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A INFÂNCIA MIDIATIZADA DE CRIANÇAS DE CLASSES POPULARES: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA COM LITERATURA INFANTIL Liége Freitas Barbosa 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) 1. Dizeres introdutórios De que forma uma pesquisa com o foco em literatura infantil poderia revelar aspectos da presença das mídias no cotidiano de crianças de uma escola pública de periferia? Em que medida seria possível vislumbrar o surgimento de uma “infância midiatizada” na contemporaneidade, por meio de uma experiência com literatura? Com o objetivo de tocar nessas questões, este trabalho tem como proposta articular infância, literatura infantil e mídia, para apresentar e discutir, através de uma primeira aproximação em uma pesquisa de literatura infantil, como algumas mídias atuam na e constituem a vida cotidiana de crianças de classes populares de Porto Alegre - RS. Produzido na perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Educação, o texto é inspirado em dados preliminares obtidos a partir da pesquisa 2 de literatura infantil de cuja equipe faço parte. Tal pesquisa trabalha com representações de infância em livros de literatura infantil, em conexão com as leituras que as crianças fazem deles. O público-alvo são alunos entre 9 e 12 anos do quarto e quinto anos do Ensino Fundamental de escolas públicas da capital gaúcha. O estudo basicamente envolve sessões de leitura e discussão dos livros selecionados (a partir de sua qualidade literária, da variedade de temáticas e da presença de personagens crianças como protagonistas) e realização de atividades variadas com os alunos, que podem incluir, por exemplo, a produção de textos, montagens, colagens e desenhos que visam a explorar as temáticas dos livros. 1 Jornalista, Mestre em Educação e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha de Pesquisa Estudos Culturais em Educação. Integrante do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (Neccso). Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected] 2 Trata-se da pesquisa “Percursos e representações da infância em livros para crianças – um estudo de obras e de leituras” (2015-2018) coordenada pela prof. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira e desenvolvida pelo grupo de pesquisa do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECSSO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O estudo é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, e envolve pesquisadores da Ufrgs, Ulbra, Ufpel e Unesp.

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A INFÂNCIA MIDIATIZADA DE CRIANÇAS DE CLASSES POPULARES:

REFLEXÕES A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA COM

LITERATURA INFANTIL

Liége Freitas Barbosa1

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

1. Dizeres introdutórios

De que forma uma pesquisa com o foco em literatura infantil poderia revelar aspectos da

presença das mídias no cotidiano de crianças de uma escola pública de periferia? Em que medida

seria possível vislumbrar o surgimento de uma “infância midiatizada” na contemporaneidade, por

meio de uma experiência com literatura? Com o objetivo de tocar nessas questões, este trabalho

tem como proposta articular infância, literatura infantil e mídia, para apresentar e discutir, através

de uma primeira aproximação em uma pesquisa de literatura infantil, como algumas mídias atuam

na e constituem a vida cotidiana de crianças de classes populares de Porto Alegre - RS.

Produzido na perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Educação, o texto é inspirado

em dados preliminares obtidos a partir da pesquisa2 de literatura infantil de cuja equipe faço parte.

Tal pesquisa trabalha com representações de infância em livros de literatura infantil, em conexão

com as leituras que as crianças fazem deles. O público-alvo são alunos entre 9 e 12 anos do quarto

e quinto anos do Ensino Fundamental de escolas públicas da capital gaúcha. O estudo basicamente

envolve sessões de leitura e discussão dos livros selecionados (a partir de sua qualidade literária,

da variedade de temáticas e da presença de personagens crianças como protagonistas) e realização

de atividades variadas com os alunos, que podem incluir, por exemplo, a produção de textos,

montagens, colagens e desenhos que visam a explorar as temáticas dos livros.

1 Jornalista, Mestre em Educação e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha de Pesquisa Estudos Culturais em Educação.

Integrante do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (Neccso). Bolsista do CNPq.

