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ROMAIN PUÉRTOLAS A INCRÍVEL VIAGEM DO FAQUIR QUE FICOU FECHADO NUM ARMÁRIO IKEA Tradução de Isabel St. Aubyn Oo

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Page 1: A INCRÍVEL VIAGEM DO FAQUIR QUE FICOU FECHADO NUM … · temente tão à vontade em inglês como uma vaca (sagrada) numa pista de patinagem. – Just Ikea. ... dirigindo um gesto

ROMAIN PUÉRTOLAS

A INCRÍVEL VIAGEM DO FAQUIR QUE

FICOU FECHADO NUM ARMÁRIO

IKEATradução de Isabel St. Aubyn

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Para Léo e Éva, as minhas mais admiráveis obras.Para Patricia, a minha mais admirável viagem.

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No fundo, creio que a terra é redonda,Por uma única boa razão…

Depois de darmos a volta ao mundo,Tudo o que queremos é ir para casa.

Orelsan

Um coração é de certo modo um grande armário.Ajatashatru Larash Patel

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A primeira palavra que o indiano Ajatashatru Larash Patel pro-feriu ao chegar a França foi uma palavra sueca. O cúmulo!

Ikea.Eis o que disse em voz baixa.Depois, fechou a porta do velho Mercedes vermelho e aguardou,

mãos pousadas nos joelhos sedosos como um menino bem-com-portado.

O  motorista de táxi, duvidando de ter ouvido bem, voltou-se para o cliente, o que fez estalar as pequenas bolas de madeira que cobriam o estofo do assento.

Viu no banco de trás do veículo um homem de meia-idade, alto, seco e nodoso como uma árvore, rosto moreno atravessado por um gigantesco bigode. Pequenas marcas, sequelas de uma acne viru-lenta, salpicavam-lhe as faces cavadas. Exibia vários anéis nas ore-lhas e nos lábios, como se tivesse querido fechar tudo aquilo depois de usar, em jeito de fecho-éclair. Oh, que bela ideia!, pensou Gus-tave Palourde, que viu naquilo um remédio fantástico para a cons-tante tagarelice da mulher.

O  fato de seda cinzenta e  brilhante do homem, a  gravata ver-melha, que não se dera ao trabalho de apertar, prendendo-a apenas com um alfinete, e a camisa branca, tudo muitíssimo amarrotado, testemunhavam numerosas horas de avião. Mas, estranhamente, não transportava bagagem.

Ou é hindu, ou sofreu um forte traumatismo craniano, pensou o motorista ao ver o grande turbante branco que envolvia a cabeça

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do cliente. Porém, o rosto moreno e atravessado por um gigantesco bigode inclinava-o mais a considerá-lo hindu.

– Ikea?– Ikea – repetiu o indiano, arrastando a última vogal.– Qual? Hum… What Ikea? – balbuciou Gustave, que se sentia

tão à vontade em inglês como um cão numa pista de patinagem.O  passageiro encolheu os ombros como para dizer que se es-

tava nas tintas. Qualquerikea, repetiu ele. Poucoimportaqualarma-zéméomelhorparasiqueéoparisiense. Foi mais ou menos isto que o condutor ouviu, uma série confusa de sons palatais incompreensí-veis. Mas, sons palatais ou não, em trinta anos de carreira nos Taxis Gitans, era sem dúvida a primeira vez que um cliente acabado de desembarcar do terminal C2 do aeroporto Charles de Gaulle lhe pedia que o  conduzisse a  um armazém de móveis. De facto, não tinha ideia de que a Ikea tivesse aberto recentemente uma cadeia de hotéis com o mesmo nome.

Não era a primeira vez que Gustave recebia um pedido insólito, mas este atingia os píncaros da lua. Se o  tipo vinha realmente da Índia, então, tinha pago uma pequena fortuna e passado oito horas num avião, tudo isto com o único objetivo de ir comprar prateleiras Billy ou uma poltrona Poäng. Caramba! Ou, antes, incrível! Tinha de apontar este encontro no seu livro de ouro, entre Demis Roussos e Salman Rushdie, que um dia lhe haviam dado a honra de sentar os augustos traseiros nos estofos leopardo do seu táxi, e sobretudo de não se esquecer de contar a história à mulher, à noite, durante o jantar. Como, em geral, não tinha nada a dizer, era a mulher, cujos lábios carnudos ainda não se encontravam equipados com um ge-nial fecho-éclair indiano, que monopolizava a conversa à mesa, en-quanto a filha enviava SMS cheias de erros de ortografia a jovens da sua idade que nem sabiam ler. Pelo menos desta vez algo mudaria.

