a (in)compatibilidade do incidente de resoluÇÃo de

321
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Direito – Programa de Pós-Graduação DANIEL CARNEIRO MACHADO A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS COM O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO: A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA DO JUIZ E DAS PARTES NA CONSTRUÇÃO DO PROVIMENTO JURISDICIONAL Belo Horizonte 2016

Upload: others

Post on 21-Jul-2022

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Direito – Programa de Pós-Graduação

DANIEL CARNEIRO MACHADO

A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

DEMANDAS REPETITIVAS COM O MODELO

CONSTITUCIONAL DE PROCESSO:

A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA DO JUIZ E DAS PARTES NA

CONSTRUÇÃO DO PROVIMENTO JURISDICIONAL

Belo Horizonte

2016

Page 2: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

DANIEL CARNEIRO MACHADO

A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

DEMANDAS REPETITIVAS COM O MODELO

CONSTITUCIONAL DE PROCESSO:

A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA DO JUIZ E DAS PARTES NA

CONSTRUÇÃO DO PROVIMENTO JURISDICIONAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Processual. Orientador: Professor Doutor Fernando Gonzaga Jayme

Belo Horizonte

2016

Page 3: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

Machado, Daniel Carneiro M149a A (in)compatibilidade do incidente de resolução de demandas

repetitivas com o modelo constitucional de processo: a participação democrática do juiz e das partes na construção do provimento jurisdicional / Daniel Carneiro Machado. – 2016.

Orientador: Fernando Gonzaga Jayme Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito.

1. Direito processual - Teses 2. Incidente processual 3. Demanda judicial I. Título

CDU (1976) 347.922

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Juliana Moreira Pinto – CRB 6/1178

Page 4: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

DANIEL CARNEIRO MACHADO

A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS

REPETITIVAS COM O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO :

A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA DO JUIZ E DAS PARTES NA CONSTRUÇÃO DO

PROVIMENTO JURISDICIONAL

Tese apresentada e aprovada junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte das exigências para a obtenção do grau de Doutor em Direito.

Belo Horizonte, 26 de outubro de 2016. Componentes da Banca Examinadora:

________________________________________ Professor Doutor Fernando Gonzaga Jayme

Orientador Universidade Federal de Minas Gerais

_________________________________________

Professor Doutor Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves Membro titular

Universidade Federal de Minas Gerais

_________________________________________

Professor Doutor João Alberto de Almeida Membro titular

Universidade Federal de Minas Gerais

_________________________________________ Professor Doutor Edilson Vitorelli Diniz Lima Membro titular

Universidade Presbiteriana Mackenzie

_________________________________________

Professor Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Membro titular Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

_________________________________________ Professor(a) Doutor(a) Membro suplente

Page 5: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus por trilhar o meu caminho para a conquista de mais uma vitória na

minha vida profissional e acadêmica. O sonho da conclusão do Doutorado na respeitada

Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais se torna realidade.

À minha família, minha fortaleza e fonte de inspiração. Minha mãe Lúcia e meus irmãos,

meus incentivadores. Minha esposa Constança, pelo amor e apoio sempre incondicional, pela

compreensão nas minhas ausências e por ouvir minhas incertezas ao longo da pesquisa

sempre me ajudando a superá-las.

Aos meus filhos Davi e Matheus, por serem o meu maior tesouro.

Ao prezado professor e orientador Fernando Jayme, pelas valiosas críticas e sugestões feitas

nas aulas da Pós-Graduação quando já estudávamos o projeto do NCPC e, principalmente,

durante a realização deste trabalho.

Ao Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves, exemplo de magistrado e professor, pela

disponibilidade e paciência em todos os momentos em que precisei e pelas sugestões que

contribuíram muito para o aperfeiçoamento do trabalho.

Meus sinceros agradecimentos.

Page 6: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

RESUMO

A presente pesquisa analisa de forma crítica o Incidente de Resolução de Demandas

Repetitivas (IRDR) instituído pela Lei 13.105, de 16 de março de 2015, demonstrando sua

incompatibilidade com o modelo constitucional de processo civil brasileiro. O referido

incidente coletivo dotado de eficácia vinculante tem o propósito de trazer celeridade e

uniformidade à interpretação de questão de direito repetitiva em diversas demandas. O estudo

aborda a natureza jurídica do incidente, as hipóteses de cabimento, a legitimidade, o

procedimento, e os efeitos do julgamento, com uma preocupação voltada à forma de

participação das partes afetadas, sua representatividade adequada, além da repercussão na

atuação jurisdicional do juiz de primeira instância. Para tanto, realizou-se o necessário

confronto entre o incidente coletivo e a garantia de participação democrática no processo a

partir do conceito do contraditório substancial, adotando-se uma visão constitucional da teoria

de Fazzalari, para se demonstrar a importância da participação das partes e também do juiz na

construção do provimento estatal. O tema percorreu, ainda, o estudo do modelo único

constitucional de processo civil italiano de Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera e, ainda, do

processo justo na perspectiva de Comoglio, perfeitamente aplicáveis ao Brasil em razão das

garantias processuais da Constituição de 1988. Sustenta-se que o novel instituto transforma o

contraditório substancial em uma mera ficção jurídica para se privilegiar a celeridade na

uniformização da interpretação de questão de direito objeto de vários processos. A novel

legislação não assegura o controle da representação adequada das partes que serão afetadas

pelo julgamento e o direito de autoexclusão dos efeitos do julgamento, caracterizando

restrição desproporcional ao acesso à justiça. Finalmente, a pesquisa demonstra que os

tribunais ordinários não podem ser considerados “Cortes de Precedentes”, sendo inadequada a

definição do julgamento do IRDR como um precedente vinculante. Somente as Cortes

Supremas, ou seja, as cortes de vértice na organização do Poder Judiciário, devem exercer o

papel de “Corte de Precedente”. Demonstra também, à luz da jurisprudência do STF, que a lei

ordinária não pode atribuir força vinculante a julgamento de qualquer tribunal, mostrando-se

incompatível com a independência judicial, garantia indispensável ao modelo constitucional

de processo.

Palavras-chave: incidente coletivo; demandas repetitivas; contraditório substancial;

independência judicial; processo constitucional

Page 7: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

ABSTRACT

The present research critically examines the Repetitive Demands Incident Resolution

established by Law 13105; March 16th 2015, showing its incompatibility with the

constitutional model of Brazilian civil procedure. This class incident endowed with binding

effect has the purpose of bringing celerity and uniformity to the interpretation of the repetitive

matter of law in many demands. This research addresses the juridical nature of the incident,

the suitable hypothesis, the legitimacy, the procedure and its trial effects, focused on the way

that affected parts participate as well as their fair representativeness in addition to the impact

on jurisdictional first instance judge work. Therefore, the study has addressed the necessary

conflict between the mass incident and the democratic participation guarantee, parting from

the adversary proceeding´s concept, considering Fazzalari’s theory constitutional view, in

order to demonstrate the importance of the interested parts’ participation as well as the

judge´s role in the construction of the state provision. The study focus on Italo Andolina and

Giuseppe Vignera‘s Italian civil procedure unique constitutional model, yet on Comoglio’s

perspective of the fair process, perfectly suitable to Brazil due to its constitutional guarantees.

The study supports the idea that the new institute transforms the adversary proceeding in mere

legal fiction in order to guarantee the celerity on the standard interpretation of a legal matter

discussed in many actions. The new legislation does not ensure control of the suitable

representation of the parties that will be affected by the trial and the right to opt-out of its

effects, featuring unproportional restriction on access to Justice. Finally, the research shows

that the ordinary courts cannot be considered precedent cuts and also that it is inadequate to

define the IRDR as a bind precedent. Only the Supreme Courts, that are the higher level in

judiciary organization, should play the role of the “Court of Precedent”. It also shows that,

according to the Supreme Court’s precedents in Brazil, the common law cannot establish

binding force to any court judgment, being incompatible with the judicial independence,

which is an essential guarantee of the constitutional process model.

Keywords: class incident; repetitive demands; adversary proceeding; judicial independence;

constitutional process

Page 8: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10

CAPÍTULO 01 – A CRISE DO PODER JUDICIÁRIO: UMA VISÃ O CRÍTICA ......... 19

1.1. Contextualização: a reforma do Estado e a busca crescente pela efetivação dos

direitos ..................................................................................................................................... 19

1.1.1 Do Estado absolutista .................................................................................................. 19

1.1.2 Do Estado Liberal ........................................................................................................ 20

1.1.3 Do Estado Social: surgimento de novos direitos e o impacto no acesso à Justiça no

Brasil ..................................................................................................................................... 22

1.1.4 A Constituição da República de 1988 e o Estado Democrático de Direito: a explosão

da litigiosidade de massa ...................................................................................................... 27

1.2 As ondas de reformas processuais após a Constituição de 1988 e os Pactos

Republicanos: solução para a morosidade da prestação jurisdicional? ............................ 32

1.2.1 A primeira onda de reforma do Código de Processo Civil de 1973 ............................ 38

1.2.2 O I Pacto Republicano: a implementação da reforma do Poder Judiciário ................. 38

1.2.3 O II Pacto Republicano: aprovação de novas propostas legislativas........................... 40

1.2.4 A proposta para o III Pacto Republicano e a aprovação do novo Código de Processo

Civil ...................................................................................................................................... 42

1.3 A litigiosidade crescente e o agravamento da crise do Poder Judiciário – os dados do

Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça ...................................... 43

1.4 A morosidade dos tribunais – ineficácia prática da criação de novas técnicas de

julgamento para agilização dos processos ............................................................................ 45

1.5 Os Litigantes Habituais: o uso patológico do Poder Judiciário no Brasil ................... 52

CAPÍTULO 02 – O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS -

IRDR ........................................................................................................................................ 60

2.1 Introdução ......................................................................................................................... 60

2.2 Apontamentos sobre a tutela coletiva no direito comparado e sua influência no

direito brasileiro ..................................................................................................................... 64

Page 9: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

2.3 As técnicas de solução de demandas repetitivas no direito comparado e a relação

com o IRDR ............................................................................................................................. 69

2.3.1 Direito alemão: o procedimento-modelo (Musterverfahren) ...................................... 70

2.3.2 Direito inglês: Group Litigation Order (GLO) ........................................................... 78

2.3.3 Direito português: incidente de massificação processual no contencioso

administrativo ....................................................................................................................... 81

2.4 Características principais do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas –

IRDR ........................................................................................................................................ 85

2.4.1 A natureza jurídica do IRDR ....................................................................................... 85

2.4.2 Pressupostos de admissibilidade .................................................................................. 91

2.4.2.1 Da efetiva repetição de processos ......................................................................... 91

2.4.2.2 Da questão unicamente de direito ......................................................................... 93

2.4.2.3 Da existência de risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica e da

necessidade de julgamentos conflitantes .......................................................................... 95

2.4.2.4 Do caráter subsidiário do incidente processual .................................................... 98

2.4.2.5 Necessidade da existência de processo pendente no tribunal – uma interpretação

conforme a Constituição ................................................................................................... 98

2.4.3 Legitimidade para requerer a instauração do IRDR .................................................. 103

2.4.3.1 A legitimidade do juiz de primeiro grau e do relator ......................................... 104

2.4.3.2 A legitimidade das partes ................................................................................... 105

2.4.3.3 A legitimidade do Ministério Público e da Defensoria Pública ......................... 106

2.4.4 Desistência ou abandono do processo modelo e do próprio incidente ...................... 111

2.4.5 A competência para processar e julgar o IRDR ........................................................ 113

2.4.6 O procedimento do IRDR .......................................................................................... 116

2.4.6.1 O cadastro eletrônico e a publicidade ................................................................. 116

2.4.6.2 O juízo de admissibilidade do incidente ............................................................. 118

2.4.6.3 As providências e deliberações do relator .......................................................... 120

2.4.6.4 As intervenções das partes e do amicus curiae .................................................. 123

2.4.6.5 A instrução do IRDR .......................................................................................... 131

2.4.7 O julgamento do IRDR .............................................................................................. 133

2.4.8 Os efeitos do julgamento do IRDR e o cabimento da reclamação ............................ 137

2.4.8.1 Os efeitos do IRDR em relação aos Juizados Especiais ..................................... 140

2.4.8.2 Os efeitos do IRDR em relação à Administração Pública .................................. 147

2.4.9 Dos recursos cabíveis contra o julgamento do IRDR ................................................ 155

Page 10: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

2.4.9.1 Dos embargos de declaração .............................................................................. 155

2.4.9.2 Da restrição ao cabimento de recurso contra o julgamento, sem resolução do

mérito, do IRDR ............................................................................................................. 155

2.4.9.3 Do cabimento do recurso especial e do extraordinário....................................... 157

2.4.10 A possibilidade de revisão da tese jurídica .............................................................. 160

CAPÍTULO 03 – O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO: O DIREITO

FUNDAMENTAL À PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA ............ ................................ 164

3.1 Introdução ....................................................................................................................... 164

3.2 A teoria do processo como relação jurídica na visão de Bulow, Chiovenda e

Liebman: vínculo de sujeição das partes ao juiz e a necessidade de sua superação....... 166

3.3 O processo na teoria de Elio Fazzalari: o direito de participação das partes em

simétrica paridade para a legitimação do provimento ..................................................... 170

3.4 O modelo único constitucional de processo na perspectiva de Italo Andolina e

Giuseppe Vignera ................................................................................................................. 177

3.5 O “processo justo” na visão de Comoglio ..................................................................... 180

3.6 O modelo de processo eficiente para a América Latina: uma proposta do Documento

Técnico nº 319 do Banco Mundial para a reforma do Poder Judiciário ......................... 183

3.7 O modelo constitucional do processo civil brasileiro: é possível um modelo

diferenciado de processo para a tutela das demandas repetitivas? ................................. 188

3.7.1 O contraditório como elemento essencial do modelo constitucional de processo .... 195

3.7.2 A evolução do contraditório formal ao substancial: o direito de influência e o dever de

cooperação entre as partes e o juiz na construção do provimento jurisdicional ................. 197

3.7.3 A construção participativa da fundamentação das decisões judiciais: dever de

considerar os argumentos aduzidos pelas partes ................................................................ 204

3.7.4 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o contraditório substancial ... 209

3.8 A ausência de controle judicial da representatividade adequada das partes que serão

afetadas pelo IRDR e sua repercussão no contraditório substancial ............................... 211

3.9 A ausência de previsão da possibilidade de autoexclusão (modelo right to opt out) do

julgamento do IRDR e a ofensa ao direito de acesso à justiça ......................................... 219

CAPÍTULO 04 – A EFICÁCIA VINCULANTE DO IRDR E A IND EPENDÊNCIA

JUDICIAL ............................................................................................................................. 226

Page 11: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

4.1 O movimento de aproximação dos sistemas civil law e common law: a valorização da

jurisprudência no Brasil como fonte normativa do Direito .............................................. 226

4.2 Apontamentos sobre precedente e seus elementos ...................................................... 232

4.3 O sistema de precedentes adotado pelo CPC/2015: análise crítica da inclusão do

julgamento do IRDR como “precedente vinculante” ........................................................ 236

4.4 A inconstitucionalidade da visão dos tribunais ordinários como “Corte de

Precedente”: a diferença entre a função jurisdicional dos tribunais superiores e dos

tribunais locais ...................................................................................................................... 246

4.5 A inconstitucionalidade do efeito vinculante do IRDR: uma interpretação construída

à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal .................................................... 258

4.5.1 A inconstitucionalidade dos prejulgados vinculantes da Justiça do Trabalho e da

Justiça Eleitoral .................................................................................................................. 259

4.5.2 A constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/93 que instituiu a ação

declaratória de constitucionalidade e sua eficácia vinculante ............................................ 261

4.5.3 A constitucionalidade da Lei Ordinária n. 9.868/99 que atribuiu eficácia vinculante

aos julgamentos de mérito da ADI: legitimidade da eficácia vinculante prevista para a

jurisdição constitucional ..................................................................................................... 264

4.5.4 A polêmica sobre a ampliação dos efeitos da decisão proferida pelo STF em sede de

controle difuso de constitucionalidade: existe vinculação aos demais órgãos do Poder

Judiciário? ........................................................................................................................... 267

4.6 A independência judicial e o modelo constitucional de processo: o impacto do IRDR

no papel do juiz na interpretação do direito ...................................................................... 272

4.6.1 A técnica de ressalva de entendimento como forma de se minimizar o esvaziamento

do papel do juiz de primeiro grau na interpretação do direito ............................................ 281

4.6.2 Técnica de utilização do precedente: o distinguishing como forma de incentivo à

interpretação do juiz de primeira instância ......................................................................... 285

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 289

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 303

Page 12: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

10

INTRODUÇÃO

O direito processual civil está inserido em um contexto de ampla reforma

legislativa com a criação de novas técnicas processuais na tentativa de aprimoramento dos

mecanismos de solução dos conflitos. A finalidade dessas reformas é atenuar a alarmante

morosidade da atividade jurisdicional e a crescente litigiosidade.

Fala-se em “crise da Justiça” causada pela sobrecarga de processos nos tribunais,

a lentidão processual, a ausência de uniformidade da jurisprudência e a burocratização

procedimental.

Dentro desse contexto, o presente trabalho científico perpassará inevitavelmente

pela abordagem da referida crise do Poder Judiciário, desenvolvendo uma análise crítica e

necessária dos problemas enfrentados pelo Sistema de Justiça no Brasil.

A propósito, Ada Pellegrini Grinover relata que a busca de soluções para a já

mencionada “crise da Justiça” está se concentrando em duas vertentes:

A vertente jurisdicional, com a tentativa de descomplicação do próprio processo, tornando-o mais ágil, mais rápido, mais direto, mais acessível, com relação à qual se fala em deformalização do processo. E a vertente extrajudicial, buscando-se por ela a deformalização das controvérsias, pelos equivalentes jurisdicionais, como vias alternativas ao processo. É nesta segunda perspectiva que se insere a revisitação da conciliação (autocomposição) e da arbitragem (heterocomposição). 1

A toda evidência, não se pode negar que, em razão das dificuldades enfrentadas

pelo Poder Judiciário, as exigências em torno da uniformização da jurisprudência e da

redução do tempo do processo são uma tônica do direito processual contemporâneo.

A situação é preocupante, pois a busca de celeridade a qualquer custo e a criação

de técnicas processuais voltadas exclusivamente para a uniformização de jurisprudência

podem comprometer garantias fundamentais do processo constitucional no paradigma do

Estado Democrático de Direito.

Conforme destaca Marcelo Franco, vive-se um grande dilema: de um lado, forte

corrente doutrinária, na qual se respaldam as atuais modificações legislativas, concentra suas

1GRINOVER, Ada Pellegrini. Deformalização do processo e deformalização das controvérsias. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 175.

Page 13: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

11

energias na busca pela concretização de um processo judicial mais célere e efetivo diante da

necessidade de “desafogar” o Poder Judiciário atingido por uma avalanche de demandas com

altíssima taxa de congestionamento; de outro, parcela de juristas defende a necessidade de se

reforçar a legitimidade democrática do processo decisório, sobretudo mediante o

fortalecimento da participação e do direito de influência das partes na construção do

provimento jurisdicional. 2

Em sua abordagem sobre os problemas da efetiva garantia de proteção judicial

perante o Poder Judiciário Brasileiro, Fernando Jayme já advertia sobre o risco de busca da

celeridade a qualquer custo, que pode implicar justiça sacrificadora das garantias processuais:

O conteúdo e alcance das medidas aceleradoras da entrega da prestação jurisdicional, com vistas à realização do direito fundamental à duração razoável do processo, somente terão validade se essas medidas forem harmônicas com os demais princípios constitucionais do devido processo legal, porquanto nem só agilidade demanda o processo para prover justiça. A Constituição abrange as representações, experiências e expectativas dos cidadãos a respeito de suas liberdades individuais e, portanto, a construção de um conceito de efetividade do processo deve contemplar a garantia de tutela jurisdicional efetiva enquanto manifestação de proteção judicial efetiva, que é basilar do Estado Democrático.3

No mesmo sentido, é a crítica do processualista Freddie Didier Jr.:

O processo não tem que ser rápido/ célere: o processo deve demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso submetido ao órgão jurisdicional. (...) A partir do momento em que se reconhece a existência de um direito fundamental ao processo, está-se reconhecendo, implicitamente, o direito de que a solução do conflito deve cumprir necessariamente, uma série de atos obrigatórios, que compõem o conteúdo mínimo do devido processo legal. A exigência do contraditório, o direito à produção de provas e aos recursos, certamente, atravancam a celeridade, mas são garantias que não podem ser desconsideradas ou minimizadas. É preciso fazer o alerta, para evitar discursos autoritários, que pregam a celeridade como valor insuperável.4

É justamente nesse cenário de busca a qualquer custo pela celeridade processual

que se destaca o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, instituído no ordenamento

jurídico brasileiro pelos artigos 976 a 987 do novo Código de Processo Civil (CPC/2015).

2 FRANCO, Marcelo Veiga. Processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 1-2. 3 JAYME, Fernando Gonzaga. Obstáculos à tutela jurisdicional efetiva. Rio de Janeiro: Revista Forense, v. 399, 2008, p. 95-110. 4 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador, Editora JusPodivm, 2010, p. 59.

Page 14: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

12

O Código de Processo Civil de 2015 resulta de elaboração e debate inteiramente

democráticos. As discussões e propostas acerca da novel legislação começaram a se

concretizar em 2009, quando foi instituída pelo ato nº 379 do Presidente do Senado Federal

uma comissão de juristas destinada a elaborar o Anteprojeto do novo Código de Processo

Civil a fim de dar uma resposta à sociedade, principal “vítima” da crise do Poder Judiciário.

A Comissão de juristas entregou, em 08 de outubro de 2010, o seu trabalho final

que se transformou no Projeto de Lei nº 166 do Senado Federal. Após a aprovação no Senado,

o projeto recebeu o nº 8.046 para tramitação na Câmara dos Deputados.

O referido projeto de lei sistematizou as reformas pontuais já implantadas na

legislação então em vigor, no intuito de conferir maior funcionalidade, e também buscou

inovar o direito processual com a introdução de novas técnicas de solução dos conflitos e

uniformização da jurisprudência. No projeto, foi proposta a criação de incidente processual

inicialmente denominado “Incidente de Coletivização” e, em sua redação final, “Incidente de

Resolução de Demandas Repetitivas”.

Os juristas, autores do anteprojeto do CPC, justificaram a estruturação de uma

nova técnica de resolução de conflito em razão da multiplicação e perpetuação dos litígios de

massa na sociedade moderna sem uma resposta rápida e uniforme pelo Poder Judiciário, o

que, segundo eles, causaria insegurança jurídica e desrespeito à isonomia.

O incidente de Resolução de Demandas Repetitivas consiste na identificação de

demandas repetitivas que contenham a mesma questão de direito, para decisão conjunta do

tribunal local, repercutindo obrigatoriamente (efeito vinculante e erga omnes) sobre todas as

causas que versarem sobre questão isomórfica em tramitação, inclusive as futuras, na área de

competência do tribunal.

Em outras palavras, trata-se de uma técnica de julgamento em bloco que parte de

um caso concreto (processo modelo5) entre litigantes individuais, para, a partir da cisão da

5 Os professores Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes e Alexandre Bahia entendem que a repercussão geral criada no direito processual brasileiro como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário (art. 102, § 3º da Constituição de 1988 e arts. 543-A e 543-B do CPC) se encaixa no perfil técnico das chamadas “causas piloto” ou “processos teste”, no qual, para a resolução dos litígios em massa, uma ou algumas causas são escolhidas pela similitude na sua tipicidade para serem julgadas e cuja solução permite que se resolvam rapidamente todas as demais causas paralelas. Os referidos juristas consideram que a técnica de julgamento dos recursos repetitivos seria equivalente a um “mecanismo de pinçamento” (escolha do recurso representativo da controvérsia) que, por sua vez, não permitiria uma participação efetiva dos interessados, eis que a escolha do recurso (pinçamento) pelo órgão a quo não garante que todos os argumentos relevantes para o debate e deslinde da causa, suscitados por todos os interessados, sejam levados em consideração no momento da construção da decisão. A participação efetiva se limitaria às partes dos recursos afetados, que podem ou não ter apresentado

Page 15: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

13

cognição6 do referido processo modelo em tramitação na primeira instância, resolver

coletivamente a tese jurídica comum a inúmeros processos que versam sobre pretensões

isomórficas, assegurando a rápida uniformidade do posicionamento judicial.

Almeja-se abordar criticamente ao longo deste trabalho científico todas as

nuances jurídicas do referido incidente processual, analisando-se sua natureza jurídica, as

hipóteses de cabimento, a legitimidade, o procedimento, os efeitos do julgamento, com

destaque para a forma de participação das partes, sua representatividade, a eficácia da atuação

do amicus curiae e, ainda, a repercussão na atuação jurisdicional do juiz de primeira instância.

A propósito, o controle da adequação da representatividade em procedimentos

dotados de eficácia vinculante e erga omnes é imprescindível para se resguardar o

contraditório como direito de influência no julgamento e, por conseguinte, para legitimar a

sujeição de terceiro ao resultado de um processo no qual não participou diretamente.

No caso, a representatividade dos sujeitos processuais merecerá especial atenção

na medida em que, a depender da tese jurídica definida, o provimento jurisdicional construído

pelo julgamento do incidente não só beneficiará os terceiros titulares dos direitos individuais

homogêneos (isomórficos), mas também os prejudicará em caso de julgamento desfavorável

(pro et contra), vinculando os julgadores de primeira instância.

Para demonstrar a relevância da temática, também serão destacadas as técnicas

processuais de julgamento de casos modelo já instituídas na Alemanha, em Portugal e na

Inglaterra, cujas balizas teóricas foram importadas para o direito brasileiro, não obstante

terem sido concebidas em sociedades menos populosas e muito diferentes da brasileira, além

das diversidades da organização do Poder Judiciário e da legislação processual de cada país.

Vale destacar a advertência de Barbosa Moreira sobre o risco da precipitada

importação de teorias e técnicas desenvolvidas no direito comparado:

fundamentação jurídica idônea e técnica. (THEODORO JÚNIOR. Humberto; NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre. Litigiosidade em massa e repercussão geral no recurso extraordinário. Revista de Processo, nº 177, nov. 2009, p. 22-23) 6 Conforme informa Antônio do Passo Cabral, “ainda que não existam muitos mecanismos com funções de conferir tutela coletiva a questões comuns, a legislação processual pátria admite, há muito tempo, a quebra de cognição em alguns procedimentos, com um juízo decidindo sobre uma ou algumas questões prévias, deixando o julgamento da questão principal a outro órgão judiciário. Assim ocorre com o incidente de reserva de plenário (art.97 da Constituição da República de 1988 e art.480 e ss. do CPC) para a declaração de inconstitucionalidade das leis pelos tribunais, bem como o incidente de uniformização de jurisprudência, previsto no art.476 do CPC. Nestes incidentes, a cognição da questão prévia é remetida ao pleno ou órgão especial dos tribunais, deixando às câmaras ou turmas (órgãos fracionados), a decisão sobre o mérito do recurso.” (CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 143)

Page 16: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

14

Ninguém, com efeito, pode ignorar os graves perigos inerentes à afoiteza de 'importações' levadas a cabo sem o conhecimento integral e preciso das características da peça importada e da maneira por que ela se insere, estrutural e funcionalmente, no mecanismo de origem.7

Nas palavras de Cappelletti e Garth, o maior perigo “é o risco de que

procedimentos modernos e eficientes abandonem as garantias fundamentais do processo civil

– essencialmente as de um julgador imparcial e do contraditório” 8.

De acordo com a exposição de motivos elaborada pela Comissão de Reforma9, o

referido incidente foi inspirado no Procedimento-Modelo ou Procedimento-Padrão

(Musterverfahren) do Direito Processual Alemão, que foi instituído naquele ordenamento

jurídico para possibilitar que o Tribunal Regional (Oberlandesgericht) fixasse

posicionamento sobre supostos fáticos ou jurídicos de pretensões repetitivas, estendendo aos

processos individuais os efeitos do julgamento.

De forma semelhante, foi instituído em Portugal um sistema de ações teste (test

claims). No direito português, quando mais de vinte ações sobre a mesma pretensão de direito

material são iniciadas ou quando essas demandas devem ser decididas com a aplicação das

mesmas normas jurídicas em face de matéria fática isomórfica, o presidente do tribunal local

deverá determinar que prossiga apenas uma ou algumas dessas. As demais ficarão suspensas

até o resultado final da ação teste escolhida pelo órgão julgador.

Quando a decisão de mérito proferida na “ação teste” (processo-modelo) se tornar

imutável, os litigantes que se encontravam com os processos suspensos podem requerer ao

tribunal que estenda os efeitos da decisão da ação teste para os processos em que são partes ou

a parte autora poderá exercer o direito de autoexclusão.

Já na Inglaterra, segundo o jurista Aluísio Gonçalves de Castro Mendes10, “ um

caso pode receber o tratamento de litígio coletivo – Group Litigation Order (GLO) – sempre

que houver pretensões fundadas ou que contenham questões, de fato ou de direito, comuns ou

7 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns aspectos do processo (civil e penal) nos países anglo-saxônicos. Temas de direito processual: sétima série. São Paulo: Saraiva, 2001, 155. 8 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 163. 9 BRASIL. Anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Brasília-DF, 2010. 381 pp. Disponível em: HTTP://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf. Acesso em: 09 mar. 2015. 10 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 57.

Page 17: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

15

relacionadas (GLO issues)”.

O incidente do direito inglês pode ser provocado de ofício ou a requerimento da

parte e a decisão proferida será vinculante para todos os casos semelhantes já registrados no

momento do julgamento, podendo o órgão julgador estender os efeitos a outros casos

posteriormente registrados. 11

Em suma, através da utilização dessa técnica processual introduzida no direito

processual brasileiro obtém-se uma tutela jurisdicional de vestes coletivas a partir de um

processo individual, cindindo-se a cognição do processo em primeira instância ou pendente de

análise no tribunal já que a definição da tese jurídica se dará unicamente por órgão colegiado

específico do tribunal local ou regional.

Se é salutar, por um lado, o delineamento de técnicas processuais idôneas para

aplicação do direito material, aproximando o sistema processual com os litígios a serem

resolvidos, de outro, a busca pela celeridade a qualquer custo pode implicar precipitação de

julgamentos sem o devido aprofundamento do debate das questões controvertidas,

comprometendo a qualidade da prestação jurisdicional, além do risco de padronização

artificial de decisões judiciais.

A “importação” de novas técnicas de julgamento com eficácia vinculante e erga

omnes sem se preocupar com as peculiaridades dos litígios e os fundamentos apresentados

pelas partes em cada um deles reflete um cuidado apenas com o tempo da resposta dada pelo

Poder Judiciário, relegando ao segundo plano a própria essência do processo democrático que

é a participação efetiva das partes na construção da decisão judicial.

Com efeito, o acesso à justiça não se resume à mera possibilidade de ingressar em

juízo ou à garantia de obtenção de um julgamento célere; é, sim, a garantia de que os cidadãos

possam demandar e defender-se adequadamente em juízo, isto é, ter acesso à efetividade no

processo com os meios e recursos a ele inerentes de modo a obter um provimento

jurisdicional justo, construído a partir do amplo debate e participação dos sujeitos

interessados.

É por isso que o devido processo legal ou devido processo justo deve envolver um

tempo específico definido em bases constitucionais, e este não é um inimigo, mas um fator

relevante para o debate e a própria estruturação equilibrada do processo no Estado

11 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 59.

Page 18: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

16

Democrático de Direito. 12

E, em se tratando de litígios de massa, que envolvem milhares de jurisdicionados

e várias demandas individuais, é indispensável a preservação do espaço técnico-retórico para

exposição ampla, debate, investigação criteriosa e dissecação plena dos temas ora levantados

ou que venham a ser levantados, inclusive com a participação do julgador de primeiro grau.

Do contrário, sob o pretexto da pura celeridade, restringir-se-á o debate inerente ao amplo

contraditório necessário ao embasamento de uma boa e segura decisão judicial.

O ponto fulcral da tese perpassará, portanto, pelo necessário confronto e

interlocução entre o Incidente Processual de Resolução das Demandas Repetitivas (IRDR) e a

garantia de participação democrática assegurada pelo modelo constitucional do processo para,

então, demonstrar sua (in)compatibilidade. Há de se indagar se a técnica de julgamento do

Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, tal como disciplinada pelo Código de

Processo Civil, é compatível com o contraditório substancial. E ainda, deve-se questionar se o

incidente processual prevê mecanismos obrigatórios e eficazes que assegurem a participação

efetiva dos titulares do direito controvertido e, ao mesmo tempo, preservem a atuação

independente do magistrado na construção do provimento, garantias essenciais do modelo

constitucional do processo.

Para responder a essas indagações, será trabalhado o conceito do princípio do

contraditório, adotando como marco teórico a Teoria Constitucionalista do Processo,

perpassando pelo modelo constitucional do processo civil de Italo Andolina e Giuseppe

Vignera (1990), com o objetivo de demonstrar sua imprescindibilidade para a concretização

do Estado Democrático de Direito. Será necessário superar a clássica teoria da relação

jurídica de Bullow e Liebman, fazendo-se uma leitura constitucional da teoria processual de

Elio Fazzalari, capitaneada pelo professor Aroldo Plínio (1992), segundo a qual a participação

efetiva dos sujeitos processuais é elemento fundamental do processo democrático,

constituindo o âmago do contraditório – o chamado contraditório dinâmico ou substancial.

Na mesma linha teórica, o professor Dierle Nunes13 adverte que o processo deve

ser estruturado em qualquer situação sob uma perspectiva comparticipativa e policêntrica,

ancorado nas garantias fundamentais previstas na Constituição, constituindo um espaço

12 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008, p. 211. 13 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008, p. 211.

Page 19: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

17

público no qual se apresentam plenas condições comunicativas para que todos os

legitimamente interessados participem da formação do provimento.

Marinoni também ressalta o valor da participação efetiva na formação da decisão

judicial como requisito de legitimação do processo no Estado Democrático de Direito:

A legitimação pela participação decorre da efetividade da participação das partes na formação da decisão, já que apenas proclamar o direito de participação, sem outorgar às partes as condições necessárias a tanto, implica em negar a própria legitimidade que se pretende transmitir com a ideia de participação. 14

Não menos importante é a análise do problema sob a ótica do juiz de primeiro

grau, cuja participação na construção democrática do provimento e na interpretação do direito

será suprimida pelo tribunal local ao julgar o Incidente de Resolução das Demandas

Repetitivas com eficácia erga omnes e vinculante.

Conforme crítica de Fernando Jayme15, citando expressão cunhada pelo Ministro

Humberto Gomes de Barros do Superior Tribunal de Justiça, os julgamentos padronizados

voltados apenas à diminuição da sobrecarga de processos dos tribunais ofendem o princípio

do juiz natural, com a substituição deste pelo “juiz eletrônico”.

O papel do julgador, em especial o da primeira instância – primeiro a ter contato

com os fundamentos e fatos apresentados – deve ser considerado fundamental no processo

democrático. Não se pode admitir a padronização artificial das decisões judiciais para se

privilegiar a celeridade do processo.

A independência funcional do magistrado é, segundo José Albuquerque da

Rocha16, “o traço mais relevante do estatuto do juiz, o elemento essencial à função de julgar,

constituindo a pedra angular do chamado Estado de Direito”.

As prerrogativas não foram outorgadas como um privilégio direcionado para a

pessoa do juiz, mas sim como uma garantia e, em ultima ratio, para a própria sociedade. Um

juiz independente, que poderá julgar segundo as suas convicções formadas a partir dos fatos e

14 MARINONI, Luiz Guilherme. Da teoria da relação jurídica processual ao processo civil do Estado Constitucional. In: DIDIER Jr., Fredie e JORDÃO, Eduardo. Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: Editora Juspodivm, 2008, p. 544. 15 JAYME, Fernando Gonzaga. Obstáculos à tutela jurisdicional efetiva. Rio de Janeiro: Revista Forense, v. 399, 2008, p. 95-110. 16 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 23.

Page 20: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

18

dos fundamentos jurídicos apresentados pelas partes no processo, representa garantia do povo

e da democracia.

Já ensinava o mestre Carlos Maximiliano sobre a atuação do magistrado de

primeiro grau:

... vêem estes de mais perto os interesses e os desejos dos que recorrem à justiça: uma jurisdição demasiado elevada não é apta a perceber rápida e nitidamente a corrente das realidades sociais. A nova lei vem de cima; as boas jurisprudências fazem-se embaixo. 17

O estudo do Incidente de Resolução das Demandas Repetitivas está, enfim, na

ordem do dia, sendo necessário o enfrentamento das referidas questões ao longo desta tese de

doutoramento para, ao final, se demonstrar a hipótese da compatibilidade ou não do novel

instituto com o contraditório substancial e a independência funcional do juiz, que são

garantias estruturantes do modelo constitucional de processo no paradigma do Estado

Democrático de Direito.

17 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 180.

Page 21: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

19

CAPÍTULO 01

A CRISE DO PODER JUDICIÁRIO: UMA VISÃO CRÍTICA

1.1. Contextualização: a reforma do Estado e a busca crescente pela efetivação dos

direitos

Para contextualizar a chamada “Crise do Poder Judiciário” é imprescindível

destacar, ainda que brevemente, já que não constitui o objeto central da pesquisa, a superação

e a releitura dos paradigmas do Estado Liberal, Social e Neoliberal.

O propósito é demonstrar que as modificações do papel do Estado ao longo da

história repercutiram fortemente no acesso à justiça e, por conseguinte, na atuação do Poder

Judiciário, em especial, no Brasil, sendo que as reformas legislativas e a criação de novas

técnicas processuais não resolveram os problemas enfrentados pelo Sistema de Justiça e estão

longe de ser a solução mais adequada.

1.1.1 Do Estado absolutista

No absolutismo, a autoridade máxima do rei soberano contava com poderes

ilimitados para conduzir os destinos de uma determinada nação. O poder político concentrado

nas mãos da autoridade real era legitimado por uma justificativa religiosa em que o monarca

seria visto como um representante divino, dotado de poderes absolutos sobre toda a sociedade.

O poder jurisdicional de decisão e autoridade era exercido diretamente pelo

soberano ou delegado a sujeitos sempre pertencentes à nobreza e/ou clero, de forma a

manifestar e perpetuar seus interesses.18

A propósito, André Ramos Tavares destaca, ao dissertar sobre o Judiciário na

Europa naquela época, que:

Na França do século XII, eram os prebostes, o baile e o seneschal, os funcionários responsáveis por aplicar a Justiça, e que aqueles (prebostes) administravam seu distrito cumprindo as ordens reais e fazendo justiça em nome do rei, ao passo que os dois últimos eram recrutados dentre a baixa-nobreza da Casa real, sendo considerados servidores da Coroa. Assim subordinado, não haveria de se desenvolver adequadamente uma estrutura de ‘Justiça’. 19

18 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade. Para uma teoria geral da política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 115. 19 TAVARES, André Ramos. Manual do Poder Judiciário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 24.

Page 22: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

20

Ou seja, a vontade do soberano era lei e os “órgãos jurisdicionais” daquela época

eram praticamente submissos ao poder absoluto, de modo que a atividade jurisdicional não se

caracterizava pela legalidade tal como concebida nos regimes republicanos e na democracia.20

A falta de independência do Poder Judiciário é, portanto, traço característico do

período absolutista, em que o Poder Judiciário era visto como uma longa manus do soberano.

Durante as revoluções burguesas e quando o movimento denominado Iluminismo

se destacou na Europa, na passagem do Século XVIII para o XIX, o Estado Absolutista,

marcado até então pelo autoritarismo e pela vontade absoluta do soberano sobre a sociedade,

entrou em queda, surgindo o Estado republicano e democrático apoiado no liberalismo.

1.1.2 Do Estado Liberal

O Estado Liberal, que se seguiu, assentava-se em três princípios básicos: a

liberdade, a igualdade e a propriedade, todas centradas no indivíduo. Estabelecia-se uma

separação nítida entre a esfera privada e a esfera pública, principalmente em razão da

interpretação dos direitos fundamentais como garantias meramente negativas, vale dizer,

como garantia da não intervenção do Estado na esfera privada da sociedade, deixando, por

exemplo, a economia a cargo das leis do mercado e garantindo a cada indivíduo o direito de

buscar o seu espaço.21

Assumem particular relevo no rol desses direitos de cunho negativo,

especialmente pela sua notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à

propriedade e à igualdade perante a lei. 22

A propósito dos direitos fundamentais no Estado Liberal, importante destacar a

lição do professor Daniel Sarmento:

Dentro deste paradigma, os direitos fundamentais acabaram concebidos como limites para a atuação dos governantes, em prol da liberdade dos governados. Eles demarcavam um campo no qual era vedada a interferência estatal, estabelecendo, dessa forma, uma rígida fronteira entre o espaço da sociedade civil e do Estado, entre a esfera privada e a pública, entre o ‘jardim e a praça’. Nesta dicotomia público/privado, a supremacia recaia sobre o segundo elemento do par, o que decorria da afirmação da

20 THEODORO JR., Humberto. O processo justo e as tutelas jurisdicionais proporcionáveis aos direitos substanciais em crise. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, n. 123, jun., 2013, p 33. 21 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 55. 22 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 47.

Page 23: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

21

superioridade do indivíduo sobre o grupo e sobre o Estado. (...) No âmbito do Direito Público, vigoravam os direitos fundamentais, erigindo rígidos limites à atuação estatal, com o fito de proteção do indivíduo, enquanto no plano do Direito Privado, que disciplinava relações entre sujeitos formalmente iguais, o princípio fundamental era o da autonomia da vontade.23

O Direito era visto como um Direito formal burguês e assumia a perspectiva de

um sistema fechado de regras que determinava a garantia da esfera privada de cada indivíduo.

Adquiria, assim, uma compreensão formal, de natureza privatística, percebendo os conflitos

sociais exclusivamente sob a perspectiva interindividual. 24

Segundo Ludmila Teixeira25, naquele contexto, o pensamento jurídico repousava

em uma racionalidade teorética e a tarefa do juiz cingia-se a uma operação lógico-dedutiva

dessas regras gerais, abstratas e impessoais.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth26 destacam, ainda, que o acesso à Justiça

representava, no Estado Liberal, um direito meramente formal do indivíduo, alcançável

apenas por um pequeno grupo que possuía aptidão para suportar os custos do processo.

O Poder Judiciário desempenhava, por sua vez, o papel de solucionar

preponderantemente os conflitos entre particulares. Os órgãos jurisdicionais somente atuavam

após provocação e as decisões judiciais proferidas alcançavam apenas os litigantes do

processo sem qualquer eficácia coletiva.

E conclui Ludmila Teixeira que

A Jurisdição legitimava-se, portanto, pela sua capacidade em produzir as sensações de segurança jurídica e estabilidade ao sistema. O primeiro sentido de acesso à justiça, condizente com esta racionalidade, restringia-se ao direito de ingresso em juízo (input). Sustentava-se nas considerações relacionadas ao poder de exercício da ação, desprovido de qualquer conteúdo sócio-político. Entendido desta forma, o acesso à justiça e a atuação judicial voltam-se principalmente para as questões relacionadas ao direito invocado

23 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 12-13. 24 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 57. 25 TEIXEIRA, Ludmila Ferreira. Acesso à Justiça Qualitativo. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, MG, 2012, p. 53. 26 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 8.

Page 24: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

22

pelo autor. 27

No final do século XIX e início do século XX, o modelo liberal de Estado

começou a dar mostras de sua inadequação em face das mudanças econômicas e sociais. A

evolução do capitalismo e a revolução industrial trouxeram progresso econômico e riqueza

aos Estados Nacionais, mas, ao mesmo tempo, para sustentar o aumento dos lucros, era

preciso aumentar também a produção, o que foi conseguido com a exploração do trabalhador.

Ao lado do progresso econômico gerado pela Revolução Industrial, esse período

testemunhou a ocorrência de maciços deslocamentos de pessoas, o agravamento sem

precedentes das desigualdades sociais, a emergência da chamada questão social

(criminalidade, prostituição, insalubridade, habitação degradada etc.). Tudo isso deu origem a

uma explosão de conflitos sociais. 28

O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos que

acompanharam as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração formal de

liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo geraram, já no decorrer do

século XIX, amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo dos

direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social.

Ou seja, a interpretação da liberdade e da propriedade centradas apenas no

indivíduo acabou por acarretar uma crescente exclusão e exploração social, que propiciaram

as eclosões de revoltas operárias que buscavam o reconhecimento de direitos mínimos aos

trabalhadores.

Os alicerces estruturantes do Estado Liberal entraram em colapso, pois a

sociedade começou a compreender que os direitos previstos asseguravam uma igualdade

apenas formal e não eram suficientes para assegurar a liberdade e igualdade material entre os

indivíduos.

1.1.3 Do Estado Social: surgimento de novos direitos e o impacto no acesso à Justiça no

Brasil

O período entre as Primeira e Segunda Guerras Mundiais é marcado pela transição

27 TEIXEIRA, Ludmila Ferreira. Acesso à Justiça Qualitativo. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, MG, 2012, p. 60. 28 SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manual Leitão; PEDROZO, João. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 11, n. 30, fev. 1996, p. 33.

Page 25: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

23

política do Estado, que começa a assumir um papel mais intervencionista, paternalista, saindo

da posição negativa do liberalismo para adotar uma conduta positiva no sentido de garantir

direitos sociais mínimos. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet29, “não se cuida mais,

portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado”.

Um marco inicial do paradigma do Estado Social identifica-se com o chamado

constitucionalismo social, movimento que ganhou maiores contornos após a Constituição

alemã de Weimar (1919), apesar de a Constituição mexicana de 1917 ser considerada a

primeira Constituição Social. 30

A Constituição Brasileira de 1934, da época do governo de Getúlio Vargas, reflete

o paradigma do Estado Social no Brasil. Segundo José Eduardo Romão,

(...) não padece dúvida que a tônica da Constituição de 34 recaiu sobre o Estado social. A constitucionalização do salário mínimo, do direito ao trabalho, do direito à associação sindical e profissional vincam tão fortemente o ordenamento jurídico no Brasil que, de fato, não parece possível negar a ocorrência do paradigma do Estado da Providência. 31

Conforme muito bem ressaltado por Daniel Sarmento:

As Constituições do México (1917) e de Weimar (1919) trazem em seu bojo novos direitos que demandam uma contundente ação estatal para sua implementação concreta, a rigor destinados a trazer consideráveis melhorias nas condições materiais de vida da população em geral, notadamente da classe trabalhadora. Fala-se em direito à saúde, à moradia, à alimentação, à educação, à previdência etc. Surge um novíssimo ramo do Direito, voltado a compensar, no plano jurídico, o natural desequilíbrio travado, no plano fático, entre o capital e o trabalho. O Direito do Trabalho, assim, emerge como um valioso instrumental vocacionado a agregar valores éticos ao capitalismo, humanizando, dessa forma, as até então tormentosas relações jus laborais. No cenário jurídico em geral, granjeia destaque a gestação de normas de ordem pública destinadas a limitar a autonomia de vontade das partes em prol dos interesses da coletividade. 32

Como consequência da mudança de paradigma para o Estado Social, amplia-se a

dimensão dos direitos fundamentais. Nesse sentido, observa Menelick de Carvalho Netto:

29SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 47. 30 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 58. 31 ROMÃO. José Eduardo Elias. Justiça Procedimental: a prática da mediação na teoria discursiva do Direito de Jurgen Habermas. Brasília: Maggiore, 2005, p. 31. 32 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 19.

Page 26: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

24

Não se trata apenas do acréscimo dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de 1ª (os individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material. 33

Dentro desse novo paradigma, o Estado começa a atuar no sentido de assumir-se

“como agente conformador da realidade social e que busca, inclusive, estabelecer formas de

vida concretas, impondo pautas ‘públicas’ de ‘vida boa’” 34. O Poder Executivo assume o

papel protagonista de editar e executar políticas públicas, contribuindo para a proliferação

fervorosa dos direitos de segunda geração (sociais e econômicos), como, por exemplo, os

direitos trabalhistas, à saúde, à previdência social, e à educação.

É possível perceber, ainda, nítido avanço da teoria do direito, que se coloca em

uma posição crítica acerca do positivismo extremado, trazendo para o lado do direito à justiça,

os valores e os fatos sociais. Ganhou relevo a interpretação da lei: os juízes e intérpretes em

geral abandonaram a simples operação lógica de subsunção da norma ao fato, sem qualquer

liberdade criativa para assumir um papel mais ativo, no sentido de aliar à interpretação da

norma fatores lógicos, axiológicos e fáticos.

O acesso à Justiça também avançou nesse novo paradigma, sobretudo no campo

da produção de resultados socialmente justos, tendo em vista o ideal de superação das

desigualdades e injustiças existentes no Estado Liberal. É institucionalizado um processo

como instrumento para a realização da jurisdição, com escopos jurídicos, sociais e políticos

bem definidos, rompendo-se com o formalismo do modelo liberal.

Com efeito, a previsão de novos direitos pelo sistema jurídico impulsionou o

surgimento de novos tipos de conflitos até então não discutidos no Poder Judiciário,

especialmente no Brasil.

Para dar resposta aos novos tipos de conflitos, foi criada no Brasil a Justiça do

Trabalho em 1939, permitindo a atuação do Poder Judiciário voltada à proteção do direito

33 CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos Pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de direito comparado. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999, p. 480. 34 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 59.

Page 27: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

25

social dos trabalhadores, o que, sem dúvida, proporcionou maior acesso à Justiça. O Decreto-

Lei 1.608, de 1939, que cria o Código de Processo Civil, também se insere com grande

relevância no contexto histórico de ampliação de acesso à Justiça no Brasil.

Nesse sentido, importante destacar trecho da Exposição de Motivos do referido

Código de 193935, da lavra de Francisco Campos:

As profundas transformações operadas em todos os campos da atividade humana, particularmente as transformações sociais e políticas, concorreram para manifestar a extensão dessa crise, pois levaram os benefícios da ordem jurídica a terrenos que a velha aparelhagem judiciária não estava capacitada para alcançar. O processo em vigor, formalista e bizantino, era apenas um instrumento das classes privilegiadas, que tinham lazer e recursos suficientes para acompanhar os jogos e as cerimônias da justiça, complicados nas suas regras, artificiosos na sua composição e, sobretudo, demorados nos seus desenlaces. As transformações políticas que entre nós se cumpriram abrem entretanto o gôzo dos instrumentos de govêrno a uma imensa massa humana, que antes não participava dêles senão indireta e escassamente, e assim impõem um nôvo regime à administração da justiça. (...) A transformação social elevou, porém, a Justiça à categoria de um bem geral, e isso não apenas no sentido de que ela se acha à disposição de todos, mas no de que a comunidade inteira está interessada na sua boa distribuição, a ponto de tomar sôbre si mesma, através dos seus órgãos de govêrno, o encargo de torna-la segura, pronta e acessível a cada um. Responsável pelos bens públicos, o Estado não poderá deixar de responder pelo maior dêles, que é precisamente a Justiça.

A Lei 1060, de 1950, que regulamentou a concessão da assistência judiciária

gratuita, ampliou o acesso à Justiça às pessoas economicamente hipossuficientes e que não

podiam suportar os ônus do processo. Da mesma forma, as Leis n. 1.533, de 1951, e 4.717, de

1965, que regulamentaram o mandado de segurança e a ação popular, respectivamente,

criaram instrumentos processuais importantíssimos de controle dos atos da Administração

Pública.

A criação de novos direitos combinada com a nova legislação processual e a

ineficiência do Estado de assegurar os direitos sociais prometidos favoreceram ao aumento

contínuo da procura pelo Poder Judiciário, o que culminou nos problemas da morosidade da

Justiça desde aquela época.

Alguns anos depois, no regime ditatorial de 1964, motivado já àquela época pela

quantidade de processos em tramitação no Poder Judiciário, foi elaborado outro Código de

35Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1608-18-setembro-1939-11638-norma-pe.html Acesso em: ago. de 2015.

Page 28: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

26

Processo Civil regulamentado pela Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

As palavras de Alfredo Buzaid, então Ministro da Justiça, escritas, em 1964, na

exposição de motivos do Código de Processo Civil de 197336, ilustram bem o contexto

histórico de busca de celeridade processual, in verbis:

Aos estudos iniciais antolharam-se-nos duas soluções: rever o Código vigente ou elaborar um Código nôvo. A primeira tinha a vantagem de não interromper a continuidade legislativa; o plano de trabalho, bem que compreendendo a quase totalidade dos preceitos legais, cingir-se-ia a manter tudo quanto estava conforme com os enunciados da ciência, emanando o que fôsse necessário, preenchendo lacunas e suprimindo o supérfluo, que retarda o andamento dos feitos. (...) Depois de demorada reflexão, verificamos que o problema era muito mais amplo, grave e profundo, atingindo a substância das instituições, a disposição ordenada das matérias e a íntima correlação entre a função do processo civil e a estrutura orgânica do Poder Judiciário. Justamente por isso a nossa tarefa não se limitou à mera revisão. Pareceu-nos indispensável reelaborar o Código em suas linhas fundamentais, dando-lhe um nôvo plano em harmonia com as exigências científicas do progresso contemporâneo e as experiências dos povos cultos.

E logo a seguir, continua Buzaid:

(...) o processo civil é um instrumento jurídico e eminentemente técnico, preordenado a assegurar a observância da lei; por isso há de ter tantos atos quantos sejam necessários para alcançar sua finalidade. Diversamente de outros ramos da ciência jurídica, que traduzem a índole do povo através de longa tradição, o processo civil deve ser dotado exclusivamente de meios racionais, tendentes a obter a atuação do direito. As duas exigências antitéticas que concorrem para tecnizá-lo são a rapidez e a justiça. Conciliam-se essas tendências, estruturando-se o processo civil de tal modo que ele se torne efetivamente apto a administrar, sem delongas, a justiça.

Não obstante inserido no contexto histórico do Estado Social, o Código de

Processo Civil de 1973 possuía nítido viés liberal, voltado primordialmente para a tutela dos

direitos de propriedade e da liberdade individual, repercutindo nas décadas que se seguiram a

inadequação das técnicas processuais para a resolução efetiva e em tempo razoável dos novos

conflitos.