E-mail: [email protected]

2 Trata-se da pesquisa “Percursos e representações da infância em livros para crianças – um estudo de obras e de

leituras” (2015-2018) coordenada pela prof. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira e desenvolvida pelo grupo de pesquisa

do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECSSO) da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS). O estudo é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, e

envolve pesquisadores da Ufrgs, Ulbra, Ufpel e Unesp.

1

Logo que tive oportunidade de entrar e estar em contato com o conteúdo das produções dos

alunos e de seus relatos em sala de aula, percebi que emergiam referências midiáticas diversas: de

telenovelas e seriados da TV aberta, até relatos (de inconformidade) sobre a sua competição com

as redes sociais pela atenção dos pais. As mídias, em seus diferentes suportes e linguagens, sejam

“velhas”3 ou “novas”, aparecem inscritas de alguma maneira nas atividades, nas respostas, nos

traços, nos desenhos, nas falas. Fazem parte do repertório das crianças em sala de aula, estão

integradas em seu cotidiano, na vida dentro e fora da escola. Acredito que a identificação de

referências recorrentes à mídia nos trabalhos desenvolvidos pelos alunos e em seus relatos em sala

de aula, pode nos dizer algo sobre a constituição de um determinado tipo de infância na

contemporaneidade. Uma infância que parece surgir atravessada pela multiplicidade de produções

midiáticas do nosso tempo.

A problematização que aponta para a possibilidade de uma infância midiatizada envolve

tomar a mídia não mais como mera mediadora do “real”, mas como articuladora dos processos de

interação. Fausto Neto (2006) acredita que estamos diante de novos modos de produção e

organização social na qual as mídias não podem mais ser consideradas apenas como instrumentos

organizadores. Segundo ele, na sociedade midiatizada – ou em vias de midiatização – as mídias

são instituidoras de modos de organização, de participação e de interação. Assim, quando me

refiro, neste trabalho, à possibilidade de uma infância midiatizada ou a um processo de

midiatização da infância em curso, destaco que se trata de uma via de abordagem que sugere

ampliar a participação do campo da mídia no processo de produção de sujeitos, como sugere Braga

(2002). Para esse autor, é preciso pensar na midiatização como um processo social e não apenas

em termos de meios de comunicação. Essa perspectiva de análise ganhará corpo ao longo da

pesquisa, que se encontra em sua fase inicial.

2. A infância pós-moderna no cenário de periferia: um breve recorte

Pensar sobre a infância na perspectiva teórica dos Estudos Culturais é entendê-la como

uma construção social, história e cultural que é contingente, estando sempre sujeita a mudanças.

Nesse sentido, ao assumir tal entendimento, também é necessário esclarecer de que infância estou

3 Quando falo em velhas mídias, refiro-me aos chamados meios tradicionais, como os impressos, televisão e rádio. Já

a noção de novas mídias refere-se à internet, especificamente blogs e redes sociais.

2

tratando aqui, pois nesse texto busco olhar para uma em específico: a de crianças de classes

populares que frequentam escolas públicas de periferia da capital gaúcha. São crianças do mundo

contemporâneo, inscritas na chamada cultura pós-moderna – o atual estado da cultura onde nos

encontramos. Estaríamos então falando de uma “infância pós-moderna”, e como ponto de partida

adoto essa expressão me valendo do posicionamento de Costa e Momo (2010):

Grandes transformações têm alterado substantivamente as formas de vivermos hoje, e

entendemos que as condições culturais contemporâneas produzem infâncias distintas do

que se convencionou chamar infância moderna − ingênua, dócil, dependente dos adultos

− e modificam as formas das crianças viverem e habitarem o mundo. Vivenciamos um

estado da cultura − com implicações contundentes da mídia e do consumo − que se tem

configurado diferentemente daquele da modernidade e produzido sujeitos distintos dos

sujeitos modernos (COSTA e MOMO, 2010, p. 967-968).

