamentos recebidos eram entregues, obrigatoriamente, a seus respectivos

senhores.

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desenvolveram no país contra a consolidação do Estado nacional escravista,

sediado na cidade do Rio de Janeiro;

1821-1824; 1824-1828: Levantes no Engenho Santana, na Comarca de

Ilhéus, nas proximidades do Rio de Contas, atual Itacaré; movimento

insurrecional com tomada do Engenho, repressão feroz seguida de

aquilombamento e resistência quilombista prolongada; movimento

pouco conhecido mas de importância singular para o estudo da

insurreição escrava na Bahia. O engenho, antiga propriedade jesuíta

expropriada na época pombalina, passou a mãos particulares, mas

continuou com características de empreendimento de grande porte, com

grande contingente de escravos; seu proprietário, nos anos deste

segundo ciclo de levantes, era o Brigadeiro Felisberto Caldeira Brant

Pontes, futuro Marquês de Barbacena, militar de profissão e grande

proprietário territorial, com engenhos também no Recôncavo

açucareiro, tendo sido comandante das armas do governo da Capitania

na gestão do Conde dos Arcos, Dom Marcos de Noronha e Brito

(1808/1818);

1826-1829: Ciclo de levantes nos engenhos do Recôncavo,

especialmente no vale do Iguape, em Cachoeira; em Maragogipe, e na

região de Santo Amaro e São Francisco do Conde. Trata-se da segunda

etapa (ou terceira) de levantes em engenhos açucareiros do Recôncavo,

marcada por um período de agitação política ainda mais intenso na

província da Bahia, desde as lutas da Independência;

1826-1827: Repressão ao Quilombo do Orubu, nos subúrbios de

Salvador; houve forte perseguição armada e processo policial contra a

conspiração escrava centrada em estrutura quilombista. Trata-se de

movimento escravo de natureza complexa, com elementos

marcadamente conspirativos e com a suposta liderança de um liberto,

dirigente de candomblé; ainda com predominância quase exclusiva de

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contingentes africanos, de maioria nagô; conspiração abortada em seu

nascedouro, reprimida militarmente por tropas milicianas mobilizadas

pelo governador da província, nesta data o senhor Manoel Ignácio da

Cunha Menezes, futuro Barão do Rio Vermelho( o mesmo proprietário

da armação baleeira que foi palco de insurreição escrava no ano de

1814). A resistência dos escravos aquilombados foi renhida, com

destaque para a participação de uma mulher, a ex-escrava quilombista

Zeferina, que era proclamada rainha e líder do movimento; presa,

processada e condenada junto com o liberto Antônio; este,

aparentemente, líder espiritual do movimento;

1828 – março: levante armado nas armações baleeiras de “Itapoan”, na

periferia de Salvador, as mesmas do levante de fevereiro/1814; há

indícios de tratar-se de desdobramento da conspiração organizada pelo

quilombo do Orubu;

1830 – abril: “Levante espontâneo” de escravos novos, no centro

comercial de Salvador. Invasão de loja de armas, seguida de choques

violentos com tropas milicianas, grande perseguição pelas ruas centrais

de Salvador, promovida por uma “turba anti-africana”; processo possui

auto de devassa, embora com documentação em grande parte

prejudicada. Nina Rodrigues (1988) fornece, a seu respeito,

informações e pistas instigantes;

1835 – 24 de janeiro: Levante abortado de escravos em Salvador,

conhecido como “Revolta dos Malês”4. Ponto de culminância,

aparentemente, do longo período de insurgência escrava na Bahia,

movimento eminentemente conspirativo, com indícios diversos de

articulação continuada entre cidade e campo... isto é, entre lideranças

de escravos urbanos e escravos de senzala, através da ação

4 O professor João Reis, da Universidade Federal da Bahia, publicou tese de doutorado sobre este tema. Continuou

aprofundando seus estudos, tendo lançado em 2003 edição revista e ampliada do livro primeiramente publicado em

1986 e em 1987.

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mobilizadora e organizadora de libertos que são um misto de liderança

religiosa e guerreira, os quais agem sob inspiração de ideário africano

contextualizado e elaborado autonomamente. Opera-se um amálgama

ideológico5 entre religiões africanas (candomblé) com uma variante

islâmica libertária e anti-escravista ... amálgama ao qual não é estranha

a colaboração/articulação com manifestações do catolicismo popular.

Tal é o padrão característico, com diferenças apenas pontuais de

contexto (micro-conjunturas), de todo o ciclo da insurgência escrava na

Bahia no período em causa, cuja extensão, por sua vez, ainda parece

sujeita a alargamentos e/ou melhor qualificação, à medida em que

avance a pesquisa empírica localizada.