– OK!O  taxista cigano, que passara os últimos três fins de semana

a percorrer com as damas em causa os corredores azuis e amare-los do armazém sueco a fim de mobilar a nova caravana familiar, sabia perfeitamente que a Ikea mais próxima era a de Roissy Paris Nord, apenas a €8,25 de distância. Optou, pois, pela de Paris Sud

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Thiais, situada na direção oposta, no outro lado da capital, a  três quartos horas do local onde se encontravam. Afinal, o turista que-ria um armazém Ikea. Não especificara qual. E, depois, com aquele elegante fato de seda e gravata, devia tratar-se de um riquíssimo in-dustrial indiano. Não discutiria com certeza umas quantas dezenas de euros, não é verdade?

Satisfeito consigo mesmo, Gustave calculou rapidamente quanto lhe renderia a corrida e esfregou as mãos. Depois premiu o botão do taxímetro e arrancou.

Definitivamente, o dia começava bem.

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Faquir de profissão, Ajatashatru Larash (pronunciar Lá Estás Tu na Laracha) decidira viajar incógnito pela primeira vez para a  Europa. Para a  ocasião, trocara o  «uniforme», que consis-tia numa espécie de tanga que fazia lembrar uma enorme fralda de recém-nascido, por um fato de seda brilhante e  uma gravata, alugados por uma bagatela a  Dhjamal (pronunciar Já mal), um velho da aldeia que, na juventude, fora representante de uma céle-bre marca de champô e ainda mantinha um bonito cabelo grisalho encaracolado.

Ao envergar semelhante panóplia, que conservaria nos dois dias que duraria a  escapadela, o  indiano desejara secretamente ser considerado um riquíssimo industrial indiano, a ponto de não vestir roupa confortável, entenda-se um fato de treino e sandálias, para um trajeto de autocarro de três horas e um voo de oito horas e quinze minutos. Afinal, fazia parte do seu ofício de faquir passar por aquilo que não era. Por razões religiosas, limitara-se a não tirar o  turbante. Por baixo, crescia-lhe o  cabelo, que estimava ter hoje quarenta centímetros de comprimento e uma população de trinta mil almas, incluindo micróbios e piolhos.

Ao entrar no táxi naquele dia, Ajatashatru (pronunciar Aja de Torso Nu) compreendeu imediatamente que a  sua indumentária causara efeito junto do europeu, apesar de nem ele, nem o primo terem conseguido ajeitar o nó da gravata, nem mesmo depois das explicações deveras claras embora tremidas de um Dhjamal com Parkinson, tendo-a, portanto, prendido com um alfinete de ama,

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pormenor de somenos, que passaria despercebido no meio de uma elegância tão gritante.

Como não bastasse uma olhadela pelo retrovisor para contem-plar tamanha beleza, o francês voltara-se no assento, fazendo estalar ruidosamente os ossos do pescoço como quem se prepara para exe-cutar um número de contorcionismo.

– Ikea?– Ikeaaa.– Qual? Hum… What Ikea?  – balbuciara o motorista, aparen-

temente tão à vontade em inglês como uma vaca (sagrada) numa pista de patinagem.

– Just Ikea. Doesn’t matter. The one that better suits you. You’re the Parisian.

O motorista esfregara as mãos, sorrindo, antes de arrancar.Mordeu o  isco, pensara Ajatashatru (pronunciar Ainda Estás

Cru), satisfeito. Enfim, a sua indumentária cumpria às mil maravi-lhas a missão desejada. Com um pouco de sorte, e se não precisasse de abrir a boca muitas vezes, passaria por um autóctone.