Nesse sentido, as autoras contribuem para pensarmos sobre os novos modos de ser criança

e de viver a infância, pois em suas pesquisas colocam em evidência e problematizam esses diversos

modos de ser de crianças escolares em condição de pobreza, apontando como elas também são

produzidas na cultura da mídia e do consumo. Dessa forma, inspirada pela potencialidade da

experiência com literatura infantil, pretendo apresentar uma leitura modesta (entre muitas

possíveis) que mostra como a mídia aparece e constitui a infância pós-moderna de crianças

escolares que vivem em um cenário urbano periférico, pertencentes a famílias ditas de baixa renda

e que compõem as classes populares brasileiras.

3. Sobre a pesquisa “Percursos e representações de infância em livros para crianças”

Como mencionado, o artigo tem origem em uma pesquisa de literatura infantil da qual

participo e apresenta, neste recorte, uma primeira aproximação com alguns dados preliminares já

obtidos. Assim, visando uma noção mais ampla do contexto onde o trabalho está inserido, exponho

brevemente algumas informações que, em linhas gerais, situam o referido projeto de pesquisa.

Tomando como ponto de partida a vasta presença de personagens crianças nos livros de

literatura infantil e levando em consideração a afirmação de Reuter (2002, p. 41) de que “a

personagem, com efeito, é um dos elementos-chave da projeção e da identificação dos leitores”, o

projeto de pesquisa tem como eixo central a análise da infância imaginada e representada por meio

das personagens. Os caminhos investigativos do estudo são norteados por duas questões principais:

a) Como se representa a infância – através dos personagens infantis – em narrativas de livros

3

disponíveis para crianças de anos iniciais nos espaços escolares?; b) Como grupos (turmas) de

crianças de escolas públicas de anos iniciais, em situações de leitura interativa, negociam

significados de infância, a partir do acesso a alguns livros (previamente escolhidos por sua

adequação e pela diversidade de representações4 de criança) e em articulação com suas

experiências prévias na família, na escola, nos espaços midiáticos?

Com o objetivo de responder às questões, foi definido um desenho metodológico que

compreende uma seleção de livros entre títulos distribuídos pelos programas governamentais

(PNBE, PNAIC) e outros que, embora não constem de tais listas, são reconhecidos por suas

qualidades literárias, para trabalho com as turmas de crianças. Após o planejamento das sessões

de trabalho com os títulos escolhidos, são realizadas as sessões de leitura - gravadas em áudio e

vídeo e registradas em um diário de campo. Os encontros com os alunos de quarto e quinto anos

do Ensino Fundamental das escolas públicas de Porto Alegre-RS são conduzidos pelos

pesquisadores (juntamente com a professora de classe), sendo que as produções das crianças são

recolhidas e catalogadas. 5

3.1 Sobre as obras que originaram trabalhos com referências midiáticas

Aqui, busco contextualizar as duas obras de literatura infantil selecionadas pelo projeto que

ensejaram a realização de trabalhos pelos alunos nos quais estão presentes, de maneira mais

acentuada, citações e desenhos com referências à mídia, ou que suscitaram falas ou referências a

ela. São elas: “A Caminho de Casa” (Buitrago, 2012) e “Os Invisíveis” (Moriconi, 2013).

A Caminho de Casa

“A Caminho de Casa”6 é uma obra infantil de ficção escrita por Jairo Buitrago e ilustrada

por Rafael Yockteng. Em linhas gerais o livro mostra traços da rotina de uma menina pobre que

mora na periferia de uma grande cidade. Ela estuda longe da escola e, buscando companhia e

proteção, faz um pedido a um leão (imaginário?): “Na volta para casa, venha comigo...”. A obra,

4 Representações, no presente contexto, é utilizado no sentido de “representações culturais”, conceito caro aos Estudos

Culturais de inspiração pós-estruturalista - conforme os quais as representações se constroem discursivamente, em

jogos de poder, integrando sistemas e políticas de representação, em relação aos quais não se questiona, como em

outras tradições filosóficas, o valor de verdade. Ver, a esse respeito, Hall (1997) e Szurmuk e Irwin (2009). 5 No momento de produção deste artigo, foi realizado apenas um dos dois conjuntos de sessões previstas. 6 Obra selecionada para integrar o acervo do PNBE 2012 na categoria Anos Finais do Ensino Fundamental.