3. ALGUMAS CONCLUSÕES

A insurgência escrava como manifestação da luta de classes assume em geral o caráter

marcante de um fenômeno de solidariedade interétnica. Como os episódios mais conhecidos de

insurgência escrava na Bahia já o indicam, a solidariedade interétnica ocorre sob a forma de

elaboração autônoma de uma ideologia teimosamente contraposta à cultura dominante do

escravista branco e, caracteristicamente, manifesta-se através de formas e rituais religiosos.

Rituais e festas que assumem uma linguagem política que dá sustentação a aspirações, e às vezes

até a projetos algo elaborados, de liberdade frente à exploração escravista. As formas religiosas

neste processo, além de se exprimirem numa linguagem política que chega a assumir, em

determinadas conjunturas, forma e função contestatória, servem também de estrutura orgânica e

de elemento mobilizador, na tessitura do processo conspirativo da insurgência escrava, em sua

forma mais aguda.

Deve-se advertir, a propósito do esmagamento sucessivo das rebeliões escravas, que a derrota

de uma classe frente a outra numa certa conjuntura histórica – caso específico da repressão das

rebeliões escravas na Bahia – não significa que os derrotados estavam fatalmente destinados ao

5 Para o conceito de amálgama ideológico, ver KRANTZ, Frederick (Org.), A Outra História: ideologia e

protesto popular nos séculos XVII a XIX. Editora Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990.

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fracasso, seja por falta de projeto estruturado, seja por disporem de menos forças sob a forma de

menos recursos materiais para a luta, inclusive experiência e força militar. Nesse caso, a

generalização das relações escravistas, característica da Bahia colonial e imperial, fornece um

substrato objetivo decisivo para o exercício da hegemonia de classe dos senhores de engenho e

comerciantes escravistas, conforme já o assinalaram vários estudiosos, inclusive o autor deste

artigo, em sua tese de doutoramento defendida na USP.

O que marca de modo inconfundível o período da insurgência escrava da Bahia é a

circunstância de que, derrotadas as tentativas insurrecionais sempre que estas se apresentaram,

não conseguia contudo o poder escravista debelar o clima de rebeldia que se instalara na vida

cotidiana das relações entre senhores e escravos desde a última década do século XVIII, e, mais

intensamente, a partir do esmagamento do movimento social e político representado pela

Revolução dos Alfaiates. Este, não sendo um movimento liderado por escravos – mas no qual

houve envolvimento de vários escravos – parece constituir-se num verdadeiro divisor de águas

nas lutas de classe na Bahia oitocentista.

No caso da insurgência escrava da Bahia, a relação entre revolta escrava e piora das condições

materiais de vida e trabalho foi agravada por restrições ao exercício de atividades produtivas de

subsistência, o que tornou insuportáveis essas condições materiais de vida e trabalho, ameaçando

assim a continuidade da sobrevivência dos contingentes escravos, especialmente os que

trabalhavam e viviam nos engenhos e propriedades de lavradores escravistas fornecedores destes.

No âmbito da vida urbana, na cidade de Salvador e nas vilas do Recôncavo, também se fez sentir

a piora das condições de sobrevivência dos escravos, como reflexo da intensificação do regime de

exploração do trabalho vigente nos engenhos e fazendas.

Dentre os expedientes utilizados pelo poder escravista como elemento de controle escravo,

três instituições aparecem com destaque. São elas, certas irmandades católicas, a prática da

alforria e o engajamento na corporação militar, principalmente a formação de milícias de

repressão contra os próprios escravos. Mostrava-se de importância especial para o exercício deste

controle escravo a sustentação de uma mentalidade conformista com o instituto da escravidão.

A participação de escravos em irmandades católicas, especialmente aquelas especificamente

constituídas por negros africanos, mostrou-se um mecanismo eficiente, durante muito tempo,

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como expediente de controle escravo, na manutenção desta mentalidade conformista com o

instituto da escravidão. Contudo, o congregarem-se escravos, particularmente escravos urbanos,

em irmandades católicas específicas, deixou evidente a possibilidade concreta de tornarem-se

estas irmandades locais de elaboração de valores culturais africanos, os quais contribuíam para

dar identidade aos diferenciados agrupamentos étnicos em que se subdividiam os contingentes

escravos.

Da mesma forma, mas de modo menos nítido, o próprio engajamento de escravos, e sobretudo,

de ex-escravos (escravos alforriados), em corporações militares também apresentava igual

ambigüidade como instrumento de controle. É evidente que, neste caso, a existência, por

exemplo, de milícias aplicadas especificamente na repressão a manifestações individuais ou

coletivas de rebeldia escrava, representava um poderoso instrumento, não só para o controle

direto desta rebeldia escrava, mas também para a sustentação e reforço daquela mentalidade

conformista com o instituto da escravidão, esta que, por sua vez, encontrava seu substrato na

estrutura mesma da sociedade escravista da Bahia, marcada pela generalização das relações

escravistas. Pois, até segmentos de homens livres pobres, isto é, não proprietários de terras,

negócios ou ofícios, podiam possuir escravos.