A propósito, o professor Cândido Rangel Dinamarco destaca de forma crítica a

impropriedade do Código de 1973 em relação às exigências dos novos direitos sociais da

época:

(...) o Código Buzaid foi uma obra de seu tempo e do estado da doutrina brasileira de quando foi editado. Nossos olhos não estavam propriamente

36 BRASIL. Senado. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/177828 Acesso em agosto de 2015.

Page 29: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

27

abertos, nem nossos sentidos atentos à verdadeira revolução cultural em prol da bandeira da efetividade do processo, então brotando em plagas europeias. Isso quer dizer que o legislador brasileiro de 1973 não foi inspirado por aquelas premissas metodológicas de que hoje são imbuídos os setores progressistas da doutrina brasileira – como a visão crítica do sistema processual pelo ângulo externo, a preponderância dada à figura do consumidor dos serviços judiciários, a fortíssima guinada para a tutela coletiva e, sobretudo, o sublime empenho pela universalização da tutela jurisdicional e efetivo acesso à ordem jurídica justa. Fiel ao estado da doutrina brasileira de seu tempo, o Código de 1973 veio a lume como um excelente instrumento técnico. Faltam-lhe, contudo, esses ingredientes de que não se pode prescindir. 37

Com efeito, o direito processual daquela época ainda era voltado primordialmente

à proteção do indivíduo, dos direitos individuais; quanto aos direitos de titularidade coletiva,

sobretudo os difusos, ainda não havia mecanismos eficientes para a sua defesa.

A concepção tradicional do processo civil, segundo Cappeletti e Garth38, não

deixava espaço para a proteção dos direitos difusos e coletivos. O processo era visto apenas

como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre

essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que

pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se

enquadravam bem nesse modelo. As regras determinantes da legitimidade, as normas de

procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por

interesses difusos intentadas por particulares.

Assim, o direito processual então vigente, paradoxalmente de caráter liberal,

mostrou-se distante da pretensão de efetivação concreta dos novos direitos de cunho social e

da resolução dos conflitos em tempo razoável, o que acarretou graves consequências para a

morosidade e inefetividade do Poder Judiciário nos anos que se seguiram.

O paternalismo do Estado Social se mostrou, de igual modo, praticamente

inaceitável no contexto da globalização, pois não conseguiu cumprir com eficiência o seu

papel intervencionista para a efetiva implementação dos novos direitos sociais prometidos.

1.1.4 A Constituição da República de 1988 e o Estado Democrático de Direito: a

explosão da litigiosidade de massa

37 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil: Lei 8.455, de 24-08-92, 8.637, de 31-3-93, 8.710, de 24-9-93, 8.718, de 14-10-93, 8.898, de 29-6-94, 8.950, de 13-12-94, 8.951, de 13-12-94, 8.952 de 13-12-94 e 8.953, de 13-12-94. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 22. 38CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 49-50.

Page 30: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

28

Para demarcar a passagem dos paradigmas dos Estados Liberal e Social de Direito

ao do Estado Democrático de Direito, destacam-se as palavras de Bernardo Gonçalves

Fernandes:

(...) o Estado Democrático é muito mais que um princípio, configurando-se um verdadeiro paradigma – isto é, pano de fundo de silêncio – que compõe e dota de sentido as práticas jurídicas contemporâneas. Vem representando, principalmente, uma vertente distinta dos paradigmas anteriores do Estado Liberal e do Estado Social. Aqui a concepção de direito não se limita a um mero formalismo como no primeiro paradigma, nem descamba para uma materialização totalizante como no segundo. A perspectiva assumida pelo direito caminha para a procedimentalização, e por isso mesmo, a ideia de democracia não é ideal, mas configurando-se pela existência de procedimentos ao longo de todo o processo decisório estatal, permitindo e sendo poroso à participação dos atingidos, ou seja, da sociedade. 39

A Constituição nesse novo paradigma não tem caráter meramente programático e

descritivo das instituições, mas adquire força normativa, conforme tratado por Konrad

Hesse40, para o qual as normas constitucionais são dotadas de imperatividade e sua

inobservância deflagrará mecanismos próprios para cumprimento coercitivo.

A complexa sociedade tecnológica e globalizada busca por respostas rápidas e

eficazes aos problemas e conflitos sociais. Quer resultados e políticas públicas eficientes.

A crise da década de 80 e do início da década de 90 mostrou que o Estado não

mais podia atender aos anseios da sociedade contemporânea e precisava ser reformulado.

Iniciam-se novos movimentos de reforma do Estado pelo mundo, em especial na

Inglaterra (Margaret Thatcher) e nos Estados Unidos (Ronald Reagan), alastrando-se para

outros países do ocidente, inclusive, na América Latina. São reformas estruturais nos regimes

de previdência, sistema tributário, reformas administrativas, política e também do Poder

Judiciário.

Tais movimentos de reforma também impactaram sérias mudanças no Brasil a

partir da doutrina Neoliberal que encontrou no Consenso de Washington seu apogeu.

Nesse novo cenário, o Estado começa a se afastar das atividades produtivas

mediante processos de privatização e delegações de serviços públicos à iniciativa privada,

intensificando sua função regulatória e de indução do mercado. A ênfase passa a ser a da

39 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 206-207. 40 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.

Page 31: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

29

eficiência da gestão da administração pública, abandonando-se a excessiva burocracia para se

construir um modelo de administração gerencial nos moldes da administração privada das

empresas, garantindo-se direitos fundamentais individuais, sociais e outros direitos difusos e

coletivos.

No Brasil, o Constitucionalismo contemporâneo e o paradigma do Estado

Democrático de Direito emergiram com o advento da Constituição da República de 1988,

com ampla reestruturação do Estado, especialmente do Poder Judiciário, acompanhada da

garantia de novos direitos. A sociedade globalizada impulsionou a necessidade da tutela de

interesses metaindividuais, classificados como direitos difusos fundamentais de terceira

dimensão.

Para Novelino41, “com o advento da Constituição de 1988 houve um

fortalecimento institucional do Poder Judiciário até então desconhecido no sistema

constitucional brasileiro”.

O fundamento desse novo paradigma do Estado não é apenas a defesa dos direitos

de primeira dimensão (direitos civis e políticos) e de segunda dimensão (direitos sociais,

econômicos e culturais), mas também a efetiva proteção e implementação dos direitos

fundamentais de terceira dimensão42 (direitos difusos)43.

Já se alardeia, inclusive, a garantia dos direitos de quarta e quinta dimensões.

Paulo Bonavides, por exemplo, defende a existência dos direitos de quarta

dimensão decorrentes da globalização política, relacionados à democracia, à informação e ao

pluralismo, in verbis:

A globalização política neoliberal caminha silenciosa, sem nenhuma referência de valores. (...) Há, contudo, outra globalização política, que ora se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos fundamentais. A única verdadeiramente que

41 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2010, p. 636. 42 Registre-se que a divisão dos direitos fundamentais em dimensões está amparada no surgimento histórico de tais direitos, sendo que parte doutrina tem evitado o termo “geração”, trocando-o por “dimensão”. Isso porque a ideia de “geração” está diretamente ligada à de substituição ou superação, sendo que os direitos fundamentais não se sobrepõem, não são suplantados uns pelos outros. A distinção entre gerações serve apenas para, pedagogicamente, situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica, conforme a evolução do Estado. 43 GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual. In: SOUZA, Márcia Cristina Xavier de. RODRIGUES, Walter dos Santos (Coord.). O novo Código de Processo Civil: o projeto do CPC e o desafio das garantias fundamentais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 02.

Page 32: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

30

interessa aos povos da periferia. Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. (...) A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. É direito de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. (...) os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia.44

Como o sistema de direitos visa a incorporar os anseios e necessidades humanas

que se apresentam com o tempo, José Adércio Leite Sampaio45 ressalta que já há quem fale de

uma quinta geração dos direitos humanos com múltiplas interpretações, como, por exemplo,

direito ao patrimônio genético e à proteção contra o abuso de técnicas de clonagem.

O acesso efetivo à Justiça ganha, portanto, novo impulso com o advento dos

direitos de terceira e quarta gerações, relacionados ao meio ambiente, ao desenvolvimento

sustentável, à proteção do consumidor, e demais direitos difusos e coletivos. Por conseguinte,

as declarações jurídicas consagraram a prerrogativa inarredável de que todo cidadão faz jus a

receber dos tribunais solução efetiva e em tempo razoável para os atos que violem seus

direitos.

O acesso à Justiça se qualifica (ou deveria se qualificar) no paradigma do Estado

Democrático de Direito pela participação efetiva do jurisdicionado no modelo constitucional

do processo, o que será abordado em capítulo próprio da pesquisa, no qual será permitido o

acesso à argumentação, à fundamentação e à certeza de que as decisões tomadas em prejuízo

ou a favor do jurisdicionado se legitimarão a partir da sua construção participativa assegurada

pelo contraditório substancial.

Assim, nem a concepção liberal nem a concepção social podem “mais

solitariamente responder aos anseios de uma cidadania participativa, uma vez que tais

modelos de concepção processual não conseguem atender ao pluralismo, não solipsista e

democrático do contexto normativo atual” 46.

44 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Malheiros, 2006, p. 571-572. 45 SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 302. 46 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008, p. 42.

Page 33: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

31

Por outro lado, a ineficiência do Estado quanto à efetivação dos direitos básicos à

educação, saúde, moradia e ao trabalho assegurados pela Constituição da República de 1988

tem acarretado grande insatisfação social. Ou seja, existe uma discrepância alarmante entre as

promessas constitucionais e a realidade vivenciada, demonstrando a conduta recalcitrante dos

entes públicos e grandes empresas – instituições financeiras, concessionárias de serviços

públicos em geral – em transformar e melhorar a qualidade e eficiência dos serviços.

Nesse contexto, o Poder Judiciário passou a representar uma peça fundamental no

processo de densificação social das normas, visando à concretização de direitos carentes de

políticas públicas.

Dierle Nunes47 alerta que “o Judiciário trabalha com as consequências do não

cumprimento dos direitos, mas dificilmente com as causas, para as quais, em grande medida,

haveria a necessidade de políticas públicas mais idôneas promovidas pelo Executivo”.

Assim, o Poder Judiciário apático e inerte de outrora cede seu lugar a um Poder

prospectivo e atuante, em decorrência da denominada “judicialização” das políticas públicas

para a efetivação dos direitos.

O ministro do STF, Luis Roberto Barroso, assim leciona sobre o fenômeno da

“judicialização”:

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. Fruto da conjugação de circunstâncias diversas, o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês (...) Exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do direito.48

Através do fenômeno da judicialização da política e das relações sociais, o Poder

Judiciário está ampliando sua esfera de atuação por via de um poder de revisão dos atos

originados dos Poderes Executivo e Legislativo, deslocando os discursos do âmbito da esfera 47 NUNES, Dierle José Coelho. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva, a litigância de interesse público e as tendências ''não compreendidas'' de padronização decisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 36, n. 199, set. 2011, p. 43. 48 BARROSO, Luis Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 12, n. 96, fev/maio 2010, p. 6-7.

Page 34: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

32

de representação política para a atuação decisória dos tribunais, o que, sem sombra de dúvida,

causou um redimensionamento do papel do Judiciário para o qual ele não estava preparado.

Isso provocou a explosão da litigiosidade de massa ou de demandas repetitivas,

que associada a questões funcionais e estruturais, trouxe graves implicações à celeridade

processual.

A respeito do tema, merecem destaque as observações de Gláucio Maciel

Gonçalves e Victor Dutra:

O fenômeno das demandas repetitivas (plúrimas, seriais etc.) é, pois, relativamente recente na história processual. Decorre, em grande parte, do amplo acesso à justiça garantido com a Constituição de 1988, da universalização de determinados serviços básicos (v.g. telefonia e energia elétrica) ou da ampliação do acesso ao crédito, fatos que colocaram em litígio, de um lado, inúmeros cidadãos e, de outro, instituições financeiras, empresas ou o próprio Estado – seja diretamente, como quando não honra seus compromissos junto a servidores públicos, seja indiretamente, quando intervém na vida social por meio de planos econômicos. Tais demandas repetitivas, em sua grande maioria, não costumam albergar pretensões jurídicas complexas, nem demandam profunda instrução probatória, mas desafiam o Judiciário, em virtude do seu poder exponencial de replicação, que coloca em xeque velhas estruturas e procedimentos.49

Enquanto em 1990 o Judiciário havia recebido cerca de 04 milhões de processos

em constante elevação, na década de 2000, o volume ultrapassou 20 milhões de ações e, em

2014, alcançou o patamar de cem milhões de demandas, conforme recente Relatório Justiça

em números do Conselho Nacional de Justiça.50

Boaventura de Sousa Santos51 já advertia há mais de uma década que tudo isso

resultaria em uma explosão de litigiosidade à qual a administração da justiça dificilmente

poderia responder, acarretando sérios problemas de eficiência e morosidade ao Poder

Judiciário.

1.2 As ondas de reformas processuais após a Constituição de 1988 e os Pactos

Republicanos: solução para a morosidade da prestação jurisdicional?

49 GONÇALVES, Gláucio Maciel; DUTRA, Victor Barbosa. Apontamentos sobre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas no Código de Processo Civil de 2015. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015, p. 190. 50 Conforme dados disponíveis em: http://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2015.pdf. Acesso em: set. 2015. 51 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Porto: Afrontamento, 1999, p. 145.

Page 35: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

33

A ineficiência e a morosidade do Poder Judiciário passaram a integrar nas últimas

décadas a pauta do Congresso Nacional, do Executivo, através do Ministério da Justiça, e do

próprio Poder Judiciário que tenta implantar novas políticas de gestão e tramitação processual

para aceleração da prestação jurisdicional.

Disseminou-se no Brasil a ideia de que os “defeitos” da legislação processual

seriam os principais responsáveis pela morosidade judicial, o que gerou uma onda de

reformas legislativas.

Importante alertar, contudo, que a “Crise do Poder Judiciário” não pode ser

entendida de forma simplista como se fosse apenas uma questão de direito processual,

quando, na verdade, ela envolve uma crise de todo o Sistema de Justiça e até mesmo do

próprio Estado que não consegue, já há muito tempo, proporcionar a satisfação do cidadão

com o acesso aos serviços públicos essenciais de qualidade.

Um estudo levantado pelo Banco Mundial, publicado em 30/12/2004, através do

Relatório nº 32789-BR52, aponta que a crise da Justiça brasileira possui inúmeras facetas de

modo que não seria útil falar em uma crise e sim em múltiplas crises. A pesquisa conclui que

existiriam cinco espécies de crise, a saber: a) o excessivo ajuizamento de processos judiciais

de natureza administrativa, decorrentes do mau serviço prestado por órgãos do governo (os

réus) e da suspeita de que tais órgãos retardem pagamentos devidos a setores privados; b) as

execuções fiscais (tendo como autor o governo) nos juízos tanto federais quanto estaduais, em

que o problema corresponde tanto ao crescimento da demanda quanto ao trabalho acumulado

e atrasado, indicando que esses processos não estão sendo resolvidos; c) problema relacionado

com a cobrança de dívidas de particulares que parece também ligado ao processo de gravação;

d) o aparente custo-ineficiência dos juízos trabalhistas; e) o crescente congestionamento dos

tribunais estaduais de pequenas causas e as pressões que exercem sobre os orçamentos dos

judiciários estaduais.

Nesse sentido, Leonardo Greco afirma que:

A atual crise da justiça se insere num contexto muito mais amplo de crise do próprio Estado e de perda de credibilidade das instituições políticas. Não é somente a justiça que não atende aos anseios dos cidadãos. É o próprio Estado que não logra dar conta da sua missão de velar pelo bem-estar da

52 BANCO MUNDIAL. Fazendo com que a Justiça conte. Medindo e Aprimorando o Desempenho da Justiça no Brasil. Relatório nº 32.789-BR do Banco Mundial Unidade de Redução de Pobreza e Gestão Econômica. 30.12.2004. Disponível em: http://www.amb.com.br/docs/bancomundial.pdf. Acesso em: set. 2015.

Page 36: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

34

população e pelo fornecimento de serviços públicos essenciais, nas suas diversas áreas de atuação. 53

Rodolfo Mancuso aponta ainda como concausas da crise do Poder Judiciário,

entre outras, a judicialização das políticas públicas em razão da ineficiência das instâncias

administrativas, o que dá margem à discricionariedade judicial e ao alargamento do campo de

atuação do Poder Judiciário54, o gigantismo desordenado do próprio Poder Judiciário no

Brasil que fomentaria a litigiosidade e a cultura demandista brasileira55, a deficiente

divulgação e utilização56 de outros meios de resolução de conflitos57, as duas classes de

litigantes (os habituais ou frequentes e os eventuais ou esporádicos) e a desigual distribuição

dos ônus e encargos processuais entre eles58.

O gigantismo da estrutura do Poder Judiciário no Brasil se dá muitas vezes pela

ausência de planejamento estratégico efetivo na distribuição dos órgãos jurisdicionais. Não

raras vezes, a criação e instalação de órgãos de primeira instância do Poder Judiciário são

motivadas por interesses e interferências muito mais políticas do que técnicas para melhor

equilíbrio e organização da Justiça. De igual modo, a não criação de órgãos necessários

53 GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual. In: SOUZA, Márcia Cristina Xavier de. RODRIGUES, Walter dos Santos (Coord.). O novo Código de Processo Civil: o projeto do CPC e o desafio das garantias fundamentais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 11. 54 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2011, p. 89. 55 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2011, p. 135-136. 56 A nova lei 13.140, de 2015, acerca da mediação e conciliação, traz um capítulo próprio para a conciliação judicial extrajudicial nos conflitos em que for parte a Administração Pública – o maior litigante do Sistema de Justiça no Brasil, propondo a criação de câmaras de mediação e conciliação e a conciliação por adesão, com fim de possibilitar aos interessados, optarem por um acordo na via administrativa, evitando-se a judicialização. Além da previsão normativa, importantes medidas estão sendo concretizadas para ampliar a cultura da conciliação e mediação no Brasil. Em razão da Política Nacional da Conciliação implementada e incentivada pelo CNJ, já foram criados cerca de 500 (quinhentos) Centros Judiciários de Resolução de Conflito e Cidadania (Cejuscs) em todo o país. Dentre os casos que podem ser resolvidos nos Cejuscs estão questões relativas ao direito civil, especialmente ao direito de família, como regularização de divórcios, investigação de paternidade, pensão alimentícia e renegociação de dívidas. O CNJ divulgou que cerca de 270 mil casos foram solucionados nos referidos Centros Judiciários de Resolução de Conflito e Cidadania (Cejuscs) em 2015, evitando a entrada de mais processos no já congestionado Judiciário brasileiro. Os dados referem-se a oito estados e não contabilizam as audiências que ocorrem nas semanas nacionais de conciliação. Só em São Paulo, estado com o maior número de centros (153 unidades), 138 mil casos foram finalizados com a ajuda de conciliadores, magistrados, servidores e instituições envolvidas nas audiências de conciliação. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mar-07/conciliacao-judiciario-livrou-270-mil-processos-2015. Acesso em: mar. 2016. 57 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2011, p. 173. 58 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2011, p. 120.

Page 37: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

35

também ocorre por motivações divorciadas da análise técnica e estratégica necessária para a

melhor distribuição do Sistema de Justiça. É o que se dá, por exemplo, com o não

desmembramento do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, que ainda abrange 13 Estados

da federação mais o Distrito Federal, acarretando grave desequilíbrio do acesso ao segundo

grau da Justiça Federal no Brasil. A ausência de planejamento gera, enfim, custos

desnecessários e ineficiência da atividade jurisdicional no Brasil59.

O professor Barbosa Moreira60 também critica o “mito” de que a sobrecarga de

processos e a lentidão do Poder Judiciário seriam causadas pela legislação processual. Para

ele, a demora processual resulta da conjugação de múltiplos fatores, entre os quais também

concorre a lei, que, todavia, com todas as imperfeições que possa ter, não ocupa o lugar de

maior relevância.

Morais e Spengler61 apontam, na sua visão, quatro vertentes da crise do Sistema

de Justiça, quais sejam: a crise estrutural, a crise objetiva ou pragmática, a crise subjetiva ou

tecnológica e a crise paradigmática.

A crise estrutural é aquela que decorre da deficiência de gestão, da ausência de

infraestrutura adequada, número insuficientes de juízes e servidores. A crise objetiva ou

pragmática, segundo os referidos juristas, refere-se aos aspectos pragmáticos da atividade 59 A título de comparação, oportuno destacar a diferença de planejamento estratégico e de avaliação de desempenho dado à estrutura do Poder Judiciário na Inglaterra. Em junho de 2010, “o Ministério da Justiça anunciou a intenção de fechar 157 tribunais e abriu consulta pública para ouvir a opinião da população. De posse das respostas, o governo decidiu poupar 15”. A Inglaterra e o País de Gales tinham àquela época 530 cortes na primeira instância da Justiça. Dessas, 330 eram Magistrate’s Courts, espécie de Juizado Especial; 219 County Courts, o equivalente britânico às varas de primeira instância; e 91, Crown Court Centres, que cuidam dos processos criminais e nas quais acontecem os júris (a soma dá mais de 530 porque o mesmo tribunal pode abrigar duas cortes diferentes). Foram fechadas 93 Magistrates’ Courts e 49 County Courts. A redução de prédios da Justiça faz parte da faxina pela qual passa o Judiciário britânico. O objetivo anunciado pelo Ministério da Justiça seria o de tornar o Judiciário inglês mais efetivo e econômico. (Disponível em http://www.conjur.com.br/2010-dez-20/governo-inglaterra-decide-fechar-142-tribunais-todo-pais. Acesso em: fev. 2016). Mais recentemente, a Inglaterra anunciou nova redução do número de órgãos de primeira instância do Poder Judiciário. “Cinco anos depois de fechar quase um quarto dos tribunais de primeira instância, o Ministério da Justiça do Reino Unido anunciou que vai acabar com mais 86 cortes na Inglaterra e no País de Gales. Segundo o governo, essas cortes são usadas por apenas dois dias por semana. No restante do tempo, permanecem vazias. O fechamento faz parte do programa do governo para tornar o Judiciário mais econômico e, ao mesmo tempo, eficiente. Segundo o Ministério da Justiça, uma pesquisa mostrou que 48% dos 460 tribunais na Inglaterra não foram usados para audiências e julgamentos por mais da metade do tempo disponível no ano passado. Isso significa que foi gasto dinheiro para manter uma estrutura quase dispensável”. (Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-fev-13/reino-unido-planeja-fechar-86-tribunais-falta-uso. Acesso em: fev. 2016). 60 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da Justiça: alguns mitos. Revista Forense, v. 96, n. 352, out-dez, 2000, p. 117. 61 MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 78-79.

Page 38: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

36

jurídica, englobando questões relacionadas à linguagem técnico-formal utilizada nos ritos e

trabalhos forenses, a burocratização e lentidão dos procedimentos, excesso de recursos,

acúmulo das demandas sem solução em tempo razoável. A crise subjetiva ou tecnológica é a

que se vincula à incapacidade tecnológica dos operadores jurídicos tradicionais lidarem com

novas realidades fáticas que exigem não apenas a construção de novos instrumentos legais,

mas também a (re)formulação das mentalidades em relação à nova realidade social que se

apresenta. A crise paradigmática é aquela que trata sobre os métodos e conteúdos utilizados

pelo direito para a busca de um tratamento pacífico para os conflitos a partir da atuação

prática da norma aplicável ao caso sub judice. Já a crise funcional surge, enfim, a partir da

inadequação das leis publicadas, a intrincada processualística e a deficiência do sistema de

provocação do Poder Judiciário.

Evidentemente que não se pretende aprofundar o estudo sobre as referidas

vertentes, pois não se trata do objeto principal desta pesquisa, mas apenas demonstrar que a

complexidade dos problemas do Sistema de Justiça do Brasil vai muito além da necessidade

de reforma da legislação para criação de novas técnicas processuais de julgamento.

A crise é, portanto, sistêmica, envolvendo questões afetas à gestão do próprio

Poder Judiciário62, questões relacionadas à formação nos cursos de graduação em Direito, à

formação e recrutamento dos magistrados, à ausência de incentivo e integração dos métodos

alternativos de solução de conflitos, questões relacionadas ao desprestígio do processo

62 O professor e juiz federal Carlos Haddad defende que a Justiça pode melhorar muito, basta ser bem administrada. Em artigo publicado no Conjur, o ilustre jurista narra sua experiência pessoal exitosa implementada, em 2011, na Subseção Judiciária de Montes Claros/ MG, para agilizar a tramitação dos processos e melhorar os serviços judiciários daquela subseção, cujo acervo processual contava naquele ano com absurdos 23.704 processos em tramitação. Haddad fez um diagnóstico dos problemas do órgão do Poder Judiciário e implantou um modelo de gestão. Para Haddad, todo modelo de gestão se baseia em cinco pilares fundamentais, que ajudam o gestor a pensar de maneira estruturada em como atingir com eficiência e eficácia os objetivos propostos. São eles: a) estratégia; b) estrutura e recursos; c) calendário de atividades; d) rotinas e projetos; e e) indicadores e metas. O modelo de gestão é o veículo que conduzirá a unidade judiciária ao objetivo estratégico proposto. Após a implantação do modelo de gestão e a ajuda de um software CTPJ (Controle do Tramite de Processos Judiciais), foram realizadas várias reuniões de organização do trabalho, estabelecendo-se prazos máximos de tramitação e elaboração de rotinas mais eficientes, o que acarretou enorme melhoria na execução dos serviços da Vara Federal. Em pesquisa de satisfação com os usuários da Vara Federal de Montes Claros, ao serem indagados sobre a ocorrência de melhorias na qualidade da prestação jurisdicional no último ano, 75% dos usuários respondeu positivamente. Foi criada a 2ª Vara Federal em 2012, o que reduziu à metade o acervo original. De qualquer forma, mesmo ingressando 11.471 ações no período de 22 meses, o volume de processos reduziu-se a pouco menos de 6.000, e os prazos de tramitação também sofreram expressiva diminuição. Da referida experiência, Haddad relata algumas lições importantes: 1) Os juízes não são oniscientes e precisam de ajuda especializada para bem administrar; 2) O tratamento célere e resolutivo dos processos é parte inseparável da qualidade da prestação jurisdicional; 3) Somente em casos extremos a prestação de serviço público de qualidade depende de mais dinheiro e mais pessoas; 4) É preferível trabalhar com um grupo menor, mas coeso, a contar com multidão batendo cabeças; 5) A Justiça, enfim, pode ser melhorada. (HADDAD, Carlos. Acredite: a Justiça pode melhorar, basta bem administrar. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-jan-17/segunda-leitura-acredite-justica-melhorar-basta-bem-administrar Acesso em: jan. 2016).

Page 39: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

37

coletivo, ao despreparo e à ineficiência dos entes públicos, podendo-se destacar, ainda, a

postura dos litigantes habituais (repeat players).

O magistrado Mello Serra já advertia há quase vintes anos sobre a ausência de

política de gestão no Judiciário:

Em princípio, as críticas relativas à morosidade formuladas ao Poder Judiciário pareciam injustas, se analisadas do ponto de vista do próprio Poder, pois tinham conhecimento das dificuldades encontradas por seus integrantes. A atuação do Judiciário como prestador de serviços era deficiente e deixava de apontar que não eram aplicadas técnicas de gestão. Destacava-se que a maior parte das serventias atuavam acima dos limites de suas capacidades produtivas, sofriam de uma sistemática carência de investimentos em organização, layout e de informática, e as estatísticas exibiam números grandiosos de demanda. Após alguma análise diagnóstica, pôde-se perceber que ocorria manifesta a ausência de uma política pública, clara, transparente, objetiva, de contratação e movimentação de pessoal, de treinamento específico dos servidores para o desempenho de suas atividades, de treinamento para o atendimento ao público, que levasse ao aprimoramento dos serviços prestados, visando torná-los mais simplificados, ao alcance e de fácil compreensão por aqueles de menor preparação técnica ou intelectual. 63

No mesmo sentido é o entendimento do professor Marcelo Abelha:

Enfim, é preciso ter em mente que o tema da crise do Poder Judiciário deve ser visto sob várias frentes, pois direta ou indiretamente são muitas as causas às quais se pode atribuir esse nefasto efeito de demora irrazoável na prestação jurisdicional. Sem sombra de dúvida que um desses fatores decorre da crise estrutural do Poder Judiciário, que reflete a ausência de infraestrutura (instalação, espaço, pessoal, equipamentos, etc.) para a prestação do serviço jurisdicional. O número de demandas que ingressam no Judiciário é muito maior do que as que saem, e a estrutura existente (pessoal e equipamentos) para lidar com esses números é arcaica, limitada e insuficiente. (...) Outro fator considerável dessa crise – também já revelado pela radiografia do Judiciário feita pela Fundação Getúlio Vargas – é a ineficiência e a incapacidade de autogestão administrativa do Poder Judiciário. A má administração da deficiente infraestrutura, a ausência de logística e planejamento, a inexistência de ações de administração, de resultados e metas, constituem também fatores decisivos para tal fenômeno. 64

Em que pesem o alerta e as críticas acima apontadas, é fácil perceber que a

preocupação voltada apenas com as reformas da legislação processual foi e continua sendo a

tônica encontrada pelos poderes constituídos da República para solucionar a crise.

63 SERRA, Umpierre de Mello. Gestão de Serventias. v. 1. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 7-8. 64 ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 29.

Page 40: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

38

1.2.1 A primeira onda de reforma do Código de Processo Civil de 1973

No início da década de 90, percebeu-se que o problema da morosidade processual

havia se agravado após a Constituição de 1988, tendo-se iniciado um movimento renovador

do Código de Processo Civil capitaneado pelos renomados juristas Athos Gusmão Carneiro e

Sálvio de Figueiredo Teixeira, então ministros do Superior Tribunal de Justiça, que

constituíram uma comissão para nova reformulação do sistema jurídico-processual. 65

Naquele momento, decidiu-se apenas pela criação de leis específicas para

alterações pontuais do Código vigente.

A referida comissão composta por diversos juristas, tais como Ada Pellegrini

Grinover, Celso Agrícola Barbi, Humberto Theodoro Júnior, José Carlos Barbosa Moreira,

entre outros, foi responsável pela elaboração de 11 anteprojetos de lei para modificação de

pontos específicos do CPC, tendo 10 deles sido convertidos em leis que aperfeiçoaram a fase

probatória, os atos de comunicação processual, introduziram a tutela antecipada com o

propósito de conferir maior efetividade ao processo. A legislação introduziu, ainda, no CPC a

ação monitória como tutela diferenciada para obtenção mais célere do título executivo

judicial. 66

O Código de Processo Civil de 1973 começou a possuir novas vestes voltadas

primordialmente à busca da efetividade da tutela jurisdicional, mas a litigiosidade não foi

remediada.

1.2.2 O I Pacto Republicano: a implementação da reforma do Poder Judiciário

As modificações legislativas pontuais iniciadas na década de 90 mostraram-se, ao

longo dos anos, insuficientes para a resolução da crise, o que aprofundou o debate sobre a

necessidade de reforma do próprio Poder Judiciário, culminando com a promulgação da

Emenda Constitucional (EC) n. 45, de 2004.

65 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil: Lei 8.455, de 24-08-92, 8.637, de 31-3-93, 8.710, de 24-9-93, 8.718, de 14-10-93, 8.898, de 29-6-94, 8.950, de 13-12-94, 8.951, de 13-12-94, 8.952 de 13-12-94 e 8.953, de 13-12-94. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 28. 66 Destacam-se a Lei 8.455/1992 que alterou dispositivos referentes à prova pericial; a Lei 8.710/1993 que previu a citação por meio de serviço postal e alterou outros dispositivos relativos aos atos de comunicação pessoal; Lei 8.898/1994, prevendo a citação do réu, na liquidação por arbitramento e por artigos, na pessoa do advogado constituído nos autos; a Lei 8.950/94 que alterou dispositivos relativos aos recursos; Lei 8.951/94 que alterou dispositivos das ações de consignação em pagamento e de usucapião; Lei 8.952/94 que alterou dispositivos do processo de conhecimento e do cautelar, prevendo o instituto da antecipação dos efeitos da tutela; Lei 8.953/1994 que alterou dispositivos do processo de execução; Lei 9.079/1995 que introduziu no direito processual brasileiro a ação monitória; a Lei 9.139/95 que alterou dispositivos do recurso de agravo de instrumento; e, por fim, a Lei 9.245/1995 que alterou dispositivos do procedimento sumário.

Page 41: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

39

Sobre a necessidade de reforma do Poder Judiciário, o então ministro Sálvio

Figueiredo de Teixeira afirmou que:

(...) em uma sociedade de massa, complexa, competitiva e altamente veloz, a engrenagem estatal já não satisfaz. O Judiciário, nesse contexto, por suas características e dependência orçamentária, que se aliam a um modelo desprovido de modernidade e sem planejamento eficaz, reflete ainda com mais eloquência esse distanciamento, apresentando-se como uma máquina pesada e hermética, sem as desejáveis dinâmica, transparência e atualidade.67

E logo a seguir o saudoso processualista mineiro acrescentou que:

(...) dessa moldura se conclui que, sem maiores esforços, há uma nítida distinção entre o Judiciário que a sociedade reclama, e todos desejamos, e o Judiciário que aí está posto, que a todos descontenta, inclusive, e sobretudo, aos juízes, em quem acabam recaindo as críticas generalizadas, desconhecendo os jurisdicionados a real dimensão da problemática, quando temos um juiz para cada 25.000 a 29.000 habitantes (a média, na Europa, é de um para cada 7.000 a 10.000), sendo que o Supremo Tribunal Federal julga mais de 100.000 processos por ano (enquanto a Suprema Corte dos Estados Unidos julga menos de 100 causas em igual período) e o Superior Tribunal de Justiça mais de 150.000, números de longe sem similar no plano internacional, sendo de que acrescentar que igualmente super congestionadas estão as instâncias ordinárias.68

Com o propósito de implementar a reforma constitucional preconizada pela

referida emenda, foi subscrito pelos chefes dos três Poderes da República, em dezembro de

2004, um Pacto de Estado69 em favor de um Judiciário mais rápido e republicano,

consubstanciado em vários compromissos fundamentais, entre os quais, destacam-se a

reforma do sistema recursal e dos procedimentos para desburocratizar o processo, a

implementação da informatização, além de se estabelecer uma política de coerência entre a

atuação administrativa e as orientações jurisprudenciais já pacificadas para diminuir a

litigiosidade.

Como resultado do I Pacto Republicano, iniciado em 2004, vários projetos de lei

67 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A reforma do Poder Judiciário. In: MARTINS, Ives Gandra; NALINI, José Renato (Coord.). Dimensões do direito contemporâneo: estudos em homenagem a Geraldo de Camargo Vidigal. São Paulo: IOB, 2001, p. 57-58. 68 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A reforma do Poder Judiciário. In: MARTINS, Ives Gandra; NALINI, José Renato (Coord.). Dimensões do direito contemporâneo: estudos em homenagem a Geraldo de Camargo Vidigal. São Paulo: IOB, 2001, p. 58-59. 69 BRASIL. Secretaria de Reforma do Judiciário. I Pacto Republicano. Brasília: Secretaria de Reforma do Judiciário. 2004. Disponível em www.mj.gov.br. Acesso em: ago. 2015.

Page 42: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

40

de reforma do Código de Processo Civil foram aprovados70.

Não obstante as reformas aprovadas71, o Conselho Nacional de Justiça divulgou,

no Encontro Nacional do Judiciário, pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas72, no

período de 09 a 11 de fevereiro de 2009, na qual 1.200 (um mil e duzentos) entrevistados

consideraram a Justiça cara, lenta e manipulável pela imprensa, empresários e políticos. A

lentidão da Justiça foi a característica mais citada pelos entrevistados: 88%. Em seguida, os

altos custos para seguir com uma ação judicial (78%), a falta de imparcialidade (69%) e a

influência sofrida pelos juízes na hora de decidir (63%).

A criação da técnica de julgamento dos recursos repetitivos e da súmula

vinculante não trouxe celeridade processual, mas apenas aumentou o risco de padronização

decisória no Sistema de Justiça no Brasil como forma de estabilização da jurisprudência.

1.2.3 O II Pacto Republicano: aprovação de novas propostas legislativas

Envolto por um contexto social ainda de muito descrédito em relação à celeridade

e eficiência do Poder Judiciário, firmou-se, em abril de 2009, o II Pacto Republicano de

70De acordo com as informações do site do Supremo Tribunal Federal, o I Pacto Republicano foi decisivo para a efetivação de mecanismos que aumentaram a agilidade da Justiça, como a regulamentação dos institutos da Súmula Vinculante e da Repercussão Geral por meio, respectivamente, das Leis 11.417 e 11.418, ambas de dezembro de 2006. A plena vigência desses institutos contribuiu para desafogar os gabinetes dos 11 Ministros da Corte, possibilitando um andamento mais célere aos processos, visto que impediram a interposição de inúmeros de Recursos Extraordinários e Agravos de Instrumento. De acordo com o Presidente do STF à época, Ministro Cezar Peluso, a aplicação da sistemática da repercussão geral já resultou, desde 2007, na redução de 41,2% do número de recursos que chegam a Corte. Entre outras ações aprovadas no Pacto Republicano estão a criação de um cadastro centralizado de crianças e adolescentes desaparecidos; a tipificação de crime de sequestro e a revisão da legislação sobre crimes sexuais. Dos 41 projetos encaminhados ao Congresso Nacional que buscavam atingir maior efetividade do Judiciário, 11 viraram lei; 4 aguardam entrar na pauta; e o restante tramita nas comissões do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. (Disponível em: http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfDestaque_pt_br&idConteudo=173547. Acesso em: ago. 2015). 71 Merecem destaque também as seguintes leis aprovadas: Lei 11.187/2005 que disciplinou o cabimento dos agravos de instrumento e retido; Lei 11.232/2005 que estabeleceu a fase de cumprimento de sentença – execução sincrética – revogando dispositivos relativos ao processo de execução de título judicial; Lei 11.276/2006 que previu a súmula impeditiva de recursos no caso de interposição de apelação; Lei 11.277/2006 que permitiu o julgamento initio litis de demandas repetitivas; Lei n. 11.382/2006 que reformou a disciplina do processo de execução fundada em título executivo extrajudicial; a Lei 11.419, de 2006, que regulamentou o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças nos processos civil, penal e trabalhista, bem como nos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição; Lei 11.441/2007 que possibilitou a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual na via administrativa; Lei 11.448/2007 que modificou a lei da ação civil pública para assegurar a legitimidade da Defensoria Pública para sua propositura; e também a Lei 11.672/2008 que estabeleceu o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito da competência do Superior Tribunal de Justiça. 72 Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-fev-22/brasileiro-poder-judiciario-lento-caro-imparcial Acesso em: ago. 2015.

Page 43: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

41

Estado por um Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo73.

Para a consecução dos objetivos estabelecidos no referido Pacto, foram assumidos

novos compromissos públicos na linha do primeiro pacto firmado. Entre outros pontos,

firmou-se o compromisso de fortalecer as Defensorias Públicas, a mediação e a conciliação,

estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos, além de incentivar a

ampliação da edição de súmulas administrativas e a constituição de Câmaras de Conciliação

no intuito de diminuir a litigiosidade, sobretudo envolvendo os entes públicos considerados os

maiores litigantes do Sistema de Justiça.

E, como resultado dos esforços conjuntos empreendidos no âmbito dos referidos

Pactos Republicanos, várias propostas foram implementadas ao longo dos últimos anos,

especialmente a aprovação de leis que acarretaram a introdução no sistema processual de

novos instrumentos como o julgamento imediato das ações repetitivas, técnica de julgamento

dos recursos extraordinários (repercussão geral) e especiais (recursos repetitivos), as súmulas

impeditivas de recurso e das súmulas vinculantes. A execução dos títulos extrajudiciais foi

simplificada com a criação e a modificação das formas de expropriação de bens (adjudicação,

alienação particular, parcelamento imobiliário), e foram introduzidos atos executivos no

processo de conhecimento com a criação da fase de cumprimento de sentença (execução

sincrética).

Destacam-se também a Lei 12.016/09, que regulamentou o mandado de

segurança, e a Lei 12.011/09, que estruturou a Justiça Federal com a criação de 230 varas

federais. Foi publicada a Lei 12.012/09, que criminalizou a entrada de aparelhos celulares e

similares nas penitenciárias do país; a Lei 11.969, que facilita o acesso de advogados aos

autos de processos, em cartório; e a Lei 11.965, que prevê a participação de defensores

públicos em atos extrajudiciais, como assinatura de partilhas e inventários, separação e

divórcio consensual. A Lei 11.925 possibilitou, por sua vez, a declaração de autenticidade dos

documentos pelos advogados.

Foi sancionada, ainda, a Lei 12.019, de 21 de agosto de 2009, que regulamenta a

convocação de magistrados para instrução de processos de competência originária do Superior

Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Também no âmbito do II

Pacto, foi publicada a Lei nº 12.322/2010, para alterar o agravo de instrumento. A Lei 12.153,

de 22 de dezembro de 2009, institui os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos

73 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Outros/IIpacto.htm Acesso em: ago. 2015.

Page 44: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

42

Estados e do Distrito Federal, com competência para processar, conciliar e julgar causas

cíveis, de pequeno valor, de interesse dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,

ampliando o acesso à Justiça.

Importante ressaltar, finalmente, que a Defensoria Pública foi fortalecida com a

aprovação da Emenda Constitucional 74, que lhe conferiu autonomia administrativa e

financeira no âmbito da União, e pela Emenda Constitucional 80, de 04 de junho de 2014, que

fixou prazo de 08 anos para que os entes públicos dotassem todas as comarcas de defensores

públicos.

1.2.4 A proposta para o III Pacto Republicano e a aprovação do novo Código de

Processo Civil

O III Pacto Republicano ainda não foi firmado, mas várias propostas já estão

sendo debatidas. Atualmente, o Conselho Nacional de Justiça está coordenando os estudos e

as prévias propostas74 para a celebração do futuro pacto também voltado para o

aperfeiçoamento do Sistema de Justiça.

Em complemento a todo o ciclo de modificações legislativas do Sistema de

Justiça ao longo dos últimos vinte anos, foi sancionada a Lei n. 13.105, de 16 de março de

2015, com sua entrada em vigor a partir de março de 2016, que institui o novo Código de

Processo Civil.

A novel legislação processual sistematizou as reformas pontuais já implantadas na

legislação em vigor, no intuito de conferir maior funcionalidade, e também buscou inovar o

direito processual com novas técnicas processuais de julgamento dos conflitos.

A criação do novo Código de Processo Civil respalda-se em razões jurídicas e

sociais que legitimam o surgimento do novo diploma, mas ele não pode ser colocado como se

74 Após convite do Conselho Nacional de Justiça para que formulasse sugestões de agenda positiva para a possível elaboração de novo Pacto Republicano, a Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE apresentou, em 05 de agosto de 2015, propostas de medicadas voltadas aos aprimoramentos da execução fiscal, à redução da litigiosidade excessiva veiculada por demandas repetitivas e propostas de alterações quanto ao tema administração e destinação de bens apreendidos. Em relação às demandas repetitivas, a associação apresentou as seguintes propostas: a) Alterar a lei para que se crie uma sistemática processual própria para os litígios que envolvem o cidadão e o poder público, de modo a se evitar soluções conflitantes e anti-isonômicas, com maior alcance do que as medidas propostas no novo CPC; b) Criação de núcleos de monitoramento de demandas repetitivas nas Seções Judiciárias da Justiça Federal, composto pelos próprios magistrados em rodízio, de modo a que os processos replicados não cheguem a ser distribuídos sem um gerenciamento prévio e o início do diálogo interno e interinstitucional; c) Instituir filtros e restrições ao ajuizamento de questões já decidas em sede de recurso repetitivo, repercussão geral ou consolidadas em súmula vinculante, como multas, aumento de custas ou outras sanções; d) Promover uniformização legislativa do patamar de concessão da assistência judiciária gratuita. (Disponível em: www.ajufe.orb.br. Acesso em: ago. 2015).

Page 45: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

43

fosse um remédio adequado e suficiente para debelar a crise da morosidade da prestação

jurisdicional, criando a falsa expectativa de que a situação será resolvida. 75

O número expressivo de leis aprovadas e os projetos ainda em andamento

demonstram que, no Brasil, impera o falso entendimento de que basta a criação de novas leis

para que todos os problemas da morosidade processual sejam resolvidos76.

A cultura jurídica brasileira seria adepta, nas palavras de Rodolfo Mancuso77, da

nomocracia, em razão do imediatismo da solução legislativa e o fato de que a edição e

divulgação de uma nova legislação a respeito de assunto problemático podem passar à

sociedade a impressão de que as medidas já foram tomadas, diminuindo a insatisfação geral.

O enorme arcabouço legislativo impulsionado pelos Pactos da Republica estão

longe de representarem a solução adequada para a crise do Poder Judiciário, mormente no que

se refere às demandas repetitivas.

1.3 A litigiosidade crescente e o agravamento da crise do Poder Judiciário: os dados do

Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça

Mesmo diante de todo o arcabouço legislativo já mencionado neste capítulo, o

problema da morosidade do Poder Judiciário continua permanentemente na agenda do

Conselho Nacional de Justiça, dos tribunais superiores, federais e estaduais, dos magistrados,

dos membros do ministério público, da mídia e da sociedade, que exigem uma atuação cada

vez mais célere, focada principalmente nos resultados, como se a Jurisdição fosse uma

indústria voltada para a fabricação em série do mesmo “produto” – a tutela jurisdicional.

O mais recente relatório “Justiça em Números”, divulgado pelo Conselho

Nacional de Justiça, revelou que tramitam aproximadamente cem milhões de processos

judiciais no Brasil78 com perspectiva de crescimento do acervo processual.

75 ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 31. 76 (...) esse arroubo otimista, revelado em frases de efeito, de que um novo Código de Processo Civil seria a solução para os problemas da crise do Judiciário, nos faz lembrar um recente fato, de otimismo exacerbado, que foi seguido de uma previsível frustração que aconteceu com a introdução no Texto Constitucional do inciso LXXVIII do art. 5º pela EC 45/2004. Nesse dispositivo consagrou-se o direito fundamental à razoável duração do processo, mas nem por isso teve o condão, da noite para o dia, de transformar processos de duração irrazoável em duração razoável, pois, como se disse, não são os “excessos de recursos” nem o “formalismo processual” os principais algozes desse fenômeno. (ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 28) 77MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2011, p. 52. 78 Conforme dados disponíveis em: http://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2015.pdf. Acesso em: set. 2015.

Page 46: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

44

A referida pesquisa constatou de forma contundente que o quantitativo de

processos aumentou 30% em um ano, tendo sido ajuizados mais 28 milhões de feitos no ano

de 2014, os quais não foram julgados e arquivados na mesma proporção, aumentando-se ainda

mais o estoque de demandas pendentes.

De acordo com o relatório, a série histórica da movimentação processual do Poder

Judiciário permite visualizar o aumento contundente do acervo processual no período, visto

que os casos pendentes (70,8 milhões) crescem vertiginosamente desde 2009 e, atualmente,

equivalem a quase 2,5 vezes do número de casos novos (28,9 milhões) e dos processos

baixados (28,5 milhões).

Dessa forma, mesmo que o Poder Judiciário fosse paralisado sem ingresso de

novas demandas, com a atual produtividade de magistrados e servidores seriam necessários,

no mínimo, 02 anos e meio de trabalho para que se julgasse todo o estoque. Entretanto, como

não se julga sem contraditório, antever o tempo para sentenciar um processo é pura alquimia,

o encontro da pedra filosofal. Como historicamente a entrada de processos é sempre superior

à saída, a tendência é de crescimento do acervo. Além disso, apesar do aumento de 12,5% no

total de processos baixados no período 2009-2014, os casos novos cresceram em 17,2%, fato

que contribuiu para o acúmulo do estoque de processos.

Ou seja, mesmo diante de todo o arcabouço legislativo introduzido para a

melhoria do Sistema de Justiça no Brasil, o Poder Judiciário não consegue reduzir nem o

quantitativo de processos ajuizados, aumentando ano a ano o número de casos pendentes.

Na Justiça Federal, por exemplo, tramitam aproximadamente 12 milhões de

demandas, o que gera a carga de trabalho absurda e desumana de aproximadamente 7.000

processos por magistrado. E, a despeito do congestionamento, a Justiça Federal brasileira é

um dos ramos mais produtivos do Poder Judiciário, uma vez que cada um dos seus

magistrados resolve de forma definitiva uma média de 2.113 processos por ano, segundo

dados do Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça divulgado em 2015.

Os cinco tribunais regionais federais do país registraram aumento de demanda

processual de 20,8% apenas em 2014, segundo aponta o referido relatório Justiça em

Números. O levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ registrou que,

depois de anos de relativa estabilidade, com variação de 3% entre 2009 e 2013, o total de

processos novos na Justiça Federal chegou a 4 milhões em 2014, um aumento de 700 mil

Page 47: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

45

casos em relação a 201379.

Esse cenário demonstra que, embora tenham sido criados por lei diversos

mecanismos que se prestam a fomentar a racionalidade na utilização do serviço judiciário, a

exemplo do processo eletrônico e das novas técnicas de julgamento dos recursos

extraordinários (repercussão geral) e especiais (recursos repetitivos) já referidas, a perspectiva

concreta e realista não é de redução de acervo e, principalmente, não é de celeridade

processual, estando longe disso.

Com o atual quantitativo de demandas, torna-se distante a concretização dos

direitos à razoável duração do processo e à efetividade da jurisdição, mesmo com o

incremento de recursos materiais, o que confere à população tão somente a possibilidade de

mero ajuizamento de demandas judiciais - um acesso à justiça meramente formal -, e não a

solução célere e efetiva dos conflitos.

O Brasil vive um crescimento exponencial da sua litigiosidade e a crise, nesse

cenário que se apresenta, não será remediada e tampouco atenuada pela implantação de novas

técnicas processuais de julgamento tal qual o Incidente de Resolução de Demandas

Repetitivas.

Para Barbosa Moreira80, “o que todos devemos querer é que a prestação

jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito

bem: não, contudo, a qualquer preço”.

A simples busca a qualquer custo pela celeridade e uniformidade das decisões

judiciais deve ser utilizada apenas quando servir para melhorar a qualidade da prestação

jurisdicional e não para piorá-la, implicando a padronização superficial das decisões judiciais

e relegando ao segundo plano a plena participação democrática dos sujeitos do processo.

1.4 A morosidade dos tribunais – ineficácia prática da criação de novas técnicas de

julgamento para agilização dos processos

Outro ponto relevante, que não pode ser ignorado na presente análise, relaciona-se

com o papel e a atuação prática dos tribunais diante das novas técnicas de julgamento já

implementadas para “remediar” a crise de morosidade da Justiça.

79Disponível em: http://cnj.jus.br/noticias/cnj/80428-litigiosidade-na-justica-federal-aumenta-em-2014-principalmente-no-1-grau Acesso em: set. 2015. 80 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da Justiça: alguns mitos. Revista Forense, v. 96, n. 352, out-dez, 2000, p. 118.

Page 48: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

46

Tal abordagem se faz necessária para verificar, a partir de diagnósticos do Poder

Judiciário, se, de fato, a concentração nos tribunais do poder de decisão dotado de eficácia

vinculante e erga omnes a partir de inovações de técnicas de julgamentos repercute

necessariamente na celeridade da prestação jurisdicional e na uniformização da jurisprudência

– tônica das reformas legislativas.

A título de ilustração, pesquisa promovida em 2006 pela Secretaria de Reforma do

Judiciário81 sobre a gestão e funcionamento das varas judiciais em São Paulo, revelou que

aproximadamente 35% do tempo total gasto nos processos judiciais se dá posteriormente à

sentença (recebimento do recurso, resposta do recorrido, remessa ao Tribunal e julgamento

dos recursos), havendo secretarias judiciais em que este percentual alcançou o patamar

absurdo de cerca de 50%.

Demonstrou-se naquela oportunidade que a morosidade processual na segunda

instância seria ainda mais grave do que na primeira, tendo em vista a demora para a

distribuição dos recursos, o congestionamento das pautas de julgamento, dentre outros fatores

que contribuem para a lentidão processual, isso somado ao fato de que pelo menos um dos

litigantes está interessado em prolongar o processo tanto quanto possível, fazendo uso de

todos os incidentes procedimentais que o ordenamento processual disponibiliza, postergando

ao máximo o cumprimento de sua obrigação.

No relatório da pesquisa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça de

200582, anterior à reforma processual, também foi diagnosticada uma alta sobrecarga dos

tribunais em face do nível de recorribilidade das decisões judiciais. Somando-se os casos

novos que ingressaram no 2º grau com o número de casos pendentes de julgamento, e

dividindo-se este montante pelo número de magistrados, chegou-se aos seguintes

denominadores referentes à carga de trabalho:

Média nacional por magistrado/ministro: • Justiça comum federal (TRF’s): 23.321 casos (processos ou recursos) por magistrado, em 2ª instância. • Justiça estadual (TJ’s): 1.221,41 casos (processos ou recursos) por magistrado, em 2ª instância.

81 Secretaria de Reforma do Judiciário, Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e Escola de Direito da FGV-SP. Análise da gestão e funcionamento dos cartórios judiciais. SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coord.). Brasília, DF: Secretaria de Reforma do Judiciário: CEBEPEJ, 2007. 82 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça em números, 3. ed., 2005. Disponível em: http://www.cnj.gov.br. Acesso em: ago. 2015.

Page 49: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

47

• STF: de 25.367 processos por ministro, em 2005. 83

Constatou-se, ainda, que um quantitativo elevado de processos se refere apenas a

alguns temas e poucos litigantes, principalmente na Justiça Federal, onde os números de

demandas repetitivas (em matéria tributária e previdenciária, por exemplo) e propostas por ou

contra o poder público são expressivos.

Ou seja, mesmo se tratando de ações que envolvem poucos litigantes e temas

repetitivos, os tribunais de 2º grau no âmbito da Justiça Federal não conseguem julgá-las em

tempo razoável, estando o contingente de processos em constante elevação.

O recente relatório da Justiça em Números divulgado, em 2015, pelo CNJ84

destaca o aumento da taxa de congestionamento nos tribunais federais para 70,5% em 2014,

maior índice da série histórica correspondente ao período de 2009 a 2014. Vale dizer, de cada

100 (cem) processos em tramitação nos tribunais federais, aproximadamente 70 (setenta) não

tiveram solução definitiva, o que demonstra a situação alarmante do congestionamento da 2ª

instância.

A situação não é diferente nos tribunais superiores, especialmente o Supremo

Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, que, mesmo diante de novas técnicas de

aceleração de julgamentos, não conseguiram diminuir a litigiosidade e, principalmente, não

conseguiram, até o presente momento, uniformizar as teses jurídicas – papel que lhes foi

atribuído pela Constituição.