4

com um texto enxuto, é escrita em 1ª pessoa pela voz da menina, personagem protagonista que

vive com a mãe e o irmãozinho. Apesar de ser uma criança pequena, ela precisa lidar com uma

série de problemas de adultos: a ausência do pai, a falta de dinheiro, o cuidado com o irmão bebê

e as lides domésticas enquanto a mãe trabalha na fábrica. Contudo, junto ao leão - um guardião

imaginário, a volta para casa se torna uma aventura e a menina parece ganhar coragem e força para

enfrentar as dificuldades cotidianas. A narrativa termina indicando que a figura do leão pode ser a

representação do pai da menina, um provável desaparecido político. Um porta-retrato com uma

foto da família mostra todos sendo abraçados/protegidos pela figura paterna, que possui

caraterísticas físicas semelhantes ao leão. Uma imagem de pegadas, que no início da história são

da menina e do leão, ao final são da menina e de uma pessoa – provavelmente o pai. Trata-se de

uma obra sensível e rica em ilustrações que mostra como uma menina pobre enfrenta problemas

de adulto sem deixar de ser criança, apoiada na imaginação da existência de uma figura forte e

paternal que a protege.

A ideia do livro, segundo Buitrago (2013), foi esboçar a sua visão sobre uma realidade que

é muito presente entre as jovens da América Latina – a infância/adolescência pobre em um

contexto familiar e social de adversidades. Portanto, é uma obra contemporânea, conectada com

as vivências de inúmeras crianças e adolescentes dos países latino-americanos. De acordo com

Eco (1995, p. 100), “espera-se que os autores não só tomem o mundo real por pano de fundo de

sua história, como ainda intervenham constantemente para informar aos leitores os vários aspectos

do mundo real que eles talvez desconheçam”. No caso de “A Caminho de Casa”, se pensarmos em

uma parte de seus leitores - alunos das escolas públicas que acessam o livro através do PNBE no

Brasil - acredito que a narrativa potencializa um processo de maior identificação e empatia por

parte desse público em função de ter adotado como pano de fundo essa realidade social específica

e adversa.

Ainda sobre o tema, vale ressaltar que, na contemporaneidade, onde a cultura escolar

impregna a experiência de vida de crianças e adolescentes desde os primeiros anos de vida e onde

a educação ocupa boa parte da trajetória infanto-juvenil, não parece lugar comum explorar na

literatura infantil a temática da infância pobre e suburbana que assume responsabilidades adultas.

Apoio minha afirmação com base nos resultados da pesquisa de Colomer (2003) sobre a novidade

temática na literatura infanto-juvenil espanhola: segundo a autora, as temáticas que envolvem

5

problemas sociais ou conflitos aos quais não se encontra solução são trabalhadas de forma escassa

nas narrativas infantis e juvenis da atualidade (idem, p.258), o que torna “A Caminho de Casa”

uma obra interessante, entre outros aspectos, pela abordagem temática que propõe.

Os invisíveis

“Os Invisíveis”7 é uma obra brasileira de ficção com inspiração realista, escrita por Tino

Freitas e ilustrada por Renato Moriconi. De forma sensível, com um texto sucinto e elementos

visuais marcantes, o livro trata da invisibilidade social - uma questão complexa no contexto da

sociedade brasileira. A narrativa conta a história de um menino (personagem protagonista) descrito

como tendo superpoderes pois enxergava pessoas que seus familiares não viam: “Era uma vez um

menino com um superpoder: na sua infância, só ele via os invisíveis...” O garoto enxergava os

invisíveis em diferentes lugares: nas esquinas, na saída do mercado, no meio da rua. E em alguns

momentos, também se sentia um deles: “Ás vezes, ele tinha impressão de que também era

invisível”, quando o pai ou a mãe ficavam focados em tarefas no computador ou em frente à TV.