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Ajatashatru era célebre em todo o  Rajastão por engolir sabres desmontáveis, comer estilhaços de vidro de açúcar sem calorias, es-petar agulhas falsas nos braços e toda uma série de outros truques de que só ele, além dos primos, conhecia o segredo, e a que chamava alegremente poderes mágicos, para deleite das multidões.

Assim, chegado o momento de pagar a conta do táxi, que per-fazia €98,45, o nosso faquir estendeu a única nota de que dispunha para toda a estadia, uma nota falsa de 100 euros, impressa só de um lado, dirigindo um gesto descontraído ao condutor no sentido de que guardasse o troco.

No momento em que este enfiava a nota na carteira, Ajatashatru distraiu-o apontando para as enormes letras amarelas I-K-E-A que encimavam orgulhosamente o  edifício azul. O  cigano ergueu os olhos ao céu durante o tempo suficiente para que o cliente pudesse puxar pelo elástico invisível que unia o dedo mínimo à nota verde. Numa fração de segundo, o dinheiro regressou às mãos do proprie-tário de origem.

– Ah, aqui tem! – disse o motorista, julgando a nota bem guar-dada na carteira. – Fique com o número da minha agência. No caso de precisar de um táxi para o regresso. Também há condutores de carrinhas, conforme a carga. Mesmo desmontados, os móveis ocu-pam muito espaço, pode crer.

Nunca soube se o  indiano compreendera alguma coisa do que ele acabara de dizer. Remexeu no porta-luvas e pegou num cartão brístol, no qual se via uma dançarina de flamenco abanando-se com

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o  célebre tricórnio de plástico branco pousado no tejadilho dos táxis. Entregou-lho.

– Merci – agradeceu o estrangeiro em francês.Com o Mercedes vermelho dos Taxis Gitans fora de vista, sem

que o  ilusionista, habituado a  fazer desaparecer apenas elefantes da Índia de orelhas pequenas, tivesse de algum modo interferido, Ajatashatru guardou o cartão no bolso e examinou o imenso entre-posto comercial que se estendia à sua frente.

Em 2009, a Ikea desistira da ideia de abrir os primeiros armazéns na Índia, pois as leis locais obrigavam os dirigentes suecos a parti-lhar a  gerência dos estabelecimentos com diretores de nacionali-dade indiana, acionistas maioritários, ainda por cima, o que irritara o gigante nórdico. Não partilhava o quinhão com ninguém, muito menos com encantadores de serpentes de bigode e adeptos de co-médias musicais kitsch.

Paralelamente, o líder mundial do pronto-a-mobilar criara uma parceria com a Unicef, a fim de lutar contra o trabalho e a escrava-tura infantis. O projeto, que implicava quinhentas aldeias do Norte da Índia, permitira a  construção de vários centros de saúde, de nutrição e escolas em toda a região. Fora numa destas últimas que Ajatashatru aterrara de paraquedas depois de ter sido despedido, com grande prejuízo e aparato, e logo na primeira semana de tra-balho, da corte do marajá Lhegre Singh Lhe (pronunciar Alegre sem Ele), que o empregara como faquir e bobo. Tivera o azar de roubar um pedaço de pão de sésamo, manteiga sem colesterol e dois cachos de uvas biológicas. Definitivamente, o azar fora estar com fome.

Como castigo, começaram por lhe rapar o bigode, já de si punição suficiente (embora tivesse surtido o efeito de o rejuvenescer); depois, deram-lhe a escolher entre trabalhar com crianças, num projeto de prevenção contra o roubo e a delinquência nas escolas, e cortarem--lhe a mão direita. Afinal, um faquir não temia a dor, nem a morte…

Para grande surpresa do público, habituado a assistir espetácu-los em que o nosso homem se mutilava de todas as formas e feitios (espetos de carne nos braços, garfos nas faces, sabres no ventre), Ajatashatru declinara a oferta de amputação e decidira-se pela pri-meira opção.

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– O senhor sabe dizer-me que horas são, por favor?O indiano sobressaltou-se. Um quadragenário de fato de treino

e sandálias parara à sua frente, não sem dificuldade, com um carro de compras carregado com uma boa dúzia de caixas de cartão que só um campeão de Tetris, ou um psicopata, poderia ter arrumado daquela maneira.