De acordo com o relatório atual do CNJ, o Superior Tribunal de Justiça iniciou o

ano de 2014 com um estoque de 351.450 processos, quase 12% a mais do que no ano anterior.

O número de processos baixados no ano e a produtividade tanto de servidores da área

judiciária quanto de ministros diminuíram em relação ao período anterior. Com isso, estima-se

que, ao final de 2014, o estoque tenha crescido 11%, mantendo a tendência histórica de

crescimento do acervo. 85

83 Relatório anual do Conselho Nacional de Justiça, 2005, p. 61. Disponível em: http://www.cnj.gov.br. Acesso em: ago. 2015. 84Disponível em: http://cnj.jus.br/noticias/cnj/80428-litigiosidade-na-justica-federal-aumenta-em-2014-principalmente-no-1-grau Acesso em: set. 2015. 85 De acordo com informações recentes divulgadas pelo próprio tribunal, o Superior Tribunal de Justiça encerrou o primeiro semestre de 2016 com 223.167 processos julgados. O balanço inclui as decisões colegiadas, nas sessões, as decisões monocráticas tomadas pelos relatores, e ainda o julgamento de recursos internos, como agravos regimentais e embargos de declaração. Na maior parte, os processos submetidos ao STJ foram resolvidos por decisões monocráticas: 181.709 ao longo do semestre. O STJ julgou 720 processos repetitivos, que orientam os tribunais de todo o País na solução das demandas de massa. Desses, 80 foram decididos pela

Page 50: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

48

Numa pesquisa feita no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no

período de outubro de 2014 a janeiro de 2015, constatou-se que a demora na resolução dos

recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça e da Repercussão Geral no Supremo

Tribunal Federal somente faz crescer o número de processos sobrestados ou suspensos na

Presidência ou Vice-Presidência dos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais

brasileiros, tornando esses institutos inócuos em relação à finalidade para a qual foram

criados.86

Eis o número de processos suspensos ou sobrestados em alguns dos Tribunais de

Justiça e dos Tribunais Regionais Federais do país, entre agosto de 2014 a janeiro de 201587:

TRIBUNAL Recurso Repetitivo no STJ

Repercussão Geral no STF

TJ-BA 2.165 436

TRF-2 4.994 1.144

TJ-PR 32.064 7.355

TJ-MS 8.072 2.724

TJ-SP 132.837 270.330

TJ-SC 10.487 1.699

TRF-3 22.446 11.206

TRF-4 67.550 -

TJ-RS 109.732 (incluindo

repercussão geral)

-

Corte Especial. A Primeira Seção do STJ, responsável pelos casos de direito público, julgou a maior parte dos repetitivos: 415. A Segunda Seção, que trata de direito privado, decidiu 164 recursos; a Terceira, especializada em matéria penal, foi responsável por 61. Apesar do resultado, ressalta-se que o número de processos recebidos pelo STJ aumentou 20% em relação ao mesmo período do ano de 2015. Até 27 de junho de 2016, o tribunal conta com 399.251 processos em tramitação. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: jul. 2016. 86 SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 26-27. 87 Pesquisa também divulgada no http://www.conjur.com.br/2015-fev-20/artur-souza-demora-torna-inocua-ferramenta-demandas-repetitivas. Acesso em: set. 2015.

Page 51: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

49

De acordo com dados informados pelo próprio Supremo Tribunal Federal, desde

2007, ou seja, num período de quase uma década, a Corte julgou 284 temas com repercussão

geral, apenas 30% dos 906 casos que tiveram a repercussão geral reconhecida até julho de

2016.

Entre agosto de 2014 e junho de 2016, na gestão do ministro Ricardo

Lewandowski na Presidência da Corte, foram analisados 83 deles. Os 83 casos julgados

cessaram a suspensão de, pelo menos, 76.213 processos que estavam sobrestados no Poder

Judiciário aguardando a decisão do Supremo sobre tema de natureza constitucional. 88

Percebe-se que foi dada maior prioridade aos casos com repercussão nos últimos

dois anos, mas a demora dos julgamentos, gerando o sobrestamento de milhares de processos

por prazos indefinidos, atenta contra o Direito, por violentar a segurança jurídica, a

previsibilidade decisória almejada pelo instituto e, outrossim, a duração razoável do processo.

Os dados acima demonstram, enfim, que as técnicas de resolução de demandas

repetitivas existentes sob a égide do Código de Processo Civil revogado ainda não surtiram os

efeitos desejados justamente pela demora crescente dos tribunais superiores no julgamento

dos recursos repetitivos e de repercussão geral.

O problema da ineficiência dos tribunais é muito bem ilustrado pelo estudo de

caso realizado pela juíza federal Vânila Moraes89 acerca das demandas repetitivas referentes à

cobrança do reajuste de 28,86% por servidores públicos federais. Identificou-se que o tempo

entre o surgimento do conflito – na situação específica, a violação à isonomia ocorreu em

junho de 1993 com a concessão do referido reajuste apenas aos militares – e a decisão do

Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a repercussão geral do tema em 06 de outubro de

2010, transcorreram mais de dezessete anos. No caso, o Poder Público insistiu em recorrer às

Cortes Superiores, embora já existisse, desde 2000, súmula da própria Advocacia-Geral da

União no sentido da concessão do reajuste.

A situação se repete em relação a vários outros temas controvertidos90,

88 Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: jul. 2016. 89 MORAES, Vânila C. A. Demandas repetitivas decorrentes de ações e omissões da administração pública: hipótese de soluções e a necessidade de um direito processual público fundamentado na Constituição. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2012, p. 67. 90 Para ilustrar o grave problema da morosidade dos tribunais no julgamento de teses jurídicas, importante destacar outros três casos emblemáticos. O primeiro relativo aos expurgos inflacionários de poupança, o segundo relativo à desaposentação e o terceiro caso referente à ilegalidade a correção do FGTS pela TR.

1º: Há milhares de processos judiciais suspensos, nos quais são pleiteadas diferenças de remuneração sobre

Page 52: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

50

demonstrando que as técnicas de julgamento que possibilitam a suspensão dos processos para

a definição da tese jurídica não são sinônimas de celeridade processual, de previsibilidade

depósitos em cadernetas de poupança existentes no advento dos diversos Planos Econômicos implantados no Brasil. Esses planos (Bresser de 1987, Verão de 1989, Collor I de 1990 e Collor II de 1991) foram adotados para controlar a inflação galopante nos momentos em que ela ameaçava se transformar em hiperinflação e as controvérsias sobre o direito dos poupadores ainda não foram dirimidas definitivamente pelo Poder Judiciário, mesmo diante das novas técnicas de julgamento para uniformizar e acelerar a prestação jurisdicional. As demandas têm como elemento comum a iniciativa (titulares de cadernetas de poupança ou outros atores em benefício daqueles) e o polo passivo (grandes bancos comerciais públicos e privados). Não obstante o Superior Tribunal de Justiça já tenha decidido a questão em julgamento de recurso repetitivo n. REsp 1.107.201 /DF, em 25/08/2010, a indefinição ainda persiste em razão da matéria de fundo ser também de natureza constitucional. Em razão dos recursos das instituições financeiras, alguns processos subiram ao Supremo Tribunal Federal, onde esperam decisão definitiva. O Supremo é chamado a decidir, especificamente, sobre quatro recursos extraordinários com repercussão geral – RE 591797 (plano Collor I), relator Min. Toffoli; RE 626307 (planos Bresser e Verão), relator Min. Toffoli; RE 631363 (plano Collor I), relator Min. Gilmar Mendes; e RE 632212 (plano Collor II), relator Min. Gilmar Mendes – e uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 165), que estão sendo analisados conjuntamente. Os referidos recursos estão pendentes de julgamento desde 2008 e não existe qualquer previsão.

2º: A controvérsia sobre o direito dos segurados do RGPS à desaposentação também é antiga. Na prática, o trabalhador renuncia ao seu benefício de aposentadoria e pede outro mais vantajoso, considerando no cálculo as contribuições pagas após o requerimento da primeira aposentadoria. O Instituto Nacional do Seguro Social - INSS não reconhece o direito dos segurados, de forma que hoje ele só pode ser obtido por via judicial, sendo crescente o número de ações em tramitação no Poder Judiciário. Embora o Superior Tribunal de Justiça já tenha julgado, desde maio de 2013, recurso especial n. 1334488 sobre o tema, pelo rito do julgamento dos recursos repetitivos, reconhecendo a existência do direito à desaposentação, o INSS não cumpre a orientação do STJ no âmbito administrativo para os demais segurados. A questão também possui fundo constitucional e o Supremo Tribunal Federal ainda não concluiu o julgamento dos recursos extraordinários sobre o tema. Em 2003, um caso do Rio Grande do Sul chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) através do recurso extraordinário n. 381367. No fim de 2014, o processo voltou ao plenário do Supremo, mas a votação está suspensa já que a ministra Rosa Weber apresentou um pedido de vista para analisar o caso. Ou seja, o caso está em tramitação na mais alta corte do país há mais de 12 anos e sem previsão da conclusão do julgamento. Outro recurso extraordinário de n. 661256/SC de 2011 também foi levado ao plenário da Suprema Corte e a decisão foi suspensa já que três ministros não estavam presentes na sessão. A opinião dos ministros está dividida.

3º: Outra tese jurídica ainda não definida se refere à suposta ilegalidade da utilização da TR como índice de correção do saldo do FGTS. A controvérsia especificamente sobre o tema é relativamente recente, tendo surgido em razão do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em março de 2013, das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 4357 e 4425, no qual aquela Corte definiu que a TR não seria índice de correção monetária e que não poderia ser aplicada para a correção monetária dos precatórios devidos pela Fazenda Pública, por violação à isonomia. A partir do pronunciamento do Supremo em relação aos precatórios, milhares de ações judiciais foram ajuizadas contra a Caixa Econômica Federal, pleiteando a alteração do índice de correção do FGTS e o pagamento das diferenças desde 1999, quando o índice apurado da TR passou a ser inferior à inflação oficial. A questão é singular, pois, muito antes da existência de controvérsia entre os Tribunais Federais ou no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça, o ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, suspendeu, já em fevereiro de 2014, o andamento de todas as ações judiciais que discutem o uso da Taxa Referencial (TR) como índice de correção do saldo do Fundo de Garantia (FGTS). O caso foi levado ao STJ por meio de Recurso Especial 1.381.683 /PE, que foi afetado pelo ministro para ser julgado sob o rito dos recursos repetitivos. Posteriormente, o referido recurso não foi conhecido, mas o relator determinou novamente a suspensão de todas as ações em razão do Recurso Especial n. 1.614.874 também afetado ao rito dos repetitivos. De fato, existem milhares de ação em tramitação sobre o tema. Segundo levantamento da Caixa Econômica Federal seriam mais de 70.000 em fevereiro de 2014, sendo que outras milhares foram ajuizadas posteriormente. Ressalta-se, todavia, que, até a suspensão de todas as ações, principalmente aquelas em tramitação na primeira instância, ainda não havia sido realizado amplo debate sobre a questão. Sequer havia divergência configurada nos Tribunais, apenas algumas sentenças de primeira instância. A questão que se coloca é se a suspensão das ações seria medida benéfica à melhor definição da tese jurídica. As ações foram suspensas e, passados quase dois anos, ainda não há previsão para o julgamento do tema pelo Superior Tribunal de Justiça. Informações extraídas dos sites do STF (www.stf.jus.br) e do STJ (www.stj.jus.br). Acesso em: set. 2016.

Page 53: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

51

decisória e tampouco de qualidade da prestação jurisdicional, mas verdadeiras formas de

represamento de processos e paralisação do debate processual.

É certo que o CPC/2015 não resolverá o problema de represamento dos processos

e da demora dos tribunais para o julgamento das temáticas relevantes. Aliás, antes mesmo da

sua entrada em vigor, foi publicada a Lei n. 13.256, de 04 de fevereiro de 2016, modificando

o art. 12 no intuito de flexibilizar o critério da ordem cronológica para julgamento dos

processos. Sem sucesso, contudo, porque a interposição da palavra “preferencialmente” com a

intenção de conferir discricionariedade ao órgão julgador não prospera. A ultrapassagem na

ordem cronológica pressupõe fundamentação clara sobre as razões autorizativas. Do

contrário, há violação à isonomia e à impessoalidade, favorecendo alguns em detrimento de

vários desafortunados.

A referida lei também suprimiu o §10º do artigo 1.035 e o §5º do artigo 1.037. Os

referidos dispositivos estabeleciam um marco temporal de duração da suspensão de processos

em todo território nacional prevista no artigo 1.037, II, o que poderia induzir maior agilidade

dos tribunais superiores no julgamento dos recursos repetitivos, impedindo que tal suspensão

se eternizasse pela mora dos tribunais ao julgar os recursos.

Em face da revogação dos prazos limites, o sistema de julgamento de recursos

pelos tribunais superiores pode manter, sem qualquer sanção ou filtro, a situação de suspensão

de centenas de milhares de processos por prazo indeterminado. Isso significaria uma

verdadeira cláusula de barreira que atende àqueles que lesam o direito de toda a sociedade, as

concessionárias de serviço público, as instituições financeiras, o Estado, os corruptos,

inviabilizando direitos e garantias fundamentais, o mais básico de todos os direitos humanos,

conforme Cappelletti, o do pleno acesso à justiça.

A garantia de acesso à justiça não deve ser entendida como a mera admissão do

processo ou a possibilidade de ingressar em juízo; é sim, a garantia de que os cidadãos

possam demandar e defender-se adequadamente em juízo, isto é, ter acesso à efetividade no

processo com os meios e recursos a ele inerentes de modo a obter um provimento

jurisdicional justo, construído em tempo razoável a partir do amplo debate e participação

democrática dos sujeitos interessados.

Sem olvidar, ainda, de que isto poderá causar uma perniciosa e inconstitucional

discricionariedade dos tribunais superiores em escolher quando determinadas temáticas

deverão ser dirimidas e quando deverão ser mantidas em suspensão.

Page 54: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

52

1.5 Os Litigantes Habituais: o uso patológico do Poder Judiciário no Brasil

Não é possível falar-se em diminuição de processos a médio e longo prazos e em

celeridade da prestação jurisdicional com a criação de novas técnicas processuais de

julgamento pelos tribunais sem que se resolva, com prioridade, o problema gravíssimo da

litigância habitual patológica no Brasil.

Ressalta-se que os temas controvertidos apontados no tópico anterior, cuja

solução se arrasta nos tribunais superiores, são objetos de milhares de processos em

tramitação no Poder Judiciário, abarrotando todas as instâncias. São demandas repetitivas ou

de massa que foram ajuizadas em face de poucos litigantes.

Nos casos apontados, os réus dos processos se resumem à União, às instituições

financeiras públicas e privadas e ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Trata-se do

chamado litigante habitual.

A propósito, dentre os obstáculos a serem superados para se desobstruir o acesso

efetivo à justiça célere e efetiva, Cappelletti e Garth91 incluem o que denominam

‘possibilidades das partes’, subdividida em: recursos financeiros; na aptidão para reconhecer

um Direito e propor uma ação ou sua defesa; e na atuação dos litigantes ‘eventuais’ e

litigantes ‘habituais’.

A classificação dos litigantes – eventuais e habituais – foi desenvolvida pelo

pesquisador Marc Galanter, da Universidade de Wisconsin, utilizado como referencial teórico

e de pesquisa por Cappelletti e Garth, e se baseia na frequência de encontros destes litigantes

com o sistema judicial. Ou seja, no número de vezes que o litigante maneja o processo e

submete seus interesses aos órgãos do Poder Judiciário.

O estudo revelou inúmeras vantagens dos litigantes habituais, tais como: (I) maior

experiência com o Direito que lhes possibilita melhor planejamento do litígio; (II) uso de

economia de escala, consistente no uso de uma mesma estrutura para atender a um maior

número de casos; (III) oportunidade de desenvolver relações informais com os membros da

instância julgadora; (IV) diluição dos riscos da demanda por maior número de casos e (V) a

possibilidade de testar estratégias em casos específicos de modo a garantir expectativa mais

favorável nos casos futuros92.

91 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 21. 92 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:

Page 55: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

53

A habitualidade do litigante demonstra de forma concomitante a presença

daqueles outros dois aspectos: posse de recursos financeiros e aptidão para reconhecer um

Direito e propor uma ação ou apresentar sua defesa. Os referidos autores concluem, a partir da

classificação de Galanter, que essas vantagens próprias dos litigantes habituais lhes conferem

maior eficiência e vantagem processual quando comparados com os litigantes individuais ou

eventuais.

De igual modo, na visão de Rodolfo Mancuso93, os litigantes habituais são aqueles

sujeitos que trabalham em economia de escala com os processos judiciais, possuem

departamento jurídico próprio ou escritórios de advocacia estruturados para a gestão de

conflitos de massa, com intuito de ganhar o maior tempo possível com a duração dos

processos, correndo poucos riscos financeiros pelo resultado de demandas individuais.

Eles podem diluir os riscos da demanda por maior número de casos, o que diminui

o peso de cada derrota, que será eventualmente compensado por algumas vitórias. E também

podem testar estratégias diferentes em determinados casos (de natureza material ou

processual), de modo a criar precedentes favoráveis em pelo menos alguns deles, garantindo

expectativa mais favorável em relação a casos futuros.

A existência do litigante habitual não é, em si, um mal. Em uma sociedade de

massas é natural que existam as pessoas que, pelo risco da atividade e o papel que

desempenham, tenham mais conflitos que outras, podendo, em última análise, causar a

propositura de ações perante o Poder Judiciário.

O que deve ser aferido é se o referido litigante habitual abusa de tal condição para

se beneficiar da litigiosidade de massa e da morosidade do Sistema de Justiça. Essa situação

parece ser o caso da Justiça no Brasil, já que esses litigantes habituais dificilmente alteram ou

melhoram suas práticas administrativas em favor de outros cidadãos não beneficiários de

julgamentos pelo Poder Judiciário.

A propósito, em pesquisa divulgada, em 2011, a FGV Direito Rio revelou que os

entes públicos, principalmente os federais, possuem participação em 90% dos recursos em

tramitação no Supremo Tribunal Federal. Pela ordem, os maiores litigantes são: Caixa

Econômica Federal, União, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Estado de São Paulo,

Banco Central do Brasil, Estado do Rio Grande do Sul, Município de São Paulo, Telemar, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 25. 93 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2011, p. 120.

Page 56: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

54

Banco do Brasil e Estado de Minas Gerais.94

O retrato da litigiosidade causada pelo Poder Público também é revelado pelo

relatório do Conselho Nacional de Justiça de 201295 sobre os “100 maiores litigantes”,

mostrando que aproximadamente 39% dos processos novos em tramitação no Poder

Judiciário envolvem os entes públicos e outros 37% envolvem as instituições financeiras. Ou

seja, o setor público e os bancos respondem sozinhos por 76% dos processos em tramitação.

Diante dos referidos números da pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de

Justiça, o professor Marcelo Abelha96 afirma que a crise da demora da prestação jurisdicional

deveria ser analisada sob ângulo diverso, respondendo-se algumas indagações críticas que

apresenta. Sem os 15 maiores litigantes do país, qual seria o número de demandas em curso

no Poder Judiciário? Haveria tal crise? Por que não desenvolver formas alternativas de

solução de conflitos para esses 15 maiores litigantes? Por que para esses litigantes interessa

que as suas lides desemboquem no Poder Judiciário? Por que para o Poder Público é melhor

ser réu em juízo do que realizar políticas públicas efetivas e respeitar os direitos

fundamentais? A que custo será prestada a tutela jurisdicional aos litigantes eventuais, por

intermédio de técnicas individuais de julgamento dotadas de repercussão coletiva, como

pretende o novel incidente de resolução de demandas repetitivas? Por que não incentivar e

aperfeiçoar a tutela jurisdicional dos interesses individuais homogêneos por meio de ações

coletivas que já existem e se mostram adequadas à proteção dos litigantes eventuais?

Para a juíza federal Priscila Corrêa97, as pesquisas do Conselho Nacional de

Justiça revelam que as causas mais significativas da morosidade do Poder Judiciário são o

excesso de demandas provocado principalmente pela ineficiência do Poder Executivo em

implementar direitos, deslocando para o Poder Judiciário muitos conflitos que deveriam e 94 O Estado é o maior responsável pelos recursos no STF. Disponível em http://www.conjur.com.br/2011-mar-22/estado-quem-ocupa-tempo-supremo-materia-recursal. Acesso em: set. 2015. 95 A pesquisa do Conselho Nacional de Justiça analisa apenas as novas ações judiciais ingressadas na primeira instância da Justiça e nos juizados especiais. Segundo a referida edição, o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) continua a ocupar o primeiro lugar no ranking das organizações públicas e privadas com mais processos no Judiciário Trabalhista, Federal e dos estados. O órgão respondeu por 4,38% das ações que ingressaram nesses três ramos da Justiça nos 10 primeiros meses do ano passado. Na sequência, vem a BV Financeira (1,51%), o município de Manaus (1,32%), a Fazenda Nacional (1,20%), o estado do Rio Grande do Sul (1,17%), a União (1,16%), os municípios de Santa Catarina (1,13%), o Banco Bradesco (0,99%), a Caixa Econômica Federal (0,95%) e o Banco Itaucard S/A (0,85%), respectivamente ocupando da segunda à décima posição. Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/59351-orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica. Acesso em: set. 2015. 96ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 31. 97 CORRÊA, Priscila Pereira Costa. Direito e desenvolvimento: Aspectos relevantes do Judiciário brasileiro sob a ótica econômica. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2014, p. 129.

Page 57: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

55

poderiam ser facilmente solucionados na instância administrativa, o que, nas suas palavras,

demonstra o uso patológico dessa instituição pelo Poder Público.

Assim, quando o Poder Executivo insiste em não aplicar os posicionamentos

pacificados pelos tribunais superiores, levando milhares de pessoas naturais e jurídicas a

ajuizar ações, em sua ampla maioria, de natureza individual, acarreta danos graves à

eficiência do Poder Judiciário em razão da retroalimentação da litigiosidade e, por

conseguinte, da morosidade processual. 98

Priscila Corrêa99 sustenta, ainda, que haveria uma lógica econômica perversa que

justifica a conduta dos litigantes habituais, sejam eles agentes privados ou públicos, de

insistirem na utilização do Poder Judiciário, retroalimentando a litigiosidade. Os agentes

privados possuem, na visão da referida jurista, uma verdadeira estratégia baseada em um

cálculo racional que demonstra que os custos desta opção são inferiores aos ganhos obtidos, o

que é evidente, pois, se não houvesse proveito econômico não estariam gastando para manter

milhares de litígios judiciais.

Vale dizer, é melhor para os grandes litigantes, sob a ótica financeira, manter sua

postura e práticas adotadas extrajudicialmente do que adequá-las aos posicionamentos dos

tribunais.

A situação é mais complexa em relação à análise da postura do Poder Público. Os

motivos que o levam a adotar a postura de litigante habitual são ainda, de certa forma,

paradoxais. Isso porque a retroalimentação abusiva dos litígios pelo Poder Público acarreta

consumo desnecessário de recursos pelo Poder Judiciário, o que é prejudicial ao próprio

Estado a quem compete destinar os recursos orçamentários de manutenção e funcionamento

do Sistema de Justiça.

Não obstante o aumento dos gastos, o Poder Executivo não demonstra ter se

incomodado com o desperdício de recursos públicos, mantendo sua postura reticente aos

posicionamentos dos tribunais, contribuindo para o aumento crescente da litigiosidade. Essa

situação levou Priscila Corrêa100 a considerar como motivação mais evidente para o uso

98CORRÊA, Priscila Pereira Costa. Direito e desenvolvimento: Aspectos relevantes do Judiciário brasileiro sob a ótica econômica. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2014, p. 130. 99 CORRÊA, Priscila Pereira Costa. Direito e desenvolvimento: Aspectos relevantes do Judiciário brasileiro sob a ótica econômica. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2014, p. 131. 100 CORRÊA, Priscila Pereira Costa. Direito e desenvolvimento: Aspectos relevantes do Judiciário brasileiro sob a ótica econômica. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2014, p. 132.

Page 58: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

56

patológico da Justiça a ânsia da utilização imediata dos recursos públicos por parte dos

titulares dos mandatos políticos nos seus programas de governo. O uso do Poder Judiciário

serviria, nesse contexto, como uma forma de postergação da saída dos recursos dos cofres

públicos. Assim, quanto mais moroso for o processo melhor será para o Poder Executivo. Há

de ser considerado, ainda, o fato de que o Executivo enxerga o Poder Judiciário como se não

fosse parte do poder estatal e não utilizasse recursos públicos para gerir o seu funcionamento.

No mesmo sentido é a crítica de Nelson Nery Jr:

A real efetividade do direito fundamental da CF 5º LXXVIII [a celeridade processual], pois, não depende apenas do Poder Judiciário e de seus juízes, mas principalmente dos Poderes Executivo e Legislativo e da mudança de mentalidade dos governantes e políticos, no sentido de cumprirem e fazerem cumprir a Constituição, evitando a judicialização das questões que os particulares têm de submeter ao Poder Judiciário por falha do poder público no exercício principalmente da função administrativa.101

De igual modo, merecem destaque as palavras de Leonardo Greco acerca dos

abusos processuais do Poder Público e da sua mentalidade beligerante:

(...) o Estado existe para servir a sociedade, para reconhecer e fazer respeitar os direitos dos cidadãos, não para com todos litigar. O Estado que os cidadãos respeitam é o Estado que respeita o cidadão e que reconhece direitos, sem a necessidade de postulação judicial. Enquanto essa mentalidade não mudar na Administração Pública brasileira nós não poderemos contar com a lealdade processual da advocacia pública que, numa concepção desvirtuada de seu papel, considera que é seu dever opor todos os obstáculos à vitória do cidadão, quando o papel do Estado deve ser outro. A vitória do cidadão não representa a derrota do Estado, pois o Estado é vitorioso quando o Direito prevalece e não quando o cidadão perde.102

O pior é que a postura dos entes públicos – principais litigantes habituais –

permanece sem sanções efetivas ou medidas legislativas coerentes que pudessem mitigá-la. E

o Ministério Público, instituição constitucionalmente incumbida de defender a ordem jurídica

e o regime democrático, assiste indiferente à essa agressão do Estado de Direito.

A título de exemplo, o CPC/2015, ao dispor sobre a fixação de multa por

reiteração de recurso de embargos de declaração protelatórios (§3º do art. 1.026) ou de agravo

interno manifestamente inadmissível ou improcedente (§§ 4º e 5º do art. 1021), permitiu que a

Fazenda Pública – litigante habitual – fizesse o pagamento ao final do processo, permitindo- 101 NERY JR., Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2010, p. 325. 102 GRECO, Leonardo. A reforma do poder judiciário e o acesso à justiça. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Oliveira Rocha, n. 27, jun. 2005, p. 73.

Page 59: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

57

se a utilização de artifícios para atrasar o andamento processual.

É ainda mais evidente a fragilidade da novel legislação para coibir a litigância

abusiva do Poder Público quando se depara com a ausência de eficácia vinculante erga omnes

do sistema de precedentes criado pelo CPC/2015 de observância obrigatória apenas no âmbito

do Poder Judiciário.

O CPC/2015 instituiu um sistema de precedentes para conferir maior

uniformidade, coerência, estabilidade e previsibilidade à jurisprudência.

O seu art. 927 dispõe que os juízes e tribunais deverão observar nos julgados as

decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, os

enunciados de súmulas vinculantes, das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria

constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, os acórdãos

proferidos em incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas

repetitivas e de julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos e, por fim, a

orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Não vai restar uma matéria para ser decidida pelo juiz, qualquer colegiado de

qualquer instância proferirá decisões vinculantes. Ora, nem os Ministros do STF se vinculam

aos precedentes da própria Corte, como no caso do Ministro Celso de Mello em relação à

execução provisória da pena. O STF reviu entendimento anterior e passou a admitir o

cumprimento das penas antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, mas o

Ministro decidiu monocraticamente no HC 135.100 para suspender o mandado de prisão, não

sucumbiu e rejeitou a decisão do Plenário em favor do não retrocesso dos direitos

fundamentais.

Apenas as súmulas vinculantes e o julgamento do controle concentrado de

constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal vinculam o magistrado. A fonte normativa

desse efeito vinculante é a própria Constituição que estabelece, expressa e taxativamente, as

hipóteses extraordinariamente vinculantes, com eficácia erga omnes, inclusive para a

Administração Pública. As demais hipóteses da norma acima referida adquiriram eficácia

vinculante por lei ordinária restrita apenas ao âmbito da estrutura hierárquica do Poder

Judiciário, o que é inconstitucional.

Com efeito, o legislador ordinário não previu a eficácia vinculante dos referidos

precedentes para o Poder Público, que, portanto, poderá continuar incentivando a litigiosidade

a despeito de eventual posição pacificada no âmbito do Poder Judiciário. A litigiosidade

Page 60: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

58

habitual abusiva, a toda evidência, não foi combatida pela legislação.

De maneira muito tímida e insuficiente, o inciso IV, do art. 1.040 do CPC/2015

previu, para os casos de recursos especial e extraordinário repetitivos que versarem sobre

questão relativa a prestação de serviço público objeto de concessão, permissão ou autorização,

que o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora

competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da

tese adotada. A norma foi reproduzida no § 2º do art. 985 para o julgamento do incidente de

resolução de demandas repetitivas.

Ou seja, a eficácia vinculante seria restrita aos particulares delegatários do serviço

público que, embora também se enquadrem como litigantes habituais nas estatísticas do CNJ,

não respondem pela maioria das ações em tramitação. É incompreensível a razão de não se

conferir a mesma eficácia vinculativa para os entes públicos, constitucionalmente atrelados ao

princípio da legalidade e demais litigantes habituais nas hipóteses de julgamentos de casos

repetitivos ou de enunciados de súmula do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal

de Justiça. Interessa ao Poder Público modificar suas práticas administrativas em razão de

precedentes judiciais?

Luiz Guilherme Marinoni aponta, de forma crítica, que o excesso de processos e a

morosidade da função jurisdicional são, por vezes, opção dos próprios detentores do poder.

Segundo o referido processualista,

(...) sabe-se que o próprio Estado, a quem cabe observar o princípio da eficiência da função jurisdicional (art. 37, caput, CR/88), não tem interesse em cumprir referido princípio e se vale da morosidade do Judiciário como expediente, sua marca registrada. A demora da jurisdição funciona como um obstáculo ao exercício, pelo cidadão, do direito constitucional de “acesso à jurisdição” e o Estado, contando com isso e mais preocupado em arrecadar e atender os compromissos econômico-financeiros internacionais, posterga o adimplemento de suas obrigações constitucionais. Nesse sentido é que se coloca a “lentidão” do Judiciário como uma opção, não daqueles que detém o poder, porque o poder é do povo e ao povo não interessa o mau funcionamento do serviço público jurisdicional, mas da figura estatal, que amiúde se beneficia dessa situação. 103

Mesmo depois de todo o arcabouço legislativo e dos Pactos Republicanos

firmados pela celeridade do Sistema de Justiça, o direito processual individual ou coletivo

ainda não possui tratamento adequado e eficiente para coibir a atuação abusiva dos chamados

103MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas de processo civil. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 33-34.

Page 61: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

59

litigantes habituais, que, não raras vezes, conforme mencionado, utilizam de forma patológica

e abusiva o Poder Judiciário, permitindo a pulverização de demandas de idêntica natureza

mesmo diante de posicionamentos contrários já firmados pelos tribunais.

Ou seja, o CPC/2015 e as demais reformas legislativas não são suficientes para

superar a complexa crise de morosidade que assola a justiça em proporções universais. O

combate às graves deficiências da prestação jurisdicional há de ser travado no plano político-

administrativo, que transcende a regulamentação legislativa e envolve a organização e

gerenciamento dos serviços judiciários. Nesse terreno, entretanto, é completamente inócua a

obra de renovação das leis processuais.104

Assim, mais do que a publicação de novas leis e a criação de novas técnicas de

julgamento seria necessário estabelecer um diálogo institucional aberto e constante entre o

Poder Judiciário e os demais poderes da Republica para modificar a cultura do litígio, de

maneira que o Poder Público comece a adotar uma postura coerente com a intenção

manifestada de melhorar o Sistema de Justiça, passando a respeitar os posicionamentos

firmados pelo Judiciário, alterando as práticas administrativas consideradas ilegais não só em

favor daqueles que obtiveram êxito no processo, mas também em favor de todos os

administrados na mesma situação.

104 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade na prestação jurisdicional: insuficiência da reforma das leis processuais. Revista de Processo, n. 125, jul. 2005, p. 61-78.

Page 62: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

60

CAPÍTULO 02

O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS – IRDR

2.1 Introdução

No contexto da crise do Poder Judiciário causada pelo excesso de litigiosidade e

pela demora da prestação jurisdicional, foi aprovado o CPC/2015.

A ideologia que norteou os trabalhos da Comissão de juristas encarregada da

elaboração do Anteprojeto e as discussões travadas, desde 2010, no Congresso Nacional

pautou-se essencialmente na busca de maior celeridade e previsibilidade à prestação

jurisdicional, o que se materializou a partir da previsão de novos instrumentos processuais

capazes, pelo menos na teoria, de reduzir o número de demandas e recursos perante o Poder

Judiciário.

Capitaneando a referida ideologia norteadora do novo CPC, destaca-se a

incorporação ao sistema processual do “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” -

IRDR, regulado nos artigos 976 a 987.

Nesse sentido, importante destacar trecho da Exposição de Motivos do anteprojeto

do CPC/2015105:

Com esses mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta. O incidente de resolução de demandas repetitivas é admissível quando identificada, em primeiro grau, controvérsia com potencial de gerar multiplicação expressiva de demandas e o correlato risco da existência de decisões conflitantes.

Marcos Cavalcanti critica a terminologia do texto legal, afirmando que, em vez de

“resolução de demandas repetitivas”, o ordenamento jurídico brasileiro deveria ter adotado

“resolução de questões repetitivas”. O autor entende que a similitude de causas de pedir e

pedidos (o que caracteriza demanda) não é o fator determinante para a caracterização de um

processo como repetitivo. Esses processos identificam-se no plano abstrato por discutirem em

larga escala, questões jurídicas de origem comum e homogêneas, que podem surgir ainda que

105 BRASIL. Senado. Anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Brasília-DF, 2010. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/anteprojeto.pdf. Acesso em: 12 de jan. 2016.

Page 63: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

61

não exista qualquer similaridade entre os elementos das demandas.106

A crítica quanto à terminologia do incidente também é endossada por Sofia Temer

em excelente obra sobre o tema, in verbis:

(...) o que classifica as demandas repetitivas no contexto do CPC/2015, é a existência de questões comuns, de direito material ou processual, ainda que estas questões não representem nenhuma parcela significativa do conflito subjetivo a ser resolvido em juízo, e ainda que não haja, propriamente, demandas homogêneas. Em realidade, o IRDR visa a solucionar questões repetitivas e não necessariamente demandas repetitivas. Então, apesar de a lei empregar o termo demandas repetitivas, o que se verifica é que há utilização não técnica do termo “demanda”, nesse contexto. Isso porque, a rigor, ao falar em demandas repetitivas deveríamos nos referir a pretensões homogêneas, relativas a relações-modelo. Ou seja, atos de postulação constituídos de causa de pedir e pedido similares, porque referentes a situações substanciais análogas.107

Por “demandas repetitivas” entende-se, enfim, os processos que contém questões

jurídicas homogêneas, de direito material ou processual, não havendo a necessidade da

existência de uma relação jurídica substancial modelo e tampouco identidade da causa de

pedir e do pedido. Basta a identificação de controvérsia sobre ponto de direito que se repita

em vários processos individuais e coletivos para que o IRDR possa ser utilizado e desde que

haja risco à segurança jurídica e à isonomia.108

Existem sérias dúvidas, no entanto, se o referido instrumento processual seria

realmente necessário e se, de fato, os objetivos almejados pelo legislador serão alcançados e a

que custo isso poderá ocorrer. Nesse sentido, Gláucio Maciel Gonçalves e Victor Dutra

apontam, de maneira crítica, razões que poderiam demonstrar a desnecessidade da importação

da referida técnica processual, in verbis:

Primeiro, porque, a partir da instituição da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal tem decidido causas efetivamente importantes, cujos efeitos podem atingir além das partes da demanda, ao fixar uma tese jurídica de aplicação ampla no futuro. Segundo, porque o sistema de julgamento de recursos especiais repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça tem, cada vez mais, fixado teses infraconstitucionais de grande alcance, também com efeitos futuros em outras causas. Terceiro, porque o Superior Tribunal de Justiça é a corte encarregada de uniformizar a interpretação do direito federal no País e tem-se verificado grande atuação do STJ nesse intento. Quarto,

106 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas e ações coletivas. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 527. 107 TEMER, Sofia Orberg. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 60-61. 108 TEMER, Sofia Orberg. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 63.

Page 64: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

62

porque os tribunais de segundo grau, que serão os destinatários do IRDR, não estão ainda preparados para decidir as inúmeras teses jurídicas que lhes serão submetidas e em tempo hábil, levando à suspensão indefinida das demandas em primeiro e segundo grau por prazo não razoável. 109

É por isso que o referido incidente proposto desde o Anteprojeto elaborado pela

Comissão de juristas é, sem dúvida alguma, a mais impactante modificação surgida desde o

início das discussões da elaboração do CPC/2015. 110

Trata-se de um incidente de coletivização dos denominados litígios de massa, com

o propósito de evitar a multiplicação de demandas, resolvendo, em bloco, causas que versam

sobre as mesmas questões jurídicas.111 A sua instauração se dará a partir de um ou vários

casos modelo112 representativos de uma pluralidade de outras causas idênticas quanto à

matéria de direito, ficando o tribunal local habilitado a proferir uma decisão com largo

espectro, definindo, com eficácia vinculante, o direito controvertido de tantos quantos se

encontrarem na mesma situação jurídica.

Segundo Antônio do Passo Cabral,

A cognição judicial, nos incidentes, é cindida: neles seriam apreciadas somente questões comuns a todos os casos similares, deixando para um procedimento complementar a decisão de cada caso concreto. No incidente coletivo é resolvida parte das questões que embasam a pretensão, complementando-se a atividade cognitiva no posterior procedimento aditivo. A efetividade do incidente coletivo é proporcional, portanto, à possibilidade de que as questões nele decididas sejam fundamentos de muitas pretensões similares, e que possam tais questões ser resolvidas coletiva e uniformemente para todas as demandas individuais.113

109 GONÇALVES, Gláucio Maciel; DUTRA, Victor Barbosa. Apontamentos sobre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas no Código de Processo Civil de 2015. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015, p. 190-191. 110 BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 612. 111 Sofia Temer faz importante advertência no sentido de que, apesar de as “demandas repetitivas” compreenderem situações que, em tese, poderiam ser classificadas como “direitos individuais homogêneos” (nas hipóteses de demandas relativas a pretensões isomórficas decorrentes de origem comum, em que as relações substanciais sejam análogas e sejam repetidas as causas de pedir e pedidos), também compreendem situações que não poderiam ser enquadradas como tal (hipóteses em que há apenas um ponto marginal em comum entre as demandas). As demandas repetitivas, no contexto no CPC 2015, abrangem situações mais amplas do que os direitos individuais homogêneos, o que é um motivo para evitar o emprego deste termo como se fossem sinônimos. (TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 62) 112 Tal como previsto na legislação brasileira, o IRDR pode, em tese, ser instaurado a partir de qualquer “processo modelo”, sendo irrelevantes os argumentos ali apresentados, se mais ou menos complexos do que os aduzidos em outros casos. Não há previsão na novel legislação de critérios objetivos para escolha da causa piloto ou qualquer forma de controle da representatividade adequada da atuação dos sujeitos processuais. O tema é objeto de análise em tópico específico do capítulo seguinte. 113 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às

Page 65: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

63

No mesmo sentido é a lição do professor Humberto Theodoro Jr.:

O incidente de resolução de demandas repetitivas não reúne ações singulares já propostas ou por propor. Seu objetivo é apenas estabelecer a tese de direito a ser aplicada em outros processos, cuja existência não desaparece, visto que apenas se suspendem temporariamente e, após, haverão de sujeitar-se a sentenças, caso a caso, pelos diferentes juízes que detém a competência para pronunciá-las. O que, momentaneamente, aproxima as diferentes ações é apenas a necessidade de aguardar o estabelecimento da tese de direito de aplicação comum e obrigatória a todas elas. A resolução individual de cada uma das demandas, porém continuará ocorrendo em sentenças próprias, que poderão ser de sentido final diverso, por imposição do quadro fático distinto. De forma alguma, entretanto, poderá ignorar a tese de direito uniformizada pelo tribunal do incidente, se o litígio, de alguma forma, se situar na área de incidência da referida tese.114

Marcos Cavalcanti115 e Antônio do Passo Cabral116 alertam que a utilização de

técnica de julgamento semelhante não seria novidade no sistema processual brasileiro,

destacando o pedido de uniformização de interpretação da legislação no âmbito dos Juizados

Especiais Federais e da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, Distrito Federal e

Municípios, a repercussão geral no recurso extraordinário, os recursos repetitivos no âmbito

do Superior Tribunal de Justiça, a suspensão das liminares para evitar grave lesão à ordem, à

saúde, à segurança e economia públicas.

Em que pesem as semelhanças com outros instrumentos já utilizados no direito

processual brasileiro, o IRDR possui características próprias que o tornam bastante peculiar.

A distinção básica entre a ação coletiva (ação de classe) e o IRDR está em que

naquela os litígios cumulados são solucionados simultaneamente pelo julgamento único,

enquanto que no incidente apenas se delibera sobre a idêntica questão de direito presente em

várias ações, as quais continuam tramitando para receber sentença própria com análise

específica da matéria fática pelo respectivo julgador.117

ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 128-129. 114 THEODORO JR., Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 736. 115 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 326. 116CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 144. 117 THEODORO JR., Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de

Page 66: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

64

Aliás, pode-se ir além, para se afirmar que é drástica a distinção entre o IRDR e a

ação coletiva, o que trará forte repercussão no direito brasileiro. Enquanto na ação coletiva

prevista no direito brasileiro, por meio da substituição processual, a coisa julgada é secundum

eventum litis, ou seja, vincula os substituídos apenas se os beneficiar; no novo incidente o

julgamento é pro et contra, vale dizer, vincula os envolvidos favorável ou desfavoravelmente,

repercutindo sobre os processos pendentes e também os futuros. É inegável que a definição de

uma tese jurídica, especialmente se for sobre direito material, terá fator decisivo para a

resolução dos processos sobrestados já que o respectivo julgador estará vinculado àquela

interpretação do direito. Daí a maior importância que se deve conferir à efetiva participação

das partes e do juiz de primeiro grau na construção da decisão judicial.

O incidente constitui, portanto, uma categoria distinta de processo, que não se

identifica propriamente com os instrumentos utilizados nas demandas puramente individuais e

tampouco com os mecanismos de representação e substituição processual típicos da ação

coletiva, tendo inspiração, ao contrário, nas chamadas ações de grupo analisadas a seguir.

Assim, justamente por se tratar de uma técnica processual própria é que se exige o

aprofundamento de estudos críticos para demonstrar sua (in)compatibilidade com o modelo

constitucional de processo assegurado na Constituição de 1988.

2.2 Apontamentos sobre a tutela coletiva no direito comparado e sua influência no

direito brasileiro

Pode-se dizer que existem dois grandes modelos de tutela coletiva no direito

contemporâneo. Existe o modelo de tutela pela class action (ação coletiva) adotada

principalmente nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, e o modelo de tutela pela group action

(ação de grupo) adotado na Europa em geral, com peculiaridades, na Inglaterra, Alemanha e

Portugal. 118

As referidas ações de grupo surgiram como uma nova alternativa para se alcançar

a celeridade, eficiência e amplitude de acesso à justiça, ao lado das ações coletivas,

representativas de classe, sem, no entanto, possuir alguns obstáculos e inconvenientes práticos

Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 736. 118 ROSSONI, Igor Bimkowski. O incidente de resolução de demanda repetitivas e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso? p. 4-5. Disponível em http://www.tex.pro.br/home/artigos/44-artigos-dez-2010/4740-o-incidente-de-resolucao-de-demandas- repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso. Acesso em: dez. 2015.

Page 67: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

65

inerentes às class actions.119

Conforme ressalta Antonio Adonias Aguiar Bastos120, a substituição processual –

característica das ações coletivas – traz alguns inconvenientes processuais, como o de permitir

que alguns sujeitos, legitimados pela lei, postulem em Juízo direitos de uma coletividade

geograficamente dispersa, cujos indivíduos não são conhecidos na sua totalidade, e que,

muitas vezes, não possuem sequer notícia da demanda coletiva e dos seus efeitos. Podem

ocorrer conflitos internos na classe representada que não são considerados ou sequer

conhecidos pelo legitimado quando da propositura da ação ou no julgamento do conflito

coletivo, o que distanciará o resultado do processo da pacificação efetiva do conflito. Além

disso, alguns órgãos do Estado ou mesmo entidades representativas, legitimados em caráter

geral e abstrato, podem não estar tão próximos do conflito para melhor compreendê-lo, o que

dificultará a busca da solução mais adequada.

Foram as críticas ao modelo das class actions que impulsionaram a idealização de

outros instrumentos processuais voltados à tutela das demandas de massa, especialmente nos

países da Europa.

Para a contextualização do tema em relação ao IRDR, será dado destaque à

diferença entre os dois modelos de tutela coletiva principalmente em relação à legitimidade

das partes interessadas ou beneficiárias.

Na ação de grupo, cada membro do grupo é considerado parte processual da ação,

ao contrário do que ocorre na ação de classe, na qual existe a figura da substituição

processual.

Sobre o tema, Antônio do Passo Cabral121 ensina que as ações de grupo

consistiriam em procedimentos de resolução coletiva de conflitos que evitam, dentro do

possível, as ficções representativas típicas da class action. Consistiria em uma técnica de

julgamento em bloco que parte de um caso concreto entre contendores individuais. Preserva-

se, dentro da multiplicidade genérica, a identidade e a especificidade do particular. Cada

119 BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. O devido processo legal nas causas repetitivas. p. 4943. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/ antonio_adonias_aguiar_bastos.pdf> Acesso em: jan. 2016. 120 BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. O devido processo legal nas causas repetitivas. p. 4943-4944. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/ antonio_adonias_aguiar_bastos.pdf> Acesso em: jan. 2016. 121 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 128.

Page 68: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

66

membro do grupo envolvido é tratado como uma parte, ao invés de uma “não parte”

substituída. É a tentativa de estabelecer algo análogo a uma class action, mas sem classe e os

inconvenientes da ficção da substituição processual.

A ação de classe do direito americano, por sua vez, encontra seu fundamento na

possibilidade de, com a atuação de um ou alguns membros de uma determinada classe, todos

os demais, que não agiram diretamente, serem afetados pelos efeitos daquela decisão,

inclusive no que se refere à imutabilidade do quanto decidido, isto é, no que se refere à

formação da coisa julgada.

Por isso é importante o controle da representatividade adequada, pelo qual o

julgador analisa, em cada caso, a admissão do representante dos interesses da coletividade. O

controle da representatividade é indispensável no modelo de tutela americano, pois os efeitos

da coisa julgada serão pro et contra. Vale dizer, independentemente do resultado, todos os

substituídos na ação serão afetados em seu direito individual.

No sistema de tutela coletiva do direito brasileiro, até o advento do Código de

Processo Civil de 2015, era inegável a influência preponderante do modelo norte-americano

com algumas diferenças importantes.

A propósito, por ilustrar bem as características das tutelas no direito processual

brasileiro, destaca-se a classificação dos modelos de tutelas jurisdicionais elaborada pelo

ministro Teori Zavascki:

(...) podemos, hoje, classificar os mecanismos de tutela jurisdicional em três grandes grupos: (a) mecanismos para tutela de direitos subjetivos individuais, subdivididos entre (a.1) os destinados a tutelá-los individualmente pelo seu próprio titular (disciplinados, basicamente, no Código de Processo) e (a.2) os destinados a tutelar coletivamente os direitos individuais, em regime de substituição processual (as ações civis coletivas, nelas compreendido o mandado de segurança coletivo); (b) mecanismos para tutela de direitos transindividuais, isto é, direitos pertencentes a grupos ou a classes de pessoas indeterminadas (a ação popular e as ações civis públicas, nelas compreendida a chamada ação de improbidade administrativa); e (c) instrumentos para tutela da ordem jurídica, abstratamente considerada, representados pelos vários mecanismos de controle de constitucionalidade dos preceitos normativos e das omissões legislativas. Bem se vê, mesmo a um primeiro olhar sobre esse modelo classificatório da tutela jurisdicional, que, à medida que se passa de um para outro dos grupos de instrumentos processuais hoje oferecidos pelo sistema do processo civil, maior ênfase se dá à solução dos conflitos em sua dimensão coletiva. É o reflexo dos novos tempos, marcados por relações cada vez mais impessoais e mais coletivizadas. O conjunto de instrumentos hoje existentes para essas novas formas de tutela jurisdicional, decorrentes da primeira onda de reformas, constitui,

Page 69: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

67

certamente, um subsistema processual bem caracterizado, que se pode, genérica e sinteticamente, denominar de processo coletivo. Mas, sem a tradição dos mecanismos da tutela individual dos direitos subjetivos, os instrumentos de tutela coletiva, trazido por leis extravagantes, ainda passam por fase de adaptação e de acomodação, suscitando, por isso mesmo, muitas controvérsias interpretativas.122

Nesse contexto das diversas modalidades de tutelas jurisdicionais, o

“microssistema do processo coletivo no direito brasileiro” 123 é compreendido pela

interpretação conjunta de leis especiais esparsas, que se interpenetram, como a Lei 4.717/1965

que regula a ação popular, a Lei 7.347/1985 que dispõe sobre a ação civil pública, as regras

processuais do Código de Defesa do Consumidor previstas na Lei 8.078/90, as normas do

mandado de segurança coletivo, atualmente regido pela Lei 12.016/2009, entre outras, as

quais regulam principalmente a representação adequada em juízo (legitimatio ad causam), os

efeitos do julgamento e os limites da autoridade da coisa julgada.

A referida legislação assegura, além da tutela dos direitos difusos e coletivos124, a

tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos125 por meio da substituição processual,

aproximando, nesse aspecto, a experiência brasileira do modelo da class action americana. A

lei atribuiu expressamente a legitimidade ativa às associações e a outras entidades

122 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 34-35. 123 DIDIER JR. Fredie; ZANETI JR. Hermes. Processo Coletivo. v. 4. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 51. 124 Em atenção ao artigo 81, parágrafo único, inciso II, da Lei 8.078, de 1990, está-se diante de um interesse ou direito coletivo quando “todos os co-titulares dos direitos mantêm relações jurídicas ou vínculos jurídicos formais com a parte contrária, ou seja, a parte contra a qual se dirige a pretensão ou o pedido” ou em razão “de uma relação jurídica base que une os sujeitos entre si, de modo a fazer com que eles integrem grupo, classe ou categoria diferenciada de pessoas determinadas ou determináveis com interesses convergentes sobre o mesmo bem indivisível (jurídica ou faticamente), independente de manterem ou não vínculo jurídico com a parte contrária”, conforme leciona Alcides A. Munhoz da Cunha (CUNHA, Alcides Munhoz. Evolução das Ações Coletivas no Brasil. Revista de Processo, n. 77, 1995, p. 229). Pedro Lenza também explica sobre a indivisibilidade dos bens sobre os quais convergem os interesses coletivos: “Em relação aos interesses coletivos, a indivisibilidade dos bens é percebida no âmbito interno, dentre os membros do grupo, categoria ou classe de pessoas. Assim, o bem ou interesse coletivo não pode ser partilhado internamente entre as pessoas ligadas por uma relação jurídica-base ou por um vínculo jurídico; todavia externamente, o grupo, categoria ou classe de pessoas, ou seja, o ente coletivo, poderá partir o bem, exteriorizando o interesse da coletividade.” (LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo, RT, 2003, p. 71) 125 De acordo com o artigo 81, parágrafo único, inciso III, da Lei 8.078, de 1990, está-se diante de direitos individuais homogêneos, quando um direito eminentemente individual foi erigido à categoria de interesses metaindividuais meramente para fins de tutela coletiva. A transindividualidade do direito individual homogêneo é legal ou artificial. Pode-se dizer “acidentalmente coletivos” os direitos individuais homogêneos, porquanto os sujeitos são perfeitamente identificados ou identificáveis e a união entre aqueles coletivamente tutelados decorrerá de uma situação fática de origem comum a todos. Pedro Lenza entende que os interesses individuais homogêneos “caracterizam-se por sua divisibilidade plena, na medida em que, além de serem os sujeitos determinados, não existe, por regra, qualquer vínculo jurídico ou relação jurídica-base ligando-os”. (LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo, RT, 2003, p. 71)

Page 70: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

68

representativas para postularem em juízo a defesa dos direitos de determinada classe ou

grupo. Também permitiu a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos ou

isomórficos, que decorrem de uma origem comum, por meio da substituição processual,

através da Defensoria Pública e do Ministério Público, os quais podem agir autonomamente

em nome dos substituídos.

No sistema do processo coletivo pátrio, a legitimidade ativa se dá apenas em

virtude de lei, a qual elenca expressa e objetivamente os legitimados a substituírem a

coletividade.

Não existe, todavia, o controle da representatividade adequada como ocorre na

class action americana e, por consequência, em razão mesmo da ausência de qualquer

controle judicial, a coisa julgada opera seus efeitos secundum eventus litis, evitando prejuízos

aos sujeitos substituídos que efetivamente não participaram do processo.

Nesse sentido, destaca-se a lição de Marcelo Cunha Holanda:

Então listamos as três possibilidades que o CDC disciplina: 1. Em caso de improcedência após a instrução robusta e suficiente, a sen-tença coletiva fará coisa julgada para atingir o grupo titular do direito tran-sindividual e impedir que qualquer legitimado do art. 82 reproponha o processo coletivo pleiteando a mesma tutela para o mesmo direito por meio do mesmo pedido, invocando a mesma causa de pedir. Demandas in-dividuais, em defesa dos correspondentes direitos individuais, entretanto, continuam podendo ser propostas. 2. Em caso de improcedência após instrução insuficiente, por falta de provas, a sentença coletiva não fará coisa julgada material e, como o grupo titular do direito material não estará vinculado, o mesmo processo coletivo poderá ser reproposto por qualquer legitimado coletivo, desde que apresentando nova prova. 3. Em caso de procedência do pedido, a sentença coletiva fará coisa julgada erga omnes ou ultra partes para tutelar o bem jurídico, atingindo o grupo titular do direito de grupo e atingindo também, somente para beneficiar, in utilibus, a esfera individual de todos os membros do grupo que sejam titu-lares dos correspondentes direitos individuais homogêneos, que poderão propor demandas individuais de liquidação e execução dos danos indivi-duais.126

A novel legislação processual, ao introduzir o IRDR para agilizar a solução de

demandas de massa, trouxe forte influência do modelo das ações de grupo para o direito

brasileiro. Ou seja, uma técnica processual para definição, em bloco, da tese jurídica discutida

em várias demandas repetitivas ou massificadas, que envolvem sujeitos determinados, mas

126 HOLANDA, Marcelo Cunha. A possibilidade do controle judicial da adequação do autor coletivo no direito brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual. Belo Horizonte: Editora Fórum, n. 69, jan-mar. 2010, p. 152.