Com o passar do tempo, à medida em que cresceu e tornou-se adulto, o menino passa a não

perceber o carteiro, o lixeiro, o varredor de rua, o artista de rua e outras figuras que estão à margem

da sociedade, excluídas: “E assim o tempo passou... ele entrou para a faculdade... conseguiu um

emprego...e se casou... E o menino envelheceu esquecendo que um dia teve um superpoder”. No

livro, a cor laranja representa o ângulo de visão do menino, sendo que a presença inicial (e posterior

ausência) dessa cor ao longo das páginas marca a passagem da infância para a vida adulta, ou seja:

a sensibilidade, pureza e humanidade da infância vão dando lugar à frieza e insensibilidade da vida

adulta, quando a indiferença de "estar acostumado" torna as pessoas invisíveis em meio à vida

cotidiana.

Em relação ao tema, o autor afirma que as questões sociais são uma preocupação em seus

livros e que, no caso de “Os Invisíveis”, o livro mostra que a vida não é só alegria mas tem tristeza

também, pois perder é algo que faz parte do cotidiano. Ele acredita que a fantasia seja importante,

mas que trabalhar com a realidade é um outro caminho possível para a literatura infantil, “para que

a criança enxergue o que leu em seu cotidiano e se relacione com isso” (FREITAS, 2013). Portanto,

apesar de ser uma obra de ficção o livro possui essa nítida inspiração realista que incorpora

7 Obra selecionada para integrar o acervo do PNBE 2014 na categoria Anos Iniciais do Educação Fundamental.

6

elementos fantásticos na narrativa (através dos superpoderes do protagonista) - o que Colomer

classificaria como uma “fantasia moderna”. Segundo a autora, um dos temas da ficção realista

infanto-juvenil (proposta por Huck et al) é a construção da própria identidade - o processo de

crescimento pessoal, da infância à vida adulta que se subdivide na vida em família, a vida com os

demais e amadurecimento pessoal (COLOMER, 2003, p. 196).

4. Desenhos, relatos, marcas: um olhar sobre o aparecimento da mídia

Ao lançar meus olhos e ouvidos para identificar o aparecimento da mídia nas produções e

relatos, é necessário esclarecer que compreendo por “referências midiáticas”, nesse trabalho, as

falas, os desenhos e os registros escritos que envolvem a mídia. Nesse sentido, serão consideradas

como referências midiáticas, tanto as menções feitas à chamada “velha mídia”, ou seja, aos

produtos midiáticos dos meios tradicionais de comunicação (TV, rádio, impresso) quanto as

menções à “nova mídia” (internet e redes sociais). A seguir, descrevo brevemente as atividades

realizadas pelos alunos nas sessões de trabalho sobre os livros “A Caminho de Casa” e “Os

Invisíveis”, e proponho uma abordagem de caráter interpretativo-qualitativo, a partir da amostra

de alguns trabalhos previamente selecionados.

A Caminho de Casa

A proposta de trabalho com o livro “A Caminho de Casa” envolveu basicamente a

produção de desenhos que buscavam relacionar a rotina da personagem protagonista do livro com

o cotidiano das crianças. Na parte 1, pediu-se que os alunos desenhassem o que fazem quando

chegam em casa (poderiam ser várias atividades, assim como as da personagem do livro), e as

descrevessem brevemente. Na parte 2, foi solicitado que desenhassem o caminho que eles fazem

a pé da escola até suas casas, colocando detalhes e pontos de referência. Por fim, pedia-se que os

alunos pensassem em uma figura protetora que pudesse acompanhá-los nesse caminho de volta

para casa, desenhassem e escrevessem de quem se trata.