O instituto da alforria, que funcionava também como mecanismo de controle escravo, possuía,

no entanto, menor alcance por abranger proporcionalmente pequena fração da massa escrava, em

face do interesse dos senhores escravistas em ampliar ao máximo a taxa de exploração de sua

força de trabalho.

Podem ser considerados como principais os seguintes elementos constitutivos dos movimentos

de insurgência escrava na Bahia:

Senso tático de um agudo tino político, revelado sobretudo na escolha judiciosa dos

momentos para os levantes, fazendo-os coincidir, sempre, com datas festivas no

calendário oficial ou religioso da sociedade escravista dominante;

Resistência coletiva violenta, nas rebeliões, como forma de prosseguimento de uma luta

rotineira, no cotidiano, contra a dominação escravista;

Manifesta capacidade de aglutinação e de organização coletiva. Este último elemento

possuía maior vigor no meio urbano, onde desempenhava papel de grande articulação a

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presença dos chamados “cantos”, os quais agregavam escravos e libertos na estruturação

dos contingentes atuantes nos serviços de ganho, os chamados “escravos de ganho”.

Não foi então por acaso que o rompimento com o instituto da escravidão representou o grande

divisor de águas, no processo de formação da nacionalidade brasileira e do seu correspondente

Estado autoritário. Este rompimento radical não pôde jamais ser bandeira real de nenhum

movimento libertário antimonarquista, conforme já assinalou, com grande propriedade, Carlos

Guilherme Mota (em seu estudo sobre a Revolução Pernambucana de 1817, no qual trata, em

verdade, não apenas de Pernambuco, nem somente do Nordeste, mas da crise do sistema colonial

e dos avatares do processo de formação do Estado nacional brasileiro em suas particularidades

regionais).

A única exceção, pelos indícios disponíveis, seria a “Revolução dos Alfaiates”, na Bahia de

1798: movimento todavia derrotado porque “prematuro”. Aliás, mesmo aí, não se tratou

propriamente de uma exceção, e sim, da circunstância especial de que, dada a preponderância da

contradição colonial sobre a contradição escravista, e dada a qualidade da mobilização havida – o

fato de terem sido sensibilizadas amplas camadas da população pobre não-escrava e até alguns

líderes escravos urbanos – a consciência senhorial na Bahia de então foi desafiada pela postura

intransigente das autoridades metropolitanas. Todavia, uma vez iniciada a repressão, rapidamente

as camadas senhoriais, na verdade as principais interessadas no projeto anticolonial, recolheram-

se ao seu costumeiro padrão de comportamento frente à metrópole, isto é, colaboração e

articulação com os interesses imediatos desta, já então, ela própria, convertida tão somente num

posto avançado da grande metrópole imperial britânica.

O outro momento em que a consciência senhorial do “perigo africano”se apresenta esmaecida

se dá bem mais tarde, nas duas últimas décadas do século XIX, já sob a conjuntura do período

final da crise do escravismo, no âmbito da campanha abolicionista. Mas, aí mais uma vez, tal

como na Bahia de um século atrás, ocorre um processo abortado, muito embora por razões

também já bastante diferentes. Entre outras coisas porque, na conjuntura do Movimento

Abolicionista, apesar da enorme heterogeneidade social e política deste, escravo já não era

sinônimo de africano.

Por isso mesmo, agora, o que se colocava era, diretamente, o “perigo escravo”,

maquiavelicamente contornado no desenlace que então prevaleceu, primeiro com a Abolição e

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depois com a Proclamação da República, tudo sob a hegemonia das frações dominantes que

sucederam aos senhores escravistas no comando da economia e do aparelho do Estado, este que

passou a manter, em essência, a mesma estrutura autoritária e centralizada do período imperial.

É tentador então indagar: o desfecho conservador da crise da monarquia escravocrata, ao

consolidar uma herança escravista fundamental (que este autor denominou de ranço autoritário)

pode ser encarado como um indício de ser o Brasil um caso extremo de reacionarismo político

na História das Américas? Esta todavia é uma história que não foi estudada aqui.

Todas as correntes liberais e progressistas no Brasil, desde as mais radicais (a corrente dos

“cometas” e “caifazes”, no movimento abolicionista) até às mais moderadas (aquelas que

conciliaram com o escravismo) foram sistemática e inapelavelmente derrotadas. E com todas as

honras militares, apesar do lirismo heroico de algumas figuras militantes dessas correntes mais

radicais. (RAMOS, 2007). E em nenhuma parte das Américas, incluída a Cuba colonial de

escravismo retardatário, a conciliação pelo alto foi levada tão longe!

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