Page 71: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

69

que não possuem, por regra, qualquer vínculo ou relação jurídica base entre si.

Assim, as características dos dois modelos de tutela coletiva coexistirão no direito

processual brasileiro, com peculiaridades que merecem análise específica.

Os processualistas destacam que a criação do IRDR e o aperfeiçoamento do

sistema de julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos formam atualmente

um microssistema de solução de casos repetitivos, cujas normas de regência se

complementam, devendo ser interpretadas conjunta e sistematicamente, conforme enunciado

345 do Fórum dos Processualistas Civis.127

Ao mesmo tempo, a importação de nova técnica processual trouxe problemas

teóricos e práticos muito relevantes e graves.

Emergiu questão, no direito brasileiro, referente à constitucionalidade da

competência dos tribunais ordinários como Cortes de Precedentes, do efeito vinculante das

decisões proferidas no IRDR e sua compatibilidade com o contraditório substancial e o papel

do juiz na interpretação do direito.

O novel instituto ainda retira do autor da demanda individual o seu direito de

optar por prosseguir ou suspender sua ação individual, que ficará sobrestada automaticamente,

submetendo-se aos efeitos vinculantes do julgamento do IRDR. No sistema do processo

coletivo brasileiro é prevista a necessidade de intimação, no bojo da demanda individual, do

autor da ação para que, no prazo de 30 dias, exerça o direito de optar pela exclusão (right to

opt out) da demanda coletiva em tramitação.

É questionável também a ausência de previsão de escolha de um “líder” ou de

controle da representação no incidente processual, tal como ocorre no direito comparado128,

para assegurar a efetiva participação dos interessados no incidente de coletivização e conferir

legitimidade ao julgamento dotado de efeitos vinculantes.

2.3 As técnicas de solução de demandas repetitivas no direito comparado e a relação

com o IRDR

127 NUNES, Dierle José Coelho; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 389. 128ROSSONI, Igor Bimkowski. O incidente de resolução de demanda repetitivas e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/home/artigos/44-artigos-dez-2010/4740-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso. Acesso em: dez. 2015. p. 31-32.

Page 72: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

70

Diante dos problemas constatados nas ações de classe, ou mesmo a total falta de

tradição com processos coletivos, como no caso da Alemanha, vários ordenamentos jurídicos,

especialmente na Europa129, que relutam em introduzir formas de tutela coletiva mais

próximas à class action americana, buscaram criar novos instrumentos de tutela (ações de

grupo) que fossem capazes de conferir tratamento adequado aos processos repetitivos, mas

sem a formação de uma classe, sem a representação por substitutos processuais.

Interessa analisar especialmente a recente experiência de três países Alemanha,

Inglaterra e Portugal, que serviram de inspiração para o modelo adotado pela legislação

brasileira.

2.3.1 Direito alemão: o procedimento-modelo (Musterverfahren)

Conforme a exposição de motivos elaborada pela Comissão de Reforma do

Processo Civil Brasileiro130, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas introduzido

no Brasil pelo novo Código de Processo Civil foi inspirado no Procedimento-Modelo ou

Procedimento-Padrão (Musterverfahren) do Direito Processual Alemão, que foi instituído

naquele ordenamento jurídico para possibilitar que o Tribunal Regional (Oberlandesgericht-

OLG) fixasse posicionamento sobre supostos fáticos ou jurídicos de pretensões repetitivas,

estendendo aos processos individuais os efeitos do julgamento.131

O procedimento-modelo (Musterverfahren) foi criado na Alemanha por meio da

lei que ficou conhecida como Lei de Introdução do Procedimento Modelo para investidores

em mercado de capitais.

A referida lei sobre a demanda modelo nas causas relativas ao mercado de capitais

– Kapitalanleger-Musterverfahrensgesetz – KapMuG – entrou em vigor em 1º de novembro

de 2005 motivada por conflitos de milhares de investidores contra a Deutsche Telekom132 e a

necessidade de uma resposta jurisdicional mais célere.

Entre 1999 e 2000, a empresa Deutsch Telekom lançou suas ações na bolsa de

valores de Frankfurt, tendo distorcido informações patrimoniais relevantes que lastrearam a

129CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 317-324. 130 BRASIL. Senado. Anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Brasília-DF, 2010. 381 pp. Disponível em HTTP://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf. Acesso em dezembro de 2015. 131 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 124-125. 132 SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 115-116.

Page 73: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

71

emissão daqueles papéis, o que causou falsas expectativas no mercado financeiro, culminando

em graves prejuízos aos investidores.

Em decorrência disso, milhares de investidores ajuizaram ações nas quais

pleiteavam as indenizações cabíveis contra a empresa Deustche Telekom, o Estado Alemão e

instituições financeiras que tinham participado da operação.

No período compreendido entre 2001 a 2003, mais de treze mil ações de

reparação foram propostas perante o Tribunal de Frankfurt (Landesgericht)133, cidade sede da

Bolsa de Valores alemã. Treze mil ações envolvendo, portanto, direitos materiais homogêneos

(direito de indenização) e partes heterogêneas. Desprovido de instrumentos processuais

adequados à época para lidar com esse grande número de litígios em massa, o tribunal local

sofreu uma paralisação de suas atividades.

Em razão da enorme lentidão processual causada pelas demandas do caso Deutsch

Telekom, o Tribunal Constitucional Alemão (BVerfG) julgou, no ano de 2004, dois recursos

constitucionais sob a alegação de violação ao direito de duração razoável do processo. O

Tribunal negou provimento aos recursos, entendendo que a demora, naqueles casos, se

justificava, porém, passou a admitir o uso de um procedimento modelo para que os casos

fossem solucionados em bloco, possibilitando, dessa forma, que todos os processos fossem

decididos conjuntamente num tempo adequado.

Dentro deste contexto, como resposta aos recursos, a KapMuG foi promulgada em

2005, e o Musterverfahren foi instituído com o objetivo de ser a ferramenta processual capaz

de racionalizar a resolução de tais ações repetitivas envolvendo o mercado de capitais. Foi

publicada como lei temporária, com previsão inicial de término de vigência em 1º de

novembro de 2010. Posteriormente, a KapMuG foi prorrogada até 1º de novembro de 2020134.

Nas palavras de Artur César de Souza:

Esta lei não introduziu no sistema alemão uma class action, onde um autor representa uma pluralidade indeterminada de sujeitos; na realidade, a KapMug representa uma tentativa de afrontar e resolver os problemas procedimentais nascentes da introdução contextual de uma massa de demandas ressarcitórias reunidas entre elas e caracterizadas pela richiesta di danni piú o meno contenuti. (...) Ainda que a normatividade alemã esteja dissociada e seja distinta da class action americana, alguns pressupostos dela

133CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 329-330. 134CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 331.

Page 74: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

72

foram recepcionados, como, por exemplo, a numerosidade de demandas; ou seja, é indispensável para a instauração do procedimento nos termos da KapMug que pelo menos dez demandas tenham sido apresentadas.135

Trata-se, na realidade, de uma nova técnica processual de decisão em bloco que

parte de um caso concreto (processo modelo) entre litigantes individuais, para resolver

coletivamente questões comuns a inúmeros processos, com o único propósito de assegurar

rapidamente a uniformidade do posicionamento judicial, vinculando todos os julgadores de

primeiro grau que se depararem com a mesma matéria, seja de fato ou de direito.

Conforme lição de Antônio do Passo Cabral, ao contrário do que ocorre no IRDR

introduzido no direito brasileiro, que é restrito à matéria de direito, a cognição judicial no

procedimento-modelo alemão pode ser de fato e de direito:

o que denota a possibilidade de resolução parcial dos fundamentos da pretensão, com a cisão da atividade cognitiva em dois momentos: um coletivo e outro individual. Esse detalhe é de extrema importância, pois evita uma potencial quebra da necessária correlação entre fato e direito no juízo cognitivo. Vale dizer, se na atividade de cognição judicial, fato e direito estão indissociavelmente imbricados, a abstração excessiva das questões jurídicas referentes às pretensões individuais poderia apontar para um artificialismo da decisão, o que não ocorre aqui, com a vantagem de evitar as críticas aos processos-teste.136

O procedimento-modelo instituído no sistema alemão divide-se, de acordo com a

referida lei, em três partes principais: a) hipóteses de cabimento; b) detalhamento das regras a

serem observadas na tramitação do procedimento; c) os efeitos advindos do julgamento do

procedimento-modelo.

Na parte inicial, a lei destaca principalmente os casos específicos de aplicação do

procedimento, sobretudo voltados aos conflitos relacionados ao mercado de capitais. Para

cabimento do procedimento, Marcos Cavalcanti137 indica as ações cíveis que versam sobre

pretensões indenizatórias por prejuízos decorrentes de informações falsas ou omissas no

mercado de capitais, por prejuízos causados pela utilização de informações públicas falsas ou

enganosas sobre o mercado de capitais ou pela falta de esclarecimentos acerca de suspeita de

falsidade de informações públicas sobre mercado de capitais, além das pretensões

135 SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 116-117. 136CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 132-133. 137CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 334-335.

Page 75: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

73

condenatórias para adimplemento contratual baseado em oferta pública, nos termos da Lei de

Aquisição e Transmissão de Valores Mobiliários.

O pedido de instauração do procedimento-modelo pode ser feito por qualquer das

partes perante o juízo do processo individual. Deverá conter todas as informações sobre os

fatos e circunstâncias legais que autorizem a instauração do incidente processual para

julgamento do caso modelo.138

O juiz, ao contrário do que prescreve o regramento do IRDR no direito brasileiro,

não possui legitimidade para solicitar, mediante ofício, a instauração do procedimento-modelo

perante o tribunal local.

Depois da manifestação da parte contrária, caberá ao juiz de primeira instância

fazer o juízo de admissibilidade para instauração do procedimento-modelo, no prazo de 06

meses contado do recebimento do requerimento.

Igor Rossoni entende que o cerne do procedimento-modelo está justamente na

análise de admissibilidade, pois, depois de formalizado o pedido de uma das partes para

instauração do procedimento, há a definição vinculativa “com parâmetros objetivos, das

questões fáticas ou jurídicas que serão fixadas pelo juiz de primeiro grau e decididas pela

Corte de Apelação” 139. Uma vez definidos tais parâmetros pelo juízo de primeira instância

não se admite recurso.

É de se notar que, no caso do procedimento alemão, o juízo de primeira instância

não é mero coadjuvante, como ocorre no IRDR introduzido no direito brasileiro. Ao contrário,

o papel do juízo de primeiro grau é fundamental na preparação da técnica processual, tendo

atuação determinante e com parâmetros objetivos para a definição das questões isomórficas

controversas, sejam de fato ou de direito, que serão analisadas e julgadas pelo tribunal local.

O juiz de primeira instância fará, então, publicar em cadastro eletrônico o resumo

da demanda, com as partes e o objetivo do procedimento.

Para a instauração do procedimento-modelo, é necessário ainda que, em um

período de seis meses contados da primeira publicação, outros nove pedidos sejam registrados

138CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 133. 139 ROSSONI, Igor Bimkowski. O incidente de resolução de demanda repetitivas e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/home/artigos/44-artigos-dez-2010/4740-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso. Acesso em: dez. 2015. p. 23.

Page 76: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

74

com a mesma pretensão comum, sob pena de rejeição. O tribunal de segunda instância

(Oberlandesgericht-OLG)140 está vinculado ao exame das questões comuns apresentadas pelo

juiz de primeira instância em sua decisão vinculativa, cabendo-lhe julgar o procedimento.

Com a admissibilidade e instauração do procedimento-modelo e sua remessa ao

tribunal para julgamento, automaticamente suspendem-se todos os processos individuais que

tratam da mesma matéria.

Conforme destacado por Marcos Cavalcanti141, a lei permite que, no prazo de um

mês contado da intimação da suspensão do processo, o autor da demanda individual formule

requerimento de desistência da ação, sem necessidade de consentimento do réu, como forma

de não ser alcançado pelos efeitos do julgamento-modelo proferido nos autos do incidente de

coletivização.

A segunda parte do procedimento ocorre no tribunal de segunda instância

(Oberlandesgericht-OLG), ao qual compete, antes do julgamento da questão isomórfica,

proceder à escolha de um líder (parte principal) tanto para a autora (Musterkläger) quanto para

a parte ré (Musterbeklagte) que passam a ser os interlocutores diretos com a Corte. Caberá ao

líder da parte autora definir a estratégia processual e a forma de condução do processo, não

podendo os intervenientes contrariá-lo.142

A propósito da escolha do líder, Marcos Cavalcanti expõe alguns critérios que

devem ser observados pelo tribunal:

Embora a KapMuG mencione ter a eleição das partes-principais caráter discricionário, dispõe alguns critérios que devem ser observados, obrigatoriamente, pelo OLG, no momento de se efetivar a seleção do autor-principal: a) o candidato deve ser escolhido dentre as partes que tiveram os processos individuais suspensos; b) o candidato deve ter representatividade adequada para defender os interesses das partes envolvidas no litígio de massa; c) a Corte deve verificar a existência de um acordo firmado entre os autores dos processos individuais com o objetivo de indicação de um autor-principal; e d) o Tribunal deve considerar o montante da dívida discutida no processo individual.143

140CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 339. 141CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 340. 142ROSSONI, Igor Bimkowski. O incidente de resolução de demanda repetitivas e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/home/artigos/44-artigos-dez-2010/4740-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso. Acesso em: dez. 2015. p. 24-25. 143CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas.

Page 77: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

75

A escolha da parte principal (do líder) no procedimento-modelo denota a

preocupação do legislador alemão com uma forma específica de controle de

representatividade adequada, o que poderá assegurar maior legitimidade e segurança à

construção do provimento jurisdicional. O legislador brasileiro, ao contrário, preferiu dar

ênfase à eficácia vinculante do provimento jurisdicional do IRDR sem o mesmo cuidado com

o controle da representatividade adequada dos interessados.

A definição do líder (parte principal), contudo, não impede a participação efetiva

dos outros interessados. As partes dos processos individuais dependentes do julgamento do

incidente são consideradas intervenientes e também podem se valer de meios de ataque e

defesa.

A respeito do tema, Antônio do Passo Cabral ensina que:

No que se refere à participação de terceiros, a legislação não se afasta de uma inclusão automática dos terceiros interessados que não sejam efetivos participantes. Aqueles que são partes em processos individuais dependentes do Procedimento-Modelo, mesmo não intervindo voluntariamente no incidente coletivo, serão automaticamente considerados intervenientes, com todos os poderes aos terceiros assegurados (...)144

A terceira parte do procedimento-modelo regula os efeitos da decisão-modelo. A

decisão proferida sobre as questões comuns no julgamento de mérito do incidente coletivo

vincula os juízes de primeira instância nos quais tramitam os processos individuais suspensos,

havendo a cisão da cognição judicial.

A propósito, Renato Xavier da Silveira Rosa leciona que

Uma vez definida a decisão-modelo, cada magistrado de primeiro grau deve julgar individualmente cada uma das ações, obedecendo à eficácia da decisão-modelo, julgando apenas as demais questões do caso concreto submetido à jurisdição por meio da demanda individual. Assim, ainda que haja mais questões a serem decididas, as questões centrais, a tese jurídica em si, já foi decidida, e de maneira uniforme para todos os processos individuais.145

Salvador: JusPodiym, 2015, p. 343. 144CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 139. 145 ROSA, Renato Xavier da Silveira. Incidente de resolução de demandas repetitivas: artigos 895 a 906 do Projeto de Código de Processo Civil, PLS n.º 166/2010. Monografia apresentada em Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito. Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 17.

Page 78: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

76

Para Antônio do Passo Cabral146 e Marcos Cavalcanti147, é necessária, porém, a

existência de litispendência dos processos individuais no momento da decisão do Tribunal. Os

processos ainda não ajuizados e que não estavam suspensos no momento do julgamento do

incidente não serão alcançados pela eficácia da tutela jurisdicional (decisão-modelo).

Nesse caso, se surgir, por exemplo, nova questão proveniente do mercado de

capitais que tenha o condão de gerar multiplicação de demandas, um novo procedimento

modelo deverá ser iniciado, seguindo toda a tramitação prevista na KapMuG.

Interessante ressaltar que a eficácia vinculante da decisão-modelo repercutirá

sobre todos os processos suspensos, seja ela favorável ou contra (pro et contra) aos litigantes

individuais, tenham eles participado efetivamente ou não do procedimento-modelo.

Segundo Marcos Cavalcanti,

No direito alemão, portanto, o fato de os efeitos da coisa julgada (pro et contra) alcançarem os litigantes individuais ausentes, ou seja, aqueles que não intervieram no Musterverfaheren, justifica-se porque, para a KapMuG, estes são considerados verdadeiras partes do procedimentos-modelo, independentemente de terem requerido, formalmente, o ingresso nos autos, na qualidade de partes-intervenientes. Trata-se de postura inversa daquela assumida pelo direito brasileiro no que diz respeito às ações coletivas para a defesa dos direitos individuais homogêneos. No Brasil, o art. 103, § 2º, do CDC estabelece que, na ação civil pública ajuizada para a tutela dos direitos individuais homogêneos, a sentença de improcedência somente faz coisa julgada em relação aos interessados que tiverem intervindo no processo como assistentes litisconsorciais. Ou seja, aqueles que não fizerem tal requerimento não serão alcançados pelos efeitos da decisão e da coisa julgada material, de modo que estão legalmente autorizados a ajuizar ações de indenização a título individual.148

Igor Rossoni149 destaca, no entanto, que há a possibilidade de os intervenientes

escaparem dos efeitos da decisão-modelo caso demonstrada a má gestão processual. Os

intervenientes devem demonstrar que não puderam fazer uso de meios de ataque e defesa

dada a situação avançada em que se encontrava o processo, de modo que não poderão ser

146CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 139. 147CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 348-349. 148 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 349-350. 149ROSSONI, Igor Bimkowski. O incidente de resolução de demanda repetitivas e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/home/artigos/44-artigos-dez-2010/4740-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso. Acesso em: dez. 2015. p. 25.

Page 79: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

77

prejudicados pelo julgamento.

Segundo Cabral150, os intervenientes também escapam dos efeitos da decisão no

caso de o líder escolhido (Musterkläger) não ter feito uso dos meios de ataque e defesa,

voluntariamente ou por culpa grave, quando tais meios eram ignorados pelos intervenientes.

Trata-se, a toda evidência, de uma específica forma de controle de

representatividade para o referido procedimento. Os interessados não serão atingidos pela

eficácia da decisão-modelo se a atuação processual foi deficiente, se o líder não se utilizou

por culpa grave dos meios de ataque e defesa cabíveis. A má gestão processual poderá, assim,

comprometer a extensão dos efeitos da coisa julgada (pro et contra).

Constata-se nesse ponto diferença fundamental em relação ao Incidente de

Resolução de Demandas Repetitivas introduzido pelo novo Código de Processo Civil, o qual

não prevê qualquer forma de controle da representatividade, estabelecendo, sem ressalvas, a

eficácia vinculante da decisão-modelo (pro et contra) em relação aos interessados dos

processos individuais presentes e, ainda, dos futuros.

O Procedimento-Modelo alemão é, enfim, uma técnica de julgamento dotado de

eficácia coletiva para solucionar questões comuns que se irradiam em causas de massa

relacionadas principalmente com o mercado de capitais.

Registre-se, por fim, que o referido procedimento mereceu críticas da própria

doutrina alemã, não tendo proporcionado, nos primeiros cinco anos de sua vigência, como

almejado, maior celeridade e racionalização aos julgamentos das demandas repetitivas. De

acordo com Rolf Stürner, “até agora não há nenhum resultado visível que não tivesse sido

igualmente alcançado sem essa lei por uma habilidosa e pragmática condução processual,

mediante uma qualificada magistratura”151.

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas pode, de fato, ter sido

inspirado no referido procedimento, mas, de acordo com as regras previstas no direito

brasileiro, possui contornos próprios que o diferenciam substancialmente da essência do

processo-modelo alemão.

150CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 139. 151 STURNER, Rolf. Sobre as reformas recentes no direito alemão e alguns pontos em comum com o projeto brasileiro para um novo Código de Processo Civil. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 193, mar. 2011, p. 361.

Page 80: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

78

2.3.2 Direito inglês: Group Litigation Order (GLO)

Na Inglaterra, a resolução dos litígios de natureza coletiva perpassa por dois

principais mecanismos processuais: a) as representative actions – verdadeiras ações coletivas

geneticamente ligadas às class action do direito norte-americano; b) a group litigation order

(GLO) – ordem para litígio em grupo (ação de grupo)152, que será analisada mais detidamente

a seguir, pois dotada de características semelhantes à técnica de julgamento instituída pelo

IRDR.

Nas palavras de Marcos Cavalcanti, “a GLO não é propriamente ação coletiva,

mas sim uma espécie de incidente processual de resolução coletiva de litígios de massa”153

introduzida, em maio de 2000, pelas regras 19.10 a 19.15 do Código de Processo Civil

Inglês154 (Civil Procedural Rules).

Ou seja, a GLO é uma forma específica de reunião das partes por meio de

listagem de ações com registro em grupo, a fim de racionalizar o julgamento dos processos

que versam sobre as mesmas questões de fato ou de direito, sendo considerada atualmente o

principal instrumento do sistema inglês para o tratamento dos litígios com múltiplas partes.155

Na Inglaterra, porém, as Group Litigation Orders, em vigor desde o ano de 2000,

contavam até 2011 aproximadamente 70 casos156.

De acordo com a definição legal, o instituto consiste em uma decisão judicial

tomada pelo tribunal para prover a administração do caso, ou case management de ações que

tenham origem em questões comuns ou semelhantes de fato ou de direito. O tribunal deve

conceder a ordem de litígio em grupo quando identificar real ou potencial multiplicidade de

demandas sobre questões isomórficas157. No sistema inglês, não há previsão legal de número

mínimo de demandas para instauração do incidente. 152CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 357. 153 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 357. 154 O inteiro teor da legislação inglesa está disponível em: http://www.opsi.gov.uk/si/si2000/20000221.htm 155 ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista os Tribunais, 2009, p. 343. 156 LÉVY, Daniel de Andrade. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Exame à luz da Group Litigation Order Britânica. Revista de Processo, n. 196, jul. 2011, p. 185. 157 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 358.

Page 81: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

79

O objetivo é possibilitar que uma estrutura mínima do Poder Judiciário gerencie e

julgue, em bloco, uma grande quantidade de demandas repetitivas quanto a questões de fato

ou de direito.158

Diogo Assumpção Rezende Almeida sustenta que o case management159

modificou profundamente as tradições processuais da cultura inglesa, retirando das mãos dos

advogados o poder de administrar o tempo e a forma do ato processual. O modelo de case

management transmitiu a concepção de que os juízes são os principais responsáveis pela

condução do procedimento, estabelecendo seu formato e duração de modo a impulsioná-lo em

direção à solução da controvérsia.

Pretendeu-se, assim, com o novo sistema de administração judicial dos litígios

acelerar a tramitação processual, facilitando a celebração de acordos e tornando o processo

mais acessível às pessoas comuns, além de conferir mais eficiência e economicidade ao

exercício da jurisdição.

Dessa forma, pode o juiz, ao perceber que uma série de demandas tem questões

comuns de fato ou de direito, criar um group litigation.160 Uma vez criado o GLO, esse deve,

obrigatoriamente, conter as especificações sobre o caso para o registro do grupo, a

especificação das questões comuns (GLO issues) tratadas no grupo e a designação do tribunal

(management court) que gerirá o caso. A instauração do grupo pode ser feita tanto de ofício,

como pelo autor ou pelo réu.

Como forma de controle de eventuais abusos na instauração do group litigation,

foi prevista na legislação inglesa uma espécie de dupla admissibilidade do procedimento.

Nesse sentido, Neil Andrews ensina que, no sistema inglês, existe a previsão de

dois níveis de aprovação da ordem de litígio em grupo. Assim, nas hipóteses de decisão pela

instauração de ofício ou nos casos de provocação das partes, existe a necessidade de

158LÉVY, Daniel de Andrade. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Exame à luz da Group Litigation Order Britânica. Revista de Processo, n. 196, jul. 2011, p. 186-187. 159 ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende. O case management inglês: um sistema maduro? Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. v. VII. Rio de Janeiro. Jan./jun. 2011, p. 288-300. 160ROSSONI, Igor Bimkowski. O incidente de resolução de demanda repetitivas e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso? Disponível em: http://www.tex.pro.br/home/artigos/44-artigos-dez-2010/4740-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso. Acesso em: dez. 2015. p. 18.

Page 82: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

80

ratificação da decisão preliminar por um senior judge, uma espécie de juiz superior161.

A ordem de litígio em grupo deve conter orientação para a criação de um cadastro

coletivo no qual as informações relativas às ações abrangidas pela ordem serão registradas,

conter a especificação das questões comuns de fato ou de direito das ações que serão

gerenciadas coletivamente naquele grupo e, ainda, a determinação de qual tribunal será

responsável pelo gerenciamento das ações registradas no cadastro coletivo. Pode também

dispor sobre a suspensão dos processos e as instruções para a ampla divulgação.162

O tribunal gestor, por sua vez, deverá dispor, entre outras, sobre a escolha de uma

ou mais ações registradas como ações-modelo (test claims), indicando um advogado de uma

ou mais partes para ser o advogado principal dos demais autores ou dos réus. Trata-se de uma

espécie de controle de representatividade exercida pelo gestor dos casos para conferir maior

legitimidade ao procedimento de coletivização e ao julgamento.

Ressalta-se que o cadastro coletivo é de suma importância para a eficácia da

ordem de litígio em grupo. Isso porque as partes devem requerer o registro das informações

de suas ações em curso no referido cadastro para que possam participar do julgamento em

grupo (modelo opt-in típico das ações coletivas). As ações que não estiverem registradas não

sofrem os efeitos do julgamento ainda que tenham por objeto as mesmas questões de fato ou

de direito.163

Além disso, a legislação inglesa permite que as partes de uma ação individual já

registrada requeiram, a qualquer tempo, perante o tribunal gestor, o direito de serem excluídas

do cadastro coletivo para que não sejam submetidas aos efeitos do julgamento.

O sistema inglês não se assemelha, nesses pontos, ao sistema alemão e ao IRDR

introduzido no direito brasileiro, nos quais a decisão de mérito do incidente,

independentemente de requerimento, possui efeitos vinculantes em relação às partes das ações

individuais sobre as questões isomórficas, ainda que não tenham participado ou se

manifestado sobre todos os pontos da questão deduzida no incidente de coletivização. No

161ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista os Tribunais, 2009, p. 345. 162 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 361-362. 163ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista os Tribunais, 2009, p. 345-346.

Page 83: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

81

procedimento-modelo alemão, conforme já exposto, a parte deve desistir da ação individual

para não se submeter aos efeitos. Já no procedimento brasileiro, a legislação não é clara,

dispondo apenas que a desistência não impedirá o julgamento do mérito do incidente. A lei

não prevê a possibilidade de a parte se esquivar dos efeitos do julgamento do incidente, os

quais vincularão os juízes e, por conseguinte, atingirão os processos em curso e os futuros

abrangidos pela competência territorial do tribunal local.

A propósito, antes mesmo da aprovação pelo Congresso Nacional, Daniel de

Andrade Lévy já advertia sobre o rigor do IRDR e a preocupação do legislador com a

celeridade a qualquer custo:

Vê-se aqui uma clara diferença de concepção do Anteprojeto, onde a tese jurídica decidida no incidente será aplicada “a todos os processos que versem idêntica questão de direito” (art. 938), ao contrário da GLO, em que os efeitos estendem-se apenas às causas registradas no grupo. Talvez se possa ver na regra do Anteprojeto uma preocupação antes com o desafogamento do Poder Judiciário e, em seguida, com as partes envolvidas, enquanto a regra da GLO transmite uma inquietação antes com os indivíduos inseridos no grupo e, após, com o bom funcionamento do judiciário.164

Enfim, pode-se concluir que a ordem de litígio em grupo (GLO) do sistema inglês

instaura um incidente de resolução coletiva de litígios de massa com três características

marcantes: a) a faculdade das partes das demandas individuais de aderir ou não ao grupo,

resguardando-se a possibilidade de não se submeter à eficácia vinculante da decisão proferida

(modelo opt in); b) durante a tramitação do incidente, o tribunal exerce ampla gestão dos

casos e da instrução; e c) os efeitos da decisão sobre as questões comuns atingem apenas as

ações registradas no grupo, compartilhando a responsabilidade pelo pagamento das custas

entre os membros do grupo.

2.3.3 Direito português: incidente de massificação processual no contencioso

administrativo

O direito português também apresenta, pelo menos no âmbito do contencioso

administrativo, solução semelhante ao sistema alemão para as demandas repetitivas ou de

massa.

164 LÉVY, Daniel de Andrade. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Exame à luz da Group Litigation Order Britânica. Revista de Processo, n. 196, jul. 2011, p. 193-194.

Page 84: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

82

Segundo Vânila Moraes165, o modelo português é “judicialista”, pois possui uma

ordem jurisdicional autônoma composta por tribunais especializados para apreciar e julgar o

contencioso administrativo, cujo processo possui regramento próprio distinto do Código de

Processo Civil.

A propósito, em 2002, foi aprovada a Lei 15, de 22 de fevereiro, que regula o

Código de Processo dos Tribunais Administrativos - CPTA, prevendo no art. 48166 uma

técnica de julgamento dos processos de massa.167

O referido dispositivo legal prevê a necessidade de um número mínimo de

demandas – superior a 20 (vinte) – sobre a mesma controvérsia, devendo ocorrer a escolha

pelo tribunal, após ouvidas as partes, de um ou alguns processos para tramitação prioritária,

ficando suspensos os demais.

A escolha dos processos que serão analisados é discricionária, não havendo

critérios objetivos previstos na lei para a realização da opção pelo tribunal administrativo e

165 MORAES, Vânila C. A. Demandas repetitivas decorrentes de ações e omissões da administração pública: hipótese de soluções e a necessidade de um direito processual público fundamentado na Constituição. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2012, p. 119. 166 Art. 48 Processo em massa (CPTA) 1. Quando sejam intentados mais de 20 processos que, embora reportados a diferentes pronúncias da mesma entidade administrativa, digam respeito à mesma relação jurídica material ou, ainda, que, respeitantes a diferentes relações jurídicas coexistentes em paralelo, sejam susceptíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto, o presidente do tribunal pode determinar, ouvidas as partes, que seja dado andamento a apenas um ou alguns deles, que neste último caso são apensados num único processo, e se suspenda a tramitação dos demais. 2. O tribunal pode igualmente determinar, ouvidas as partes, a suspensão dos processos que venham a ser intentados na pendência do processo selecionado a que preencham os pressupostos previstos no número anterior. 3. No exercício dos poderes conferidos nos números anteriores, o tribunal deve certificar-se de que no processo ou processos aos quais seja dado andamento prioritário a questão é debatida em todos os seus aspectos de facto e de direito e que a suspensão da tramitação dos demais processos não tem o alcance de limitar o âmbito da instrução, afastando a apreciação de factos ou a realização de diligências de prova necessárias para o completo apuramento da verdade. 4. Ao processo ou processos seleccionados segundo o disposto no nº. 1 é aplicável o disposto neste código para os processos urgentes e no seu julgamento intervêm todos os juízes do tribunal ou da secção. 5. Quando no processo seleccionado seja emitida pronúncia transitada em julgado, as partes são imediatamente notificadas da sentença, podendo o autor optar por: a) Desistir do seu próprio processo; b) Requerer ao tribunal a extensão ao seu caso dos efeitos da sentença proferida, deduzindo qualquer das pretensões enunciadas nos ns. 3, 4 e 5 do art. 176; c) Requerer a continuação do seu próprio processo; d) Recorrer da sentença no prazo de 30 dias, no caso de ela ter sido proferida em primeira instância. 6. Quando seja apresentado o requerimento a que se refere a alínea b) do número anterior, seguem-se os trâmites do processo de execução das sentenças de anulação de actos administrativos previstos nos artigos 177º a 179º. 7. Se o recurso previsto na aliena d) do n. 5 vier a ser julgado procedente, pode o autor exercer a faculdade prevista na alínea b) do mesmo número, sendo também neste caso aplicável o disposto no número anterior. (SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 119-120) 167SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 119-120.

Page 85: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

83

tampouco existe a previsão de controle de representatividade.

Não obstante, o professor português Rodrigo Esteves de Oliveira168 entende que a

escolha do processo pelo tribunal deverá observar, entre outros fatores: aquele processo que

contenha a petição de melhor e mais ampla fundamentação e instrução no âmbito das questões

de fato e de direito suscitadas; a data de ajuizamento da ação, dando-se prioridade às mais

antigas; aquele processo que contenha o maior número de contrainteressados; o valor da

causa, escolhendo aquele processo de maior expressão econômica; e ainda dando prioridade

ao processo acompanhado por advogado mais experiente nas lides do direito administrativo.

Nos termos do número 5 do art. 48 do CPTA, após a sentença final transitada em

julgado, os autores, nos autos dos processos apensados e que estavam suspensos, podem optar

por diferentes consequências jurídicas no prazo de 30 dias: desistir da ação e não se submeter

aos efeitos do julgamento modelo; requerer a extensão dos efeitos do julgamento ao seu

próprio processo; requerer a continuação do seu próprio processo ou recorrer da sentença

proferida.169

A desistência da ação pelo autor para não se submeter aos efeitos da decisão

modelo só tem sentido na hipótese em que a decisão proferida no processo selecionado for

desfavorável ao autor, para que, assim, ele não tenha que arcar com os ônus da

sucumbência.170

O direito do autor quanto à continuação do seu processo até então suspenso

pressupõe a demonstração de que o seu caso apresenta especificidades em relação aos fatos ou

aos fundamentos jurídicos adotados na sentença proferida ou quando entenda que os fatos e os

fundamentos foram erroneamente interpretados e aplicados no processo selecionado.171

A extensão dos efeitos da sentença aos processos em massa, por sua vez, está

tratada no art. 161172 do CPTA português.

168 OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de. OLIVEIRA, Mário Esteves de. Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado. Coimbra: Almedina, 2004, p. 322. 169 MORAES, Vânila C. A. Demandas repetitivas decorrentes de ações e omissões da administração pública: hipótese de soluções e a necessidade de um direito processual público fundamentado na Constituição. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2012, p. 122. 170MORAES, Vânila C. A. Demandas repetitivas decorrentes de ações e omissões da administração pública: hipótese de soluções e a necessidade de um direito processual público fundamentado na Constituição. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2012, p. 127. 171 OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de. OLIVEIRA, Mário Esteves de. Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado. Coimbra: Almedina, 2004, p. 328. 172 O art. 161 do CPTA assim dispõe sobre a extensão dos efeitos da sentença:

Page 86: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

84

A propósito, Artur César de Souza explica que

(...) segundo esse dispositivo, os efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado um ato administrativo desfavorável a uma ou várias pessoas podem ser estendidos a outras que se encontrem na mesma situação jurídica, quer tenham recorrido ou não à via judicial, desde que, quanto a essas, não exista sentença transitada em julgado. Esse dispositivo aplica-se em situações em que existem vários casos perfeitamente idênticos, nomeadamente no domínio do funcionalismo público e no âmbito de concursos, e só quando, no mesmo sentido, tenham sido proferidas cinco sentenças transitadas em julgado ou, existindo uma situação de processo de massa, nesse sentido tenha sido decidido o processo selecionado.173

O sistema português prevê interessante possibilidade dos interessados se valerem

dos efeitos de sentença transitada em julgado que lhes favorecem mesmo sem ter sido

utilizada a via judicial. Basta formular requerimento diretamente à entidade administrativa

que tenha sido demandada no processo modelo. Se a pretensão não for satisfeita pela entidade

administrativa, os interessados poderão se valer da via judicial para postular a extensão dos

efeitos da sentença perante o tribunal que a proferiu, podendo executá-la.

O IRDR introduzido pelo CPC/2015 não prevê a possibilidade de extensão dos

efeitos do julgamento modelo para vincular a conduta da Administração Pública em relação a

terceiros que não participam daqueles processos já ajuizados. Assim, mesmo diante de

situações jurídicas idênticas, os terceiros prejudicados pelos entes públicos deverão provocar

1. Os efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado um acto administrativo desfavorável ou reconhecido uma situação jurídica favorável a uma ou várias pessoas podem ser estendidos a outras que se encontrem na mesma situação jurídica, quer tenham recorrido ou não à via judicial, desde que, quanto a essas, não exista sentença transitada em julgado. 2. O disposto no número anterior vale apenas para situações em que existam vários casos perfeitamente idênticos, nomeadamente no domínio do funcionalismo público e no âmbito de concursos, e só quando, no mesmo sentido, tenham sido proferidas cinco sentenças transitadas em julgado ou, existindo uma situação de processos em massa, nesse sentido tenha sido decidido o processo selecionado, segundo o disposto no artigo 48 n. 1. 3. Para o efeito do disposto no n. 1, o interessado deve apresentar, no prazo de um ano, contado da data da última notificação de quem tenha sido parte no processo em que a sentença foi proferida, um requerimento dirigido à entidade administrativa que, nesse processo, tenha sido demandada. 4. Indeferida a pretensão ou decorridos três meses sem decisão da Administração, o interessado pode requerer, no prazo de dois meses, ao tribunal que tenha proferido a sentença, a extensão dos respectivos efeitos e a sua execução em seu favor, sendo aplicáveis, com as devidas adaptações, os trâmites previstos no presente título para a execução das sentenças de anulação de actos administrativos. 5. A extensão dos efeitos da sentença, no caso de existirem contra-interessados que não tenham tomado parte no processo em que ela foi proferida, só pode ser requerida se o interessado tiver lançado mão, no momento próprio, da via judicial adequada, encontrando-se pendente o correspondente processo. 6. Quando, na pendência de processo impugnatório, o acto seja anulado por sentença proferida noutro processo, pode o autor fazer uso do disposto nos números 3 e 4 do presente artigo para obter a execução da sentença de anulação. (in MORAES, Vânila C. A. Demandas repetitivas decorrentes de ações e omissões da administração pública: hipótese de soluções e a necessidade de um direito processual público fundamentado na Constituição. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2012, p. 129-130) 173SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 120.

Page 87: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

85

o Poder Judiciário para a solução específica da sua questão, o que evidentemente não

diminuirá a litigiosidade e a crise causada pelo excesso de processos no Sistema de Justiça

brasileiro.

2.4 Características principais do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas –

IRDR

2.4.1 A natureza jurídica do IRDR

Para discorrer sobre a natureza jurídica do novel instituto é necessário responder a

seguinte indagação: o incidente de resolução de demandas repetitivas instituído pelo

CPC/2015 é realmente um mero incidente processual, tal como nominado, dependente do

processo modelo originário ou caracteriza-se como um processo objetivo autônomo dotado de

eficácia coletiva?

Influenciado pela nomenclatura dada pelo CPC/2015, Marcos Cavalcanti

considera que o IRDR preenche todas as características de um incidente processual típico174.

É acessório, pois sua instauração depende da existência de diversos processos repetitivos

sobre a mesma questão de direito e, ainda, da existência de um desses processos em

tramitação no tribunal competente. É acidental na medida em que representa um desvio ao

andamento dos processos repetitivos, os quais deverão ser suspensos para aguardar a

definição da tese jurídica. E é incidental em relação aos referidos processos repetitivos em

andamento, obedecendo, por consequência, ao regime jurídico dos meros incidentes

processuais: o julgamento proferido tem natureza de decisão interlocutória e não fica sujeito à

coisa julgada, mas mera preclusão; o requerimento de instauração não necessita de requisitos

da petição inicial; as partes são apenas intimadas, não havendo a citação para formação de

nova relação jurídica processual; e também não haverá custas e condenação ao pagamento de

honorários advocatícios.

A toda evidência, embora não tenha feito a comparação expressamente, Marcos

Cavalcanti deu ao IRDR tratamento jurídico semelhante àquele dado ao antigo incidente de

uniformização de jurisprudência. Marinoni e Mitidiero175foram mais além para considerá-lo o

próprio incidente de uniformização de jurisprudência, mas agora dotado de caráter vinculante

e erga omnes.

174 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 504-505. 175 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC. Críticas e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 177.

Page 88: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

86

Não se pode confundir o IRDR com o antigo incidente de uniformização de

jurisprudência previsto nos artigos 476 a 479176 da legislação revogada, que, aliás, não foi

reproduzido no CPC/2015.

O antigo incidente de uniformização de jurisprudência era, de fato, um “incidente

processual”, pois dependia essencialmente do processo a partir do qual foi instaurado,

objetivando evitar, dentro de um mesmo tribunal, a continuidade de interpretações

desarmônicas sobre idênticas questões jurídicas.

A ausência de autonomia processual do incidente de uniformização de

jurisprudência se revelava no seu julgamento pelo tribunal. Isso porque o acórdão proferido

pelo órgão colegiado não era atacável por recurso próprio, salvo pelos embargos de

declaração. Eventual interposição de recurso com caráter infringente deveria desafiar apenas o

acórdão que completava o julgamento do processo originário, aplicando o direito ao caso

concreto. O acórdão proferido no referido incidente era considerado, pois, uma mera premissa

para a análise do caso concreto originário que deveria ser obrigatoriamente considerada no

julgamento pelo órgão fracionário, integrando-o.

Nesse sentido, destaca-se o antigo enunciado de nº 513 da Súmula do Supremo

Tribunal Federal segundo o qual: "a decisão que enseja a interposição de recurso ordinário ou

extraordinário não é a do plenário, que resolve o incidente de inconstitucionalidade, mas a do

órgão (câmaras, grupos ou turmas) que completa o julgamento do feito".

A partir das referidas considerações, defende-se que, nesse aspecto, o IRDR não

se confunde com o antigo incidente de uniformização de jurisprudência.

176 Código de Processo Civil de 1973 Art. 476. Compete a qualquer juiz, ao dar o voto na turma, câmara, ou grupo de câmaras, solicitar o pronunciamento prévio do tribunal acerca da interpretação do direito quando: I - verificar que, a seu respeito, ocorre divergência; II - no julgamento recorrido a interpretação for diversa da que Ihe haja dado outra turma, câmara, grupo de câmaras ou câmaras cíveis reunidas. Parágrafo único. A parte poderá, ao arrazoar o recurso ou em petição avulsa, requerer, fundamentadamente, que o julgamento obedeça ao disposto neste artigo. Art. 477. Reconhecida a divergência, será lavrado o acórdão, indo os autos ao presidente do tribunal para designar a sessão de julgamento. A secretaria distribuirá a todos os juízes cópia do acórdão. Art. 478. O tribunal, reconhecendo a divergência, dará a interpretação a ser observada, cabendo a cada juiz emitir o seu voto em exposição fundamentada. Parágrafo único. Em qualquer caso, será ouvido o chefe do Ministério Público que funciona perante o tribunal. Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência. Parágrafo único. Os regimentos internos disporão sobre a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência predominante. (BRASIL. Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17 jan. 1973)

Page 89: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

87

O ‘nomen iuris’ atribuído pelo legislador ao instituto não foi o mais preciso,

porquanto não revelou sua verdadeira essência.

Trata-se, na essência, de um verdadeiro processo objetivo autônomo de caráter

coletivo inspirado no modelo das chamadas ações de grupo do direito comparado, que

estabelece uma técnica de julgamento para definição em bloco da tese jurídica discutida em

várias demandas repetitivas177.

Para Luiz Norton Baptista de Mattos, o IRDR, “à semelhança das ações coletivas

para a tutela de direitos individuais homogêneos, tem uma feição objetiva e coletiva, urdida

para a definição de uma questão jurídica comum a várias relações jurídicas similares”178. No

mesmo sentido é a lição de Alexandre Flexa, Daniel Macedo e Fabrício Bastos179, para os

quais o alcance do julgamento a ser proferido e todas as características do procedimento

demonstram que o incidente é um verdadeiro processo objetivo.

O caráter objetivo do IRDR também é ressaltado por Sofia Temer:

O objetivo precípuo do incidente é fixar um único entendimento sobre questão de direito, que deverá ser seguido pelo próprio tribunal e pelos juízes inferiores quando estes forem julgar demandas em que se discuta tal questão. Desse modo, é possível afirmar que o IRDR preocupa-se preponderantemente com a tutela do direito objetivo, com a resolução de um conflito normativo, com a coerência do ordenamento jurídico. Os direitos subjetivos apenas serão tutelados em um segundo momento, por ocasião da aplicação da tese jurídica no julgamento dos casos concretos. Por isso,

177 Importante ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça também reconheceu, em certa medida, o caráter objetivo do julgamento dos recursos especiais repetitivos para definição de teses jurídicas. Nesse sentido, a ementa do julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Especial Repetitivo n. 1.213.082/PR, relatado pelo ministro Mauro Campbell Marques (DJ 18, de novembro de 2011): (...) 1. Não se pode olvidar que os recursos representativos da controvérsia possuem um dado grau mínimo de objetividade que os distancia em certa medida do caso concreto para firmar suportes fáticos hipotéticos (teses) que permitam abarcar situações semelhantes. A fixação de parâmetros de julgamento deve ser objetiva e não subjetiva, muito embora tenha como ponto de partida sempre um caso concreto. 2. A técnica de julgamento do recurso representativo da controvérsia não trata apenas do exame da admissibilidade do recurso, da amplitude de seu feito devolutivo e da solução ao caso concreto, mas também, de firmar objetivamente a tese vencedora de modo que sua aplicação seja possível aos demais processos sobrestados. Nessa toada, separar as hipóteses que constituem regra, das hipóteses que constituem exceção a uma dada tese se torna obstáculo intransponível ao exame dos recursos sobrestados, já que o usual é a parte sustentar o enquadramento de sua situação na regra ou na exceção, conforme sua conveniência. 3. O art. 543-C, §§4º e 5º, do CPC, ao permitir a intimação do Ministério Público Federal, de todas as pessoas, órgãos, entidades e partes interessados, o fez no intuito de proteger essa eficácia objetiva mínima do acórdão em recurso especial representativo da controvérsia, pois oportunizou aos conhecedores da jurisprudência da Casa levantar todas as questões relevantes para reafirmar ou modificar a jurisprudência em torno de determinado tema, notadamente as hipóteses de exceção, se conhecidas. 178 MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 191. 179 FLEXA, Alexandre; MACEDO, Daniel; BASTOS, Fabrício. Novo Código de Processo Civil. Temas inéditos, mudanças e supressões. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 626.

Page 90: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

88

adotamos o entendimento segundo o qual o incidente de resolução de demandas repetitivas é uma técnica processual objetiva.180

Embora o IRDR tenha como pressuposto de admissibilidade a existência efetiva

de processos repetitivos, sendo instaurado a partir de um ou vários processos modelos (causa

piloto), deles se desprende totalmente, adquirindo autonomia processual tanto em relação ao

procedimento quanto em relação aos efeitos que irradia.

Possui na sua essência a natureza de um processo objetivo diferente do processo

tradicional, uma vez que, em razão da cisão da cognição judicial, não há a necessidade de se

discutir interesses subjetivos, não se observando, portanto, um litígio, uma pretensão

individual resistida.

O que se pretende é apenas definir a melhor e mais justa interpretação de caráter

geral sobre questão de direito repetitiva, irradiando seus efeitos de forma vinculante para

todos os processos ajuizados e os futuros que versarem sobre o mesmo tema.

O fato de inexistir citação, por exemplo, não significa a ausência de autonomia

processual. Basta verificar o processo objetivo de controle de constitucionalidade das normas

pelo Supremo Tribunal Federal181.

Embora não haja citação e condenação ao pagamento de honorários advocatícios

no processo objetivo, não se duvida que se trata de verdadeiro processo jurisdicional dotado

de autonomia e características próprias. A inexistência de uma lide intersubjetiva a ser

dirimida não lhe retira a processualidade, caracterizada pela necessidade de contraditório. A

propósito, Clemerson Clève ensina que o controle abstrato de constitucionalidade é feito por 180 TEMER, Sofia Orberg. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 80. 181 Na Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC n. 1-1/DF, o Relator, Ministro Moreira Alves, assim asseverou: Esta Corte já firmou o entendimento, em vários julgados, de que a ação direta de inconstitucionalidade se apresenta como processo objetivo, por ser processo de controle de normas em abstrato, em que não há prestação de jurisdição em conflitos de interesses que pressupõem necessariamente partes antagônicas, mas em que há, sim, a prática, por fundamentos jurídicos, do ato político de fiscalização dos Poderes constituídos decorrente da aferição da observância, ou não, da Constituição pelos atos normativos deles emanados. Na análise de Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI-MC n. 1434, Relator Ministro Celso de Mello, j. em 20.08.1996, DJ de 22.11.1996, p. 45.684, ficou assentado o seguinte: (...) CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE - PROCESSO DE CARATER OBJETIVO - IMPOSSIBILIDADE DE DISCUSSAO DE SITUACOES INDIVIDUAIS E CONCRETAS. - O controle normativo de constitucionalidade qualifica-se como típico processo de caráter objetivo, vocacionado exclusivamente a defesa, em tese, da harmonia do sistema constitucional. A instauração desse processo objetivo tem por função instrumental viabilizar o julgamento da validade abstrata do ato estatal em face da Constituição da República. O exame de relações jurídicas concretas e individuais constitui matéria juridicamente estranha ao domínio do processo de controle concentrado de constitucionalidade. A tutela jurisdicional de situações individuais, uma vez suscitada a controvérsia de índole constitucional, há de ser obtida na via do controle difuso de constitucionalidade, que, supondo a existência de um caso concreto, revela-se acessível a qualquer pessoa que disponha de interesse e legitimidade (CPC, art. 3o). (...).

Page 91: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

89

um “processo objetivo” que, apesar de instrumento de jurisdição, “não pode ser tomado como

meio para composição de uma lide. É que, sendo ‘objetivo’, inexiste lide no processo

inaugurado pela ação direta genérica de inconstitucionalidade. Não há, afinal, pretensão

resistida”182.

Com efeito, no IRDR não existe propriamente um autor e um réu, mas vários

sujeitos legitimados e interessados. Também corrobora tal interpretação o fato de que não se

admite a posteriori desistência ou o abandono do processo. Isso porque, uma vez provocada a

atuação do tribunal local e presentes os pressupostos de admissibilidade do IRDR, deve o

órgão competente se pronunciar acerca da definição da tese jurídica, sem prescindir, em

qualquer caso, da ampla divulgação e participação democrática dos interessados.183

A autonomia processual do IRDR se evidencia, principalmente, no seu

julgamento. O órgão competente do tribunal local proferirá acórdão, definindo a tese jurídica

a ser aplicada de forma vinculante aos processos repetitivos já ajuizados e aos futuros,

podendo ser atacado autonomamente por recurso especial e extraordinário, nos termos do art.

987 do novo CPC, presumindo-se a repercussão geral de questão constitucional

eventualmente discutida, além da possibilidade de extensão dos efeitos do julgamento para

todos os processos individuais e coletivos em tramitação no território nacional que versarem

sobre idêntica questão de direito.

Se o IRDR fosse, de fato, um mero incidente processual, dependente do processo

modelo do qual se instaurou, não poderia irradiar efeitos vinculantes para outros processos

ainda em tramitação na primeira instância, inclusive em âmbito nacional.

O acórdão do IRDR não constitui, portanto, mera premissa a ser considerada no

julgamento do processo modelo. O acórdão irradia efeitos vinculantes para todos os processos

que versarem sobre a mesma questão repetitiva, em tramitação na primeira ou segunda

instância.

Não se pode negar que se trata de um processo objetivo bastante peculiar. Foi

conferido, por lei ordinária, aos tribunais de segundo grau, que não possuem competência

constitucionalmente atribuída para definirem teses jurídicas com eficácia vinculante em

relação aos juízes de primeiro grau, principalmente. Trata-se de verdadeiro controle abstrato

182 CLÈVE, Clemerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995, p. 112-113. 183SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 148.

Page 92: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

90

de legalidade anômalo.

A lei expressamente afasta a cobrança de custas processuais para a instauração do

IRDR (§ 5º do art. 976) e, por se tratar de processo objetivo, sem uma lide intersubjetiva a ser

dirimida, não há vitoriosos e vencidos, mas apenas a definição, com caráter geral, da

interpretação jurídica sobre determinada questão de direito. Nesse contexto, não existe a

condenação ao pagamento de honorários advocatícios de sucumbência.

Importante ressaltar, no entanto, que o caráter objetivo do IRDR não implica a

aproximação total e exclusiva das suas características àquelas da jurisdição exercida no

controle abstrato de constitucionalidade. Destaca-se, nesse sentido, a advertência feita por

Sofia Temer em razão das peculiaridades do novo incidente processual:

(...) embora em alguns aspectos a atividade jurisdicional exercida no IRDR se aproxime daquela exercida no controle abstrato de constitucionalidade, há várias peculiaridades do incidente que indicam diferenças substanciais, notadamente porque o IRDR é instaurado a partir de processos que versam sobre conflitos subjetivos, o que não ocorre nas ações de controle concentrado, com o objetivo de que a tese seja aplicada, posteriormente, para a resolução de tais conflitos. Assim, apesar de objetivo – e, portanto, sem vinculação direta e imediata com a resolução de conflitos subjetivos específicos -, o IRDR não pode desconsiderar aspectos fáticos dos casos que serão afetados, ou seja, das demandas repetitivas nas quais haverá a aplicação da tese. Como já foi destacado, a atividade cognitivo-decisória do IRDR é uma mescla de concretude e abstração. Por isso, embora haja abstração em relação aos casos concretos, não há desconsideração dos dados emergentes dos conflitos subjetivos.184

São tais peculiaridades do IRDR que, diferentemente do controle abstrato de

constitucionalidade, demonstram a forte influência do modelo das ações de grupo do direito

comparado, justificando a defesa do direito de ampla participação e do contraditório

substancial em relação às partes afetadas pelo julgamento, bem como do controle de

representatividade adequada, conforme se sustentará ao longo da pesquisa.