Para Ajatashatru, a  pergunta assemelhara-se a  qualquer coisa como: Uzenorzabdizermasoraspofavor.

Em suma, nada de compreensível e que só poderia originar da sua parte uma resposta como: what?

O  homem, vendo que se encontrava perante um estrangeiro, bateu no pulso esquerdo com o  indicador direito. O  faquir com-preendeu imediatamente, ergueu os olhos para o  céu e,  habi-tuado a  consultar o  sol indiano, indicou a  hora ao francês com uma diferença de três horas e  trinta minutos. O  interlocutor, que compreendia inglês melhor do que falava, apercebeu-se subita-mente de que estava atrasadíssimo para ir buscar os filhos à escola no intervalo do almoço e retomou a correria louca em direção ao automóvel.

Vendo as pessoas entrarem e saírem do armazém, o indiano per-cebeu que muito poucos clientes, talvez nenhum, se encontrava ves-tido como ele, de fato de seda brilhante. E ainda menos de turbante. Como efeito camaleão, falhara. Esperava ao menos que a sua mis-são não ficasse inteiramente comprometida. A versão fato de treino e sandálias teria sido muito melhor. Logo que regressasse, di-lo-ia ao primo Jamlidanup (pronunciar Já Bebi Danup). Fora ele que in-sistira naquela indumentária.

Ajatashatru observou por alguns instantes as portas de vidro que abriam e  fechavam à  sua frente. Toda a  experiência que tinha do modernismo resultava dos filmes de Hollywood e  de Bollywood, vistos na televisão da mãe adotiva, Sihringh (pronunciar Seringa, ou The Ring para os mais anglófilos). Era deveras surpreendente ver a que ponto estes artifícios, que ele considerava joias da tecno-logia moderna, eram de uma banalidade aflitiva para os europeus, que já nem lhes ligavam. Se houvesse este tipo de instalação em Kishanyogoor (pronunciar Quiche de iogurte), contemplaria sempre

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com a mesma emoção as portas de vidro deste templo da tecnolo-gia. Os franceses não passavam de crianças mimadas.

Um dia, tinha ele apenas dez anos, muito antes de os primeiros sinais de progresso terem aparecido na sua aldeia, um aventureiro inglês dissera-lhe, mostrando-lhe um isqueiro: «Toda a tecnologia avançada é indissociável da magia.» A princípio, o miúdo não com-preendera. «Significa muito simplesmente», explicara-lhe então o homem, «que coisas banais para mim podem parecer magia para ti, tudo depende do grau de tecnologia da sociedade em que estás inserido». Pequenas centelhas escaparam-se então no polegar do es-trangeiro antes de surgir uma bela chama azul, quente e brilhante. Em troca de um estranho favor do qual falaremos mais adiante, o homem oferecera-lhe o objeto mágico ainda desconhecido na pe-quena aldeia perdida na orla do deserto de Thar (do tártaro) e com o  qual Ajatashatru aperfeiçoara os pequenos passes de mágica e agudizara a vontade de um dia se tornar faquir.

Na véspera, ao entrar no avião, vivera de certo modo o mesmo sentimento. A viagem fora uma experiência incrível para ele, que nunca descolara da terra das vacas (sagradas) mais alto do que lhe permitia o mecanismo habilmente dissimulado por baixo das suas nádegas, por ocasião das suas inúmeras levitações públicas, isto é, vinte centímetros, quando tudo se encontrava bem oleado. Pas-sara a  maior parte da noite a  olhar pela janela, boquiaberto e  de queixo caído.

Por fim, depois de muita meditação no limiar das portas auto-máticas, o  indiano decidiu-se a  entrar. «Que paradoxo!», pensou ele, pousando o  olhar no espaço infantil que se encontrava à  en-trada. «A Ikea constrói escolas e centros para órfãos na Índia, mas ainda não construiu um único armazém de mobiliário.»

Este pensamento recordou-lhe que fizera uma viagem de mais de dez horas, incluindo autocarro e avião, para chegar ali e que já não lhe restava muito tempo para cumprir a  sua missão. O avião partiria no dia seguinte. Estugou o passo e subiu as imensas escadas cobertas de linóleo azul que conduziam ao piso superior.

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