As referências midiáticas estão mais presentes na parte 1, quando os alunos desenhavam o

que fazem quando chegam em casa. Em linhas gerais, na grande maioria dos desenhos as rotinas

em casa compreendem brincar, tomar banho, tomar café e assistir televisão (não necessariamente

nessa ordem). É importante assinalar que, nas ilustrações originais da obra, não havia nenhuma

7

representação de TV. Assistir televisão (e aqui refiro-me especificamente aos canais de TV

aberta8) revelou-se como uma prática que faz parte do cotidiano dessas crianças dentro de casa,

sendo incorporado como um hábito de lazer entre as demais atividades.

Fig. 1: A TV na rotina das crianças

Não à toa a Pesquisa9 Brasileira de Mídia 2016, que divulga hábitos de consumo de mídia

pela população, revela que a TV é o meio preferido de 63% dos brasileiros para se informar. No

Rio Grande do Sul, 59% da população também utiliza a TV como o principal meio de

comunicação. Considerando o recorte proposto para o texto e a singela amostra de trabalhos

selecionados, posso dizer que aqui nesse caso não é diferente, pois a TV aparece como prática

cotidiana de lazer na maior parte das produções observadas.

Para além da televisão como meio preferencial, outro aspecto chama a atenção: a referência

a telenovelas brasileiras disponíveis nos canais de TV aberta, como por exemplo, “Cheias de

Charme” (Globo) e “Cúmplices de um Resgate”10 (SBT). O destaque fica por conta da telenovela

8 TV aberta é um serviço oferecido gratuitamente à população pelas emissoras de televisão abertas (Band, Globo,

Record, Record News, Rede TV, Rede Vida, SBT, TV Aparecida, TV Brasil, TV Cultura, TV Gazeta, etc.). 9 Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE) e divulgada em 24 de janeiro de 2017

pela Secretaria de Comunicação Social (SECOM) do Governo Federal. Disponível em:

http://www.pesquisademidia.gov.br/#/Geral/details-917. 10 Telenovela produzida e exibida originalmente pelo SBT, entre agosto de 2015 e dezembro de 2016, com 357

capítulos. É uma adaptação da telenovela mexicana Cómplices al rescate, que também fora exibida pelo SBT. A

exibição do remake infantojuvenil buscou manter o sucesso obtido pela emissora nas antecessoras, Carrossel e

Chiquititas. A atriz Larissa Manoela interpreta as personagens principais Manuela e Isabela, numa trama que narra o

cotidiano de duas irmãs gêmeas que trocam de lugar. “Cúmplices” foi sucesso de audiência no SBT e nas redes sociais,

8

“Cheias de Charme”, que foi bastante referida (através de dizeres nas telas da TV) e somente por

meninas (Fig.1). Vale observar que, quando as crianças produziram os trabalhos, essa novela -

originalmente produzida e exibida pela Rede Globo em 2012 - estava sendo reprisada no chamado

“Vale a pena ver de novo11”, sendo que o horário do término das aulas e o da reprise eram próximos

- o que sugere que as meninas assistiam a “Cheias de Charme” assim que chegavam em casa.

A telenovela, enquanto um programa de audiência compartilhado por milhões de

brasileiros em suas vidas cotidianas, é definida por Barbero como um “relato de uma modernidade

tardia”, que “mistura a sagacidade do mercado – no momento de contar histórias que envolvem as

maiorias – com a persistência de sua matriz popular, ativadora de competências culturais inerentes

a ela” (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 15).

Lembro Barbero para salientar que “Cheias de Charme” foi uma telenovela que obteve

sucesso de audiência dando protagonismo às classes populares em uma época em que o Brasil

vivia um momento econômico de ascensão da classe C, mais conhecida como “classe média”. A

trama conta a história de três empregadas domésticas que se aproximam para lutar por seus direitos,

ficam amigas e formam um trio musical de sucesso. Um ponto marcante da novela foi ter

conseguido produzir no mundo real o sucesso do grupo ficcional “As Empreguetes” por meio da

utilização de estratégias transmidiáticas. Atenta ao contexto da convergência de mídias no qual

vivemos, os produtores de “Cheias de Charme” fizeram fluir os conteúdos de uma mídia para a

outra, no que Jenkins (2009) denomina “narrativa transmídia”, permitindo assim que o universo

ficcional da novela ganhasse continuidade em outras mídias (BIEGING, 2012, p. 61).