Enfim, o IRDR pode ser considerado, de acordo com as palavras do professor

Humberto Theodoro Jr., um “remédio processual de inconteste caráter coletivo”185, o qual

possui natureza jurídica de um processo objetivo dotado, segundo a lei, de eficácia vinculante

e erga omnes para os órgãos do Poder Judiciário situados no âmbito da competência territorial

184 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 88. 185 THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 736.

Page 93: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

91

do tribunal.186

2.4.2 Pressupostos de admissibilidade

O artigo 976 do novo Código de Processo Civil prevê o cabimento do IRDR desde

que presentes simultaneamente as seguintes situações: a) efetiva repetição de processos; b)

controvérsia sobre a mesma questão de direito; e c) o risco de ofensa à isonomia e à segurança

jurídica.

2.4.2.1 Da efetiva repetição de processos

A necessidade da existência efetiva de repetição de processos demonstra que o

incidente processual não possui caráter preventivo.

Esse ponto é de suma importância, pois o anteprojeto elaborado pela Comissão de

juristas e o Projeto de Lei nº 166/2010, que tramitou no Senado Federal, continham

dispositivo que previa o cabimento do IRDR sempre que identificada controvérsia com mero

potencial de gerar multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de

causar grave insegurança jurídica. Assim, antes mesmo da existência de uma multiplicidade

real de demandas, o incidente já poderia ser instaurado.

Dierle Nunes manifestou sua preocupação com a tentativa de se imprimir o caráter

preventivo ao incidente:

(...) a atual sistemática do código reformado e do Projeto do novo CPC viabilizam a utilização de julgados com a finalidade preventiva toda vez que se perceber a possibilidade de profusão de demandas. Nestes termos, ao receber uma das primeiras demandas ou recursos, o Judiciário o afetaria como repetitivo e o julgaria com parcos argumentos, antes mesmo da ocorrência do salutar dissenso argumentativo. (...) Seu papel deve ser o de uniformizar e não o de prevenir um debate.187

186 Sofia Temer discorda da assimilação do IRDR ao processo coletivo e às suas características. Em sua recente obra, a referida processualista defende que, embora seja inegável que há uma dimensão coletiva no incidente, que decorre da repetição das mesmas questões em diversos casos (o que fundamenta o uso do instituto) e que se observa na abrangência do âmbito de aplicação da tese fixada, há elementos importantes que demonstram que ele não é um meio processual propriamente coletivo, ou seja, não é uma técnica processual coletiva, e por isso, se distancia das ações coletivas para defesa de direitos individuais homogêneos. (TEMER, Sofia Orberg. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 92) O tema é realmente polêmico e a própria Sofia Temer reconhece que reformulou seu entendimento já externado em trabalhos anteriores quando sustentou que o IRDR era um mecanismo de coletivização. (MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, vol. 243, maio/2015, p. 283-332; LAMY, Eduardo de Avelar; TEMER, Sofia Orberg. A representatividade adequada na tutela de direitos individuais homogêneos. Revista de Processo, vol. 206, 2012, p. 167-189.) 187 NUNES, Dierle José Coelho. Precedentes, padronização decisória preventiva e Coletivização – Paradoxos do sistema jurídico brasileiro: uma abordagem constitucional democrática. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 267-268.

Page 94: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

92

No mesmo sentido, destaca-se a crítica externada por Leonardo José Carneiro da

Cunha:

Para que se possa fixar uma tese jurídica a ser aplicada a casos futuros, é preciso que sejam examinados todos os pontos de vista, com a possibilidade de análise do maior número possível de argumentos. E isso não se concretiza se o incidente for preventivo, pois não há, ainda, amadurecimento da discussão. Definir uma tese sem que o assunto esteja amadurecido ou amplamente discutido acarreta o risco de haver novos dissensos, com a possibilidade de surgirem, posteriormente, novos argumentos que não foram debatidos ou imaginados naquele momento inicial em que, preventivamente, se fixou a tese jurídica a ser aplicada a casos futuros.188

As críticas e os debates ocorridos na Câmara dos Deputados ensejaram a

modificação do projeto para incluir a necessidade da existência concreta da multiplicação de

demandas sobre a mesma questão jurídica.189

O caráter preventivo restringiria de forma contundente o debate processual e o

amadurecimento das questões envolvidas por intermédio de decisões proferidas em casos

individuais, de modo que a previsão foi corretamente suprimida da regulamentação do IRDR.

Ao contrário do previsto nos procedimentos na Alemanha, Inglaterra e em

Portugal, o dispositivo legal não estabeleceu um número mínimo de processos para a

instauração do incidente. Caberá ao tribunal local ou regional verificar, em cada caso, se

presente a multiplicidade de demandas sobre questão jurídica repetitiva capaz de gerar ofensa

à isonomia e à insegurança jurídica.

Para Artur César de Souza, “um número inexpressivo de demandas não

justificaria a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas”190.

Em sentido contrário, o Enunciado n. 87 do Fórum Permanente dos

Processualistas Civis dispõe que “a instauração do incidente de resolução de demandas

repetitivas não pressupõe a existência de grande quantidade de processos versando sobre a

188 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 193, mar. 2011, p. 262. 189 O jurista Luiz Henrique Volpe Camargo criticou a alteração do projeto de lei realizada pela Câmara dos Deputados, sustentando que a modificação legislativa retirou “a possibilidade de instauração do incidente preventivo, ou seja, antes da concreta reprodução massificada de causas. (...) a versão do Senado é mais afinada com um dos principais objetivos do incidente, que é desafogar o Poder Judiciário de questões repetitivas”. (CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de novo CPC: a comparação entre a versão do Senado Federal e a da Câmara dos Deputados. In: FREIRE, Alexandre et al (Orgs.). Novas tendências do processo civil. vol. III. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 283) 190 SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 128.

Page 95: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

93

mesma questão, mas preponderantemente o risco de quebra da isonomia e de ofensa à

segurança jurídica”191.

Como muito bem advertem Gláucio Maciel Gonçalves e Victor Dutra, diante da

ausência de critérios objetivos previstos na legislação brasileira, corre-se o sério risco da

utilização precoce do IRDR, antes que outras partes afetadas pela mesma questão de direito

tenham trazido ao Poder Judiciário novas perspectivas e sem que uma quantidade razoável de

juízes tenha se posicionado sobre a matéria de direito. Tal situação poderia “culminar em

decisões-modelo desconectadas da amplitude das realidades fáticas”192

2.4.2.2 Da questão unicamente de direito

Não é suficiente a efetiva repetição de demandas. O incidente somente será

cabível para definir tese jurídica acerca de questões idênticas “unicamente de direito”.

Ao contrário do previsto nas ações de grupo no direito comparado, não se admite

na novel legislação a instauração do IRDR para análise de questões repetitivas que envolvam

também matéria de fato. Os fatos serão objeto de cognição pelo juiz de cada demanda

repetitiva nas respectivas sentenças, havendo, portanto, uma verdadeira cisão da cognição

pelo IRDR.

Com efeito, a cisão da cognição judicial é uma artificialidade perigosa que

acarreta o distanciamento do órgão julgador dos fatos subjacentes ao conflito, o que pode

favorecer a uma padronização decisória com comprometimento da qualidade e completude da

prestação jurisdicional.

Nas palavras de Antônio do Passo Cabral, “se na atividade de cognição judicial,

fato e direito estão indissociavelmente imbricados, a abstração excessiva das questões

jurídicas referentes às pretensões individuais poderia apontar para um artificialismo da

decisão”193.

A mesma crítica é realizada por Júlio Rossi, para o qual a referida cisão é

“fantasiosa na medida em que, firmada a tese vinculante no bojo de um IRDR, dificilmente 191NUNES, Dierle José Coelho; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 389. 192GONÇALVES, Gláucio Maciel; DUTRA, Victor Barbosa. Apontamentos sobre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas no Código de Processo Civil de 2015. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015, p. 193. 193CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 132-133.

Page 96: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

94

saberemos distinguir o que é uma matéria ou questão de direito e o que é de fato, aplicando

nosso precedente à brasileira por critério de silogismo ou mero procedimento”194.

Cabe aqui também a advertência da professora Teresa Arruda Alvim Wambier195

de que, pelo menos no plano ontológico, não é possível fazer distinção entre questão de

direito e as questões de fato para a cisão da cognição e do julgamento da causa, justamente

porque a noção tridimensional do direito reside na compreensão conjunta do fato, do valor e

da norma. O direito somente ocorre quando se encontram o mundo dos fatos com o mundo

das normas e sua interpretação pelo julgador pressupõe a realização da subsunção.

Não obstante a aparente indissociabilidade entre os fenômenos, no plano técnico

processual, seria possível, de acordo com a teoria defendida pela renomada processualista,

fazer uma distinção entre questão de fato e questão de direito para fins de admissibilidade de

determinados institutos processuais, como, por exemplo, do recurso extraordinário e do

especial para o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, respectivamente,

aceitando-se o critério de preponderância de um ou de outro em cada caso. Diante do novo

CPC, o critério da preponderância também poderia se aplicar ao IRDR.

Para Wambier, devem-se admitir graus de predominância196 do aspecto jurídico

da questão. Ter-se-á, por exemplo, uma questão quase que exclusivamente jurídica, se o foco

de atenção do raciocínio do julgador estiver situado em como deve ser entendido o texto

normativo, já que estariam “resolvidos” os aspectos fáticos (que fatos ocorreram e como

ocorreram) e o mecanismo de subsunção. Estas primeiras etapas do raciocínio do aplicador da

lei terão sido superadas e, agora, sua atenção se centra na exata compreensão da regra

jurídica.

Nessa toada, haverá controvérsia sobre determinada questão de direito para fins de

cabimento do IRDR quando houver, de forma preponderante, discordância quanto à forma de

interpretação de determinada norma jurídica, cuja análise independa de dilação probatória.

Essa tentativa do legislador de proceder à cisão entre os dois fenômenos revela

uma tendência de atribuir aos tribunais de segundo grau a prerrogativa de elaboração de

194 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 233. 195 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Questão de fato e questão de direito. Revista da Academia Paulista de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 3, jan./jun., 2012, p. 235-236. 196 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Questão de fato e questão de direito. Revista da Academia Paulista de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 3, jan./jun., 2012, p. 236-237.

Page 97: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

95

normas cada vez mais gerais e abstratas, cada vez mais distantes das peculiaridades dos casos

concretos, o que foge ao tradicional papel do Poder Judiciário de fazer a subsunção do fato à

norma para a composição da lide no caso concreto. 197

Esse distanciamento se mostra mais alarmante no caso do IRDR, porquanto o

papel constitucional dos tribunais locais e regionais como meras cortes de revisão não é o de

estabelecer teses jurídicas gerais e abstratas, mas o de proceder à subsunção dos fatos às

normas para composição dos litígios que se apresentam.

Ressalta-se, por fim, que a questão “preponderante” de direito objeto do IRDR

poderá ser tanto de direito material quanto de direito processual.

Nos termos do parágrafo único do art. 928 do novo CPC, o incidente será cabível

para estabelecer teses jurídicas sobre questões de direito material ou de direito processual

comuns em demandas repetitivas, não havendo restrição legal, portanto, quanto à matéria

jurídica que será objeto do julgamento.

A propósito, editou-se o Enunciado nº 88 do Fórum de Processualistas Civis,

segundo o qual “não existe limitação de matérias de direito passíveis de gerar a instauração do

incidente de resolução demandas repetitivas e, por isso, não é admissível qualquer

interpretação que, por tal fundamento, restrinja seu cabimento”198.

Conforme explicita Artur César de Souza199, a grande massa de processos em

tramitação perante o Poder Judiciário não possui por objeto apenas questão controvertida de

direito material, mas possui também questões repetitivas de direito processual que, à luz da

novel legislação, possibilitarão a instauração do incidente para a definição da tese jurídica.

2.4.2.3 Da existência de risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica e da

necessidade de julgamentos conflitantes

A admissibilidade do incidente depende, ainda, da existência do risco de ofensa à

isonomia e à segurança jurídica.

197 GONÇALVES, Gláucio Maciel; DUTRA, Victor Barbosa. Apontamentos sobre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas no Código de Processo Civil de 2015. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015, p. 195. 198 NUNES, Dierle José Coelho. SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 367. 199 SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 133-134.

Page 98: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

96

Segundo Artur César de Souza, “a sociedade não se satisfaz mais com o conflito

de decisões diante da mesma questão jurídica, pois o favorecimento de uns em prejuízo de

outros demonstra a inconsistência das decisões judiciais e a falta de senso de justiça”200.

É dentro desse contexto que, a pretexto da busca da celeridade processual e da

previsibilidade decisória, o IRDR visa agilizar, a qualquer custo, a uniformização da

interpretação jurisprudencial, definindo teses sobre questões jurídicas comuns a diversos

processos repetitivos.

Ao conferir tratamento isonômico às demandas repetitivas, firmando a mesma

tese jurídica para todas elas, o Poder Judiciário estaria garantindo e preservando a isonomia e

a segurança jurídica. Para Leonardo José Carneiro da Cunha,

a segurança jurídica pode ser encarada como: a) manutenção do ‘status quo’, sem possibilidade de alterar situação já consolidada; b) garantia de previsibilidade, permitindo que as pessoas possam se planejar e se organizar, levando em conta as possíveis decisões a serem tomadas em casos concretos pelos juízes e tribunais.201

Nesse contexto, se o propósito do incidente é proteger a segurança jurídica e a

isonomia, conferindo previsibilidade e uniformidade à interpretação da questão de direito,

mostra-se condizente com a Constituição a interpretação de que o seu cabimento deve sempre

pressupor a existência de sentenças já proferidas ou pelo menos de decisões interlocutórias

divergentes.

Não se pode admitir o risco de violação à isonomia e à segurança jurídica pela

simples existência de uma multiplicidade de demandas repetitivas. Deve existir o

antagonismo jurisprudencial para se demonstrar o tratamento diferenciado em relação a uma

mesma questão de direito.202

Com efeito, se o posicionamento doutrinário sobre a interpretação de determinada

norma jurídica e se as decisões provisórias ou definitivas até então proferidas pelo Poder

Judiciário forem no mesmo sentido, não haveria risco à isonomia e à segurança jurídica –

pressuposto essencial para o cabimento do incidente, sob pena de precipitação e engessamento

200 SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 125. 201 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 179, jan. 2010, p.138. 202 Esse também é o entendimento manifestado por Gláucio Maciel Gonçalves e Victor Dutra. In: Apontamentos sobre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas no Código de Processo Civil de 2015. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015, p. 194.

Page 99: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

97

do debate processual.

Embora tal exigência não tenha sido admitida no Congresso Nacional quando da

aprovação da novel legislação, a interpretação teleológica ora apresentada é a mais coerente

com as garantias fundamentais do processo já que impede a instauração prematura do IRDR

antes que efetivamente existam posicionamentos antagônicos sobre a questão jurídica

isomórfica, favorecendo o debate processual para que a tese jurídica somente seja firmada

através do incidente a partir do surgimento de ampla divergência. Ou seja, é necessário existir

controvérsia jurisprudencial preexistente ao incidente.

Tal posicionamento é defendido por Leonardo Cunha:

(...) para caber o incidente, seria mais adequado haver, de um lado, sentenças admitindo determinada solução, havendo, por outro lado, sentenças rejeitando a mesma solução. Seria, enfim, salutar haver uma controvérsia já disseminada para que, então, fosse cabível o referido incidente. Dever-se-ia, na verdade, estabelecer como requisito para a instauração de tal incidente a existência de prévia controvérsia sobre o mesmo assunto.203

No mesmo sentido é a interpretação de Júlio Rossi:

O que se espera de um instituto sério que fora criado no direito estrangeiro (com prazo de vigência, diante da excepcionalidade) e que nós pretendemos introduzir em nosso ordenamento, de forma perene, com o discurso de que assim a tutela dos direitos individuais homogêneos será mais bem atendida, é o de, no mínimo, admitirmos o IRDR quando já houvesse algumas controvérsias comprovadas por sentenças antagônicas a respeito do tema repetitivo, pois, salutar a controvérsia disseminada.204

Correta também a advertência do professor Humberto Theodoro Jr.205 no sentido

de que a lei não exige o estabelecimento do caos interpretativo entre milhares de demandas

repetitivas. Basta apenas que exista repetição de processos em número razoável para que,

diante da disparidade de entendimentos entre juízos diferentes, fique caracterizado o risco de

ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Enfim, para se configurar o referido pressuposto de

admissibilidade, é imperiosa a necessidade da existência de vários processos e de decisões

203 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 193, mar. 2011, p. 262. 204 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 231. 205 THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 738.

Page 100: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

98

díspares acerca da interpretação da mesma norma jurídica.

Caso contrário, sem a existência das decisões ou sentenças antagônicas, seria

admitida a produção de jurisprudência vinculante – efeito do julgamento do IRDR – acerca de

questões apresentadas inicialmente na primeira instância sem a participação efetiva do

magistrado de primeiro grau em qualquer das etapas de sua construção, o que não atende ao

modelo constitucional do processo objeto de análise em capítulo próprio desta pesquisa.

Também reforça tal interpretação a necessidade da existência de processo

pendente no Tribunal para que haja a instauração do incidente, conforme se verá a seguir.

Por outro lado, a inadmissão do IRDR por ausência de qualquer de seus

pressupostos de admissibilidade não impede que, em momento posterior, uma vez satisfeito o

requisito, seja o incidente novamente suscitado, consoante previsão do parágrafo 3º do art.

976.

2.4.2.4 Do caráter subsidiário do incidente processual

Finalmente, destaca-se que, nos termos do parágrafo 4º do art. 976, o IRDR não

será cabível quando um dos tribunais superiores, no âmbito da sua respectiva competência

constitucional, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material

ou processual repetitiva, na forma dos artigos 1036 e 1041 da novel legislação.

Trata-se de medida que confere coerência ao sistema processual já que, nessa

hipótese, a definição da tese jurídica caberá ao tribunal superior, cuja atribuição para

uniformização da interpretação jurídica é prevista na própria Constituição da República.

Como é cediço o julgamento do tribunal superior surtirá efeitos sobre todos os órgãos do

Poder Judiciário, tendo primazia sobre as interpretações dos tribunais locais, de modo que a

instauração do IRDR seria inócua.

O IRDR possui, portanto, papel subsidiário quanto à definição de teses jurídicas e

uniformização jurisprudencial, cedendo espaço para a atuação preponderante do Supremo

Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, cuja atribuição de uniformização da

interpretação da Constituição e da legislação federal infraconstitucional é extraída da própria

Constituição.

2.4.2.5 Necessidade da existência de processo pendente no tribunal – uma interpretação

conforme a Constituição

Além dos pressupostos analisados no item anterior, é necessário ainda que já

Page 101: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

99

exista demanda sobre a questão de direito repetitiva tramitando no tribunal local ou regional

para a instauração do IRDR.

Ou seja, a admissibilidade do incidente deve pressupor a tramitação no respectivo

tribunal de recurso, remessa necessária ou processo de competência originária que tenha por

objeto a questão de direito repetitiva, hipótese em que o órgão competente, de acordo com o

regimento interno do tribunal, não só fixará a tese jurídica comum, como também julgará o

mérito do recurso, da remessa necessária ou processo de competência originária pendente,

aplicando aquela tese definida.

Embora não haja previsão expressa na legislação sobre tal exigência, é o que se

extrai da interpretação, conforme a Constituição de 1988, do parágrafo único do artigo 978206

do novo Código de Processo Civil, segundo o qual “o órgão colegiado incumbido de julgar o

incidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa necessária ou o

processo de competência originária de onde se originou o incidente”.

Entendimento contrário já externado por Cássio Scarpinella Bueno207, Marinoni,

Arenhart e Mitidiero208, Humberto Theodoro Jr.209, Sofia Temer210 e pelo Enunciado nº 22 da

Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrado – ENFAM211, os quais

admitem a instauração do IRDR a partir de processos em tramitação apenas na primeira

206 Importante ressaltar que diversos autores defendem a inconstitucionalidade formal do referido dispositivo, em razão de ofensa ao devido processo legislativo. Isso porque não havia previsão similar ao dispositivo nas versões aprovadas no Senado e na Câmara dos Deputados. Não se poderia admitir que o referido dispositivo tenha surgido como emenda de redação, haja vista seu conteúdo substancial distinto dos textos aprovados. (CABRAL, Antonio do Passo. Comentários aos arts. 976 a 987. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1428 No mesmo sentido: TEMER, Sofia Orberg. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 104-105; CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas e ações coletivas. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 453.) Não obstante, entende-se que eventual inconstitucionalidade do referido dispositivo legal não impede a interpretação ora preconizada, que se respalda no respeito à garantia constitucional do contraditório substancial, considerada indispensável à validade do processo, e no sistema de competências delimitado taxativamente pela Constituição de 1988. 207 BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 613. 208 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 580. 209 Humberto Theodoro Júnior admite na obra referenciada a necessidade da existência de “controvérsias jurisprudenciais preexistentes” para cabimento do incidente, mas entende que não é preciso que exista demanda sobre a questão repetitiva transitando pelo tribunal, nem que algum recurso já tenha sido interposto. (THEODORO JR., Humberto. Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 737-741). 210 TEMER, Sofia Orberg. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 103-115. 211SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 136.

Page 102: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

100

instância sem qualquer prévio pronunciamento judicial, seja ele por decisão ou sentença,

colide frontalmente com o contraditório substancial robustecido pelo debate processual mais

amplo que deveria permear qualquer procedimento voltado à fixação de posicionamentos

vinculantes de modo a lhes conferir legitimidade constitucional.

De igual modo, seria inócua a requisição prevista no artigo 982, inciso II, para a

obtenção de informações perante os órgãos jurisdicionais, nos quais tramitam os processos

que tem por objeto a questão de direito repetitiva, na medida em que os julgadores de

primeiro grau não poderiam remeter qualquer pronunciamento jurisdicional com a abordagem

necessária dos argumentos pertinentes à controvérsia jurídica já que os processos estariam

suspensos pelo incidente antes mesmo de qualquer análise da questão e dos argumentos

apresentados.

Nesse sentido adverte Luiz Norton Baptista de Mattos,

Se o incidente pudesse ser instaurado a partir de processos em tramitação no primeiro grau de jurisdição, estaria aberta a possibilidade de o tribunal fixar a tese jurídica sem que qualquer juízo de primeira instância do estado ou região tivesse se pronunciado a seu respeito. O tribunal seria o primeiro órgão jurisdicional no estado ou região a decidir a questão jurídica repetitiva, sem que qualquer juízo de primeiro grau tivesse proferido sentença ou decisão a seu respeito. Basta imaginar a hipótese na qual começasse a haver a distribuição de várias ações semelhantes referentes a uma questão jurídica, inédita nos meios forenses, e os órgãos judiciários de primeiro grau de determinado estado ou região, antes mesmo da citação, oficiassem ao presidente do tribunal e fosse instaurado o incidente, com a suspensão de todos os processos referentes à questão jurídica comum. A fixação da tese pelo tribunal ocorreria sem que qualquer órgão judiciário de primeiro grau daquele estado ou região tivesse decidido o tema. E a mesma situação poderia se repetir em todos os demais estados e regiões, de modo que, após a previsão do incidente de resolução de demandas repetitivas, as questões jurídicas repetitivas poderiam jamais ser examinadas por qualquer órgão judiciário de primeiro grau, passando a receber a sua primeira interpretação pelos tribunais estaduais ou regionais federais. 212

E logo a seguir conclui,

(...) na interpretação dos dispositivos do novo CPC ora preconizada, a instauração do incidente ocorrerá quando já há recursos ou remessas necessárias no tribunal sobre a questão jurídica repetitiva, o que pressupõe sentenças ou decisões de muitos juízos sobre o tema, muitas delas com fundamentos e conclusões distintas. Destarte, ao julgar o incidente, o

212 MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 170-171.

Page 103: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

101

tribunal terá, sob seu escrutínio, vários pontos de vista sobre a questão, o que possibilita um melhor amadurecimento sobre a controvérsia e a formação de um precedente de melhor qualidade.213

A necessidade da existência de processo pendente no tribunal também foi

externada nos estudos de Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa, segundo o qual

(...) estando os processos ainda em primeira instância, sem que tenha havido a interposição de recurso ou sequer a prolação de sentença, o incidente de demanda repetitiva é incidente de que? A resposta é fácil: a nada! Não se tratando de causa de competência originária do tribunal e não havendo ainda recurso, a decisão a respeito da interpretação do direito não constitui uma questão prévia a ser resolvida pelo tribunal antes de proferir um julgamento, porque o julgamento propriamente dito, ainda que condicionado, não será proferido pelo órgão ad quem, mas pelo órgão a quo. Não há, em verdade, incidente, mas a avocação pelo tribunal de parcela das questões relevantes para o julgamento de mérito (...)214

A mesma posição é externada por Antônio do Passo Cabral, segundo o qual “a

intenção do legislador é claramente de que o IRDR somente possa ser suscitado na pendência

de processo no tribunal, ou seja, já depois de proferidas decisões na primeira instância”215.

Assim, para que haja respeito ao contraditório efetivo, o incidente somente poderá

ser instaurado a partir de um caso modelo no qual, além do amplo debate entre as partes, a

questão de direito repetitiva também já tenha sido enfrentada pelo juiz de maneira

fundamentada na sentença. Ou seja, é preciso o maior debate das questões e para tanto a causa

tem que chegar ao tribunal por via do recurso ou da remessa necessária.216

Para Marcos Cavalcanti217 basta que o tribunal esteja examinando alguma das

causas repetitivas para cabimento do IRDR, não havendo qualquer importância se eventual

recurso tiver sido interposto de sentença ou decisão interlocutória, sendo que, nessa hipótese,

porém, a cognição do incidente ficaria restrita ao efeito devolutivo do recurso de agravo de

213 MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1.. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 172. 214 YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 206, abr., 2012, p. 252. 215 CABRAL, Antonio do Passo. Comentários aos arts. 976 a 987. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1422. 216 CABRAL, Antônio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo, v. 39, n. 231. São Paulo: RT, maio 2014, p. 209. 217CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 433-434.

Page 104: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

102

instrumento. Segundo defendido por Cavalcanti em sua obra, o incidente instaurado a partir

de um processo modelo pendente no tribunal para análise do recurso de agravo de instrumento

interposto contra decisão interlocutória teria também cognição sumária e a tese ali proferida

deveria servir de parâmetro apenas para os exames dos requerimentos repetitivos de

antecipação dos efeitos da tutela. Tal restrição não possui previsão na legislação e esvaziaria a

finalidade do incidente quando interposto em tais situações, mesmo porque existem as

decisões de mérito que possuem caráter definitivo e cognição exauriente.

A interpretação quanto à necessidade de processo pendente no tribunal para a

admissibilidade do IRDR se mostra insuperável também do ponto de vista da

inconstitucionalidade formal, em razão da edição de mera lei ordinária para a ampliação do

sistema de competências preconizado pela Constituição da República de 1988, quando

haveria necessidade de emenda à Lei Maior.

Sofia Temer defende, no entanto, posicionamento contrário. Sustenta em sua

recente obra que parece ser possível extrair a competência para o julgamento do IRDR do

próprio sistema jurídico, como uma competência implícita dos tribunais enquanto órgãos

ordenados em nível superior aos juízos de primeiro grau, com o poder de revisão em relação

às decisões inferiores. Segundo a processualista, esta competência implícita seria justificada

pela Constituição em razão da exigência de coerência e unidade na interpretação e aplicação

do direito, e de respeito à isonomia e à segurança jurídica. 218

O referido entendimento não convence. Com efeito, o sistema de competências e

de organização da estrutura do Poder Judiciário estabelecido pela Lei Maior é taxativo, não

admitindo interpretação extensiva, sob pena de violação à segurança jurídica e ao devido

processo legal.

Assim, a instauração do incidente sem que exista processo pendente no tribunal de

segundo grau implica a ampliação indevida da competência originária de tais tribunais por

meio de lei ordinária em total afronta à Constituição da República de 1988.219

Em relação aos Tribunais de Justiça, a Constituição da República de 1988

determina no art. 125220 que as competências serão definidas nas Constituições dos

218 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 113-114. 219 No mesmo sentido se manifestou Artur César de Souza. (SOUZA, Arthur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 137-143). 220 CF. Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

Page 105: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

103

respectivos Estados, do que se conclui que o Código de Processo Civil – lei ordinária de

caráter nacional – não tem legitimidade constitucional para ampliar a competência originária

dos referidos órgãos do Poder Judiciário.

De igual modo, a lei ordinária, que regulamenta o Código de Processo Civil, não

pode ampliar a competência originária dos Tribunais Regionais Federais prevista de forma

taxativa no art. 108221 da Constituição da República.

Enfim, seja do ponto vista material – respeito ao efetivo contraditório com maior

debate processual e participação do magistrado de primeiro grau –, seja do ponto de vista

formal – impossibilidade de lei ordinária ampliar rol de competência originária dos tribunais –

, a interpretação que deve prevalecer é a de que o cabimento do IRDR pressupõe a existência

de processo sobre a questão jurídica repetitiva pendente de julgamento no tribunal.

2.4.3 Legitimidade para requerer a instauração do IRDR

A legitimidade para requerer a instauração do incidente foi regulada pelo art. 977

do Código de Processo Civil.

A referida norma legal dispõe que o requerimento para instauração do IRDR deve

ser dirigido ao tribunal local ou regional pelo juiz ou relator, por ofício; pelas partes, por

petição; pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, também por petição.

Os sujeitos atuam no incidente não na defesa de um direito subjetivo próprio ou

na defesa de direito subjetivo de terceiros, mas para atender o interesse público voltado à

uniformização da interpretação de determinada questão de direito repetitiva, já que, pela

natureza objetiva do IRDR, não se resolve diretamente a lide intersubjetiva no seu

procedimento.

Trata-se de legitimação extraordinária decorrente de expressa autorização legal. A

propósito, nas palavras de Sofia Temer,

§ 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. 221 CF. Art. 108 - Compete aos Tribunais Regionais Federais: I - processar e julgar, originariamente: a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; b) as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região; c) os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal; d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal; e) os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal;

Page 106: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

104

A situação legitimante para condução do incidente não é extraída necessariamente de uma posição assumida em uma relação substancial (que sequer é levada para apreciação no incidente), mas, ao contrário, decorre da lei (ao conferir, por exemplo, legitimação para o ato de instauração para os sujeitos elencados no art. 977, os quais podem ser os escolhidos para conduzir o debate) e do sistema processual (que instituiu um modelo de solução de questões a partir de modelos da controvérsia, o que pressupõe a escolha de alguns sujeitos). O caráter objetivo do incidente fortalece esse afastamento da legitimação de uma relação jurídica substancial.222

Em qualquer das hipóteses, de acordo com o parágrafo único, o requerimento

deverá ser instruído com os documentos necessários à demonstração do preenchimento dos

pressupostos para a instauração do incidente.

2.4.3.1 A legitimidade do juiz de primeiro grau e do relator

Como se demonstrou que o incidente pressupõe necessariamente a existência de

processo pendente no tribunal, em razão da competência originária, ou por força de recurso ou

remessa necessária, o pedido formulado pelo juiz de primeira instância pode ocorrer quando

este remeter ao tribunal em razão de recurso ou reexame necessário um ou vários processos

nos quais existe a discussão da questão de direito repetitiva. 223

Mesmo que os processos ainda não tenham sido remetidos ao tribunal, é possível

que o juiz de primeira instância exerça sua legitimidade para requerer a instauração do

incidente mediante ofício, desde que venha instruído com documentação suficiente para

demonstrar que a questão de direito repetitiva já se encontra pendente de análise pelo tribunal

em outros casos.

Nesse sentido, Luiz Henrique Volpe Camargo entende que “o juiz de 1º grau, por

sua função, tem mais facilidade em considerar a multiplicação de causas com a mesma

questão jurídica, pois, é a ele que as demandas de variados autores, muitas vezes

representados por diferentes advogados, é dirigida” 224.

No tribunal, por sua vez, somente o relator de algum dos processos repetitivos,

seja em razão de recurso, remessa necessária, ou em razão de causa de competência

222 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 155. 223MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.).Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 178. 224 CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de novo CPC: a comparação entre a versão do Senado Federal e a da Câmara dos Deputados. In: FREIRE, Alexandre et al (Orgs.). Novas tendências do processo civil. vol. III. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 288.

Page 107: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

105

originária, poderá requerer a instauração do IRDR, mediante ofício. Ou seja, a legitimidade do

relator no tribunal pressupõe que a ele tenha sido atribuída a relatoria de pelo menos um

processo que envolva a questão de direito repetitiva. Caso contrário, a lei não precisaria ter

mencionado a legitimidade específica do relator, mas simplesmente de qualquer magistrado

de segundo grau.

Nesse aspecto da legitimidade processual, o IRDR se diferencia do procedimento-

modelo alemão, no qual não é permitida a instauração de ofício pelo julgador, e se aproxima

da ordem de litígio em grupo do sistema inglês que a permite.

2.4.3.2 A legitimidade das partes

As partes dos processos repetitivos também possuem legitimidade para requerer a

instauração do incidente.

É certo que as partes legitimadas não são apenas aquelas que integram a relação

processual da causa pendente no tribunal. Qualquer das partes dos processos repetitivos, tendo

conhecimento de que já existe demanda de mesma natureza pendente de análise no tribunal,

tem legitimidade para requerer a instauração do IRDR, mediante petição fundamentada,

instruída por documentos e procuração para representação por advogado habilitado. 225

Constata-se, a partir de uma interpretação sistemática do novo CPC, que se as

partes das demandas repetitivas em tramitação ainda na primeira instância possuem

legitimidade para requerer diretamente ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal

de Justiça a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território

nacional que versarem sobre a questão objeto do IRDR já instaurado (art. 982, § 3º do novo

CPC226), é evidente que essas mesmas partes possuem legitimidade para requerer a

instauração do incidente perante o tribunal local ou regional competente. 227

Tanto os autores quanto os réus dos processos repetitivos poderão requerer a

instauração do incidente. Se houver litisconsórcio, seja ele facultativo ou necessário (unitário

ou não), o incidente poderá ser arguido por qualquer litisconsorte isoladamente, não havendo

225CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 437. 226 A previsão do texto legal é expressa nesse sentido: § 3º Visando à garantia da segurança jurídica, qualquer legitimado mencionado no art. 977, incisos II e III, poderá requerer, ao tribunal competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial, a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente já instaurado. 227CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 438.

Page 108: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

106

qualquer restrição legal.

O dispositivo menciona especificamente as partes da relação processual, de modo

que o assistente simples não poderá arguir o incidente, pois não assume a condição processual

de parte. O assistente litisconsorcial, por sua vez, como assume os mesmos poderes e ônus

processuais das partes, equiparando-se a um litisconsórcio, possui legitimidade para o

IRDR.228

É possível, portanto, que vários legitimados requeiram a instauração do IRDR

perante o mesmo tribunal. Em prol da economia processual e para evitar julgamentos

conflitantes, o Enunciado nº 89 do Fórum de Processualistas Civis dispõe que:

Havendo apresentação de mais de um pedido de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas perante o mesmo tribunal todos deverão ser apensados e processados conjuntamente; os que forem oferecidos posteriormente à decisão de admissão serão apensados e sobrestados, cabendo ao órgão julgador considerar as razões neles apresentadas.229

Ressalta-se, por fim, que a lei não faz exigência de que a petição das partes seja

revestida dos requisitos formais da petição inicial, mas, a toda evidência, é necessário que o

requerimento seja amplamente fundamentado pela parte interessada, demonstrando a

existência dos pressupostos de admissibilidade, além de fundamentos jurídicos para sustentar

a prevalência de determinada interpretação jurídica que lhe seja favorável.

A petição fundamentada é corolário do contraditório substancial, contribuindo

para o debate processual que será travado no IRDR, que, após admitido pelo órgão

competente, adquire a natureza de um verdadeiro processo objetivo, voltado à definição de

tese jurídica com eficácia erga omnes e vinculante.

2.4.3.3 A legitimidade do Ministério Público e da Defensoria Pública

O inciso III do art. 977 do CPC/2015 conferiu ainda legitimidade ao Ministério

Público, mesmo não agindo como parte ou fiscal da lei no processo individual ou coletivo, e

também à Defensoria Pública para postularem a instauração do incidente.

Fica evidente que, nesse ponto, a legislação processual incorporou ao IRDR

228SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 146. 229 NUNES, Dierle José Coelho. SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 388.

Page 109: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

107

característica das ações coletivas 230, qual seja, a previsão da legitimação extraordinária ou

substituição processual pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública para a tutela de

direitos de partes envolvidas nas demandas repetitivas sobre determinada questão de direito.

Em outras palavras, “a legitimação do Ministério Público e da Defensoria Pública para

suscitar o IRDR tem, a princípio, forte relação com a legitimidade extraordinária dessas

entidades para o ajuizamento de ação civil pública na defesa de direitos individuais

homogêneos”.231

A legitimidade do Ministério Público para a defesa de direitos coletivos e difusos

está expressa no inciso III, do art. 129, da Constituição da República de 1988, segundo o qual

constitui função institucional do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil

pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros

interesses difusos e coletivos”.

Havia controvérsia, no entanto, sobre a legitimidade do parquet para a propositura

de ação coletiva para a proteção de direitos individuais homogêneos disponíveis e divisíveis,

cujos processos acarretam a chamada litigiosidade repetitiva ou de massa, o que poderia gerar

dúvida diante da novel legislação sobre a legitimidade do Ministério Público também para

requerer a instauração de IRDR que versar sobre questão de direito repetitiva relacionada aos

referidos direitos individuais homogêneos.

Estancando qualquer controvérsia sobre o tema, a jurisprudência dos tribunais

superiores sedimentou recentemente o entendimento em favor da legitimidade do Ministério

Público para promover ação civil pública visando a defesa de direitos individuais

homogêneos, ainda que disponíveis e divisíveis, desde que presente a relevância social

objetiva do bem jurídico tutelado (a dignidade da pessoa humana, a qualidade ambiental, a

saúde, a educação, para citar alguns exemplos) ou diante da massificação do conflito em si

considerado.

A propósito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal232, reconhecendo

230 ARAÚJO, José Henrique Mouta. O incidente de resolução das causas repetitivas no novo CPC e o devido processo legal. In: MACEDO, Lucas Buril et al (orgs.). Processo nos Tribunais e Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. Coleção novo CPC – Doutrina Selecionada. vol. 06. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 328. 231 CAVALCANTI, Marcos. Incidente de resolução de demandas repetitivas e ações coletivas. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 540. 232 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 631.111/GO, Relator Ministro Teori Zavascki, julgado em 07.08.2014, publicado em 30.10.2014, com a seguinte ementa: CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL COLETIVA. DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS (DIFUSOS E COLETIVOS) E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISTINÇÕES. LEGITIMAÇÃO DO

Page 110: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

108

repercussão geral da matéria, decidiu que o Ministério Público detém legitimidade para

ajuizar ação coletiva em defesa dos direitos individuais homogêneos dos beneficiários do

seguro DPVAT (seguro obrigatório, por força da Lei 6.194/74, voltado à proteção das vítimas

de acidentes de trânsito), dado o interesse social qualificado presente na tutela dos referidos

direitos subjetivos.

Assim, quando a questão controvertida de direito estiver atrelada a interesses

individuais homogêneos divisíveis e disponíveis, cumprirá ao Ministério Público, no exercício

de suas funções institucionais, demonstrar que a lesão a tal direito compromete também

MINISTÉRIO PÚBLICO. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS DE DIMENSÃO AMPLIADA. COMPROMETIMENTO DE INTERESSES SOCIAIS QUALIFICADOS. SEGURO DPVAT. AFIRMAÇÃO DA LEGITIMIDADE ATIVA. 1. Os direitos difusos e coletivos são transindividuais, indivisíveis e sem titular determinado, sendo, por isso mesmo, tutelados em juízo invariavelmente em regime de substituição processual, por iniciativa dos órgãos e entidades indicados pelo sistema normativo, entre os quais o Ministério Público, que tem, nessa legitimação ativa, uma de suas relevantes funções institucionais (CF art. 129, III). 2. Já os direitos individuais homogêneos pertencem à categoria dos direitos subjetivos, são divisíveis, tem titular determinado ou determinável e em geral são de natureza disponível. Sua tutela jurisdicional pode se dar (a) por iniciativa do próprio titular, em regime processual comum, ou (b) pelo procedimento especial da ação civil coletiva, em regime de substituição processual, por iniciativa de qualquer dos órgãos ou entidades para tanto legitimados pelo sistema normativo. (...) 4. O art. 127 da Constituição Federal atribui ao Ministério Público, entre outras, a incumbência de defender “interesses sociais”. Não se pode estabelecer sinonímia entre interesses sociais e interesses de entidades públicas, já que em relação a estes há vedação expressa de patrocínio pelos agentes ministeriais (CF, art. 129, IX). Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse coletivo de particulares, ainda que decorrentes de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio, excluídos do âmbito da tutela pelo Ministério Público (CF, art. 127). 5. No entanto, há certos interesses individuais que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses puramente particulares, passando a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comunidade. Nessa perspectiva, a lesão desses interesses individuais acaba não apenas atingindo a esfera jurídica dos titulares do direito individualmente considerados, mas também comprometendo bens, institutos ou valores jurídicos superiores, cuja preservação é cara a uma comunidade maior de pessoas. Em casos tais, a tutela jurisdicional desses direitos se reveste de interesse social qualificado, o que legitima a propositura da ação pelo Ministério Público com base no art. 127 da Constituição Federal. Mesmo nessa hipótese, todavia, a legitimação ativa do Ministério Público se limita à ação civil coletiva destinada a obter sentença genérica sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos individuais homogêneos. 6. Cumpre ao Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos individuais homogêneos compromete também interesses sociais qualificados, sem prejuízo do posterior controle jurisdicional a respeito. Cabe ao Judiciário, com efeito, a palavra final sobre a adequada legitimação para a causa, sendo que, por se tratar de matéria de ordem pública, dela pode o juiz conhecer até mesmo de ofício (CPC, art. 267, VI e § 3.º, e art. 301, VIII e § 4.º). 7. Considerada a natureza e a finalidade do seguro obrigatório DPVAT – Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (Lei 6.194/74, alterada pela Lei 8.441/92, Lei 11.482/07 e Lei 11.945/09) -, há interesse social qualificado na tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos dos seus titulares, alegadamente lesados de forma semelhante pela Seguradora no pagamento das correspondentes indenizações. A hipótese guarda semelhança com outros direitos individuais homogêneos em relação aos quais - e não obstante sua natureza de direitos divisíveis, disponíveis e com titular determinado ou determinável -, o Supremo Tribunal Federal considerou que sua tutela se revestia de interesse social qualificado, autorizando, por isso mesmo, a iniciativa do Ministério Público de, com base no art. 127 da Constituição, defendê-los em juízo mediante ação coletiva (RE 163.231/SP, AI 637.853 AgR/SP, AI 606.235 AgR/DF, RE 475.010 AgR/RS, RE 328.910 AgR/SP e RE 514.023 AgR/RJ). 8. Recurso extraordinário a que se dá provimento.

Page 111: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

109

interesses sociais qualificados, sob pena de não restar caracterizada a legitimidade específica

para a instauração do IRDR, que não deixa de ser espécie de tutela coletiva voltada para

resolução em bloco de demandas repetitivas.

A legitimação da Defensoria Pública poderia, de igual modo, gerar controvérsia

em relação à necessidade de se demonstrar a pertinência temática, ou seja, se é preciso

demonstrar que a questão de direito repetitivo se refere a beneficiários economicamente

hipossuficientes.

A atuação primordial da Defensoria Pública, sem dúvida, é a assistência jurídica e

a defesa dos necessitados econômicos, entretanto, também exerce suas atividades em auxílio a

necessitados jurídicos, não necessariamente carentes de recursos econômicos, como é o caso,

por exemplo, quando exerce a função do curador especial, previsto no art. 9.º, inciso II, do

Código de Processo Civil, e do defensor dativo no processo penal, conforme consta no art.

265 do Código de Processo Penal.

Desse modo, para a atuação plena da Defensoria Pública na defesa de direitos

individuais homogêneos ou direitos coletivos, entende-se que não é necessária a

demonstração de que a controvérsia envolva apenas pessoas necessitadas economicamente.

Conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça233, a expressão 'necessitados'

do art. 134, caput, da Constituição da República, que qualifica, orienta e enobrece a atuação

da Defensoria Pública, deve ser entendida, no campo das tutelas coletivas, em sentido amplo,

de modo a incluir, ao lado dos estritamente carentes de recursos financeiros - os miseráveis e

pobres -, os hipervulneráveis, isto é, os socialmente estigmatizados ou excluídos, as crianças,

os idosos, as gerações futuras.

Nas palavras de Sofia Temer, “a Defensoria Pública poderá atuar em IRDRs em

que a questão de direito, apesar de abstratamente considerada, tenha sido (ou possa ser)

extraída de demandas em que esteja presente o signo da vulnerabilidade, nas quais, portanto,

seria lícita sua atuação”. 234

Vê-se, então, que se forma, no Estado Democrático de Direito, um novo e mais

abrangente círculo de sujeitos salvaguardados processualmente, o que fortalece o processo

233 BRASIL. STJ. Precedentes: Recurso Especial n. 1.264.116/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 18/10/2011, publicado no DJe em 13/04/2012; Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1192577 / RS, Relatora Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, julgado em 21/10/2015, publicado no DJe em 13/11/2015. 234 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 190.

Page 112: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

110

coletivo, incentivando sua maior utilização no Brasil.

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal235 declarou a constitucionalidade

do art. 5º, inc. II, da lei n. 7.347/1985, alterado pelo art. 2º da lei n. 11.448/2007, conferindo

ampla legitimidade processual à Defensoria Pública para o ajuizamento de ação coletiva

voltada à proteção dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, de modo que, a

partir do novo CPC, a instituição também poderá requerer a instauração do IRDR.

Não obstante, considerando o regramento peculiar do IRDR e os efeitos

vinculantes que irradia, a legitimação extraordinária conferida ao Ministério Público e à

Defensoria Pública prevista no inciso III, do art. 977 para a instauração do referido incidente

pode repercutir negativamente no acesso à Justiça e no direito de participação democrática no

processo.

Isso porque, enquanto na ação coletiva prevista no direito brasileiro, por meio de

representação ou substituição processual, a coisa julgada é secundum eventum litis, ou seja,

vincula os substituídos apenas se os beneficiar; no novo IRDR o julgamento é pro et contra,

ou seja, vincula os envolvidos tanto se favorável, quanto se desfavorável, repercutindo sobre

os processos pendentes e também os futuros.

Embora seja importante, a atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública,

como instituições autônomas e independentes, não assegura, por si só, a representatividade

adequada das partes que serão afetadas e eventualmente prejudicadas pelo julgamento do

IRDR e tampouco pode suprir a ausência de efetiva participação daquelas partes ausentes.

Não existe na legislação, por outro lado, a previsão do controle da

representatividade adequada, os critérios para escolha de um líder para a condução do

processo em nome das partes e também não existem critérios para a escolha do processo ou

dos processos modelos para a instauração do incidente, o que configura grave violação ao

modelo constitucional de processo, conforme se analisará em momento oportuno.

235 BRASIL. STF. ADI 3943/DF, julgada em 07/05/2015 e acórdão publicado no DJE nº 154, divulgado em 05/08/2015 com a seguinte ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Legitimidade ativa da defensoria pública para ajuizar ação civil pública (art. 5º, inc. II, da lei n. 7.347/1985, alterado pelo art. 2º da lei n. 11.448/2007). Tutela de interesses transindividuais (coletivos strito sensu e difusos) e individuais homogêneos. Defensoria pública: instituição essencial à função jurisdicional. Acesso à justiça. Necessitado: definição segundo princípios hermenêuticos garantidores da força normativa da Constituição e da máxima efetividade das normas Constitucionais: art. 5º, incs. XXXV, LXXIV, LXXVIII, da Constituição da República. Inexistência de norma de exclusividade do Ministério Público para ajuizamento de ação civil pública. Ausência de prejuízo institucional do Ministério Público pelo reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública. Ação julgada improcedente.

Page 113: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

111

2.4.4 Desistência ou abandono do processo modelo e do próprio incidente

A desistência ou abandono do processo modelo selecionado para a instauração do

IRDR ou do próprio incidente não obsta o seu prosseguimento e o julgamento para definição

da tese jurídica, conforme as regras dos §§ 1º e 2º do art. 976 do novo CPC.

A desistência ou abandono do próprio incidente processual mereceu tratamento

semelhante ao já dado pela legislação esparsa brasileira236 às ações coletivas. De acordo com

a norma, se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente

coletivo e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono. Trata-se de

um poder-dever do parquet, não cabendo juízo de discricionariedade.

Segundo Marcos Cavacanti,

O NCPC não exige que a desistência seja “infundada”. A ideia do legislador é no sentido de sempre impedir a desistência do IRDR, seja ela justificável ou não. Logo, a desistência do IRDR não será admitida em qualquer hipótese, ainda que justificada, cabendo sempre ao Ministério Público assumir a titularidade ativa do incidente processual coletivo, enquanto que os demais colegitimados terão apenas a faculdade de assumi-la.237

Quanto à desistência do processo modelo, Luiz Norton Baptista de Mattos explica

muito bem o motivo pelo qual a desistência do recurso ou da ação individual não deve

impactar a tramitação do IRDR, in verbis:

De fato, com a instauração do incidente, passa a haver dois procedimentos paralelos, simultâneos, a tramitar no órgão fracionário do tribunal com competência para a uniformização de jurisprudência: o procedimento recursal, voltado ao acertamento da situação concreta entre as partes no processo ou nos processos afetados, no qual a questão jurídica repetitiva tem caráter prejudicial; e o procedimento incidente, destinado à fixação da tese a respeito da questão jurídica repetitiva, que será aplicada na solução não só do recurso ou dos recursos afetados, como também no deslinde dos demais processos nos quais ocorre a discussão da questão jurídica repetitiva, tanto os suspensos por força da admissão do incidente, como aqueles que vierem a ser ajuizados.238

Com efeito, o processamento e o julgamento do incidente processual transcendem 236 Basta consultar o artigo 5º, §3º da Lei 7.347/1985, que dispõe sobre a Ação Civil Pública, e o artigo 9º da Lei 4.717/1965, que regula a Ação Popular. 237CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 566. 238MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1. GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Salvador: Juspodivm, 2015, p. 183.

Page 114: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

112

os interesses subjetivos das partes do processo modelo, sobressaindo o interesse público

voltado à rápida definição da tese jurídica e à uniformização da jurisprudência, o que,

segundo acredita-se, conferirá celeridade à prestação jurisdicional e gerará maior

previsibilidade decisória.239

Em outras palavras, a parte não estará impedida de desistir do seu recurso ou da

sua ação. No entanto, a desistência estará restrita ao respectivo recurso ou processo

individual, não podendo extinguir ou obstar de qualquer modo o julgamento do IRDR, que

adquire autonomia processual em relação ao caso modelo, e a definição da tese jurídica. Por

consequência, a parte desistente não sofrerá, pelo menos naquele momento, os efeitos do

julgamento do incidente processual. No caso de eventual propositura da mesma ação, a parte

estará sujeita à aplicação da tese jurídica definida, tendo em vista os efeitos prospectivos do

incidente.

É por isso que o incidente de resolução de demandas repetitivas, apesar do nome,

adquire autonomia processual em relação à causa piloto, devendo ser solucionado pelo

tribunal competente mesmo se houver desistência do processo do qual se originou. 240 Já se

sustentou nesta pesquisa que o IRDR adquire a natureza jurídica de um processo objetivo241

autônomo de caráter coletivo com inspiração nas ações de grupo do direito comparado.

Sofia Temer também destaca a autonomia processual do IRDR:

A autonomia no caso de desistência é um dos elementos que aproxima o IRDR dos meios processuais destinados a tutelar preponderantemente o direito objetivo e demonstra, com isso, que não se pretende julgar “causa-piloto” no incidente. O prosseguimento do IRDR mesmo em caso de desistência do processo que lhe serviu como substrato demonstra que no momento da instauração o incidente “desloca-se” do processo originário, ocorrendo a dessubjetivação necessária para fixação da tese jurídica.242

No mesmo sentido, ao comentar a desistência do recorrente na sistemática dos

recursos especiais repetitivos, ainda sob a égide do art. 543-C do Código revogado, Leonardo

239THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 736, p. 740. 240SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 148. 241 Nas ações de controle abstrato de constitucionalidade também não se admite a desistência, conforme dispõe o art. 5º da Lei 9.868/99: “Art. 5º Proposta a ação direta, não se admitirá desistência.” 242 TEMER, Sofia Orberg. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 78-79.

Page 115: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

113

José Carneiro da Cunha243 sustentava que o julgamento deveria prosseguir, definindo a tese

jurídica que seria aplicável aos processos que ficaram sobrestados e aos futuros que viessem a

ser ajuizados sobre a questão jurídica repetitiva, mas isso não atingiria a parte que, pelo ato de

sua vontade, desistiu do recurso.

De igual modo, Antonio Adonias Aguiar Bastos244 ensina que, uma vez afetado o

processo ao regime de julgamento dos recursos repetitivos, deve seguir até o seu final com a

definição da tese jurídica. Isso não impede, contudo, que a parte desista de seu recurso. O

interesse público seria respeitado sem violar o direito fundamental processual da parte.

Na vigência do Código de 1973, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o

entendimento no sentido de admitir a homologação dos pedidos de desistência do recurso

especial afetado ao regime dos recursos repetitivos sem prejuízo do prosseguimento do

julgamento para definição da tese sobre a questão jurídica repetitiva245.

Portanto, a novel legislação encampou, no regramento do IRDR, o referido

entendimento jurisprudencial, conciliando o interesse particular da parte, que terá a

desistência homologada, com o interesse público, que almeja a definição da tese jurídica apta

a ser aplicada aos diversos processos repetitivos sobrestados.