Fig.2: “Cheias de Charme” nos desenhos das telas dos aparelhos de TV.

com o seu canal de vídeos no Youtube tendo obtido mais de 1,2 bilhão de visualizações. Também teve mais de 100

produtos licenciados e originou um musical com o elenco da novela. 11 Sessão de reprises de telenovelas, transmitida pela Rede Globo desde maio de 1980, sendo o primeiro programa

de reprises nas tardes da emissora, de segunda a sexta-feira.

9

Outras produções televisivas que também foram registradas nos trabalhos das crianças

foram os seriados Chaves (SBT) e Detetives do Prédio Azul (TV Brasil), porém em número ínfimo

em comparação às telenovelas. Se as meninas revelaram em sua maioria a preferência por assistir

à televisão e suas telenovelas, os meninos, por sua vez, mostraram hábitos um pouco diferentes:

além de alguns jogarem bola quando chegam em casa, eles também costumam utilizar outros

artefatos midiáticos e tecnológicos – tais como videogame, celular e tablet. Aqui, considero esses

três artefatos tecnológicos como referências midiáticas, porque na contemporaneidade são

considerados e utilizados como mídia de entretenimento e conhecimento. Aliás, os jogos

eletrônicos tem sido objeto de estudo com aproximação ao campo da comunicação pelas

características midiáticas de linguagem, narrativa e interatividade dos games (PINHEIRO, 2004).

Fig. 3: Videogame, tablet e celular nas referências dos meninos.

10

Na Fig. 5, na imagem da esquerda um dos meninos se desenhou jogando videogame,

assistindo televisão, jogando bola e tomando banho. Já na imagem da direita, vemos outro desenho

que mostra o menino tomando banho, depois deitado no quarto mexendo no celular e olhando

televisão, tomando café e dormindo. O aparecimento de tais mídias na rotina das crianças e a

habilidade e intimidade dos pequenos com essas novas tecnologias nos diz algo sobre como a

cultura da mídia está inscrita nas suas vidas, produzindo e refletindo um determinado tipo de

infância midiatizada, que emerge atravessada por diferentes processos midiáticos e, em alguma

medida, independe das diferentes capacidades econômicas das famílias. O uso de dispositivos

móveis como os aparelhos de celular e tablets permitem através da internet que essas crianças

tenham acesso a todo um universo que passa por aplicativos, vídeos, games, sites de

compartilhamento e redes sociais - um ambiente comunicacional que é tão múltiplo quanto

complexo.

Os Invisíveis

Como vimos, a temática da invisibilidade social é a marca deste livro; por isso a proposta

de atividade com os alunos girou em torno desse ponto. A ideia, neste caso, foi articular as

vivências do personagem menino, o protagonista que via os invisíveis, com as experiências

cotidianas das crianças - tanto no sentido de elas retratarem cenas com pessoas invisíveis quanto

de revelarem situações em que elas mesmas sentiram-se dessa forma. Na parte 1, os alunos

deveriam desenhar duas cenas, em dois lugares diferentes, onde existissem pessoas “invisíveis” ou

“quase invisíveis”. Na parte 2, o pedido foi para que narrassem, por escrito, alguma vez em que se

sentiram invisíveis; na parte 3, solicitou-se desenhassem uma pessoa quando criança e quando

adulta, escrevendo o que a pessoa perdeu e ganhou ao ter passado da infância para a vida adulta.