2.4.5 A competência para processar e julgar o IRDR

O julgamento do incidente caberá ao órgão colegiado designado pelo regimento

interno dentre aqueles órgãos responsáveis pela uniformização da jurisprudência, nos termos

do art. 978 do novo CPC. 243 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. Revista de processo. São Paulo: RT, n. 179, jan. 2010, p. 155. 244 BASTOS, Antônio Adonias Aguiar. A necessidade de compatibilização do interesse público com os direitos processuais individuais no julgamento das demandas repetitivas. In: DIDIER Jr, Fredie; BASTOS, Antonio Adonias Aguiar (coord.). O Projeto do Novo Código de Processo Civil: estudos em homenagem ao professor José Joaquim Calmon de Passos. Salvador: JusPodiym, 2012, p. 125. 245 BRASIL. STJ. Desistência no Recurso especial n. 1370698/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, j. 21/11/2013. Por ilustrar bem o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, importante destacar trecho do voto-desempate proferido pela eminente Ministra Maria Isabel Gallotti: (...) uma vez selecionado pelo relator determinado recurso para ser julgado no rito do art. 543-C, há verdadeira irradiação de efeitos processuais a outros tantos que tratem da mesma questão, com a ordem de suspensão da tramitação destes e, após o julgamento do recurso representativo da controvérsia, a possibilidade de re-julgamento da causa ou de negativa de seguimento do recurso pelo Tribunal de segundo grau, como dispõe o artigo 543-C, §§ 2º e 7º, II, do CPC, de modo que o referido rito evidencia a transcendência do mero interesse das partes. Assim, o direito potestativo da parte de desistir do recurso interposto em seu interesse particular (CPC, art. 501) não poderia mesmo prejudicar o andamento dos processos de inúmeros litigantes suspensos no aguardo do julgamento do recurso representativo da controvérsia, nos termos do art. 543-C. Como assinalado pelo Ministro João Otávio de Noronha, a rigor, no caso do recurso representativo da controvérsia, sequer há propriamente exceção ao direito potestativo de desistência do recurso. O que ocorre é a postergação do exame da petição de desistência para após a apreciação da questão de direito que justificou a afetação do processo para julgamento pelo rito do art. 543-C.

Page 116: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

114

O incidente será endereçado ao presidente do tribunal local, seja ele o Tribunal de

Justiça ou o Tribunal Regional Federal.

Admite-se também a aplicação ao processo do trabalho do incidente de resolução

de demandas repetitivas, devendo ser instaurado perante o Tribunal Regional do Trabalho

quando houver na área da sua competência territorial efetiva repetição de processos que

contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito, conforme enunciado n. 347 do

Fórum de Processualistas Civis.246

Assim, caberá a cada tribunal definir, em seu regimento interno, o órgão

colegiado competente para o processamento e julgamento do IRDR. A única exigência legal é

que o órgão escolhido esteja dentre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência

do tribunal.

Os órgãos colegiados, que detém a competência para uniformização de

jurisprudência, estabelecem posicionamentos a serem seguidos pelos demais órgãos

fracionários do tribunal. Justamente por isso tal competência é atribuída a órgãos cuja

composição seja mais ampla, o que exige um quórum maior para votação do colegiado.

Tal exigência mínima da lei não ofende a competência privativa dos tribunais para

definir no regimento interno as atribuições dos seus órgãos colegiados, mas apenas estabelece

coerência para que a definição da tese jurídica no julgamento do IRDR ocorra pelo órgão, que

também possua dentre as suas atribuições a de uniformização da jurisprudência, já que a

decisão proferida vinculará os demais membros do tribunal e, principalmente, os juízes de

primeira instância.

Equivoca-se Leonardo da Cunha ao admitir o controle incidental de

constitucionalidade no IRDR. Impende ressaltar que se a questão jurídica repetitiva envolver a

inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do Poder Público, não poderá ser feita em

Incidente, mas por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade no Tribunal Constitucional

que não é a competência para o julgamento do IRDR. Admitir o controle incidental, neste

caso, seria inconstitucional por tramitar em foro absolutamente incompetente e pelo fato de o

autor não constar do rol dos legitimados para acionar o controle concentrado.

Nesse sentido, discordo do que sustentado por Leonardo José Carneiro da Cunha:

246 NUNES, Dierle José Coelho. SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 389. Trata-se da Resolução 203 , de 15 de março de 2016, do TST.

Page 117: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

115

Se o órgão julgador, num determinado tribunal, é uma câmara cível, um grupo de câmaras, a corte especial ou o plenário, isso há de ser definido pelo seu respectivo regimento interno. O que importa é que o tribunal seja aquele previsto na Constituição Federal, a não ser em casos especificamente previstos no próprio texto constitucional, como na hipótese da regra de reserva de plenário: somente o plenário ou o órgão especial é que pode decretar, incidentemente, a inconstitucionalidade de lei ou tratado.247

A declaração incidental, com eficácia inter partes, mesmo se observada a cláusula

de reserva de plenário, disposta no art. 97 da Constituição da República, segundo a qual

“somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo

órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo

do Poder Público”, obrigaria a Corte a decidir pluralidade de casos. A ADI, por sua natureza,

demanda apenas um pronunciamento com eficácia erga omnes e vinculante, respeitada a

legitimidade ativa e a competência funcional. O IRDR não pode ser utilizado como se fosse

uma ADI.

O órgão competente definido pelo regimento interno dos tribunais decidirá,

portanto, o IRDR, fixando a tese jurídica que será aplicável aos diversos processos suspensos.

O parágrafo único do art. 978 estabelece, por sua vez, uma espécie de prevenção

do órgão colegiado que julgou o IRDR para julgar também o recurso, a remessa necessária ou

o processo de competência originária de onde se originou o incidente processual.

Para Marcos Cavalcanti248 e Cássio Scarpinella249, a previsão pelo CPC da

competência obrigatória do órgão colegiado para julgar o recurso, a remessa necessária ou

processo de competência originária padece de inconstitucionalidade formal e material.

A inconstitucionalidade formal do parágrafo único decorreria da ausência de sua

correspondência com qualquer dispositivo do anteprojeto, dos projetos do Senado e da

Câmara dos Deputados. O dispositivo foi incluído no texto final aprovado pelo Senado, sem

qualquer deliberação nas casas legislativas em flagrante violação ao devido processo

legislativo. A vinculação da competência do órgão colegiado para julgar o IRDR e o processo

do qual se originou caracterizaria também a inconstitucionalidade material em razão da

247 CUNHA, Leonardo José Carneiro. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 193, mar. 2011, p. 271. 248CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 453. 249 BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 618.

Page 118: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

116

usurpação da competência dos tribunais para estabelecerem suas atribuições por meio do

regimento interno, nos termos do art. 96, inciso I, alínea “a”, da Constituição da República.

2.4.6 O procedimento do IRDR

Provocado o incidente processual por petição da parte, do Ministério Público ou

da Defensoria Pública, ou por ofício do juiz de primeiro grau ou do relator de processo

pendente no tribunal, instruído com os documentos cabíveis, haverá o registro, a distribuição

e autuação no tribunal, por determinação do respectivo presidente.

Para Humberto Theodoro Jr.250, quando o incidente for suscitado em processo que

já tramita pelo tribunal, seu processamento dar-se-á dentro dos próprios autos, a exemplo do

que se passa com os embargos de declaração e o agravo interno.

Entende-se que tal posição não é a mais adequada à tramitação do incidente

processual e à sua natureza jurídica, haja vista a autonomia processual do novel instituto e o

grande risco de tumulto processual.

Em razão da autonomia processual adquirida pelo IRDR, da necessidade de

participação de terceiros e em razão dos efeitos que irradia, considera-se necessário que o

incidente possua autuação própria para melhor controle e prática dos atos processuais, não

tumultuando o processo modelo (causa piloto) que, tal como as demais demandas repetitivas,

deverá apenas aguardar a definição da tese jurídica para posterior prosseguimento.

Assim, uma vez distribuído o incidente processual, em autos próprios, será

definido o relator que dará andamento ao procedimento, cujas regras específicas estão

reguladas nos dispositivos 979 a 983 do novo CPC.

2.4.6.1 O cadastro eletrônico e a publicidade

De acordo com o regramento dado pelo novo CPC (art. 979 e parágrafos), a

instauração e o julgamento do incidente coletivo serão precedidos de ampla divulgação e

publicidade, com alguma semelhança ao procedimento-modelo alemão e à ordem de litígio

em grupo do direito inglês.

O Conselho Nacional de Justiça - CNJ deverá criar um cadastro eletrônico

nacional para registro das informações sobre o IRDR. O cadastro será de fácil acesso e

visualização, esclarecedor quanto à natureza do incidente, seus efeitos, além de indicar com a

250 THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 741-742.

Page 119: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

117

máxima precisão a questão de direito material ou processual que será objeto de análise pelo

tribunal local.

A propósito do tema, o CNJ publicou a Resolução 235, de 13/07/2016, que

regulamenta a criação do banco nacional de dados, com informações dos casos de repercussão

geral, das demandas repetitivas e dos incidentes de assunção de competência no âmbito dos

tribunais superiores, Tribunais Regionais Federais (TRFs), Tribunais Regionais do Trabalho

(TRTs) e de todos os tribunais de justiça dos Estados.

A referida resolução também dispõe sobre a padronização dos procedimentos

administrativos decorrentes dos julgamentos de repercussão geral, casos repetitivos e de

incidente de assunção de competência e estabelece a integração eletrônica via webservice de

todos os tribunais do País, no prazo de um ano.251 Com base na resolução, cada tribunal

deverá organizar até outubro de 2016 um Núcleo de Gerenciamento de Precedentes (Nugep),

como unidade administrativa permanente.

Assim, os tribunais manterão um banco eletrônico de dados integrado com

informações específicas e atualizadas sobre as questões de direito submetidas ao IRDR e

deverão alimentar continuamente e de forma padronizada o banco nacional de dados

disponibilizado pelo CNJ.

Ao contrário do previsto nos procedimentos do direito alemão e inglês, não é

preciso que os processos repetitivos se registrem no cadastro eletrônico para a instauração do

incidente e para se submeterem aos efeitos do julgamento. O cadastro do sistema brasileiro é

meramente informativo e não tem o propósito de registrar as demandas repetitivas em

tramitação.

O registro eletrônico deverá conter, no mínimo, os fundamentos determinantes da

decisão proferida ao final no IRDR e as normas jurídicas por ela aplicadas e interpretadas para

permitir a identificação dos processos que serão abrangidos pela eficácia vinculante do

julgamento. (§2º do art. 979)

Recomenda-se, ainda, que se imponha a maior divulgação possível das

informações sobre o IRDR, podendo os tribunais utilizarem também outros mecanismos de

publicidade, especialmente a página oficial do próprio tribunal na internet e a imprensa

251 Disponível em: www.cnj.jus.br. Acesso em: jul. 2016.

Page 120: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

118

oficial.252

A participação efetiva de interessados exige que a questão de direito repetitiva

seja bem delimitada no cadastro eletrônico com a especificação dos dispositivos legais em

discussão e a moldura fática subjacente na qual a tese jurídica será aplicada, uma vez que o

interesse de pessoas, órgãos ou entidades em atuar no procedimento para a construção da tese

dependerá do conhecimento pleno da matéria discutida e da pertinência com a situação

pessoal de cada um ou os respectivos objetivos institucionais.253

As medidas de publicidade e de registro eletrônico das informações sobre o

incidente tem dupla finalidade:

(i) dar ampla divulgação aos incidentes propostos e julgados, de modo a evitar a continuidade e o julgamento das ações individuais homogêneas, sem atentar para necessidade de sujeição à tese de direito definida, o em vias de definição no tribunal; e (ii) impedir a multiplicidade de incidentes de igual natureza ou de igual força uniformizadora sobre uma mesma questão de direito, o que enfraqueceria a própria função do instituto, comprometendo-lhe a utilidade e eficácia.254

Finalmente, para Luiz Norton Batista Mattos, diante da realidade do processo

eletrônico, “o desenvolvimento tecnológico vai tornar a divulgação do incidente mais

abrangente e capilar, e facilitar e baratear a manifestação dos interessados” 255.

2.4.6.2 O juízo de admissibilidade do incidente

A primeira peculiaridade que se apresenta no processamento do IRDR é a de

que o seu juízo de admissibilidade é privativo do órgão colegiado competente para julgá-lo.

(art. 981 do CPC/2015)

Como o dispositivo legal não estabelece o quórum necessário para a

admissibilidade do incidente, caberá ao regimento interno de cada tribunal estabelecê-lo. Não

basta que o órgão seja colegiado e tenha competência para a uniformização da jurisprudência,

252 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 458. 253 MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 192. 254 THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 742. 255MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.).Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 193.

Page 121: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

119

é necessário que haja pertinência em relação à matéria (questão de direito material ou

processual) discutida no IRDR e as atribuições do órgão jurisdicional.

A propósito, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer defendem

que:

(...) a especialização dos órgãos fracionários e a atribuição do incidente para um órgão especializado, como os grupos de câmaras ou seções especializadas, pode significar avanço orgânico importante no sentido de que os tribunais estejam melhor preparados para o enfrentamento das respectivas matérias, com julgamentos mais aprofundados, céleres e estáveis.256

O relator não possui atribuição, portanto, para monocraticamente admitir a

instauração do incidente processual, haja vista a repercussão e magnitude do procedimento.

Nesse sentido, a interpretação externada por Scarpinella Bueno257 e pelo

Enunciado n. 91 do Fórum dos Processualistas Civis, segundo o qual “cabe ao órgão

colegiado realizar o juízo de admissibilidade do incidente de resolução de demandas

repetitivas, sendo vedada a decisão monocrática”258.

Importante ressaltar que se o objeto do IRDR versar sobre a inconstitucionalidade

de norma, o seu julgamento será da competência necessária do órgão especial do tribunal,

conforme determina a cláusula de reserva de plenário preconizada pelo art. 97 da Lei Maior.

Todavia, em atenção aos princípios da celeridade e economia processual, é salutar

que o relator proceda, pelo menos, ao juízo negativo de admissibilidade em caso de ausência

manifesta dos pressupostos previstos no art. 976. Inadmitido o incidente, contra esta decisão

caberá o recurso de agravo interno previsto no art. 1.021 do novo CPC para o órgão colegiado

competente.

Tal interpretação vai ao encontro da previsão do art. 932, inciso III e IV do novo

CPC que atribui poderes ao relator para não conhecer de recurso manifestamente

inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da

decisão recorrida, e para negar provimento a recurso que for contrário a entendimento

sumulado, acórdão proferido em julgamento de recursos repetitivos, ou contrário a tese

256 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, vol. 243, maio/2015, p. 316. 257 BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 621. 258NUNES, Dierle José Coelho. SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 391.

Page 122: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

120

jurídica firmada no IRDR ou no incidente de assunção de competência.

Nesse contexto, violaria frontalmente a razoabilidade e a celeridade processual a

obrigação do relator de submeter ao colegiado um IRDR manifestamente contrário a súmula,

a posicionamento firmado pelos tribunais superiores ou a tese jurídica já firmada em outro

incidente processual pelo próprio tribunal.

Importante ressaltar, por fim, que o juízo de admissibilidade delimitará o objeto

do IRDR. Com efeito, a delimitação precisa da questão de direito a ser interpretada pelo

IRDR é fundamental para se evitar a ampliação da discussão e a fixação de tese vinculante

sobre matéria distinta, o que atentaria contra o contraditório substancial e burlaria o

procedimento previsto na lei para legitimar a eficácia da decisão proferida.259

Sofia Temer defende, inclusive, que “a decisão que extrapolar o objeto do

incidente (...) não será, nesta parte, propriamente “precedente”, porque se presumirá que não

houve o debate prévio necessário”260, tendo efeito meramente persuasivo sem, portanto,

caráter vinculante.

A partir da decisão de admissão pelo órgão colegiado competente, diversas

consequências ocorrerão no procedimento do IRDR.

2.4.6.3 As providências e deliberações do relator

Após admitida a instauração do incidente pelo órgão colegiado competente, o

relator tomará algumas deliberações importantes previstas no art. 982.

De início, o relator suspenderá os processos repetitivos pendentes, individuais ou

coletivos, que tramitam na área de competência territorial do tribunal, na primeira instância ou

em segundo grau de jurisdição.

Apenas com a intervenção dos tribunais superiores é que a suspensão provocada

pelo IRDR pode ultrapassar os limites da competência do tribunal local para abarcar as

demandas repetitivas em tramitação em todo o território nacional, conforme autorizado pelo §

3º do art. 982.

De acordo com a lição de Artur César de Souza,

A medida de suspensão dos demais processos, individual ou coletivo, se justifica, tanto para que não haja decisão conflitante com a que for proferida

259 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 129-130. 260 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 130.

Page 123: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

121

no incidente de resolução de demandas repetitivas, quanto para se evitar o gasto desnecessário de força intelectual para se definir a matéria de direito, correndo-se o risco de não prevalecer diante do incidente instaurado no tribunal.261

Trata-se de providência automática prevista na lei processual como consequência

da admissão do IRDR e, portanto, não depende de demonstração pelo relator dos requisitos da

tutela de urgência. Nesse sentido o Enunciado n. 92 do Fórum dos Processualistas Civis. 262

Em razão do objeto delimitado do IRDR e havendo cumulação de pedidos, a

suspensão do processo, individual ou coletivo, pode ser apenas parcial, não impedindo o

prosseguimento das ações em relação ao pedido não abrangido pela tese a ser firmada no

incidente processual. É certo que caberá ao juiz do processo singular analisar a extensão da

suspensão determinada no IRDR de acordo com os pedidos cumulados em cada demanda.

É certo ainda que a suspensão processual não pode se estender indefinidamente, o

que acarretaria a insegurança jurídica que o próprio incidente visa coibir. Assim, o art. 980 do

novo CPC preconiza que se o IRDR não for julgado no prazo de um ano, cessará a suspensão

dos processos, podendo o relator, no entanto, justificar a necessidade da manutenção da

suspensão por decisão fundamentada.

Com efeito, se o objeto do incidente é dar celeridade processual para a

uniformização da jurisprudência, a manutenção indefinida da suspensão dos processos sem a

definição da tese jurídica, em tempo razoável, acarretará o total engessamento da prestação

jurisdicional em prejuízo do jurisdicionado e da participação efetiva dos sujeitos processuais

na construção da interpretação do direito para a solução dos conflitos.

Embora o silêncio da lei, a suspensão determinada pelo IRDR também poderá ser

afastada pontualmente se a parte requerer o prosseguimento do seu processo, demonstrando a

distinção do caso em relação à questão de direito que será dirimida no incidente. O

requerimento deverá ser endereçado ao juiz do processo, se ainda na primeira instância, ou ao

relator, para aqueles que já estiverem em tramitação no segundo grau, a quem competirá

decidir sobre o andamento daquela ação específica.263

261SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 155. 262NUNES, Dierle José Coelho; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p.392. 263SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 155.

Page 124: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

122

De igual modo se manifestaram Sofia Temer264 e Scarpinella Bueno265,

defendendo a possibilidade da distinção do caso, aplicando-se por analogia o disposto nos §§

8º ao 13º do art. 1.037 do novo CPC referente ao regime de tramitação dos recursos especiais

e extraordinários repetitivos. As disposições do regime de tramitação e julgamento dos

recursos repetitivos e as do IRDR devem se comunicar para dar coerência ao sistema de

resolução de demandas repetitivas.

Finalmente, importante ressaltar que havia previsão no projeto da Câmara dos

Deputados de que a suspensão decorrente da instauração do IRDR também acarretaria a

suspensão da prescrição da pretensão nos casos em que a questão de direito repetitiva também

fosse objeto de discussão, o que deveria perdurar até o trânsito em julgado do incidente.

A regra não foi mantida no texto final aprovado no processo legislativo. Não

obstante, em relação às pretensões já ajuizadas, Scarpinella Bueno266 defende, por uma

interpretação sistemática, a possibilidade de se sustentar a suspensão da prescrição

intercorrente, sob pena de se admitir que a demora de julgamento do IRDR implicará, por vias

transversas, a eliminação dos processos em tramitação, cujas pretensões seriam fulminadas

pela prescrição intercorrente simplesmente por estarem parados. No mesmo sentido é a

interpretação dada pelo Enunciado 452 do Fórum dos Processualistas Civis, segundo o qual

“durante a suspensão do processo prevista no art. 982 não corre a prescrição intercorrente”267.

Em relação aos processos ainda não ajuizados, a situação não comporta a mesma

solução. Segundo Marcos Cavalcanti, “não há como se sustentar a interrupção ou a suspensão

do prazo prescricional das pretensões individuais não ajuizadas sem lei expressa que a

determine”268, matéria que deveria se submeter a regramento pelo Código Civil e não pela

legislação processual.

Artur César de Souza269 também defende que, à míngua de previsão legal, os

demais sujeitos de direito deverão ajuizar suas demandas individuais, de modo a obter a 264 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 121-124. 265BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 622. 266BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 624-625. 267NUNES, Dierle José Coelho; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 393. 268CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 563. 269SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 156.

Page 125: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

123

efetiva interrupção do prazo prescricional, ainda que o processo fique suspenso enquanto não

julgado o incidente de resolução de demandas repetitivas.

Assim, as partes devem propor suas ações para não correr o risco de ter a

pretensão fulminada pelo transcurso do prazo prescricional, salvo se já houver ação coletiva

suspensa pelo IRDR na qual aquela parte seja substituída processual e, portanto, beneficiária

dos efeitos interruptivos da prescrição no processo coletivo.

Além da suspensão dos processos, o relator poderá requisitar, nos termos do art.

982, inciso II já citado, informações aos juízos perante os quais tramitam as demandas

repetitivas.

A referida medida só se justifica para comprovar a multiplicidade de

interpretações da questão de direito repetitiva que vem sendo aplicadas pelos diversos juízos,

seja em decisões provisórias ou sentenças, pondo em risco o tratamento igualitário de todos

perante a lei e a segurança jurídica.270

O relator deverá, ainda, intimar o Ministério Público para se manifestar no prazo

de 15 (quinze) dias. A intervenção do Ministério Público, quando não for parte do incidente, é

obrigatória e está relacionada com a presunção de existência do interesse público que permeia

os objetivos do IRDR.

2.4.6.4 As intervenções das partes e do amicus curiae

O art. 983 do CPC/2015 dispõe que o relator do IRDR deverá ouvir as partes e os

demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia de

direito.

Por expressa disposição legal, as partes do processo modelo (originário) adquirem

certo protagonismo na condução do procedimento do IRDR. O autor e o réu do processo

originário terão, por exemplo, a garantia do uso da palavra na sessão de julgamento do IRDR

em tempo igual (30 minutos) àquele destinado a todos os demais interessados em conjunto

(também 30 minutos). (art. 984, inc. II, alíneas a e b do CPC/2015)

Ou seja, a atuação do autor e o réu do processo modelo se torna preponderante

para o debate processual e julgamento do incidente coletivo. Nesse contexto, a instauração do

IRDR a partir de processo originário mal conduzido, com poucos e frágeis argumentos

270THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.743.

Page 126: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

124

jurídicos ou com acompanhamento técnico deficiente pode comprometer as garantias

processuais dos litigantes, especialmente daqueles ausentes relativos aos processos

sobrestados.

Apesar disso, não foram previstos critérios objetivos para a escolha do processo

originário. Não foi prevista a escolha de um “líder” ou de controle judicial da representação

no incidente coletivo, tal como ocorre no direito comparado, para assegurar a efetiva

participação daqueles que serão afetados pelo processo e, ao mesmo tempo, conferir

legitimidade ao julgamento dotado de efeito vinculante. 271

É justamente em razão da ausência total de critérios legais para a escolha de

determinado caso modelo a partir do qual se instaurará o incidente é que se defende um

conceito mais amplo de “parte processual” no procedimento do IRDR.

Como se trata de um processo objetivo de caráter coletivo, por gerar efeitos

vinculantes em relação a diversos processos sobrestados, a referência às “partes” não pode ser

interpretada como referência apenas às partes do processo modelo (causa piloto) a partir do

qual o incidente foi instaurado. Para assegurar a ampla participação no processo, deve-se

interpretá-la amplamente para considerar que qualquer parte que teve o seu processo

individual ou coletivo suspenso pela instauração do IRDR possa se manifestar diretamente no

tribunal para expor suas razões sobre a questão de direito repetitiva. 272

Conforme já exposto neste capítulo, o IRDR possui identidade e inspiração nas

chamadas “ações de grupo”, que consistem em procedimentos de resolução coletiva, evitando,

dentro do possível, as ficções representativas típicas da class action. Cada membro do grupo

envolvido é tratado, portanto, como uma parte, ao invés de uma “não parte” substituída. É a

tentativa de estabelecer algo análogo a uma class action, mas os inconvenientes da ficção da

substituição processual. 273

Entende-se, nessa perspectiva, que a compreensão mais ampla do conceito de

parte do incidente coletivo dará concretude ao exercício pleno do contraditório substancial,

conforme se sustentará no próximo capítulo, evitando-se a participação meramente simbólica,

o que tornaria a garantia processual uma simples ficção jurídica. 271 O tema será tratado mais detidamente no capítulo 03 para se demonstrar a (in)compatibilidade do IRDR ao modelo constitucional de processo em razão da ausência do controle de representatividade adequada e da ausência de critérios para escolha do processo modelo. 272 BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 626. 273 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 128.

Page 127: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

125

É necessário, portanto, haver a total abertura do procedimento do IRDR para lhe

conferir legitimidade democrática, de maneira que os litigantes que serão afetados possam

participar efetivamente e como partes do processo, seja através das razões por escrito, seja por

meio das manifestações orais e debates em audiência pública.

Ainda que não se admita a atuação dos litigantes dos processos sobrestados como

partes no IRDR, em razão da ausência de previsão legal específica, mostra-se evidente o

direito à intervenção no procedimento como terceiros interessados.

Com efeito, as partes dos processos suspensos pelo IRDR serão impactadas

diretamente pelo julgamento do incidente, possuindo inquestionável interesse jurídico na

definição da tese jurídica, o que lhes assegura o direito constitucional de efetiva participação

para conferir legitimidade ao julgamento proferido pelo tribunal e impedir que sejam

surpreendidas.

Ora, se a decisão que resolve o IRDR define a interpretação jurídica de questão de

direito que interessa a muitos processos, tal decisão não pode ser considerada totalmente

diferente daquela que, em ação individual, resolve questão de direito que posteriormente

também não poderá mais ser rediscutida. Como é cediço o julgamento proferido não pode

prejudicar terceiros, que dele não participaram (art. 506 do CPC/2015). Interpretação

contrária constituiria flagrante violação do direito fundamental de participar do processo e de

influenciar o julgador. 274

Assim, seja como partes ou como terceiros interessados, todos os litigantes

afetados possuem o direito constitucional de se manifestarem no IRDR, para influenciar o

convencimento do órgão julgador, que definirá a tese jurídica aplicada a todos os processos

sobrestados.

Para Mattos, no entanto, a manifestação das partes dos processos suspensos

deverá ser admitida somente se for “útil, desejável ou producente”, ou seja, a participação

somente será deferida pelo relator se trouxer “elementos, argumentos, fundamentos, enfoques,

abordagens adicionais, diferentes dos contidos no processo-modelo”275.

Se a manifestação se limitar a repetir as alegações e fundamentos já contidos no

274 MARINONI, Luiz Guilherme. O “problema” do incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Brasília.Vol. 28, n. 5/6, maio/junho 2016, p. 39. 275 MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.).Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1.. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 189-190.

Page 128: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

126

processo modelo, a intervenção da parte deverá ser indeferida pelo relator do IRDR, não

havendo, na visão do referido jurista, violação ao contraditório uma vez que os mesmos

argumentos já teriam sido levados ao conhecimento do órgão julgador pelas partes do

processo a partir do qual o incidente foi instaurado.

Posição semelhante foi sustentada por Ticiano Alves e Silva276 que, ao proceder

ao estudo do regime de repercussão geral dos recursos extraordinários, na vigência do Código

revogado, defendeu que a intervenção da parte que teve o recurso sobrestado não reflete o

direito fundamental ao contraditório se desprovida de argumentos jurídicos novos,

constituindo uma manifestação vazia de conteúdo que não tem a possibilidade de influenciar

de maneira diferente o convencimento dos julgadores, causando apenas tumulto processual.

Sofia Temer também admite a intervenção das partes dos processos sobrestados,

sustentando, de igual modo, que o melhor filtro para nortear a atuação dos referidos sujeitos

interessados seja a apresentação de novos argumentos que possam efetivamente contribuir

com a melhor interpretação da questão de direito objeto do IRDR.277 Se a parte do processo

sobrestado não trouxer novos elementos para serem considerados no debate, não haveria

necessidade da sua participação e isso não violaria o contraditório. Logo em seguida, conclui

a ilustre processualista:

Assim é que, se exercido o direito ao convencimento pelo sujeito condutor (parte do processo modelo para a referida autora), fica obstada a apresentação dos mesmos argumentos pelo sobrestado. O seu interesse na intervenção surge justamente nos espaços em que a potencialidade de influência ainda não tenha sido exercida, hipótese em que obstar a atuação configuraria ofensa ao contraditório. (...) Será útil a intervenção que contribuir racionalmente para o debate, visando à definição de uma tese jurídica. Por isso, aliás, que são admitidas manifestações não só dos sujeitos sobrestados, mas também de amicus curiae, do Ministério Público, de experts, entre outros (art. 983).278

O dispositivo legal menciona ainda que “outros interessados”, incluindo “pessoas,

órgãos e entidades com interesse na controvérsia” poderão se manifestar.

É a participação da figura do amicus curiae – típica dos processos de natureza

276 SILVA, Ticiano Alves e. Intervenção de sobrestado no julgamento por amostragem. Revista de Processo. v. 182. São Paulo: RT, abr. 2010, p. 240. No mesmo sentido é o entendimento de Teresa Arruda Wambier e José Miguel Medina. In: Sobre o novo art. 543-C do CPC: sobrestamento de recursos especiais “com fundamento em idêntica questão de direito”. Revista de Processo, vol. 159, maio/2008, p. 215-220. 277 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 177. 278 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 178.

Page 129: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

127

objetiva279 – que tem papel relevante para a legitimação democrática da construção do

provimento jurisdicional, especialmente daqueles dotados, como no caso, de eficácia

vinculante.

Nessa perspectiva, se a intervenção do amicus curiae é uma necessidade do

regime democrático e um imperativo na solução dos temas repetitivos e de interesse público,

afigura-se corolário do devido processo legal permiti-lo manifestar-se no processo objetivo

das mais variadas formas, seja por escrito, seja oralmente, com amplos e irrestritos poderes

processuais280.

O amicus curiae é, sem dúvida, um terceiro importante que traz ao processo

informações, dados e fundamentos capazes de possibilitar que o julgamento da controvérsia

seja mais condizente e próximo à realidade social subjacente à questão jurídica que se discute

e que se há de definir. 281

279 Consoante já decidiu o Supremo Tribunal Federal, “a admissão do terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões do Tribunal Constitucional, viabilizando, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize a possibilidade de participação de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais”. (...) o Supremo Tribunal Federal, em assim agindo, não só garantirá maior efetividade e atribuirá maior legitimidade às suas decisões, mas, sobretudo, valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de informação e pelo acervo de experiências que o amicus curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo - como o de controle abstrato de constitucionalidade – cujas implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e de inquestionável significação. (in ADIN-MC 2.130-SC, Relator Ministro Celso de Mello, j. em 20.12.2000, DJ de 02.02.2001, p. 00145) Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em fevereiro de 2016. 280 O Supremo Tribunal Federal, num primeiro momento, resolvendo questão de ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.223, Relator Min. Marco Aurélio, não admitiu, por maioria, a sustentação oral do amicus curiae. Contudo, revendo sua posição, o Supremo Tribunal Federal, também resolvendo questão de ordem nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 2675/PE e 2777/SP, em decisão de 26 e 27 de novembro de 2003, admitiu a possibilidade de realização de sustentação oral por terceiros admitidos no processo abstrato de constitucionalidade, na qualidade de amicus curiae. Os Ministros Celso de Mello e Carlos Britto, em seus votos, ressaltaram que o § 2º do art. 7º da Lei 9.868/99, ao admitir a manifestação de terceiros no processo objetivo de constitucionalidade, não limita a atuação destes à mera apresentação de memoriais, mas abrange o exercício da sustentação oral, cuja relevância consiste na abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade; na garantia de maior efetividade e legitimidade às decisões da Corte, além de valorizar o sentido democrático dessa participação processual. O Min. Sepúlveda Pertence, de outra parte, considerando que a Lei 9.868/99 não regulou a questão relativa a sustentação oral pelos amicus curiae, entendeu que compete ao Tribunal decidir a respeito, através de norma regimental, razão por que, excepcionalmente e apenas no caso concreto, admitiu a sustentação oral. Vencidos os Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie, que, salientando que a admissão da sustentação oral nessas hipóteses poderia implicar a inviabilidade de funcionamento da Corte, pelo eventual excesso de intervenções, entendiam possível apenas a manifestação escrita. (in Informativo n. 331) Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em: fev. 2016. 281 THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 744.

Page 130: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

128

No mesmo sentido destaca-se o conceito dado por Mirella de Carvalho Aguiar:

(...) o “Amigo da Corte” (tradução da expressão latina) é pessoa física ou jurídica, estranha à lide e alheia ao processo e que nele ingressa, legitimada pela função de prestar auxílio ao órgão julgador através da apresentação de informações sobre questões jurídicas, esclarecimentos fáticos ou mesmo interpretações normativas.282

De igual modo, para Del Prá283, o amicus curiae é um terceiro que intervém

legitimamente no processo para fornecer ao órgão julgador informações fáticas, técnicas ou

jurídicas relevantes para a definição da tese jurídica, estando desvinculado das partes, embora

possa com a sua atuação influenciar o convencimento do Juízo de uma das teses contrapostas,

favorecendo, indireta ou reflexamente, uma das partes.

Com efeito, a participação de diversos atores nos processos objetivos dotados de

eficácia vinculante e erga omnes é essencial para que ocorra a integração do Direito à

sociedade284. A atuação dos terceiros enriquece a discussão, privilegiando o interesse público

e esmiuçando a questão em discussão sob diversas perspectivas, de forma a se obter uma

decisão mais segura e completa possível.

O novo CPC, por sua vez, deu tratamento específico no art. 138285 à figura do

282 AGUIAR, Mirella de Carvalho. Amicus Curiae. Coleção Temas de Processo Civil. v.5. Salvador: JusPODIVM, 2005, p. 05. 283 DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2007, p. 111-113. 284 Nesse sentido, impende citar trechos do voto do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, proferido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2548: “(...) Não há dúvida, outrossim, de que a participação de diferentes grupos em processos judiciais de grande significado para toda a sociedade cumpre uma função de integração extrema mente relevante no Estado de Direito. (...) Ao ter acesso a essa pluralidade de visões em permanente diálogo, este Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefícios decorrentes dos subsídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos de repercussão econômica que possam vir a ser apresentados pelos “amigos da Corte”. Essa inovação institucional, além de contribuir para a qualidade da prestação jurisdicional, garante novas possibilidades de legitimação dos julgamentos do Tribunal no âmbito de sua tarefa precípua de guarda da Constituição. É certo, também, que, ao cumprir as funções de Corte Constitucional, o Tribunal não pode deixar de exercer a sua competência, especialmente no que se refere à defesa dos direitos fundamentais em face de uma decisão legislativa, sob a alegação de que não dispõe dos mecanismos probatórios adequados para examinar a matéria. Entendo, portanto, que a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais em um Estado Democrático de Direito.” Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em: fev. 2016. 285 CPC Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. § 1o A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3o.

Page 131: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

129

amicus curiae, destacando o seu papel no processo civil brasileiro, com poderes inclusive de

apresentar recursos contra o julgamento do IRDR. Não obstante, o legislador conferiu ao

relator o poder de definir os poderes processuais, o que possibilita eventual limitação da

atuação do terceiro, limitação esta, em qualquer medida, ofensiva à garantia constitucional do

contraditório substancial elemento estruturante do modelo constitucional de processo.

Entende-se que, em processos de natureza objetiva, dotados de eficácia erga

omnes e vinculante, como no caso do IRDR, eventuais restrições aos poderes processuais do

amicus curiae não se mostram compatíveis com o debate processual e a participação

democrática, essenciais ao contraditório substancial.

Nesse contexto, considera-se inconstitucional a jurisprudência firmada pelo

Superior Tribunal de Justiça que restringe os poderes processuais do amicus curiae286, além

de impedir que a Defensoria Pública287 assuma tal papel em causas repetitivas de repercussão

§ 2o Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae. § 3o O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas. 286 Por diversas vezes, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu restrições à atuação e intervenção do amicus curiae nos processos de julgamento dos recursos repetitivos, o que, em última análise, restringe o debate processual, tornando ilegítima a tese jurídica firmada. A título de exemplo, destacam-se os seguintes julgados: “DIREITO PROCESSUAL CIVIL. MOMENTO PARA HABILITAÇÃO COMO AMICUS CURIAE EM JULGAMENTO DE RECURSO SUBMETIDO AO RITO DO ART. 543-C DO CPC. O pedido de intervenção, na qualidade de amicus curiae, em recurso submetido ao rito do art. 543-C do CPC, deve ser realizado antes do início do julgamento pelo órgão colegiado. Isso porque, uma vez iniciado o julgamento, não há mais espaço para o ingresso de amicus curiae. De fato, já não há utilidade prática de sua intervenção, pois nesse momento processual não cabe mais sustentação oral, nem apresentação de manifestação escrita, como franqueia a Resolução 8/2008 do STJ, e, segundo assevera remansosa jurisprudência, o amicus curiae não tem legitimidade recursal, inviabilizando-se a pretensão de intervenção posterior ao julgamento (EDcl no REsp 1.261.020-CE, Primeira Seção, DJe 2/4/2013). O STJ tem entendido que, segundo o § 4º do art. 543 -C do CPC, bem como o art. 3º da Resolução 8/2008 do STJ, admite-se a intervenção de amicus curiae nos recursos submetidos ao rito dos recursos repetitivos somente antes do julgamento pelo órgão colegiado e a critério do relator (EDcl no REsp 1.120.295-SP, Primeira Seção, DJe 24/4/2013). Ademais, o STF já decidiu que o amicus curiae pode pedir sua participação no processo até a liberação do processo para pauta (ADI 4.071 AgR, Tribunal Pleno, DJe 16/10/2009)” (Questão de Ordem no Recurso Especial nº 1.152.218/RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, Informativo 540/STJ) “Em questão de ordem, a Corte Especial, por maioria, firmou a orientação de não reconhecer o direito do amicus curiae de exigir a sua sustentação oral no julgamento de recursos repetitivos, a qual deverá prevalecer em todas as Seções. Segundo o voto vencedor, o tratamento que se deve dar ao amicus curiae em relação à sustentação oral é o mesmo dos demais atos do processo: o STJ tem a faculdade de convocá-lo ou não. Se este Superior Tribunal entender que deve ouvir a sustentação oral, poderá convocar um ou alguns dos amici curiae, pois não há por parte deles o direito de exigir sustentação oral ” (Questão de Ordem no Recurso Especial n. 1.205.946/SP, relator ministro Benedito Gonçalves, Corte Especial, Informativo 481) Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em: fev. 2016. 287 A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também restringe de maneira inconstitucional as possibilidades de atuação da Defensoria Pública como amicus curiae. Sobre o tema, oportuno destacar os seguintes julgados: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. INTERVENÇÃO COMO AMICUS CURIAE EM PROCESSO REPETITIVO. Não se admite a intervenção da Defensoria Pública como amicus curiae, ainda que atue em muitas ações de mesmo tema, no processo para o julgamento de recurso repetitivo em que se discutem encargos de crédito rural, destinado ao fomento de atividade comercial. Por um lado, a representatividade das pessoas, órgãos ou entidades referidos no § 4º do art. 543-C do CPC e no inciso I do art. 3º da Resolução 8/2008 do STJ deve relacionar-se, diretamente, à identidade funcional, natureza ou finalidade estatutária da pessoa física

Page 132: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

130

nacional. Os tribunais locais e regionais não poderão se espelhar na referida jurisprudência

para conduzir a intervenção do amicus curiae no IRDR, sobretudo porque nesse caso o

terceiro terá amplos poderes recursais reconhecido por norma especial do novo CPC (§ 3º do

art. 138).

A intervenção do amicus curiae, como terceiro objetivamente interessado, está

condicionada ainda à verificação, por parte do relator do IRDR, da relevância da matéria e da

representatividade adequada do postulante, o que constitui uma espécie de “filtro” por meio

do qual o relator admitirá ou não, fundamentadamente, a manifestação do amigo da corte.

Ou seja, o amicus curiae tem que demonstrar interesse institucional para

contribuir com o julgamento a ser proferido pelo tribunal em razão das suas atividades

estarem relacionadas com o tema objeto do IRDR ou porque desenvolve estudos e pesquisas

sobre o assunto em debate. 288

Segundo Scarpinella Bueno,

Sua intervenção deve acrescentar algo de novo para o processo. Ele deve acrescentar algum elemento, alguma informação, algum dado, alguma coisa, enfim, para que o juiz tenha melhores condições de julgar a causa. Todos esses dados, evidentemente, devem sempre ser rentes ao interesse institucional que qualifica a intervenção do amicus curiae e devem ser analisados daquela perspectiva. É isso, repetimos, que justifica sua intervenção.289

ou jurídica que a qualifique para atender ao interesse público de contribuir para o aprimoramento do julgamento da causa; não é suficiente o interesse em defender a solução da lide em favor de uma das partes (interesse meramente econômico). Por outro lado, a intervenção formal no processo repetitivo deve dar-se por meio da entidade de âmbito nacional cujas atribuições sejam pertinentes ao tema em debate, sob pena de prejuízo ao regular e célere andamento deste importante instrumento processual. A representação de consumidores em muitas ações é insuficiente para a representatividade que justifique intervenção formal em processo submetido ao rito repetitivo. No caso em que se discutem encargos de crédito rural, destinado ao fomento de atividade comercial, a matéria, em regra, não se subsume às hipóteses de atuação típica da Defensoria Pública. Apenas a situação de eventual devedor necessitado justificaria, em casos concretos, a defesa dessa tese jurídica pela Defensoria Pública, tese esta igualmente sustentada por empresas de grande porte econômico. Por fim, a inteireza do ordenamento jurídico já é defendida pelo Ministério Público Federal. (Recurso Especial n. 1.333.977/MT, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, Informativo 537/STJ) DIREITO PROCESSUAL CIVIL. INTERVENÇÃO DA DPU COMO AMICUS CURIAE EM PROCESSO REPETITIVO. A eventual atuação da Defensoria Pública da União (DPU) em muitas ações em que se discuta o mesmo tema versado no recurso representativo de controvérsia não é suficiente para justificar a sua admissão como amicus curiae. Precedente citado: REsp 1.333.977- MT, Segunda Seção, DJe 12/3/2014. (Recurso Especial n. 1.371.128/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, Informativo 547/STJ) Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em: fev. 2016. 288CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 455. 289 BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 503.

Page 133: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

131

Enfim, deve haver uma espécie de pertinência temática entre os interesses e

atividades das pessoas, dos órgãos ou entidades que almejam intervir no processo como

amicus curiae e a questão de direito debatida no IRDR, o que deverá ser aferido pelo relator.

A decisão monocrática do relator que admite e solicita informações ao terceiro é

irrecorrível, mas, a contrario sensu, a decisão que indefere a manifestação do amicus curiae

pode ser atacada por recurso, que seria o agravo interno previsto no art. 1.021 do novo CPC.

Da mesma forma, a decisão que inadmite a intervenção de alguma parte de processo

sobrestado desafia o recurso de agravo interno.

2.4.6.5 A instrução do IRDR

As partes e os terceiros intervenientes poderão requerer, no prazo comum de 15

dias, a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da

questão jurídica em debate e, em seguida, o Ministério Público deverá se manifestar, no

mesmo prazo.

O relator poderá, ainda, designar audiência pública para ouvir depoimento de

pessoas com experiência e conhecimento da matéria, para completar a instrução do IRDR.

Por envolver debate processual sobre questões repetitivas unicamente de direito,

não haverá necessidade de ampla dilação probatória, o que não impede, todavia, a juntada de

pareceres de juristas, estudos acadêmicos já desenvolvidos sobre a temática no Brasil e em

outros países, pesquisas e pareceres realizados durante o processo legislativo acerca das

normas em discussão, dados estatísticos, inclusive sobre dados financeiros e econômicos,

entre outros documentos que podem ser relevantes para o debate processual.

O fato de se tratar de questão de direito não significa, por si, que as discussões

sobre a repercussão fática não sejam relevantes para se alcançar a interpretação mais justa e

próxima à realidade subjacente aos conflitos intersubjetivos repetitivos. A título de exemplo,

para se definir a existência ou não do direito à desaposentação, poderia ser relevante a análise

demonstrativa do impacto financeiro e a repercussão sobre o equilíbrio atuarial do Regime

Geral da Previdência Social.

Nesse contexto, também se mostra relevante à instrução a possibilidade de

designação das chamadas “audiências públicas” – outro instituto que revela a natureza

jurídica do IRDR como processo objetivo – voltada à oitiva de pessoas com experiência

técnica e conhecimento na matéria em discussão, que podem contribuir para a formação da

convicção dos julgadores sobre a melhor interpretação jurídica.

Page 134: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

132

Ao comparar a instrução probatória nos processos subjetivos, nos quais se julga

uma pretensão resistida, e nos objetivos, afirmou Anderson Moraes:

O paralelo entre a audiência pública e a audiência comum, feita em juízo e composta pelas partes concretamente arroladas num processo judicial, é perfeitamente possível, sendo adequado até mesmo afirmar que a primeira é um alargamento da segunda, uma abertura à participação do público indefinido num processo que tem partes igualmente indefinidas. 290

As audiências públicas ampliam o debate processual e, por consequência,

consagram a participação democrática da sociedade na construção da prestação jurisdicional,

na medida em que permitem que seus diversos segmentos e grupos sejam efetivamente

ouvidos pelos julgadores, aproximando o tribunal da realidade em que as normas discutidas

são vivenciadas.

A forma de realização da audiência pública deverá ser regulada no regimento

interno291 de cada tribunal local. E na ausência de regulamentação específica, caberá ao

relator do IRDR zelar pela participação paritária na audiência pública das opiniões e

manifestações pró e contra determinada interpretação da questão de direito, sob pena violação

às garantias da isonomia e do contraditório consagradas no modelo constitucional do

processo.

As audiências públicas são fundamentais ao efetivo contraditório, pois, como

outros canais da esfera pública, a exemplo das passeatas e dos jornais, conduzem a influência

da esfera pública até o sistema (que pode ser o sistema político ou o sistema jurídico, no caso

dos processos judiciais), mas de maneira institucionalizada, isto é, regulamentadas e

organizadas pelo próprio sistema, como ocorre no direito processual brasileiro.292

290 MORAES, Anderson Júnio Leal. Audiências públicas como instrumento de legitimação da jurisdição constitucional. Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br. Acesso em: jan. 2016, p.79. 291 A título de exemplo, o procedimento das audiências públicas no Supremo Tribunal Federal foi regulado no Regimento Interno daquela corte pela emenda 29, de 18 de fevereiro de 2009. O zelo pela participação igualitária está previsto expressamente nos incisos II e III do parágrafo único do art. 154, que dispõem, respectivamente, que “havendo defensores e opositores relativamente à matéria objeto da audiência, será garantida a participação das diversas correntes de opinião” e que “caberá ao Ministro que presidir a audiência pública selecionar as pessoas que serão ouvidas, divulgar a lista dos habilitados, determinando a ordem dos trabalhos e fixando o tempo que cada um disporá para se manifestar”. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em jan.2016. 292MORAES, Anderson Júnio Leal. Audiências públicas como instrumento de legitimação da jurisdição constitucional. Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011. Disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br. Acesso em: jan. 2016, p. 87-88.

Page 135: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

133

Assim, para que seja assegurada a participação democrática no processo, a

audiência pública não pode ser um mero espetáculo para o público em geral e a mídia, mas

sim um conjunto de elementos de convicção produzidos de forma paritária, ou seja, com

equilíbrio das manifestações pró ou contra determinada tese jurídica, que deverão ser

efetivamente considerados pelo tribunal no julgamento do IRDR.

2.4.7 O julgamento do IRDR

O julgamento do IRDR e os seus efeitos estão regulados no artigo 984 do novo

CPC, que cuida especificamente das regras procedimentais que deverão ser observadas na

sessão de julgamento.

Constata-se, inicialmente, que serão necessárias duas sessões do órgão colegiado

competente do tribunal para a análise do incidente. A primeira, para o exercício do juízo de

admissibilidade que é privativo do órgão colegiado, especialmente do juízo positivo, uma vez

que, conforme já se demonstrou no item próprio, o relator poderá inadmitir monocraticamente

a instauração do IRDR quando manifestamente incabível. A segunda sessão, para o

julgamento do mérito do incidente voltado à definição da tese jurídica.

O relator fará a exposição do objeto do incidente, relatando as principais

ocorrências e diligências realizadas. Na referida exposição, para assegurar o pleno

contraditório, o relator deverá delimitar a questão de direito repetitiva que será objeto de

deliberação, especificando as normas jurídicas em discussão, os argumentos apresentados

pelos sujeitos processuais e a moldura fática, quando for o caso, na qual estão inseridas.

A abordagem da realidade fática subjacente, principalmente em seus aspectos

sociais e econômicos, pode ser muito importante, por exemplo, em questões tributárias, em

temas relacionados à previdência social (desaposentação, índices de reajuste, reposição da

inflação, cumulação de benefícios, etc.) e à saúde (fornecimento de medicamento não

autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA ou não fornecido pelo

SUS gratuitamente para o tratamento de determinada doença, reajuste de planos de saúde,

legalidade de vedação contratual de determinada cobertura pelo plano de saúde, etc.)

Em seguida, será dada oportunidade para a sustentação oral, no prazo de 30

(trinta) minutos, pelos advogados do autor e do réu do processo modelo, a partir do qual o

IRDR foi instaurado. Evidentemente que, se o incidente foi instaurado a partir de vários

processos modelo, todos deverão ser ouvidos. Se o incidente foi instaurado por iniciativa da

Defensoria Pública, mesmo não sendo parte no processo modelo, também terá o direito

Page 136: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

134

processual de se manifestar.

O Ministério Público, seja como requerente do incidente ou como fiscal da lei,

também se manifestará no prazo de 30 (trinta) minutos. Os demais interessados, que se

inscreverem para sustentação oral com dois dias de antecedência, também poderão se

manifestar no prazo comum de 30 (trinta) minutos que será dividido entre si.

Dependendo da quantidade de manifestações orais, caberá à presidência da sessão

ampliar os prazos, assegurando o tempo adequado e razoável para as exposições (art. 984, §

1º). Tal prerrogativa é salutar, pois visa garantir a preservação do amplo espaço do debate

processual.

Tais regras procedimentais não são supérfluas, na medida em que o julgamento

não poderá ficar adstrito às razões escritas. Os fundamentos trazidos oralmente pelas

audiências públicas e pelos debates travados na sessão de julgamento também deverão ser

considerados pelos julgadores no acórdão proferido em prol do contraditório substancial.

Conforme preconiza a lei no § 2º do art. 984, deverão ser abrangidos pelo acórdão

“todos os fundamentos suscitados concernentes à tese jurídica discutida”, sejam eles

favoráveis ou desfavoráveis ao entendimento adotado pelo tribunal, sob pena de nulidade do

julgado por ausência de fundamentação.

Nas palavras de Mattos, “incumbe ao órgão competente evitar o julgamento

superficial, incompleto, que possibilita aos órgãos jurisdicionais subordinados deixar de

aplicar o precedente em vários casos concretos pelo fato de apresentarem argumentos não

decididos” 293.

Com efeito, a fundamentação deve ser qualificada e analítica para legitimar a

representatividade outorgada ao Poder Judiciário pelo Estado Democrático de Direito e

consagrar o modelo constitucional de processo, pois impede o arbítrio e concretiza a garantia

fundamental do contraditório substancial, segundo o qual as partes devem ter o direito de

influenciar a decisão, conforme será abordado no capítulo 03.

Nesse contexto, determina o inciso IV do § 1º do art. 489 do novo CPC que não

deve ser considerada fundamentada a decisão judicial que não enfrente todos os argumentos

deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Os

293 MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 193.

Page 137: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

135

argumentos capazes de infirmar a conclusão são aqueles considerados relevantes para o

entendimento da controvérsia e, portanto, essenciais para a completa prestação jurisdicional.

Arenhart, Marinoni e Mitidiero294 entendem que o juiz não tem o dever de rebater

todos os argumentos superficiais ou periféricos levantados pelas partes, mas sim aqueles

relevantes, ou seja, todos os que forem capazes de infirmar a conclusão adotada pelo julgador,

aqueles idôneos para a alteração do julgado.

Na verdade, segundo o novo modelo processual adotado, o órgão colegiado do

tribunal deverá observar todas as demais imposições do referido § 1º e do § 2º do art. 489, sob

pena de nulidade do julgamento. Isso quer dizer que o acórdão proferido no julgamento do

IRDR não poderá invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua

incidência no caso; não poderá se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato

normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; se limitar a invocar

precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem

demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; não poderá, ainda,

deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem

demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Ao motivar o julgamento do IRDR com ampla análise de todos os fundamentos

relevantes e capazes de infirmar a conclusão do tribunal universaliza a participação de todas

as partes e sujeitos interessados no processo: o juiz, ao explanar as suas razões, as partes do

processo modelo e daqueles suspensos, o Ministério Público e os terceiros interessados, ao

terem a justificativa do resultado da demanda. Dá-se, ao mesmo tempo, em razão da ampla

publicidade, a oportunidade para que a opinião pública saiba como o julgador está aplicando o

direito.

É certo, ademais, que, quanto mais qualificada for a fundamentação adotada no

julgamento do IRDR, mais fácil será para os interessados utilizarem da recorribilidade

adequada, como também a possibilidade de controle pelos tribunais superiores quanto à

justiça e legalidade da decisão que será reexaminada, no âmbito das respectivas competências.

Importante ressaltar que o julgamento do IRDR, por se tratar de um processo de

natureza objetiva, apenas define a tese jurídica, não aplicando o direito ao caso concreto em

294 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 493.

Page 138: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

136

cada processo suspenso. A resolução individual da lide deduzida em cada demanda suspensa

continuará ocorrendo em sentenças próprias, que poderão, inclusive, ser de sentido final

diverso, por imposição de quadro fático distinto analisado pelo juiz natural da causa.295

O caráter normativo da ratio decidendi do acórdão proferido no IRDR,

considerado uma espécie de precedente vinculante do CPC/2015, não exime o intérprete de

selecionar os fatos relevantes a serem extraídos para comporem a norma que servirá de ponto

de partida para os casos concretos objeto de julgamento. Interpretação contrária implicará o

engessamento da interpretação do direito e a mecanização da aplicação das normas jurídicas

ao caso concreto em total afronta à independência judicial.

Conforme advertem os professores Dierle Nunes, Humberto Theodoro Jr.,

Alexandre Bahia e Flávio Pedron:

(...) o uso do direito jurisprudencial não se limita à mera transcrição mecânica de ementas, trechos de votos ou enunciados de súmula, escolhidos em consonância com o interesse de confirmação do aplicador, de acordo com suas preferências; é preciso promover uma reconstrução de toda a história institucional do julgamento do caso, desde o seu leading case, para que evitemos o clima de self-service insano, ao gosto do intérprete, que vivenciamos na atualidade.296

O debate processual e a fundamentação qualificada no julgamento do IRDR são,

enfim, fundamentais para assegurar a sua compatibilidade com o modelo constitucional do

processo.

Em razão disso, Luiz Norton Batista Mattos defende que, em situações

excepcionais, o órgão colegiado do tribunal, em atenção ao princípio do contraditório e da

ampla defesa, ao constatar que a argumentação jurídica em torno da questão de direito não foi

apresentada de maneira “satisfatória, suficiente, vigorosa e completa”297 e que a definição da

tese jurídica comporta debate mais amplo e profundo, deverá extinguir o IRDR ao término do

procedimento, sem prejuízo de novo instauração, nos termos do §3º do art. 976 do novo CPC.

O contraditório não foi devidamente assegurado no curso do incidente de modo que não será 295 THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 736. 296 THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Melo Franco Bahia; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Lei 13.105, de 16.03.2015. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 392. 297 MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1.. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 195.

Page 139: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

137

possível a produção de decisão paradigmática e vinculante.

Nos moldes do procedimento-modelo alemão e da ordem de litígio em grupo

inglês, a ratio decidendi, ou seja, os fundamentos determinantes da tese jurídica firmada no

julgamento do IRDR serão sucedidos da mais ampla divulgação, sendo registrados em

cadastro eletrônico que deverá ser criado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ. (art. 979

do novo CPC já citado)

Conforme já se destacou quando da análise da suspensão automática dos

processos, o incidente deverá ser julgado no prazo de um ano, tendo preferência sobre os

demais processos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. (art.

980 do novo CPC)

Transcorrido o prazo legal, cessará a suspensão dos processos pendentes,

individuais ou coletivos, que versam sobre a questão de direito repetitiva e que estejam em

curso na área de competência do tribunal.

Todavia, o parágrafo único do art. 980 do novo CPC permite que o relator

prorrogue a suspensão, se entender necessário, por decisão fundamentada. Nesse caso, não

haverá limite de tempo para a suspensão, o que constitui um verdadeiro “cheque em branco”

dado ao tribunal que, diante da enorme morosidade do Sistema de Justiça, já abordada

criticamente no primeiro capítulo, poderá gerar enorme represamento dos processos,

engessando o debate processual e, por conseguinte, obstando a formação de jurisprudência

sobre a questão de direito controvertida já que todos os órgãos vinculados ao tribunal e os

juízes de primeira instância não poderão se manifestar sobre a questão.

A demora processual e o engessamento da jurisprudência poderão ser ainda mais

perversos ao longo do tempo, pois a lei brasileira, ao contrário do previsto no direito

comparado, não conferiu a possibilidade das partes dos processos suspensos requererem o

prosseguimento de suas causas para não se submeterem aos efeitos do IRDR. Vale dizer, não

foi previsto o direito de optar (right to opt) entre a inclusão (right to opt in) ou a exclusão

(right to opt out) da demanda coletiva em tramitação, o que pode caracterizar violação ao

acesso à Justiça e, outrossim, ao modelo constitucional de processo.

2.4.8 Os efeitos do julgamento do IRDR e o cabimento da reclamação

Os efeitos do julgamento do IRDR estão previstos no art. 985 do CPC/2015 e

talvez constituem o ponto mais polêmico do novel instituto, visto que inserido no regime dos

“precedentes vinculantes” trazido pelo Código.

Page 140: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

138

O art. 985 determina, de forma imperativa, que a tese jurídica definida no

julgamento do IRDR será aplicada indistintamente a todos os processos individuais ou

coletivos que versem sobre a mesma questão de direito e tramitem na área de competência do

tribunal, inclusive aqueles em tramitação nos juizados especiais do respectivo estado ou

região, bem como aos processos futuros sobre a mesma questão, enquanto não operada a

revisão da tese pelo mesmo tribunal.

Trata-se de efeito erga omnes e vinculante antes visto no direito processual

brasileiro apenas nos casos de controle concentrado de constitucionalidade e das súmulas

vinculantes.

Em relação às causas futuras, se a petição inicial tiver pedido que contrarie a tese

jurídica firmada no julgamento do IRDR, caberá o julgamento liminar (ou imediato) de

improcedência do pedido, antes mesmo da citação do réu e desde que não seja necessária

dilação probatória sobre os fatos alegados pelo autor, nos termos do art. 332, inciso III da

novel legislação.

O julgamento do IRDR tem efeitos gerais pro et contra, ou seja, vincula os

envolvidos (partes do processo modelo, dos suspensos e dos futuros, assim como os

intervenientes) tanto se favorável, quanto se desfavorável, sem a possibilidade de que as

partes dos processos suspensos possam pedir a sua exclusão da aplicação da tese que vier a

ser firmada. Tal consequência jurídica o diferencia totalmente do regime jurídico das ações

coletivas previsto no direito brasileiro, por meio de representação ou substituição processual,

no qual a coisa julgada é secundum eventum litis, vinculando os substituídos apenas se os

beneficiar.

Daí a maior importância que se deve conferir à efetiva participação das partes na

construção da decisão judicial, sob pena de se caracterizar a incompatibilidade do novel

instituto com o modelo constitucional de processo.

Nesse novo modelo processual, portanto, os juízes de primeira instância e os

demais julgadores do tribunal, mesmo que discordem da ratio decidendi determinante da tese

jurídica fixada no IRDR, deverão adotá-la obrigatoriamente nos processos em tramitação e

nos futuros, tendo sido previsto, inclusive, o cabimento da reclamação – como instrumento

processual de garantia da força vinculante – contra as decisões judiciais que não observarem a

tese jurídica definida no julgamento do incidente, nos termos do previsto no § 1º do art. 985.

A propósito, Marcos Cavalcanti cita o exemplo do Tribunal Regional Federal da

Page 141: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

139

1ª Região para ilustrar a ideia central do IRDR:

(...) a decisão proferida no âmbito do julgamento de mérito do IRDR tem efeito vinculante sobre todas as demais causas repetitivas na área de competência do tribunal, mesmo que estejam em tramitação nos juizados especiais. Por exemplo, decisão proferida no julgamento de mérito do IRDR instaurado no Tribunal Regional Federal da 1ª Região terá eficácia vinculante sobre todas as causas repetitivas que tramitam, em primeira e em segunda instâncias, nos entes federativos englobados pela referida região, quais sejam: o Distrito Federal e os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins.298 (CAVALCANTI, 2015, p. 461)

Tal como a súmula vinculante, a tese jurídica firmada terá forte impacto na

atividade jurisdicional, especialmente na exercida pela primeira instância, pois terá eficácia

erga omnes dentro da área de competência do tribunal que julgou o incidente, não se

restringindo apenas aos processos em tramitação, mas projetando-se também, pela vontade da

lei, sobre as causas futuras, como em um regime de precedentes vinculantes.

Observa-se aqui uma nítida diferença com o procedimento-modelo do sistema

alemão. Naquele procedimento, o efeito do julgamento é vinculante, mas limitado, pois não se

aplica às causas futuras, mas apenas aos processos suspensos durante a tramitação do

incidente.

Segundo Antônio do Passo Cabral299, no sistema alemão, os intervenientes

também escapam dos efeitos da decisão no caso de a parte escolhida para ser líder processual

(Musterkläger) não tiver feito uso dos meios de ataque e defesa adequados, prejudicando o

debate processual na definição da tese jurídica. Trata-se, a toda evidência, de uma específica

forma de controle de representatividade prevista no sistema alemão. Os interessados não serão

atingidos pela eficácia da decisão-modelo se a atuação processual foi deficiente, se o líder

processual não se utilizou por culpa grave dos meios de ataque e defesa cabíveis, o que não

foi trazido para o IRDR do direito brasileiro.

Não obstante tais diferenciações consideradas fundamentais para a

compatibilidade constitucional do instituto, para Humberto Theodoro Jr., não importa que o

regramento do IRDR tenha se afastado do procedimento-modelo do sistema alemão. Na visão

298 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 746. 299 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, p. 139.

Page 142: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

140

do respeitado processualista, “trata-se de instituto concebido e aperfeiçoado pelo direito

brasileiro, sem qualquer ofensa ao sistema do processo constitucional idealizado por nossa

Carta Magna”300.

No entendimento de Humberto Theodoro Jr.301, também não caracteriza violação

à Constituição a previsão, por lei ordinária, de casos de jurisprudência dotada de força

vinculativa, fora das previsões constitucionais. Afirma que, no julgamento do agravo

regimental na Reclamação nº. 1.880 (DJ 19/03/2004), relatado pelo Ministro Maurício Corrêa,

o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional a Lei 9.868, de 1999, que estabeleceu

o efeito vinculante para os julgamentos de todas as ações de controle de constitucionalidade,

apesar da Constituição, àquela época, somente conferir tal eficácia às ações declaratórias de

constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.

A referida posição, no entanto, não é compartilhada por Artur César de Souza, que

considerada manifestamente inconstitucional a previsão de eficácia vinculante ao julgamento

do IRDR. Defende o jurista que “em nosso ordenamento jurídico somente haverá eficácia

vinculante quando a decisão for objeto de súmula vinculante ou de ações abstratas de

constitucionalidade ou inconstitucionalidade”302.

Assim, a eficácia vinculante da decisão do IRDR ficaria restrita aos órgãos

fracionários do tribunal que o julgou, justamente por serem órgãos integrantes do próprio

tribunal. Em relação aos demais órgãos da jurisdição de primeiro grau, o julgamento teria

efeito apenas persuasivo de interpretação, sem o caráter obrigatório que se impôs na novel

legislação.

Devido a gravidade do tema, o regime de “precedentes vinculantes” previsto pelo

CPC/2015, a extensão dos efeitos vinculantes do IRDR em relação aos juízes de primeiro

grau e sua (in)compatibilidade com a garantia constitucional da independência judicial

merecerão análise em capítulo próprio.

2.4.8.1 Os efeitos do IRDR em relação aos Juizados Especiais

300 THEODORO JR., Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 746. 301THEODORO JR., Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 749. 302 SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 160.

Page 143: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

141

A segunda parte do inciso I do art. 485, já citado, também impôs a extensão dos

efeitos vinculantes do julgamento do IRDR aos processos que versarem sobre a mesma

questão de direito em tramitação nos juizados especiais no respectivo Estado ou região.

Importante ressaltar que a extensão dos efeitos do IRDR aos juizados não estava

prevista no anteprojeto do novo Código e tampouco no projeto que tramitou inicialmente no

Senado da República.

A previsão normativa foi introduzida pelo texto substitutivo apresentado pelo

deputado Paulo Teixeira e aprovado na Câmara dos Deputados. Tal inovação recebeu

aprovação no Senado, conforme se pode inferir do parecer final apresentado pelo Senador

Vital do Rêgo, que defendeu, inclusive, a sua constitucionalidade, in verbis:

Quanto ao art. 995 do SCD, que estende o alcance da tese jurídica fixada pelo pertinente Tribunal a toda área de sua jurisdição, com inclusão dos juizados especiais do respectivo estado ou região, é preciso reconhecer a sua adequação. De fato, contra a extensão dos efeitos do julgamento do incidente de demandas repetitivas aos Juizados Especiais, ergue-se a tese da inconstitucionalidade, que, em um primeiro momento, falsamente convence. Alega-se, em suma, que, como a Carta Magna não deferiu competência recursal aos Tribunais para decisões prolatadas no âmbito dos Juizados Especiais, seria inconstitucional estender os efeitos de julgamentos feitos por aqueles aos Juizados. No entanto, essa não é a melhor leitura da Carta Magna. Em primeiro lugar, recorda-se que, no arranjo de competência desenhado pela Constituição Federal, com posterior esclarecimentos trazidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela legislação ordinária, o Superior Tribunal de Justiça (STF) assumiu o papel de, em última instância, pacificar a interpretação da legislação infraconstitucional, ao passo que o STF, o de uniformizar a interpretação da Carta Magna. Causas provenientes dos juizados especiais desaguarão no STJ ou no STF para uniformização de teses jurídicas, seja por conta da reclamação (admitida pelo STF para os Juizados Especiais Estaduais), seja na forma da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001 (para os Juizados Especiais Federais). Esse fato demonstra que a intenção do legislador é a de garantir, ao máximo, que todos os brasileiros tenham acesso a uma resposta jurisdicional uniforme. O incidente de resolução de resolução de demandas repetitivas segue essa orientação constitucional. Em segundo lugar, os Juizados Especiais e os Tribunais locais e regionais costumeiramente apreciam matérias jurídicas idênticas. Por exemplo, demandas de revisão de contratos bancários, com alegação de abusividade de taxa de juros, frequentam os Juizados Especiais e os Tribunais. A diferença é que, no âmbito dos Juizados, há valor de alçada. Nesses casos, diante de demandas multidinárias, a Constituição Federal, prestigiando o princípio da duração razoável do processo, sediada no art. 5º, e reconhecendo a competência dos Tribunais para pacificar o Direito no Estado ou na Região, empresta seu irrestrito beneplácito a que os Tribunais possam, em sede de incidente de resolução de demandas repetitivas, garantir a solução de milhares de milhares de processos com teses idênticas de modo uniforme, com possibilidade de eventual provocação futura do STJ, corte incumbida da unificação nacional da interpretação da legislação infraconstitucional.

Page 144: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

142

O princípio constitucional da duração razoável do processo e o desenho de competência jurisdicional feito pela Lei Maior com olhos na busca de uma tutela jurisdicional efetiva e uniforme aos brasileiros de cada estado ou região aplaudem a solução empregada pelo caput do art. 995 do SCD. Portanto, é forçosa a manutenção do seu teor, com os ajustes redacionais que haverão de ser explicitados. 303

A título de exemplo, segundo a novel legislação, a tese jurídica definida no

julgamento do IRDR no âmbito do Tribunal Regional Federal da 1ª Região vincularia os

juízes de primeiro grau dos juizados especiais federais dos 13 (treze) Estados e o Distrito

Federal abrangidos pela 1ª Região, os juízes das turmas recursais sediadas em cada Estado, e

ainda os juízes da turma regional de uniformização de jurisprudência na 1ª. Região. As turmas

regionais foram criadas pela Lei 10.259 de 2001 para dirimir a divergência de interpretação

entre turmas recursais pertencentes à mesma região no âmbito da justiça federal.

Em razão da área territorial, os efeitos vinculantes do IRDR somente não

alcançariam os juízes federais atuantes na turma nacional de uniformização de jurisprudência

(TNU) prevista para dirimir, em âmbito nacional, a divergência de interpretação de direito

material entre turmas recursais dos juizados situadas em regiões diferentes da justiça federal.

No exemplo acima, a turma regional de uniformização de jurisprudência da 1ª

Região estaria vinculada ao julgamento do IRDR proferido pelo Tribunal Regional Federal da

1ª Região, mas eventual recurso cabível contra o julgamento da turma não poderia ser julgado

pelo referido tribunal. O recurso poderia ser endereçado à turma nacional de uniformização e,

em caso de matéria constitucional, ao próprio Supremo Tribunal Federal, os quais não

estariam vinculados aos efeitos do julgamento do IRDR proferido no âmbito da 1ª Região.

Assim, eventual julgamento da turma nacional dos juizados poderia divergir do

julgamento do IRDR proferido por um determinado Tribunal Regional Federal, já que não é

alcançada pelos efeitos vinculantes do incidente, gerando conflito de interpretações e

insegurança jurídica, pois não se saberia se os juízes daquela respectiva região deveriam

seguir a tese jurídica firmada no IRDR ou a interpretação uniformizada pela turma nacional

dos juizados federais, cuja atribuição uniformizadora é prevista pela legislação especial de

regência do microssistema dos juizados.

Para Aluisio Mendes e Odilon Romano Neto, no entanto, a extensão do incidente

303 Texto disponível no endereço: www.senado.leg.br. Parecer Final n. 956, de 2014, relatado pelo Senador Vital do Rêgo sobre o substitutivo aprovado na Câmara dos Deputados, p. 177-178. Acesso em: fev. 2016.

Page 145: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

143

de resolução de demandas repetitivas aos Juizados Especiais, em conformidade com o

disposto no art. 985, I, do novo Código, vem, de certa forma, suprir as deficiências do sistema

de uniformização atualmente existente no microssistema dos Juizados Especiais, conferindo

mais uniformidade à jurisprudência do âmbito de um mesmo Estado ou região e assegurando

um tratamento isonômico ao jurisdicionado:

(...) cabe reconhecer que a extensão da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas aos Juizados Especiais não se afigura inconstitucional, por eventual contrariedade ao disposto no artigo 98, I, da Constituição da República de 1988, na medida em que não há um deslocamento do julgamento das causas em tramitação nos Juizados Especiais para os respectivos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais, mas apenas a extensão da aplicação da tese jurídica nestes firmada, nos moldes do que já existe atualmente em relação ao Superior Tribunal de Justiça, de detém a palavra final nos mecanismos de uniformização presentes nas Leis 10.259/01 e 12.153/09, havendo o Supremo Tribunal Federal já reconhecido a constitucionalidade deste modelo. 304

No mesmo sentido, o entendimento de Scarpinella Bueno305, para o qual a solução

dada pelo CPC/2015 é, inquestionavelmente, a mais prática e “lógica”, fazendo eco, até

mesmo, à Resolução n. 12/2009 do STJ, que, em última análise, permite que aquele tribunal

superior controle o conteúdo das decisões proferidas no âmbito dos Juizados Especiais de

todo o país por intermédio de reclamações.

Não obstante essas e outras respeitadas vozes em sentido contrário306, a

incoerência sistêmica que se apresenta com a extensão dos efeitos do IRDR aos juizados

especiais caracteriza ofensa à Constituição da República em razão da manifesta ausência de

competência funcional dos tribunais locais ou regionais para uniformizarem a interpretação

jurídica no âmbito dos juizados especiais. Ainda que o propósito seja de conferir segurança

304 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; NETO, Odilon Romano. O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os Juizados Federais. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 58-59. 305 BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 629. 306 A defesa da extensão dos efeitos do IRDR aos juizados também encontra respaldo nas lições de: ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. As demandas de massa e o projeto do novo Código de Processo Civil. In: FREIRE, Alexandre (org.). Novas tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. 3. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 50-54. Destaca-se, ainda, o Enunciado n. 93 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC, segundo o qual admitido o incidente de resolução de demandas repetitivas, também devem ficar suspensos os processos que versem sobre a mesma questão objeto do incidente e que tramitem perante os juizados especiais no mesmo estado ou região. (In: NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 392)

Page 146: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

144

jurídica e isonomia aos litigantes dentro de determinado território, o vício que se apresenta é

de natureza formal e insuperável.

Os tribunais não possuem competência funcional e hierarquia jurisdicional para

reexaminar as decisões, sentenças e acórdãos proferidos pelos juízes atuantes nos juizados

especiais, inclusive através de meios impugnativos autônomos como, por exemplo, o

mandado de segurança, conforme já decidiram o Supremo Tribunal Federal307 e o Superior

Tribunal de Justiça308. Em razão disso, não é possível a lei ordinária conferir competência

originária para que os tribunais julguem ação autônoma de reclamação em face de

julgamentos dos juizados.

Com efeito, os juizados especiais federais e estaduais estão subordinados,

respectivamente, aos tribunais regionais federais e aos tribunais de justiça apenas no aspecto

administrativo, de modo que os atos jurisdicionais dos referidos tribunais não podem interferir

de forma vinculante nos juizados, gerando a insegurança jurídica que o incidente visa coibir

haja vista a possibilidade divergência com o entendimento manifestado pela turma nacional

de uniformização.

Nesse contexto, parece ilógico no sistema processual estabelecer a eficácia

vinculante entre órgãos do Poder Judiciário sem hierarquia ou subordinação processual entre

si. A propósito, merece destaque a lição de Luiz Norton Baptista de Mattos:

A jurisprudência dominante, os precedentes e as súmulas de um tribunal somente podem adquirir eficácia vinculativa quanto aos órgãos judiciários que lhe são inferiores ou subordinados na hierarquia jurisdicional. Essa hierarquia jurisdicional de derrogação implica a atribuição ao tribunal de poder funcional, de competência para a revisão, o reexame e a reforma da decisão do órgão jurisdicional inferior através de recurso ou de ação autônoma de impugnação. Se o tribunal não pode, de maneira alguma, reformar a decisão do órgão judiciário de primeiro grau, por não se colocar, na linha recursal, como instância revisora, a sua jurisprudência não poderá ser de observância compulsória pelo último, devido à singela razão de que o

307 O Supremo Tribunal Federal decidiu que a competência para o processamento e julgamento do mandado de segurança para o controle de decisão de juiz em exercício nos juizados especiais, contra a qual a legislação especial não prevê a admissibilidade de qualquer recurso, é originária das respectivas turmas recursais, e não do tribunal de justiça ou tribunal regional federal, caso a autoridade coatora seja juiz de juizado especial federal. (Reclamação n. 1086-RS, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ 19/11/2004, p. 30). No entendimento do Ministro Ricardo Lewandowski, as turmas recursais qualificam-se como órgãos recursais ordinários de última instância em relação aos julgamentos dos juizados especiais, de modo que os juizados e as respectivas turmas recursais não estão sujeitos à jurisdição dos tribunais de justiça e dos tribunais regionais federais no âmbito da justiça estadual e federal, respectivamente. (STF, Tribunal Pleno, RE n. 586.789/PR, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, com repercussão geral, acórdão eletrônico publicado em 24/02/2012) 308 A propósito do tema, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 376, segundo a qual “compete à turma recursal processar e julgar o mandado de segurança contra ato de juizado especial”.

Page 147: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

145

tribunal não teria meios para impor-lhe obediência aos seus julgados.309

Entende-se que o microssistema dos juizados especiais já possui mecanismos

suficientes para a uniformização jurisprudencial no âmbito de sua estrutura hierárquica, de

modo que a extensão a eles dos efeitos vinculantes do julgamento do IRDR constitui uma

ingerência inconstitucional.

Conforme entendimento jurisprudencial pacífico310, após o esgotamento dos

recursos previstos na legislação especial do microssistema dos juizados que sejam

endereçados às turmas recursais, será sempre possível a revisão do julgamento e a

uniformização da interpretação da questão constitucional pela mais alta corte do país,

mediante a interposição do recurso extraordinário, na forma do art. 102, inciso III e alíneas da

Constituição da República. Assim, em última análise, caberá ao próprio Supremo Tribunal

Federal definir, em matéria constitucional, a uniformização da interpretação jurídica através

do regime da repercussão geral.

É de se destacar também que o Supremo Tribunal Federal, em polêmico

julgamento311, conferiu ao Superior Tribunal Justiça o papel de uniformização da

309 MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.).Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1.. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 207. 310 A propósito, cita-se a ementa do julgamento da reclamação n. 2.132-MG, relatado pelo Ministro Celso de Mello, 2ª Turma, DJU 14/02/2003: JUIZADO ESPECIAL (LEI Nº 9.099/95) - DECISÃO EMANADA DE TURMA RECURSAL - CABIMENTO, EM TESE, DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO - JUÍZO NEGATIVO DE ADMISSIBILIDADE - INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECUSA DE SEU PROCESSAMENTO - HIPÓTESE CONFIGURADORA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. - As decisões de Turmas Recursais, proferidas em causas instauradas no âmbito dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95), são passíveis de impugnação mediante recurso extraordinário dirigido ao Supremo Tribunal Federal, desde que se evidencie, no julgamento do litígio, a existência de controvérsia de natureza constitucional. Precedentes. - Cabe reclamação, para o Supremo Tribunal Federal, nos casos em que o Presidente da Turma Recursal, usurpando competência outorgada à Suprema Corte, nega trânsito a agravo de instrumento interposto contra decisão que não admitiu recurso extraordinário. Precedentes. 311 Trata-se do julgamento dos embargos de declaração interpostos no recurso extraordinário n. 571.572, da relatoria da então Ministra Ellen Gracie, cujo acórdão foi publicado no DJe em 27/11/2009. Em razão do novo paradigma criado pelo entendimento do STF, importante destacar a ementa do referido julgado: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO EMBARGADO. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO ÀS CONTROVÉRSIAS SUBMETIDAS AOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS. RECLAMAÇÃO PARA O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CABIMENTO EXCEPCIONAL ENQUANTO NÃO CRIADO, POR LEI FEDERAL, O ÓRGÃO UNIFORMIZADOR. 1. No julgamento do recurso extraordinário interposto pela embargante, o Plenário desta Suprema Corte apreciou satisfatoriamente os pontos por ela questionados, tendo concluído: que constitui questão infraconstitucional a discriminação dos pulsos telefônicos excedentes nas contas telefônicas; que compete à Justiça Estadual a sua apreciação; e que é possível o julgamento da referida matéria no âmbito dos juizados em virtude da ausência de complexidade probatória. Não há, assim, qualquer omissão a ser sanada.

Page 148: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

146

interpretação da legislação infraconstitucional no âmbito dos juizados especiais estaduais e

federais.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que, diante da ausência, àquela época, de

turma de uniformização no âmbito dos juizados estaduais, o Superior Tribunal de Justiça

também poderia exercer tal função, por meio da reclamação, quando os juizados divergissem

da sua interpretação sedimentada.

Importante ressaltar que, ao contrário do que se possa imaginar, o entendimento

do STF não chancelou a possibilidade de se atribuir competência aos tribunais locais para

exercerem o papel uniformizador da jurisprudência dos juizados. A corte superior apenas

entendeu que, na ausência de um sistema uniformizador nos moldes dos juizados federais, o

Superior Tribunal de Justiça deveria desempenhar a sua missão constitucional de uniformizar

a interpretação infraconstitucional também no microssistema dos juizados estaduais.

Embora não seja cabível a interposição do recurso especial, a Lei 10.259, de 2001,

que regulou os juizados especiais federais, já dispunha, nos §§§ 4º, 5º e 6º do art. 14, sobre a

possibilidade do Superior Tribunal de Justiça ser chamado a intervir quando a decisão da

turma nacional de uniformização divergir daquela corte quanto à interpretação da legislação

infraconstitucional.

Após o referido julgamento do Supremo Tribunal Federal, previsão normativa

semelhante constou do §3º do art. 18 e do art. 19, caput, da Lei 12.153, de 2009, que regulou

os juizados especiais no âmbito da Fazenda Pública dos Estados e do Distrito Federal.

As disposições das referidas leis ordinárias são, a toda evidência, de duvidosa

constitucionalidade, porquanto a previsão de novas competências do Superior Tribunal de

Justiça deveria constar diretamente da Constituição da República, mediante emenda

2. Quanto ao pedido de aplicação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, observe-se que aquela egrégia Corte foi incumbida pela Carta Magna da missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, embora seja inadmissível a interposição de recurso especial contra as decisões proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais. 3. No âmbito federal, a Lei 10.259/2001 criou a Turma de Uniformização da Jurisprudência, que pode ser acionada quando a decisão da turma recursal contrariar a jurisprudência do STJ. É possível, ainda, a provocação dessa Corte Superior após o julgamento da matéria pela citada Turma de Uniformização. 4. Inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais, circunstância que inviabiliza a aplicação da jurisprudência do STJ. Risco de manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê-la. 5. Embargos declaratórios acolhidos apenas para declarar o cabimento, em caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição Federal, para fazer prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional.

Page 149: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

147

constitucional, e não por lei ordinária como ocorreu no caso dos juizados. Para Cunha, “em

razão do princípio da tipicidade, as competências dos órgãos jurisdicionais são apenas as

expressamente previstas na Constituição”312.

A despeito disso, a citada interpretação dada pelo STF acabou por conferir, ao

menos implicitamente, legitimidade constitucional à previsão dos §§§ 4º, 5º e 6º do art. 14 da

Lei 10.251 e do § 3º do art. 18 e do art. 19, caput, da Lei 12.153, de 2009, para assegurar a

uniformização da interpretação jurídica nos juizados especiais.

Dentro do referido contexto normativo, entende-se que o microssistema dos

juizados já é dotado de meios próprios de uniformização interpretativa, não sendo cabível a

extensão dos efeitos do IRDR especialmente quando julgado apenas no âmbito do tribunal

local ou regional.

Para haver compatibilidade com a Constituição, a única hipótese em que os

efeitos do julgamento do IRDR repercutiriam, de fato, sobre os processos em tramitação nos

juizados, em qualquer de suas instâncias, seria quando houvesse o julgamento do recurso

extraordinário ou do recurso especial interpostos contra o acórdão proferido no incidente,

conforme previsto no § 2º do art. 987 do novo CPC.

Como é cediço o STF e o STJ são órgãos do Poder Judiciário dotados de

atribuição constitucional de definição das teses jurídicas, respectivamente, acerca da

Constituição e da legislação infraconstitucional, assumindo, portanto, papel de sobreposição

em relação aos tribunais locais e regionais, bem como em relação ao juizado especial.

Por isso a tese jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior

Tribunal de Justiça será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou

coletivos que versarem sobre a mesma questão de direito, o que inclui, por coerência

sistêmica e por competência funcional dos referidos tribunais superiores, aquelas causas em

tramitação nos juizados.

2.4.8.2 Os efeitos do IRDR em relação à Administração Pública

Quando se pensa em efetividade da jurisdição e em diminuição da litigiosidade no

cenário de crise do Poder Judiciário, os entes públicos – sejam eles federais, estaduais ou

municipais – devem ser colocados em um patamar diferenciado em relação aos demais

312 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Jurisdição e competência. São Paulo: RT, 2008, p. 47.

Page 150: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

148

litigantes. Isso porque lidam com o interesse público e os anseios sociais, de maneira que suas

condutas administrativas afetam diretamente um grande universo de pessoas.

Nesse contexto, para que sejam implementados mecanismos realmente eficientes

de solução de conflitos e de aplicação dos precedentes judiciais, é imprescindível que a

Administração Pública seja colocada como um de seus principais destinatários, obrigando-a,

quando derrotada, a mudar suas práticas administrativas, em caráter geral, e não somente em

favor da parte vitoriosa na demanda judicial.

A circunstância acidental de o administrado ter ajuizado ação judicial não pode

ser considerada fator legítimo de discriminação para justificar condutas distintas da

Administração Pública na concretização do sentido da norma jurídica definitivamente fixada

por precedente judicial. A interpretação da norma é uma só, já acertada pelo Poder Judiciário,

e, portanto, deve ser aplicada a todos pelo Estado.

Em que pese o novo CPC tenha instituído um sistema de precedentes dotados de

eficácia vinculante com o propósito de conferir maior uniformidade, coerência, estabilidade e

previsibilidade da jurisprudência, não há previsão específica na lei da extensão dos efeitos

vinculativos aos entes públicos, maiores litigantes do Sistema de Justiça. De igual modo, não

foi previsto o cabimento da reclamação para fazer valer a autoridade do precedente judicial

em face de conduta da Administração Pública.

O art. 927 da novel legislação processual dispõe apenas que os juízes e tribunais

deverão observar nos seus julgados as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle

concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmulas vinculantes, das súmulas do

Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em

matéria infraconstitucional, os acórdãos preferidos em incidentes de assunção de competência

ou de resolução de demandas repetitivas e de julgamento de recursos extraordinário e especial

repetitivos e, por fim, a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem

vinculados.

Com exceção das hipóteses de julgamento do controle concentrado de

constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal e das súmulas vinculantes, cuja eficácia

vinculante e erga omnes, inclusive para a Administração Pública, consta da própria

Constituição, as demais hipóteses da norma acima referida adquiriram eficácia vinculante por

lei ordinária restrita apenas ao âmbito da estrutura hierárquica do Poder Judiciário.

Assim, a tese jurídica firmada no julgamento do IRDR deverá ser adotada

Page 151: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

149

obrigatoriamente pelos juízes de primeiro grau, mas, por outro lado, paradoxalmente, não

precisará ser adotada, em caráter geral, pela Administração Pública, não havendo a previsão

normativa de qualquer sanção para eventual inércia dos entes públicos em adequar suas

condutas e práticas administrativas à interpretação jurídica sedimentada no julgamento do

incidente. Ou seja, o Poder Público poderá continuar incentivando a litigiosidade a despeito

da posição pacificada no âmbito do Poder Judiciário.

De maneira muito tímida e insuficiente para coibir a litigiosidade, o § 2º do art.

985 previu, no caso do julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas, que

versarem sobre questão afeta a prestação de serviço público objeto de delegação, que o

resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora

competente para fiscalização da efetiva aplicação da tese adotada, por parte dos entes sujeitos

a regulação. O mesmo efeito foi previsto no inciso IV, do art. 1.040 do novo Código de

Processo Civil para os casos dos julgamentos dos recursos especial e extraordinário

repetitivos.

Fora do âmbito interno do Poder Judiciário, a eficácia vinculante do incidente

seria restrita aos particulares delegatórios do serviço público que, embora também se

enquadrem como litigantes habituais nas estatísticas do Conselho Nacional de Justiça, não

respondem pela maioria das ações em tramitação.

Entende-se que o dispositivo é muito claro ao determinar a efetiva aplicação da

tese jurídica fixada no IRDR por parte dos entes sujeitos à regulação. Trata-se, sem dúvida, da

mesma eficácia vinculante prevista no art. 927, mas agora estendida a alguns sujeitos

delegatórios de serviços públicos, razão pela qual será cabível o ajuizamento da reclamação

por interpretação sistemática.

Para Sofia Temer, no entanto, o referido dispositivo legal, ao contrário do previsto

no art. 927, não possui eficácia vinculante, mas apenas eficácia persuasiva:

Esse dispositivo deve ser lido, pensamos, como um mecanismo que confere uma eficácia persuasiva em relação à administração pública. A comunicação pode levar à alteração da conduta dos prestadores dos prestadores de serviço público, por exemplo, ainda que isso decorra de uma questão financeira (pelo cálculo do custo da litigância nesta hipótese) e não da direta obediência à tese. O significado do art. 985, §2º, é diverso, portanto, do significado do art. 927. Enquanto este prevê a eficácia vinculativa, aquele dispõe de uma eficácia que não é compreendida como diretamente obrigatória, e, por isso, não prevê uma subordinação. Uma das consequências dessa diferenciação é que não caberá reclamação contra ato da administração pública que não

Page 152: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

150

observar tese fixada no IRDR.313

Qual a razão de não se ter conferido pela lei a mesma eficácia vinculante dos

precedentes judiciais para os entes públicos em geral e demais litigantes habituais nos demais

casos de julgamentos de casos repetitivos ou de enunciados de súmula do Supremo Tribunal

Federal e do Superior Tribunal de Justiça? Interessa realmente ao Poder Público modificar

suas práticas administrativas em razão dos precedentes judiciais? As respostas para tais

indagações dependerão da atitude do Poder Público diante dos precedentes judiciais após a

vigência do CPC/2015.

É importante admitir, todavia, que os entes públicos federais – grandes

responsáveis pelo excesso de litigiosidade, no âmbito da justiça federal e dos tribunais

superiores – estão tentando, ainda que de maneira tímida, adotar critérios para que se

reconheça a desnecessidade de prosseguir com determinado litígio314, além de medidas de

valorização da chamada “jurisprudência iterativa dos tribunais”315 no intuito de diminuir a sua

presença em juízo.

Nota-se que as medidas legislativas adotadas no âmbito da Administração Pública

Federal dão especial prerrogativa ao Advogado-Geral da União316 de eleger os casos em que a

313 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 221. 314 A propósito, a Lei 9469/97, que regulamenta o disposto no inciso VI do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, prevê que “o Advogado-Geral da União poderá dispensar a inscrição de crédito, autorizar o não ajuizamento de ações e a não-interposição de recursos, assim como o requerimento de extinção das ações em curso ou de desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos da União e das autarquias e fundações públicas federais, observados os critérios de custos de administração e cobrança” (art. 1º-A) A lei estende semelhante faculdade aos dirigentes máximos das empresas públicas federais, que “poderão autorizar a não-propositura de ações e a não-interposicão de recursos, assim como o requerimento de extinção das ações em curso ou de desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos, atualizados, de valor igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), em que interessadas essas entidades na qualidade de autoras, rés, assistentes ou opoentes, nas condições aqui estabelecidas” (art. 1º-B). O art. 2º, com redação dada pela Lei 13.140, de 2015, também autoriza que “o Procurador-Geral da União, o Procurador-Geral Federal, o Procurador-Geral do Banco Central do Brasil e os dirigentes das empresas públicas federais mencionadas no caput do art. 1o poderão autorizar, diretamente ou mediante delegação, a realização de acordos para prevenir ou terminar, judicial ou extrajudicialmente, litígio que envolver valores inferiores aos fixados em regulamento”. 315 A Lei 9469/97 também dispõe que “não havendo Súmula da Advocacia-Geral da União (arts. 4º, inciso XII, e 43, da Lei Complementar nº 73, de 1993), o Advogado-Geral da União poderá dispensar a propositura de ações ou a interposição de recursos judiciais quando a controvérsia jurídica estiver sendo iterativamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos Tribunais Superiores” (art. 4º). O Ato Regimental n. 1, de 02 de julho de 2008, da Advocacia Geral da União define, por sua vez, jurisprudência iterativa dos Tribunais como sendo: entende-se por jurisprudência iterativa dos Tribunais, para os efeitos deste Ato Regimental, as decisões judiciais do Tribunal Pleno ou de ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, dos Órgãos Especiais ou das Seções Especializadas dos Tribunais Superiores, ou de ambas as Turmas que as compõem, em suas respectivas áreas de competência, que consagram entendimento repetitivo, unânime ou majoritário, dos seus membros, acerca da interpretação da Constituição ou de lei federal em matérias de interesse da União, suas autarquias e fundações. Disponível em: www.agu.gov.br. Acesso em: fev. 2016. 316 Nesse sentido, o Decreto Federal n. 2.346, de 10 de outubro de 1997, alterado pelo Decreto 8.157, de 2013,

Page 153: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

151

advocacia pública deixará de contestar ou recorrer e também quais as questões temáticas

definidas pela jurisprudência iterativa dos tribunais superiores se estenderão

administrativamente aos demais servidores públicos em situação semelhante, evitando-se

novas demandas perante o Poder Judiciário.

Trata-se, a toda evidência, de ato discricionário do Advogado-Geral, cujo cargo

político possui status de ministro de estado. Assim, dependendo da gestão do Poder

Executivo, em razão da ineficiência ou interesses políticos do governo, a inércia do referido

agente político poderá impedir que as decisões judiciais sejam estendidas no âmbito da

Administração Pública. A discricionariedade administrativa quanto ao cumprimento da tese

definida pelo Poder Judiciário somente não tem espaço nas hipóteses em que a própria

Constituição estabeleceu a eficácia vinculativa da decisão judicial.

Por sua vez, nas causas fiscais em que a representação da União competir à

Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, havendo manifestação jurisprudencial reiterada e

uniforme e decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de

Justiça, em suas respectivas áreas de competência, o Decreto 2346, de outubro de 1997,

conferiu ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional a autorização para declarar, mediante

parecer fundamentado, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda, as matérias em relação

às quais é de ser dispensada a apresentação de recursos.

Nesse sentido, merece destaque o Parecer PGFN nº. 492, de 22 de março de

2010317, que orienta os Procuradores da Fazenda Nacional a não interporem recursos contra

que consolida normas de procedimentos a serem observadas pela Administração Pública Federal em razão de decisões judiciais, e dá outras providências, dispõe que: Art. 1º-B. Compete exclusivamente ao Advogado-Geral da União e ao Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão se manifestarem, prévia e expressamente, sobre a extensão administrativa dos efeitos de decisões judiciais proferidas em casos concretos, inclusive ações coletivas, contra a União, suas autarquias e fundações públicas em matéria de pessoal civil da administração direta, autárquica e fundacional. § 1º Os pedidos de extensão administrativa, instruídos com manifestação jurídica, documentos pertinentes e, quando possível, jurisprudência dos Tribunais Superiores, serão submetidos à análise do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão. § 2º A extensão administrativa dos efeitos de decisões judiciais será realizada por meio de Portaria Interministerial do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão. § 3º As autarquias e fundações públicas encaminharão o pedido de extensão administrativa por meio do titular do órgão ao qual estejam vinculadas. § 4º Os procedimentos para o trâmite dos pedidos de extensão serão disciplinados em ato conjunto do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão. Art. 2º Firmada jurisprudência pelos Tribunais Superiores, a Advocacia-Geral da União expedirá súmula a respeito da matéria, cujo enunciado deve ser publicado no Diário Oficial da União, em conformidade com o disposto no art. 43 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Art. 3º À vista das súmulas de que trata o artigo anterior, o Advogado-Geral da União poderá dispensar a propositura de ações ou a interposição de recursos judiciais. 317 Em razão da importância do entendimento externado pela Procuradoria da Fazenda Nacional, destaca-se a

Page 154: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

152

decisões judiciais que se mostrarem consentâneas com os precedentes judiciais formados sob

a sistemática dos julgamentos dos recursos extraordinário e especial repetitivos e também a

não interporem defesa e impugnação quando o pedido formulado pela parte estiver em

consonância com os referidos julgados.

Posteriormente, o art. 19 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, modificada

pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013, autorizou expressamente a aquiescência da

Administração Tributária em relação às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e

pelo Superior Tribunal de Justiça, nos ritos de repercussão geral e dos recursos especiais

repetitivos.

É bom ressaltar que a lei apenas “autorizou” a aquiescência pela Administração,

não impondo em nenhum momento a obrigação de cumprimento das decisões em caráter geral

para todos os administrados na mesma situação.

De igual modo, os §§ 4º, 5º e 7º do referido art. 19 autorizam, desde que

ementa do referido parecer: FORÇA - PERSUASIVA OU VINCULANTE - DOS PRECEDENTES JUDICIAIS DO STF/STJ. DESTINO DOS RECURSOS INTERPOSTOS CONTRA DECISOES FUNDADAS NESSES PRECEDENTES. APRESENTAÇÃO, OU NÃO, PELA PGFN, DE RECURSO E DE CONTESTAÇÃO. RAZÕES DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. REQUISITOS. 1. O precedente judicial, oriundo do STF/STJ, formado nos moldes dos arts. 543-B e 543-C do CPC ostenta uma força persuasiva especial e diferenciada, de modo que os recursos interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem possuem chances reduzidas de êxito. Assim, critérios de política institucional apontam no sentido de que a postura de não mais apresentar qualquer tipo de recurso (ordinários/extraordinários), nessas hipóteses, é a que se afigura como a mais vantajosa, do ponto de vista prático, para a PGFN, para a Fazenda Nacional e para a sociedade. Nessa mesma linha, também não há interesse prático em continuar contestando pedidos fundados em precedentes judiciais formados sob a nova sistemática. 2. Diante da força persuasiva inferior que marca os precedentes judiciais, oriundos do STF/STJ, não submetidos à sistemática prevista nos arts. 543-B e 543-C do CPC, não há parâmetros suficientemente seguros para se afirmar se os recursos interpostos contra as decisões que os aplicarem tendem, ou não, a obter êxito, sendo certo que fatores das mais diversas ordens poderão influenciar/ determinar o resultado do julgamento desses recursos. Assim, razões de política institucional apontam no sentido de que não é conveniente a adoção, pela PGFN, da postura de deixar de interpor qualquer espécie de recurso contra decisões judiciais proferidas em consonância com tais precedentes, já que não se pode antever se a adoção dessa postura traria mais vantagens do que desvantagens. 3. Em se tratando, especificamente, de RE/RESP´s interpostos contra acórdãos proferidos em consonância com jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ, o seu seguimento tem sido repetidamente obstado pelos Presidentes/Vice-Presidentes (de TRF`s e do STJ); daí que, nesses casos, pode-se afirmar, com a segurança necessária, que os recursos extremos interpostos contra essas decisões possuem reduzida viabilidade de êxito, de modo que a PGFN não possui interesse prático em continuar insistindo na sua interposição. 4. De igual modo, também é possível afirmar a baixa utilidade em continuar interpondo agravo regimental contra decisões monocráticas, proferidas por Relatores nos TRF´s, no STJ e no STF que, com respaldo em jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ, seguida pela respectiva Turma, negam seguimento, nos termos do art. 557 do CPC, a recursos (agravos de instrumentos, apelações, RESP´s e RE´s). 5. A aplicação prática das orientações ora sugeridas depende da verificação, pelo Procurador da Fazenda Nacional que atua no caso concreto, quanto ao atendimento dos requisitos listados por este Parecer; ainda como consideração de ordem prática, vale o registro de que a não apresentação, pela PGFN, de contestação/recurso, nas hipóteses sugeridas neste Parecer, deve, sempre, ser precedida de justificativa processual, a ser apresentada administrativamente pelo Procurador da Fazenda Nacional. Disponível em: http://dados.pgfn.fazenda.gov.br/dataset/pareceres/resource/4922010. Acesso em: fev. 2016.

Page 155: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

153

condicionada à prévia orientação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que a Receita

Federal adote em suas decisões proferidas nos processos administrativos tributários os

posicionamentos firmados nos tribunais superiores, o que tende a diminuir a litigiosidade na

referida área. 318

Mais recentemente a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional também editou a

Portaria PGFN nº 502, de maio de 2016, buscando a redução da litigiosidade tributária e a

racionalização da sua atuação em juízo a partir dos impactos decorrentes da vigência do

CPC/2015. De acordo com o referido ato normativo, fica dispensada a apresentação de

contestação, de contrarrazões, de recursos, bem como recomendada a desistência dos já

interpostos, em várias hipóteses, destacando-se aquelas que versarem sobre temas definidos

em sentido desfavorável à Fazenda Nacional pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Superior

Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Superior do Trabalho, sem sede de julgamento de casos

repetitivos, e quando houver súmula do STF em matéria constitucional ou dos demais

tribunais superiores em matéria infraconstitucional.

Interessante ressaltar que o ato normativo não fez referência aos julgamentos do

IRDR pelos tribunais locais e regionais, deixando claro o entendimento de que, pelo menos

nas questões de natureza tributária, tais acórdãos não vincularão a União, num primeiro

momento, já que a Fazenda Nacional utilizará dos instrumentos recursais disponíveis para

submeter a tese jurídica ao reexame do STJ ou do STF.

O Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, considerado um dos maiores

litigantes habituais do Sistema de Justiça no Brasil, também está mudando sua postura para

318 A título de exemplo, cita-se a Solução de Consulta COSIT (Coordenação-Geral de Tributação da Receita Federal) n. 152, de 17 de junho de 2015, publicada no DOU de 23/06/2015, seção 1, p. 41, com a seguinte ementa: EMENTA: CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. CONTRIBUIÇÃO DE 15% SOBRE NOTA FISCAL OU FATURA DE COOPERATIVA DE TRABALHO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 595.838/SP. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 595.838/SP, no âmbito da sistemática do art. 543-B do Código de Processo Civil (CPC), declarou a inconstitucionalidade – e rejeitou a modulação de efeitos desta decisão – do inciso IV, do art. 22, da Lei nº 8.212, de 1991, dispositivo este que previa a contribuição previdenciária de 15% sobre as notas fiscais ou faturas de serviços prestados por cooperados por intermédio de cooperativas de trabalho. Em razão do disposto no art. 19 da Lei nº 10.522, de 2002, na Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 1, de 2014, e na Nota PGFN/CASTF nº 174, de 2015, a Secretaria da Receita Federal do Brasil encontra-se vinculada ao referido entendimento. O direito de pleitear restituição tem o seu prazo regulado pelo art. 168 do CTN, com observância dos prazos e procedimentos constantes da Instrução Normativa RFB nº 1.300, de 20 de novembro de 2012, com destaque, no caso, para os arts. 56 a 59, no que toca à compensação. Disponível em: http://www.normaslegais.com.br/legislacao/solucao-de-consulta-cosit-152-2015.htm. Acesso em: fev. 2016. Importante esclarecer que a Cosit, Coordenação-Geral de Tributação, é um órgão da Receita Federal, cuja principal responsabilidade é responder consultas de cunho tributário por meio das chamadas “Soluções de Consulta”. Suas soluções geram efeito vinculante no âmbito da Administração Tributária não apenas a quem fez a pergunta, mas em relação a todos os contribuintes em situação semelhante.

Page 156: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

154

estender em favor de todos os segurados da Previdência Social as teses jurídicas firmadas em

julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de recurso extraordinário dotado de repercussão

geral319.

O cumprimento dos precedentes em relação à Administração Pública em geral, tal

como exemplificado em relação aos entes federais, depende única e exclusivamente de sua

própria vontade, através de orientações internas movidas exclusivamente por critérios de

conveniência e oportunidade, tendo em vista a ausência de disposição a respeito na

Constituição ou no novo regime de precedentes instituído pelo CPC/2015.

Não se sabe se os referidos critérios adotados pela Administração Pública Federal

também serão estendidos, a partir da vigência do novo CPC, aos efeitos do julgamento do

IRDR. Como se trata de julgamento de tribunal local ou regional de segunda instância, muito

provavelmente a Administração, por critério de conveniência e oportunidade, somente

adequará suas práticas à tese jurídica firmada após o julgamento definitivo pelo Supremo

Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em razão dos recursos que sabidamente

serão interpostos. 320

319 Nesse sentido, destaca-se o Memorando- Circular Conjunto n. 2 do INSS, de 23 de julho de 2015, que determina o cumprimento, no âmbito da Previdência Social, do entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento com repercussão geral, in verbis: (...) Observada a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 664.335, a qual apresentou novo entendimento para a análise do tempo especial de segurados expostos ao agente nocivo ruído e a Nota nº 00006/2015/CGPL/PFE/AGU, solicitamos que sejam observadas as orientações a seguir: a) os casos de exposição do segurado ao agente nocivo ruído, acima dos limites legais de tolerância, a declaração do empregador no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), sobre a eficácia do Equipamento de Proteção Individual (EPI), não descaracteriza o enquadramento como atividade especial para fins de aposentadoria; b) a decisão passa a ter obrigatoriedade para o INSS a contar de 12/02/2015, data da publicação na Ata de Julgamento no Diário da Justiça; c) aplica-se o novo entendimento aos processos pendentes de decisão em 12/02/2015 e requerimentos posteriores, inclusive para o período de atividade laboral anterior a essa data; d) relativamente aos processos indeferidos e em fase de recurso às Juntas de Recursos ou às Câmaras de Julgamento do Conselho de Recurso da Previdência Social, ainda pendentes de julgamento, aplicam-se as orientações contidas acima, considerando que não ocorreu o ato conclusivo da administração e não foi exaurida a esfera administrativa; e) devem ser preservados os atos administrativos já consolidados em última instância. Entretanto, caso haja novo requerimento apresentado pelo segurado, após esse novo entendimento, será analisado à luz da orientação atual contida na IN/INSS/PRES nº 77/15; e f) nos pedidos de revisões administrativas o INSS poderá utilizar os novos critérios de análise, porém não terá efeitos retroativos, devendo os efeitos financeiros ser fixados na data do pedido de revisão-DPR. Disponível em: http://www.alexandretriches.com.br/memorando-circular-conjunto-no-2dirsatdirbeninss/ Acesso em: fev. 2016. 320 Embora não haja determinação ou orientação normativa para que os entes federais possam adequar suas práticas administrativas ao entendimento do precedente judicial, a Portaria n. 487, de 27 de julho de 2016, da Advocacia-Geral da União autoriza expressamente os Advogados da União a reconhecer a procedência do pedido, a abster-se de contestar e de recorrer e a desistir de recursos já interpostos quando a pretensão deduzida ou a decisão judicial estiver de acordo com a tese jurídica definida em acórdão transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário em incidente de resolução de demandas repetitivas, processado nos termos do art. 987 do CPC (art. 2º, inciso V) ou em acórdão transitado em julgado, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso especial em incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 3º, inciso II). Disponível em: www.agu.gov.br. Acesso em: ago. 2016.

Page 157: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

155

Nesse cenário, à míngua de previsão na legislação processual acerca da eficácia

vinculante em relação à Administração Pública, espera-se, ao menos, que seja implementado

um diálogo institucional constante entre os Poderes, em todas as esferas da federação, a fim

de que os entes públicos se conscientizem quanto à necessidade de mudança de postura

administrativa em face dos precedentes judiciais firmados, sobretudo, pelos tribunais

superiores, que detém o papel constitucional de uniformização da interpretação jurídica, para

que as mudanças propostas possam, de fato, mitigar a litigiosidade exacerbada.

2.4.9 Dos recursos cabíveis contra o julgamento do IRDR

O julgamento do IRDR se dará por órgão colegiado definido pelo regimento

interno do tribunal local ou regional.

O art. 987 do novo CPC dispõe que do julgamento de mérito do IRDR caberá o

recurso extraordinário ou o especial, conforme o caso.

2.4.9.1 Dos embargos de declaração

Mesmo que o referido dispositivo legal não tenha mencionado expressamente, do

acórdão proferido no IRDR caberá o recurso de embargos de declaração para esclarecer

obscuridade ou eliminar contradição, suprir omissão sobre ponto ou questão sobre o qual

devia ter se pronunciado o tribunal e, ainda, para corrigir erro material, de acordo com a

previsão do art. 1022, incisos I, II e III, da novel legislação.

O objetivo do referido recurso é apenas o aperfeiçoamento da prestação

jurisdicional, de maneira que é cabível em face de todo e qualquer julgamento do Poder

Judiciário.

2.4.9.2 Da restrição ao cabimento de recurso contra o julgamento, sem resolução do

mérito, do IRDR

O legislador dispôs que o recurso será cabível contra o julgamento de mérito do

IRDR. A contrario sensu, não poderão ser interpostos os recursos extraordinário e especial

em face do acórdão proferido pelo órgão colegiado do tribunal local que rejeitar o incidente

por ausência de seus pressupostos ou em razão da ilegitimidade do requerente.

Com efeito, os recursos extraordinários ou excepcionais são diferentes dos

recursos comuns ou ordinários, porquanto não possuem como fim imediato a tutela do direito

subjetivo das partes litigantes no caso concreto. Ao contrário, tais recursos remetem a questão

decidida aos tribunais superiores, que são responsáveis pela garantia da integridade e

Page 158: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

156

uniformidade do direito federal e da Constituição.