Durante a sessão de leitura, ao serem provocados a falar sobre alguma ocasião em que se

sentiram invisíveis, as crianças deram inúmeros relatos, entre eles alguns que se destacaram pela

inconformidade com a falta de atenção dos pais. Os motivos foram diversos, por exemplo: um dos

meninos falou sobre o pai, afirmando que “ele fica conversando com os adultos, quando se junta

com os amigos dele ele não dá atenção nunca mais pra mim...”. Outra menina revelou que a mãe

em uma ocasião ficou conversando com uma amiga “fofocando da vida dos outros... aí eu chamei

ela: - Mãe, vamos brincar? E ela não me ouvia, continuou conversando”. Já nos registros da

11

atividade realizada por escrito, surgiu um relato incomodado com o tempo em que a mãe fica

conectada no celular. Uma das crianças escreve assim: “Olha, quase todo o dia minha mãe fica no

celular, quando eu chamo ela diz que já vai aí eu espero e ela não vem. Chego de um passeio ou

da escola com ela, e ela vai direto para o celular. Eu vivo assim”. A riqueza de um relato como

esse é representativa de um cenário que nos indica o quanto a cultura digital está impregnada na

vida das famílias, e o quanto essa realidade parece interferir no convívio familiar e na rotina de

uma criança em relação às suas necessidades/expectativas por atenção.

Jenkins (2009) ajuda a pensar nessa questão quando enfatiza que estamos vivendo a cultura

da convergência e da conexão, numa profunda transição no panorama da comunicação que não se

resume a aspectos tecnológicos de evolução dos suportes e meios de comunicação. Segundo ele,

esse novo contexto comunicacional representa uma transformação cultural “à medida que

consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a

conteúdos midiáticos dispersos” (27-28). Ou seja: temos uma nova configuração que acontece a

partir de fluxos de comunicação e num ambiente onde as novas mídias (internet e redes sociais) e

as mídias tradicionais (rádio, TV, jornal) se complementam e muitas vezes se chocam. E como

foi possível perceber, as crianças não estão à parte desse contexto de transformações, pelo contrário

- estão imersas nele e dele não escapam.

5. Dizeres finais

Este se configurou como um primeiro movimento de aproximação e exploração de uma

parte dos dados capturados preliminarmente através da pesquisa de literatura infantil em curso.

Também destaco que este texto não ofereceu respostas prontas e conclusivas sobre as propriedades

ou características de uma infância pós-moderna; tampouco pretendeu revelar o papel das mídias

nesse processo - que é um tanto complexo. A proposta aqui foi apresentar e discutir alguns aspectos

da presença das mídias em um determinado tipo de infância escolarizada de crianças de classes

populares, para propor reflexões e lançar questões que talvez possam contribuir para pensarmos

além.

Após a análise dos materiais selecionados para este trabalho, é possível traçar referências

recorrentes que podem ser representativas de uma infância pós-moderna – neste recorte específico.

Assim, ficou evidente que a TV aberta é uma referência midiática ainda muito presente na vida

12

das crianças que fazem parte da pesquisa. Para as meninas, as telenovelas são grandes

companheiras. Para os meninos, além de algumas séries de TV, também ganha destaque o uso do

celular e do tablet como preferências midiáticas. Em relação aos pais, identificaram-se alguns

relatos sobre a necessidade de atenção frente ao tempo que eles passam usando o celular e as redes

sociais. É nesse sentido que penso na potencialidade e na produtividade de uma experiência de

literatura infantil para manifestar indícios que permitem pensar na hipótese de que estaria em

constituição aquilo que estou denominando de “infância midiatizada”.

Referências

BIEGING, Patricia. Transmidiação como Ferramenta Estratégica: Cheias de Charme Explora uma

Nova Forma de Fazer Telenovela. Novos Olhares: Revista sobre Práticas de Recepção a Produtos

Midiáticos. São Paulo, v.2, nº2 (2012), p. 60-71, 2013.

BRAGA, J.L. 2002. Midiatização: a complexidade de um novo processo social. Entrevista

concedida a Graziela Wolfart. Revisa do Instituto Humanitas Unisinos (digital), n. 289, ano IX.

Disponível em

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2477&seca

o=289

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