Como as hipóteses de cabimento de tais recursos estão taxativamente previstas na

Constituição de 1988, poderia se entender que a lei ordinária não teria aptidão para

estabelecer novas restrições. Nesse sentido, defende Artur César de Souza321 que a vedação

legal ao cabimento do recurso extraordinário e especial contra o julgamento, sem resolução de

mérito, do IRDR não estaria de acordo com a Constituição, que não veda a interposição dos

referidos recursos contra julgamentos meramente terminativos.

Não obstante, entende-se que a lei ordinária pode sim estabelecer restrições ao

cabimento de recursos.

Isso porque, respeitado o posicionamento em contrário322, o duplo grau de

jurisdição não constitui garantia constitucional.

A propósito, o professor Humberto Theodoro Jr. entende que o duplo grau “não

chega a ser uma garantia constitucional que, em caráter absoluto, tenha de funcionar a todo

instante e em qualquer procedimento” 323.

Eduardo Arruda Alvim e Cristiano Zanin Martins324 também sustentam que o

legislador pode restringir o cabimento de recursos no âmbito da instância ordinária sem que

isso configure violação ao texto Constitucional, devendo ser observado, em qualquer caso, os

princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a não eliminar a possibilidade de

controle dos atos estatais.

De igual modo, segundo o entendimento já sufragado pelo Supremo Tribunal

321SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 162. 322 Em brilhante obra sobre o tema, Marina Santos defende, à luz do processo justo idealizado pela Constituição de 1988, que o duplo grau de jurisdição é sim garantia fundamental de efetividade do processo, abrindo à doutrina brasileira uma oportunidade para a revisitação da temática e aprofundamento crítico do posicionamento jurisprudencial. Para Marina Santos, “o Estado Democrático de Direito está assentado em um modelo constitucional que exige a busca pela efetividade do processo, e esta não prescindirá do asseguramento tanto do controle da atividade estatal quanto da construção democrática dos direitos. A garantia do duplo grau de jurisdição constitui, nestes termos, pressuposto inafastável de liberdade e de democracia no processo civil contemporâneo”. (in SANTOS, Marina França. A garantia constitucional do duplo grau de jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 166) 323 THEODORO JR., Humberto. O processo civil brasileiro: no limiar do novo século. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 192. 324 ALVIM, Eduardo Arruda; MARTINS, Critiano Zanin. Apontamentos sobre o sistema recursal vigente no direito processual civil brasileiro à luz da lei 10.352/2001. In: NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 137.

Page 159: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

157

Federal325, a lei ordinária pode suprimir ou vedar o cabimento de recursos em determinadas

situações, sobretudo, nos casos de julgamentos meramente terminativos, desde que justificada

a restrição pelo princípio da razoabilidade, pois não existe a garantia constitucional do duplo

grau de jurisdição326.

No caso, eventual recurso extraordinário interposto contra o julgamento

terminativo do IRDR não traria nenhuma utilidade ao microssistema de resolução das

demandas repetitivas, mas apenas causaria engessamento e demora na tramitação dos

processos suspensos. Melhor seria que outro incidente fosse instaurado o quanto antes com os

defeitos formais já corrigidos ou superados.

Assim, não ofende a Constituição a interpretação de que não cabem o recurso

extraordinário e o recurso especial contra o julgamento, sem resolução do mérito, do IRDR.

2.4.9.3 Do cabimento do recurso especial e do extraordinário

Do julgamento do mérito do IRDR caberá, por sua vez, o recurso especial ou o

extraordinário, conforme a natureza da questão de direito solucionada e de acordo com as

pressupostos constitucionais dos incisos III dos art. 105 e art. 102, respectivamente, da

Constituição de 1988.

325 O Supremo Tribunal Federal tem assentado que não há um direito ao duplo grau de jurisdição, salvo nos casos expressamente garantidos pela Constituição, como, por exemplo, o do recurso ordinário constitucional, que devolve a matéria à instância imediatamente superior. (In: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 444) 326 Sobre a possibilidade de restrições ao cabimento de recursos pela lei ordinária, também merece transcrição trecho de substancioso voto proferido pelo então Ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal: (...) Tudo isso me conduziu - sem negar-lhe a importância, mormente como instrumento de controle – à conclusão de que a Constituição - na linha de suas antecedentes republicanas - efetivamente não erigiu o duplo grau de jurisdição em garantia fundamental. Certo, não desconheço ser ele quase universalmente um princípio geral do processo. Daí,a previsão constitucional de Tribunais cuja função - básica nos de segundo grau (v.g, art. 108, II), e extraordinária, nos Superiores (arts. 105, II, e 121, § 4º, III a V) e até no Supremo (art. 102, II) - é a de constituir-se em órgão de recursos ordinários. Entretanto, não só a Carta Política mesma subtraiu do âmbito material de incidência do princípio do duplo grau as numerosas hipóteses de competência originária dos Tribunais para julgar como instância ordinária única, mas também, em linha de princípio, não vedou à lei ordinária estabelecer as exceções que entender cabíveis, conforme a ponderação em cada caso, acerca do dilema permanente do processo entre a segurança e a presteza da jurisdição. Essa convicção me levou duas vezes - esta é a terceira - a negar estatura constitucional ao duplo grau de jurisdição e até à regra menor do duplo exame: a primeira, no voto como relator da ADInMC 675, DJ 20.6.97 - vencido por outros motivos -, e a segunda, quando, com o respaldo da Primeira Turma, neguei força de garantia constitucional à embargabilidade das decisões das ações penais originárias, que não as do Supremo Tribunal (HC 71.124, 1ª T., 28.6.94, Pertence, DJ 23.9.94). Com a reserva, que entendo cabível, do exame, em cada hipótese, da razoabilidade da exclusão legal do recurso ordinário - continuo persuadido desse entendimento, isto é, de que a Constituição, quando não o repila ela mesma, não garante às partes o duplo grau de jurisdição. STF, RHC 79785 RJ, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Julgamento: 28/03/2000, Tribunal Pleno, Publicação: DJ 22-11-2002 PP-00057. Informativo n. 187. Brasília, 1º a 5 de maio de 2000. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: fev.2016.

Page 160: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

158

Scarpinella Bueno327 suscita fundada dúvida sobre a constitucionalidade da

previsão do cabimento dos referidos recursos contra o julgamento do IRDR. Tais recursos

dependem, de acordo com a Constituição, de uma “causa decidida em única ou última

instância”. Segundo o autor, a compreensão do IRDR como “causa” geraria problemas de

ordem constitucional, pois apenas a Constituição dos Estados e a Constituição de 1988 podem

criar causa de competência originária dos tribunais locais ou regionais.

Todavia, conforme já se demonstrou ao longo da pesquisa, entende-se que o

IRDR, apesar do nome, possui a natureza jurídica de um “processo objetivo”, que, apenas

para ser instaurado pressupõe a existência de processo (lide) sobre a questão repetitiva em

tramitação no tribunal. O procedimento e o julgamento do IRDR são dotados de requisitos e

efeitos próprios, o que lhes conferem autonomia processual em relação ao caso modelo

originário.

Daí o entendimento de que o IRDR pode ser enquadrado no termo constitucional

de “causa decidida”, já que a questão de direito repetitiva será definida, em procedimento

autônomo, com eficácia erga omnes e vinculante para toda a área de competência do tribunal.

Interpretação contrária esvaziaria o propósito do IRDR, tornando-o equivalente ao antigo

incidente de uniformização de jurisprudência.

Admitir-se a restritiva interpretação do termo “causa decidida” burlaria, ainda, o

papel constitucional atribuído ao STF e ao STJ de uniformização da matéria constitucional e

da lei infraconstitucional, impedindo que os referidos tribunais superiores analisassem a tese

jurídica definida no IRDR.

Ademais, conforme lição de Ticiano Alves e Silva, “causa decidida” é conceito

processual que pode ser conformado pelo legislador infraconstitucional, como fez o

CPC/2015328, de modo que não se vislumbra inconstitucionalidade quanto à previsão do

cabimento dos recursos excepcionais em face do julgamento de mérito do IRDR.

Com a interposição do recurso especial ou extraordinário, o tribunal superior

competente poderá determinar, de ofício ou mediante requerimento, a suspensão de todos os

processos em tramitação no território nacional, bastando que exista a multiplicidade de ações

sobre a mesma questão de direito em tramitação em mais de um Estado ou região.

327 BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 631-632. 328 SILVA, Ticiano Alves e. Os embargos de declaração no novo Código de Processo Civil. In: MACEDO, Lucas Buril et al (Orgs.). Processo nos Tribunais e Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. Coleção novo CPC – Doutrina selecionada. Vol. 06. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 661-684.

Page 161: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

159

A propósito da suspensão dos processos pelos tribunais superiores, a lei n. 13.256,

de 04 de fevereiro de 2016, suprimiu o §10º do artigo 1.035 e o §5º do artigo 1.037 do CPC.

Os referidos dispositivos estabeleciam um marco temporal de duração da suspensão de

processos em todo território nacional, o que poderia induzir maior agilidade dos tribunais

superiores no julgamento dos recursos repetitivos, impedindo que tal suspensão se eternizasse

pela mora ao julgar os recursos.

Em face da revogação dos prazos limites, o sistema de julgamento de recursos

pelos tribunais superiores admitirá, sem qualquer sanção ou filtro, a situação de suspensão de

centenas de milhares de processos por prazo indeterminado, inviabilizando as garantias do

devido processo constitucional e do acesso à justiça. Sem olvidar, ainda, de que isto poderá

causar uma inconstitucional discricionariedade dos tribunais superiores em escolher quando

determinadas temáticas deverão ser dirimidas e quando deverão ser mantidas em suspensão,

pois a referida lei também flexibilizou a ordem cronológica como critério obrigatório para o

julgamento dos processos.

Destaca-se, ainda, que, por disposição especial da lei processual, os referidos

recursos serão recebidos obrigatoriamente no efeito suspensivo, de modo que a tese jurídica

fixada no julgamento do IRDR somente será aplicada aos processos em tramitação se não

houver a interposição de recursos para os tribunais superiores.

Os recursos excepcionais permitirão aos tribunais superiores sanarem, em prol da

isonomia e da segurança jurídica, o vício da incompletude do IRDR, estendendo a eficácia

vinculante da tese jurídica sobre matéria constitucional ou infraconstitucional para todo o

território nacional, inclusive em relação aos processos em tramitação nos juizados especiais,

além de possibilitar a revisão da interpretação jurídica definida pelo incidente.329

Nesse contexto, para facilitar o acesso ao Supremo Tribunal Federal, que tem

papel fundamental na uniformização da interpretação constitucional, a novel legislação previu

a presunção da repercussão geral do tema decidido no julgamento do IRDR.

A repercussão geral constitui exigência da Constituição para a admissibilidade do

recurso extraordinário, devendo a questão decidida transcender os interesses subjetivos das

partes do processo modelo originário. Como o IRDR possui a natureza jurídica de um

processo objetivo com a finalidade de estabelecer tese jurídica com eficácia vinculante e erga 329 THEODORO JR., Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 749.

Page 162: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

160

omnes, a lei reconheceu que as temáticas decididas terão relevância jurídica.

Nas palavras de Humberto Theodoro Jr., “estará o recorrente dispensado de buscar

outros argumentos para demonstrar, in concreto, a presença da repercussão geral já

reconhecida pelo próprio legislador”330.

Finalmente, quanto à legitimidade recursal, entende-se que deverá ser a mais

ampla possível. O recurso poderá ser interposto pela parte do processo modelo originário do

incidente, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público, seja como parte ou como fiscal

da ordem jurídica, nos termos da regra geral do art. 996 do novo CPC.

A Defensoria Pública, como legitimada para requerer a instauração do IRDR,

também poderá recorrer do julgamento de mérito.

De igual modo, as partes dos processos suspensos e que serão afetadas

diretamente pela eficácia vinculante da tese jurídica definida no IRDR possuem legitimidade

para interposição de recurso, sob pena de violação ao direito fundamental de participação no

processo.

Nesse mesmo sentido, a interpretação dada pelo Enunciado n. 94 do Fórum

Permanente dos Processualistas Civis, segundo a qual a “parte que tiver o seu processo

suspenso nos termos do inciso I do art. 982 poderá interpor recurso especial ou extraordinário

contra o acórdão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas”331.

A amplitude da legitimidade recursal no caso do IRDR também se evidencia na

atuação do amicus curiae, que poderá interpor tanto os embargos de declaração quanto os

recursos para os tribunais superiores contra o acórdão que julgar o incidente, conforme norma

especial do § 3º do art. 138 do NCPC.

2.4.10 A possibilidade de revisão da tese jurídica

O art. 986 do novo CPC prevê a possibilidade de revisão da tese jurídica firmada

no julgamento definitivo do IRDR.

A referida previsão legal é fundamental para assegurar a coerência e atualidade

330 THEODORO JR., Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 748. 331 NUNES, Dierle José Coelho. SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 396.

Page 163: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

161

aos precedentes judiciais de modo que possam ser revistos quando se alterarem as

circunstâncias fáticas ou jurídicas subjacentes ao julgamento do incidente. Como afirma

Scarpinella Bueno (2015, p. 630), “é assim com a edição de novas leis e não haveria razão

para ser diverso com os “precedentes judiciais””, os quais também possuem caráter

normativo.

Em outras palavras, segundo Artur César de Souza, o julgamento do IRDR está

sujeito à “cláusula rebus sic stantibus, tendo eficácia enquanto no âmbito social, cultural e

econômico for legítima a tese jurídica adotada no incidente”332.

Não obstante o silêncio da lei, por interpretação lógico-sistemática, o

procedimento da revisão deve ser equivalente ao adotado para a formulação da tese jurídica,

assegurando-se a ampla divulgação, participação de amicus curiae, realização de audiências

públicas, etc.

Quanto à legitimidade, a tese jurídica poderá ser revista pelo próprio tribunal, de

ofício, ou mediante requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública –

legitimados nos termos do art. 977, inciso III. O pedido de revisão poderia se basear em

mudança superveniente do direito, em decorrência de reforma legislativa ou constitucional,

viabilizando a reanálise da questão jurídica repetitiva. O julgamento se aplicará apenas aos

processos ainda em curso e aos futuros.

As partes do caso modelo, dos processos suspensos e, inclusive, aquelas das ações

ajuizadas após o julgamento do IRDR, embora sejam afetadas pela tese jurídica fixada, não

possuem legitimidade específica para requerer a instauração do procedimento de revisão.

Com efeito, a ausência de legitimidade das partes caracteriza violação à

participação democrática no processo e contribuirá para o engessamento da jurisprudência, já

que são elas que são afetadas diretamente pela aplicação da norma e que, portanto, teriam real

interesse de apresentar novos fundamentos ou comprovar mudanças supervenientes dos fatos

ou da legislação que pudessem justificar nova análise da questão de direito.

Scarpinella Bueno333 sustenta que, nesse ponto, o dispositivo legal padece também

de inconstitucionalidade formal, uma vez que no substitutivo apresentado na Câmara dos

Deputados havia previsão expressa da legitimidade das partes para o pedido de revisão da tese

jurídica, o que foi suprimido do texto somente na fase de revisão pelo Senado Federal antes 332SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015, p. 163. 333BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 630.

Page 164: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

162

do envio à sanção presidencial. A revisão de redação alterou, portanto, substancialmente o

conteúdo da norma, pois retirou das partes a legitimidade para requerer a revisão da tese

jurídica. E, logo a seguir, o referido jurista conclui:

Não há como, com o devido respeito, tolerar esta prática que representa verdadeira subversão do processo legislativo. Destarte, é o caso de sustentar que as partes também têm legitimidade para o pedido de revisão, nos termos do texto aprovado pelo Senado Federal na sessão de 17 de dezembro de 2014, considerando-se não escrita, porque formalmente inconstitucional, a restrição contida no art. 986.334

De todo o modo, como a lei prevê a legitimidade do tribunal para instaurar de

ofício o procedimento de revisão, nada impede que as partes o provoquem diretamente pelo

direito constitucional de petição. O tribunal poderá ou não encampar os fundamentos

apresentados pelas partes para determinar a abertura do procedimento. Da mesma forma, as

partes poderão provocar a Defensoria Pública e o Ministério Público.

Nesse sentido também é o enunciado n. 473 do Fórum de Processualistas Civis,

segundo o qual “a possibilidade de o tribunal revisar de ofício a tese jurídica do incidente de

resolução de demandas repetitivas autoriza as partes requerê-la”335.

A possibilidade de revisão da tese jurídica a qualquer tempo, inclusive de ofício

pelo tribunal, indica que não é cabível a propositura de ação rescisória para a modificação do

acórdão proferido no IRDR. Ao contrário, a previsão legal corrobora o entendimento acerca

da natureza jurídica de um “processo objetivo”.

O IRDR não se presta a solucionar determinada lide ou realizar a subsunção dos

fatos à norma jurídica, o que ocorrerá em cada demanda pelo respectivo juiz natural. O

incidente coletivo apenas define a tese jurídica (ratio decidendi) sobre determinada questão de

direito, a qual será dotada de eficácia erga omnes e vinculante no âmbito de competência do

respectivo tribunal.

Finalmente, é certo advertir que o procedimento de revisão será prescindível

quando a mesma temática for objeto de súmula em sentido contrário dos tribunais superiores

ou de julgamento superveniente de recurso extraordinário com repercussão geral e recurso

especial repetitivo. O pronunciamento dos tribunais superiores se sobrepõe ao do tribunal 334 BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 631. 335 NUNES, Dierle José Coelho. SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 396.

Page 165: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

163

local, de maneira que os juízes poderão afastar, no caso concreto, a tese jurídica firmada no

IRDR, demonstrando a superação daquele precedente sem que incorra em descumprimento do

efeito vinculante.

Page 166: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

164

CAPÍTULO 03

O MODELO CONSTITUCIONAL DO PROCESSO: O DIREITO

FUNDAMENTAL À PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA

3.1 Introdução

A compreensão e aplicação da ciência do Direito estão inseridas atualmente num

contexto de ampla constitucionalização, isto é, de adequação à supremacia da Constituição em

todas as suas vertentes. Um movimento que não é privilégio do sistema jurídico brasileiro,

mas que coincide nos Estados democráticos contemporâneos.

Para Miguel Carbonell336, esse movimento chamado de

“neoconstitucionalismo” pretende explicar os textos constitucionais surgidos após as barbáries

da Segunda Guerra Mundial, demonstrando que não se limitam apenas a estabelecer

competências ou separar os poderes constituídos, mas que possuem normas vinculativas que

condicionam a própria atuação do Estado.

A constitucionalização do Direito está ligada, nesse contexto, diretamente à

expansão normativa das Constituições cujo conteúdo material e valorativo se irradia por todo

o ordenamento jurídico, deixando de ser mero enunciado político programático para adquirir

força cogente e imperativa em relação aos seus destinatários.

Nas palavras de Eduardo Cambi,

(...) o reconhecimento da força normativa da Constituição marca uma ruptura com o Direito Constitucional clássico, onde se visualizavam normas programáticas que seriam simples declarações políticas, exortações morais ou programas futuros e, por isto, destituída de positividade ou de eficácia vinculativa.337

Com efeito, as Constituições democráticas retiram de seu próprio conteúdo

normativo uma supremacia que se manifesta na supralegalidade das suas regras e princípios e

na imutabilidade relativa dos seus preceitos, assim dotados de uma superioridade concreta na

própria vida social e na aplicação do Direito338.

336 CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo: elementos para uma definição. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro; PUGLIESI, Marcio (coords.). 20 anos da Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 198. 337 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Papnótica, Vitória, ano 1, n.6, fev. 2007, p.7. 338 A supremacia da Constituição é destacada na Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, para o qual “a ordem

Page 167: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

165

Como consequência do caráter normativo, a constitucionalização repercute sobre

a atuação dos três poderes da República e das relações privadas, influindo diretamente em

suas decisões, que jamais poderão contrariar ou, até mesmo, descumprir as determinações

constantes da Constituição. Ou seja, todos os atos, sejam eles do Poder Executivo, do

Legislativo ou do Poder Judiciário, devem se adequar e precisam se conformar com a Lei

Maior, que é o parâmetro, o valor supremo, o nível mais elevado do direito positivo.

No Brasil, essa nova concepção da Constituição e da sua força normativa se deu a

partir da promulgação da Carta de 1988, que efetivou a transição do regime ditatorial para o

paradigma do Estado Democrático de Direito, com ampla constitucionalização dos direitos

fundamentais.

Dentro dessa perspectiva, o direito processual não pode ter tratamento diferente

dos demais ramos da ciência do Direito e está hoje totalmente constitucionalizado no campo

de seus fundamentos e de sua estrutura. Os poderes de acesso à justiça, da competência, da

independência judicial, o direito à participação na construção da tutela jurisdicional integram

as garantias fundamentais proclamadas pela Constituição democrática de 1988.

Conforme lição de Scarpinella Bueno339, “é a partir da Constituição Federal que

se deve buscar compreender o que é, para que serve e como ‘funciona’ o direito processual

civil”. A Constituição Federal e o ‘modelo constitucional do direito processual civil’ dela

extraível são o eixo sistemático (consciente) do estudo do direito processual civil.

Em toda sua extensão o processo se fundiu no programa tutelar idealizado pela

ordem jurídica constitucional. As normas procedimentais criadas pelo legislador ordinário,

por sua vez, não podem ser interpretadas de forma isolada, pois se viram obrigadas a conviver

com a supremacia dos preceitos e garantias da Lei Maior.340

Nas palavras de Álvaro de Oliveira,

jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de dependência que resulta do facto de a validade de uma norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora”. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976, p. 310) 339 BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. v.1. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85-86. 340 THEODORO JR., Humberto. Direito Processual Constitucional. Revista Estação Científica. Juiz de Fora, v. 01, n. 04, out-nov. 2009, p. 30.

Page 168: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

166

(...) o processo, na sua condição de autêntica ferramenta de natureza pública indispensável para a realização da justiça e da pacificação social, não pode ser compreendido como mera técnica, mas, sim, como instrumento de valores e especialmente de valores constitucionais (...)341

Assim, em virtude do princípio da supremacia da Constituição, as novas técnicas

de julgamento voltadas à celeridade processual e à padronização decisória não podem, de

modo algum, contrariar as regras e princípios traçados pela ordem constitucional e tampouco

estabelecer um modelo processual dotado de características próprias, mitigadoras das

garantias constitucionais, para lidar com a litigiosidade repetitiva.

Sob tal ponto de vista, mister se faz identificar o modelo constitucional do

processo civil brasileiro, cuja matriz servirá de parâmetro imprescindível para a conformidade

da legislação processual e, outrossim, para a atuação do Poder Judiciário na interpretação e

aplicação das novas técnicas de julgamento previstas no CPC de 2015.

3.2 A teoria do processo como relação jurídica na visão de Bulow, Chiovenda e

Liebman: vínculo de sujeição das partes ao juiz e a necessidade de sua superação

Ao longo da história da ciência do direito processual, várias teorias surgiram e

tentaram definir, sem sucesso, a natureza jurídica do processo. 342

Não constituindo a evolução histórica das teorias do processo objeto central da

presente pesquisa, a análise crítica se dará a partir da clássica teoria da relação jurídica de

Bulow, aprimorada por diversos juristas italianos, entre os quais Chiovenda e Liebman, cuja

doutrina influenciou sobremaneira o direito brasileiro e a teoria instrumentalista do processo.

341 ÁLVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 252. 342 A propósito, destacam-se as teorias do processo como contrato e como quase-contrato que tiveram como principais precursores, respectivamente, Pothier, em 1800, e Savigny e Guényvau, em 1850. Pothier entendia que o processo era um contrato que se firmava entre os litigantes a partir do comparecimento espontâneo das partes em juízo para a solução do conflito. Conforme destacado pelo professor Rosemiro Pereira Leal, essa teoria revelou-se inadequada para explicar a natureza jurídica do processo, pois, já no século XVIII, o juiz não precisava de prévio consenso das partes para tornar coativa a sentença. A teoria do processo como quase-contrato também foi buscar nas fontes romanas os seus fundamentos, tendo Savigny insistido que o processo deveria ser enquadrado na esfera do direito privado, mas que não seria tipicamente um contrato já que o consentimento das partes não era inteiramente livre. A parte que ingressava em juízo já consentia que a decisão pudesse ser favorável ou desfavorável, ocorrendo um nexo entre o autor e o juiz, ainda que o réu não aderisse espontaneamente ao debate da lide (In: LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 87-88). As referidas teorias foram superadas na medida em que incorreram em erro metodológico ao enquadrar o processo e a jurisdição nas categorias de direito privado. Outros motivos também se destacam: imposição de obstáculos à independência da magistratura; dificuldade na enumeração de elementos conceituais; atenuação do caráter jurisdicional do processo; possibilidade de arbitrariedade no exercício da jurisdição. (In: FRANCO, Marcelo Veiga. Processo Justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 1-2).

Page 169: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

167

Em 1868, o alemão Oskar von Bulow publicou célebre obra intitulada “Das

exceções processuais e dos pressupostos processuais”343, que se constitui num marco do

estudo científico do processo.

Nas palavras de Bedaque,

O direito processual passou a ser estudado cientificamente a partir da polêmica iniciada em 1856, entre Windscheid e Muther, a respeito do direito de ação, bem como da obra de von Bülow (1868). Encerrou-se a fase sincrética, em que o processo era tratado como mero apêndice do direito material, iniciando-se a fase autonomista, marcada pela ideia separatista. Aqui, a grande preocupação dos estudiosos do novo ramo do Direito era determinar seus fundamentos e princípios. A técnica passou a imperar, e era considerada valor quase absoluto, acima até mesmo do próprio direito material, que foi relegado a plano inferior. A observância das regras processuais era mais importante que a solução da questão substancial.344

Os estudos de Bulow romperam com as concepções privatísticas do processo,

tendo como grande mérito a sistematização da relação jurídica processual ordenadora da

conduta dos sujeitos do processo em suas ligações recíprocas.

Bulow defendeu a existência de uma relação jurídica processual de direito

público, distinta da relação de direito material, que se estabelece entre as partes e o juiz. A

relação processual se distinguiria da relação de direito material por três aspectos: a) pelos seus

sujeitos (autor, réu e o Estado-juiz); b) pelo seu objeto (a prestação jurisdicional); e c) pelos

seus pressupostos (os pressupostos processuais).345 A relação jurídica processual seria

progressiva e dinâmica, pois se desenvolve e se desdobra gradualmente, num caminhar para

frente na busca da tutela jurisdicional, ao contrário da relação jurídica de direito material, que

é perfeita e acabada desde o seu surgimento. 346

Com efeito, não se trata de uma simples relação de coordenação ou de

cooperação, mas de poder e sujeição, predominando o interesse público na resolução do litígio

sobre os interesses conflitantes. Ou seja, caracteriza-se por um vínculo de subordinação entre

as partes e pelo caráter de exigibilidade da prestação demandada perante o Estado Juiz.

343 BULOW, Oskar von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005. 344 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 19. 345 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINARMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 278. 346 BULOW, Oskar von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005, p. 06-07.

Page 170: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

168

Para Cândido Rangel Dinamarco347, a teoria do processo como relação jurídica

teve o mérito de suplantar a arcaica visão do processo como pura sequência de atos, sem

cogitações de um específico vínculo de direito entre seus sujeitos.

O procedimento é considerado, nesse contexto, apenas o meio extrínseco pelo

qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo, sendo a sua realidade fenomenológica

perceptível. Enfim, o processo se constitui a partir da relação jurídica e do procedimento,

visto como sua exteriorização, aspecto meramente formal.

A concepção do processo como relação jurídica ainda predomina na elaboração

dos códigos e leis processuais, tendo, inclusive, sido aprimorada na Itália por Giuseppe

Chiovenda e Enrico Liebman, além de outros renomados processualistas348.

A propósito, em conferência na Universidade de Bolonha, no ano de 1903,

Chiovenda, considerado discípulo de Bulow, iniciou a caminhada do processualismo

moderno.

Para Chiovenda349, o processo é um complexo de atos coordenados ao objetivo da

atuação da vontade da lei por parte dos órgãos da jurisdição estatal. E, logo a seguir, o mestre

italiano conclui que o processo não é uma unidade apenas porque os diversos atos, de que se

compõe, se associam com um objetivo comum. Essa unidade é característica de qualquer

empresa, ainda que não jurídica, a exemplo de uma obra de arte, a construção de um edifício,

uma experiência científica. O processo, ao contrário, é unidade jurídica, uma empresa

jurídica, uma relação jurídica350.

De igual modo, Liebman conceituou o processo a partir da sua tessitura jurídica

interna enquanto relação jurídica processual (rapporto giuridico processuale). A partir do

momento da instauração do processo, o órgão investido da autoridade para presidi-lo e as

partes nele empenhadas encontram-se numa relação jurídica especial que cria para cada um

deles consequências jurídicas relevantes e recíprocas. Trata-se de uma relação jurídica de

natureza processual distinta da relação de direito substancial. Ela se assenta na autoridade que

tem o órgão judiciário para emitir provimentos com eficácia perante as partes. O conteúdo

dessa relação jurídica processual seria a potestade do órgão jurisdicional, direitos subjetivos,

347 DINARMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 27. 348LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 88. 349 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1965, p. 37. 350 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1965, p. 55.

Page 171: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

169

ônus e sujeição das partes. 351

O processo, segundo a teoria de Liebman, seria um instrumento para o exercício

da jurisdição, uma vez que é mediante o processo e segundo as premissas da relação jurídica

processual que o Estado juiz julga as lides que lhe são apresentadas. O critério adotado por

Liebman para definir o processo como instrumento da jurisdição é puramente teleológico,

pelo qual o processo se caracteriza como instrumento para a positivação do poder

jurisdicional.

A teoria da relação jurídica é ainda adotada no Brasil, tendo inspirado a legislação

processual, especialmente o Código Buzaid de 1973.

A referida teoria recebeu contundente crítica do professor Aroldo Plínio

Gonçalves, defensor dos estudos de Fazzalari. Ao se admitir o processo como relação jurídica,

ter-se-ia que admitir, consequentemente, que ele é um vínculo constituído entre sujeitos em

que um pode exigir do outro uma determinada prestação, ou seja, uma conduta determinada.

Seria o mesmo que se conceber que há direito subjetivo de um dos sujeitos processuais sobre

a conduta do outro, e que há direitos das partes sobre a conduta do juiz, que, então,

compareceria como sujeito passivo de prestações, ou, ainda, que há direitos do juiz sobre a

conduta das partes que, então, seriam os sujeitos passivos da prestação, em uma relação de

verdadeira subordinação processual. 352

Esse vínculo de sujeição acaba por atribuir ao processo um caráter que se

distancia do princípio democrático da efetiva participação das partes em igualdade, essencial à

definição do contraditório dinâmico, não meramente estático ou formal. Em outras palavras,

as partes estão vinculadas ao controle do juiz que, por sua vez, é dotado de amplos poderes no

processo, ostentando a exclusividade na construção do provimento jurisdicional, pois sua

atuação substitui a atividade das partes pela sua vontade.353

A teoria da relação jurídica distancia-se, enfim, da visão discursiva e

comparticipativa do processo para a obtenção do provimento jurisdicional.

Embora o CPC de 2015 também adote na sua essência o conceito de processo a

351 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 40-41. 352 GONÇALVES. Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 97. 353 FRANCO, Marcelo Veiga. A evolução do contraditório: a superação da teoria do processo como relação jurídica e a insuficiência do processo como procedimento em simétrico contraditório. Revista do Programa de Pós-graduação em Direito da UFBA, Salvador, vol. 22, n. 24, 2012, p. 181.

Page 172: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

170

partir da teoria da relação jurídica, é inegável que, diante da Constituição democrática de

1988 e do capítulo da novel legislação destinado às normas fundamentais do processo, os

institutos estão nitidamente preordenados numa lógica constitucionalizada. Vale dizer, a nova

legislação intenta demonstrar que os institutos processuais devem ser interpretados e

aplicados à luz das garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição.

3.3 O processo na teoria de Elio Fazzalari: o direito de participação das partes em

simétrica paridade para a legitimação do provimento

A teoria do italiano Elio Fazzalari desenvolvida em 1978 adquire, diante das

Constituições democráticas, proeminência na evolução histórica das mencionadas concepções

teóricas do que seja o processo na sua essência.

O estudo de Fazzalari intenta superar a teoria da relação jurídica e a visão da

existência de um vínculo de sujeição e submissão dos sujeitos envolvidos no processo,

demonstrando a importância fundamental da plena participação das partes, em simétrica

paridade, na construção do provimento jurisdicional como fator de legitimação da autoridade

estatal exercida no processo.

A propósito, importante citar as palavras do professor Aroldo Plínio Gonçalves

acerca do “confronto” com a teoria da relação jurídica:

(...) o conceito de relação jurídica é o de vínculo de exigibilidade, de subordinação, de supra e infra-ordenação, de sujeição. Uma garantia não é uma imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamente oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição. Garantia é liberdade assegurada. Se o contraditório é garantia de simétrica igualdade de participação no processo, como conciliá-lo com a categoria da relação jurídica? Os conceitos de garantia e de vínculo de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos. O processo como relação jurídica e como procedimento realizado em contraditório entre as partes não se encontram no mesmo quadro, e não há ponto de identificação entre eles que permita sua unificação conceitual. 354

Daí a importância da abordagem da referida teoria, destacando a distinção entre

processo e procedimento e a visão do contraditório como elemento estruturante do processo,

segundo Fazzalari e o professor Aroldo Plínio Gonçalves, precursor no Brasil dos estudos da

teoria do referido mestre italiano.

354 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 132.

Page 173: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

171

Os processualistas mineiros Carlos Henrique Soares e Ronaldo Brêtas355 afirmam

que a teoria elaborada por Fazzalari deve ser denominada de estruturalista, porque trata o

processo como procedimento que se desenvolve dentro da estrutura dialética, sendo o

contraditório um elemento estruturante do conceito de processo.

O procedimento é considerado, na teoria de Fazzalari, uma sequencia de normas,

atos e posições subjetivas, que se encadearão até a realização do ato final (o provimento), na

qual a norma precedente – que estabelece uma conduta valorada como lícita ou devida – é

pressuposto para realização da consequente. Ou seja, caracteriza-se por uma conexão

normativa preparatória do ato estatal. A validade e legitimidade do provimento final

dependem, nesse contexto, da validade e da eficácia dos atos que compõem o procedimento.

Para Fazzalari,

(...) a estrutura do procedimento se obtém quando se está diante de uma série de normas (até a reguladora de um ato final, frequentemente um provimento, mas pode-se tratar também de um simples ato), cada uma das quais reguladora de uma determinada conduta (qualificando-a como direito ou obrigação), mas que enuncia como pressuposto da sua própria aplicação, o cumprimento de uma atividade regulada por uma outra norma da série.356

O procedimento não seria, portanto, a mera exteriorização fenomenológica do

processo, conforme a visão instrumentalista da teoria da relação jurídica processual.

Em relação aos provimentos, Fazzalari denomina-os de atos com os quais os

órgãos do Estado emanam, em qualquer âmbito de sua competência, disposições imperativas.

Os órgãos estatais são entendidos de forma ampla como os que legislam, que governam, ou

aqueles que entregam a justiça. O provimento de qualquer órgão estatal se constitui,

exatamente, na conclusão de um procedimento, de modo que a lei não reconhecerá validade e

legitimidade ao provimento, se ele não for precedido da série de atividades preparatórias que a

própria lei estabelece.

É a partir das noções de procedimento e de provimento final que Fazzalari alcança

a definição da essência do processo. Para o mestre italiano, o processo é, na verdade, uma das

espécies do procedimento (visto como gênero), distinguindo-se fundamentalmente pelo

tratamento dispensado aos partícipes que sofrerão os efeitos do provimento final, e que, por

355 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias; SOARES, Carlos Henrique. Manual Elementar de Processo Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 103. 356 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 113-114.

Page 174: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

172

isso, devem participar efetivamente do procedimento em posição de simétrica paridade.

Nas palavras de Fazzalari357, “o processo é um procedimento do qual participam

aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em contraditório

e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades”.

A participação em contraditório dos interessados permite que existam outros tipos

de processos além do jurisdicional, como o administrativo e legislativo. Assim, também

poderia se falar em espécies de processos: processo administrativo, em que se desenvolve a

atividade da Administração; processo legislativo, em que se desenvolve a atividade

legislativa; processo jurisdicional, em que se desenvolve a atividade do Estado de fazer a

justiça e aplicar o direito por meio de seus juízes358.

A gênese do processo decorre, portanto, do procedimento realizado em

contraditório concebido a partir da plena participação das partes em simétrica paridade e em

uma estrutura dialético-discursiva.359

Sobre o tema, importante destacar a lição do professor Aroldo Plínio Gonçalves,

para o qual, na teoria de Fazzalari, a participação em contraditório das partes interessadas na

formação do provimento seria o marco distintivo fundamental entre procedimento e processo:

(...) o processo é uma espécie do gênero procedimento, e, se pode ser dele separado é por uma diferença específica, uma propriedade que possui e que o torna, então, distinto, na mesma escala em que pode haver distinção entre gênero e espécie. A diferença específica entre o procedimento em geral, que pode ou não se desenvolver como processo, e o procedimento que é processo, é a presença neste do elemento que o especifica: o contraditório. O processo é um procedimento, mas não qualquer procedimento; é o procedimento de que participam aqueles que são interessados no ato final, de caráter imperativo, por ele preparado, mas não apenas participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interesses em relação ao ato final são opostos.360

Na mesma toada, destacam-se as considerações do professor André Cordeiro Leal

acerca da distinção entre processo e procedimento na teoria de Fazzalari:

O processo adquire assim, portanto, contornos de uma espécie do gênero procedimento, que possui uma importante característica autorizativa de uma classificação destacada: o contraditório. Assim, se o procedimento, ou seja, a

357 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 118-119. 358 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 115. 359 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 119. 360 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 68.

Page 175: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

173

conexão normativa preparatória de um ato estatal, estrutura-se pelo contraditório, tem-se o processo. Disso decorre que, em Fazzalari, pode haver procedimento sem processo, jamais processo sem procedimento. Nessa perspectiva, torna-se imprescindível o estudo do contraditório, já que é ele, como se demonstrou, o traço diferenciador dos institutos jurídicos a que alude Fazzalari.361

O professor Cândido Rangel Dinamarco, embora seja discípulo de Liebman e

defensor da teoria do processo como relação jurídica, reconhece o avanço metodológico da

teoria de Fazzalari, que tira o foco da submissão à figura do juiz e ao poder jurisdicional, para

valorar a participação das partes em contraditório no espaço discursivo e dialético do

processo:

Esse modo de ver o processo corresponde ao pensamento mais moderno da teoria processualista e é de cômoda assimilação na teoria do Estado e do poder. Diz-se que o processo é todo procedimento realizado em contraditório, e isso tem o mérito de permitir que se rompa com o preconceituoso vício metodológico consistente em confiná-lo nos quadrantes do ‘instrumento da jurisdição’; a abertura do conceito de processo para os campos da jurisdição voluntária e da própria administração ou mesmo para fora da área estatal constitui fator de enriquecimento da ciência ao permitir a visão teleológica dos seus institutos além dos horizontes acanhados que as tradicionais posturas introspectivas impunham. O fascínio que acompanha essa colocação está ligado, aliás, ao importante sinal metodológico que contém e que é a visão do processo mesmo (como instituto jurídico) e do sistema processual a partir de um ângulo externo (...) Procedimento e contraditório fundem-se numa unidade empírica, e somente mediante algum exercício do poder de abstração pode-se perceber que no fenômeno ‘processo’ existem dois elementos conceitualmente distintos: à base das exigências de cumprimento dos ritos instituídos em lei está a garantia de participação dos sujeitos interessados, pressupondo-se que cada um dos ritos seja desenhado de modo hábil a propiciar e assegurar essa participação. Dessa forma, cumprir o procedimento é também observar o contraditório: sendo apenas o aspecto visível do processo, ele, no fundo, não tem o seu próprio valor, mas o valor das garantias que tutela.362

A dialeticidade do processo na concepção de Fazzalari é relevante para a análise

do instituto no paradigma constitucionalizado da democracia e das garantias fundamentais,

pois oferece, concretamente, igualdade de oportunidades aos interessados na obtenção do

provimento estatal, bem como real possibilidade de dizer e contradizer a formação do ato

estatal, tornando o processo um espaço público discursivo, apto a desenvolver amplo e justo

debate entre as partes.

361 LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 38. 362 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 160-161.

Page 176: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

174

Sob tal ótica, é fundamental à legitimação do provimento final a participação em

contraditório do interessado na cadeia procedimental quando sua esfera jurídica será afetada.

Não se trata de uma simples participação, mas de uma “participação-garantia” num ambiente

discursivo e argumentativo que possibilite a formação do ato estatal.

Por isso o contraditório não deve ser entendido como uma participação

meramente episódica dos sujeitos do processo no momento da defesa ou de sua oitiva.363

O contraditório é muito mais do que isso e transcende a mera ideia do direito à

ciência e manifestação dos interessados, para representar também o elemento distintivo entre

processo e procedimento364, caracterizando uma forma de garantia de plena participação, em

simétrica paridade, dos sujeitos do processo, daqueles a quem se destinam os efeitos do

provimento365.

O contraditório na teoria de Fazzalari significa, enfim, um direito-garantia de

igualdade de oportunidades no processo para construir legitimamente o provimento final. A

propósito, destaca-se a lição de Aroldo Plínio Gonçalves:

A ideia de participação, como elemento integrante do contraditório, já era antiga. Mas o conceito de contraditório desenvolveu-se em sua dimensão mais ampla. Já não é mera participação, ou mesmo participação efetiva das partes no processo. O contraditório é a garantia da participação das partes, em simétrica igualdade, no processo, e é a garantia das partes porque o jogo das contradições é delas, os interesses divergentes são delas, são elas os ‘interessados e os contra-interessados’ na expressão de Fazzalari, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingindo a universalidade de seus direitos, ou seja, interferindo imperativamente em seu patrimônio. (...) O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo. 366

É, portanto, através do contraditório que se estabelece, de forma racional, uma

relação dialética discursiva e argumentativa entre os destinatários do provimento jurisdicional.

Assim, o contraditório deixa de ser um mero princípio para se tornar um elemento-garantia

estruturante do processo.

363 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 124. 364 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 119-120. 365 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 120. 366 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 127.

Page 177: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

175

Mais uma vez vale citar Cândido Rangel Dinamarco, que apesar de ainda filiar-se

à teoria do processo como relação jurídica, também ressalta a importância do contraditório

como critério de legitimação do provimento jurisdicional. Na visão do processualista,

(...) o que caracteriza fundamentalmente o processo é a celebração contraditória do procedimento, assegurada a participação dos interessados mediante exercício das faculdades e poderes integrantes da relação jurídica processual. A observância do procedimento em si próprio e dos níveis constitucionais satisfatórios de participação efetiva e equilibrada, segundo a generosa cláusula due processo of law, é que legitima o ato final do processo, vinculativo dos participantes.367

Nesse contexto, todo provimento jurisdicional (entenda-se ato estatal) deve ser

construído nos estreitos ditames do Estado Democrático de Direito, a partir de uma estrutura

dialético-discursiva, o que possibilitará a concretização prática da cidadania, assegurando a

defesa de todos os direitos fundamentais e efetivando o exercício verdadeiro do devido

processo substancial.

Nesse sentido destacam-se as palavras de Marcelo Franco,

A teoria do processo como procedimento realizado em contraditório é uma contribuição essencial para definir o contraditório como o fundamento de legitimidade do exercício da jurisdição. Considerando que os membros do Judiciário não são eleitos, a legitimidade dos provimentos jurisdicionais decorre da participação direta dos destinatários dos efeitos produzidos pela decisão. Esta participação ocorre mediante a garantia do contraditório, em que os interessados atuam em simétrica paridade na construção do provimento a que se sujeitarão. Trata-se de exercício da democracia, da cidadania e da soberania popular no processo, na medida em que as partes – sujeitos do contraditório – participam e interferem diretamente na construção do provimento – ato imperativo estatal – que produzirá efeitos nos seus patrimônios jurídicos.368

É por isso que, na visão do professor Aroldo Plínio Gonçalves369, a identificação

do processo nessa estrutura normativa, como procedimento realizado em contraditório entre

as partes, supera a teoria clássica da relação jurídica.

Com efeito, a garantia de participação em simétrica paridade na construção do

provimento, assegurada na teoria de Fazzalari, não se concilia com o vínculo de sujeição

367DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 79. 368FRANCO, Marcelo Veiga. A evolução do contraditório: a superação da teoria do processo como relação jurídica e a insuficiência do processo como procedimento em simétrico contraditório. Revista do Programa de Pós-graduação em Direito da UFBA, Salvador, vol. 22, n. 24, 2012, p. 52. 369 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001, p. 193.

Page 178: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

176

preconizado pela relação jurídica processual. Perante o contraditório, não se pode admitir uma

relação jurídica de sujeição ou subordinação entre as partes ou perante o juiz, órgão estatal.

As partes se sujeitam apenas ao provimento, ato final do processo, de cuja preparação

participaram efetivamente a partir do debate processual.

A principal crítica que se faz à referida teoria é que Fazzalari quando distinguiu o

processo de procedimento, integralizando em sua teoria o contraditório, não “fê-lo

originariamente pela reflexão constitucional”370a partir da constitucionalização e idealização

dos direitos fundamentais.

O processualista italiano, de fato, não se debruçou na construção de um modelo

constitucional de processo, mas isso não impede que tal modelo seja estruturado a partir das

suas balizas teóricas que vinculam a legitimidade do provimento estatal à efetiva participação

das partes no processo. Nesse sentido, recomenda o professor Ronaldo Brêtas:

(...) a teoria estruturalista de Fazzalari carece de alguma complementação pelos elementos que compõem a teoria constitucionalista, porque a inserção do contraditório no rol das garantias constitucionais decorre da exigência lógica e democrática da co-participação paritária das partes, no procedimento formativo da decisão jurisdicional que postulam no processo, razão pela qual conectada está à garantia também constitucional da fundamentação das decisões jurisdicionais centrada na reserva legal, condição de efetividade e legitimidade democrática da atividade jurisdicional constitucionalizada.371

É necessária, portanto, a releitura da teoria de Fazzalari a partir da

constitucionalização do processo, o que ora se pretende, conferindo à participação

democrática das partes o status de direito fundamental indispensável à legitimidade e validade

de qualquer tutela jurisdicional, especialmente daquelas dotadas de eficácia vinculante

emanadas de tribunais da instância ordinária, os quais não detém o papel constitucional de

assegurar a unidade do direito.

Dentro desse novo “paradigma” interpretativo, qualquer tentativa do legislador ou

do julgador de minorar ou eliminar o direito de participação das partes, com a criação de

novas técnicas processuais de julgamento voltadas primordialmente à celeridade caracterizará

ofensa insuperável ao contraditório e, por conseguinte, ao devido processo constitucional.

370LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 93. 371 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 91.

Page 179: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

177

3.4 O modelo único constitucional de processo na perspectiva de Italo Andolina e

Giuseppe Vignera

Para demonstrar o direito fundamental à participação no processo, importante

destacar também a contribuição trazida pela obra dos italianos Italo Andolina e Giuseppe

Vignera na formulação de seu modelo único de processo estabelecido a partir da Constituição.

Os referidos juristas italianos interpretam a Constituição como a fonte primeira

das normas processuais, o que permitiu a definição de um modelo único constitucional do

processo na Itália, ou seja, um modelo processual trazido pela própria Constituição e a partir

de suas regras, princípios e garantias, aos quais todos os processos, sem distinção, devem se

conformar em razão da supremacia constitucional.

Percebeu-se que não bastava a positivação, em sede das Constituições

democráticas, de diversos direitos e garantias fundamentais se não houvesse meios aptos de

assegurar sua real efetividade e, nesse contexto, a concepção de um modelo único

constitucional de processo surge como instrumento essencial à efetivação dos direitos

constitucionais.

Assim, Italo Andolina e Giuseppe Vignera afirmam que, numa perspectiva “pós-

constitucional” (entendida, conforme acima exposto, como o cenário de valorização das

disposições constitucionais e da sua supremacia no ordenamento jurídico), o processo não

pode ser definido apenas pelo seu “ser”, isto é, “sua organização concreta segundo as leis

ordinárias vigentes”, mas deve, necessariamente, levar em consideração o seu dever-ser, ou

seja, “a conformidade de sua ordem positiva à normativa constitucional sobre o exercício da

atividade jurisdicional” 372. (tradução livre)

Logo a seguir, em suas explanações introdutórias, Andolina e Vignera ensinam

que “as normas (regras e princípios) constitucionais inerentes à atividade jurisdicional,

consideradas em sua complexidade, possibilitam ao intérprete delinear um verdadeiro e

372“Nella nuova prospettiva post-costituzionale, quindi, il problema del processo no riguarda soltanto il suo essere (idest: la sua concreta organizzazione secondo le leggi ordinarie vigenti), ma anche il suo dover essere (idest: la conformitá del suo assetto positivo alla normativa costituzionale sull’ esercizio dell’attività giurisdizionale). Il problema della giursidizione, a sua volta, non è più una mera questione di tipo (essenzialmente) definitorio interessante soprattutto la teoria generale del diritto e dello Stato, costituendo invece um tema dalle implicazioni pratiche assai marcate, poiché soltanto di fronte ad um procedimento (positivo) strumentale all’esercizio della funzione giurisdizionale occorre controllare se lo stesso effetivamente é come dovrebbe (secondo la Costituzione) essere. L’oggetto di queste lezioni é costituito proprio dalla “giurisdizionalità costituzionalmente derivata” del processo, dal suo dover essere alla stregua della normativa costituzionale.” (ANDOLINA, Ítalo Augusto; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli Editore, 1990, p. 11.)

Page 180: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

178

adequado esquema geral de processo susceptível de constituir o objeto de uma exposição

unitária”373(tradução livre), o que contribuirá para a definição de um modelo único de

processo.

De acordo, ainda, com os autores italianos, o modelo constitucional de processo

possui três características gerais que podem ser individuadas na expansividade, variabilidade

e na perfectibilidade374.

A expansividade assegura idoneidade para que a norma processual possa ser

expandida para microssistemas específicos de processo, desde que presente a conformidade

com a proposta geral. A variabilidade autoriza, por sua vez, a especialização de determinados

preceitos gerais para um determinado microssistema. Ou seja, para alcançar determinados

fins, é possível ocorrer a criação e adequação de institutos ou técnicas processuais ao modelo

constitucional de processo. Por fim, a perfectibilidade permite o aperfeiçoamento do modelo

constitucional pela legislação infraconstitucional que pode construir procedimentos

jurisdicionais caracterizados por garantias e institutos desconhecidos do modelo

constitucional de processo, mas que com ele sejam compatíveis. Destaca-se, a título de

exemplo, a previsão do princípio da economia processual e do duplo grau de jurisdição que,

embora não constituam garantias constitucionais, são compatíveis com o modelo de processo.

Pelas características da expansividade, variabilidade e perfectibilidade do

processo, não se admite falar em um processo constitucional e outro infraconstitucional.

Todas as regras processuais devem ser fundadas no mesmo modelo institucional

constitucionalizado e unificado por princípios e garantias constitucionais.

373 “Le norme ed i principi costituzionali riguardanti l’esercizio della funzione giurisdizionale, se considerati nella loro complessità, consentono all’interprete di disegnare un vero e proprio schema generale de processo, suscettibile di formare l’oggetto di una esposizione unitaria.” (ANDOLINA, Ítalo Augusto; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli Editore, 1990, p. 13) 374 “Prima de prendere in considerazione i singoli elementi (oggetivi e soggettivi) del modello costituzionale del processo civile, é doveroso evidenziare in questa sede i suoi caratteri generali, che possono individuarsi: a) nella espansività, consistente nella sua idoneità (conseguente alla posizione primaria delle norme costituzionali nella gerarchia delle fonti) a condizionare la fisionomia dei singoli procedimenti giurisdizionali introdotti da legislatore ordinário, la quale (fisionomia) deve essere comunque compatibile coi connotati di quel modelo; b) nella variabilità, indicante la sua attitudine ad assumere forme diverse, di guisa che l’adeguamento al modello costituzionale (ad opera del legislatore ordinario) delle figure processuali concretamente funzionanti può avvenire secondo varie modalità in vista del perseguimento di particolari scopi; c) nella perfettibilità, designante la sua idoneità ad essere perfezionato dalla legislazione sub-costituzionale, la quale (scilicet: nel rispetto, comunque, di quel modello ed in funzione del conseguimento di objettivi particolari) bem può costruire procedimenti giurisdizionali caratterizzati da (ulteriori) garanzie ed istituti ignoti al modello costituzionale: si pensi, per esempio, al principio di economia processuale, a quello del doppio grado di giurisdizione ed all’istituto della cosa giudicata.” (ANDOLINA, Ítalo Augusto; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli Editore, 1990, p. 14-15.)

Page 181: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

179

As referidas características do modelo constitucional do processo civil italiano

delineado pelos referidos autores conduzem a um “esquema em branco”375 (tradução livre) –

um esquema que contém elementos constantes que se encontram em todos os procedimentos

jurisdicionais válidos, mas que também possui elementos de caráter móvel, que exigem

complementação, para que as variáveis sejam preenchidas pela legislação infraconstitucional

de acordo com o processo em que se encontram.

Na visão de Andolina, o direito de acesso à justiça, o direito de defesa, o

contraditório e a paridade de armas entre as partes, a independência e a imparcialidade do juiz

e, ainda, o dever de fundamentação das decisões judiciais são considerados elementos

necessários ou pontos nodais imprescindíveis para caracterização do modelo de processo

concebido pela Constituição e para a noção de “processo justo”.376

O contraditório e a participação das partes em simétrica paridade se enquadram,

portanto, no núcleo intangível e necessário à configuração do modelo constitucional de

processo.

Essa perspectiva defendida por Andolina e Vignera permite constatar que o

processo é um modelo único com tipologia plúrima377. Vale dizer, um modelo

constitucionalizado de processo dotado de elementos intangíveis, mas que permite ser

375 “I sopra descritti connotati generali del modello costituzionale del processo inducono conclusivamente a considerare lo stesso com una sorta di “schema in bianco”. Esso, infatti, contiene in nuce gli elementi costanti ed indefettibili di ciascun procedimento giurisdizionale (validamente) presente nell’ordinamento giuridico, ma presenta al contempo dei “caratteri mobili” e degli “spazi vuoti”, destinati ad essere – rispettivamente – variati e colmati dal legislatore sub-costituzionale in vista del conseguimento di determinati objettivi.” (ANDOLINA, Ítalo Augusto; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli Editore, 1990, p. 15) 376“(...) La centralità del processo giurisdizionale all’interno del sistema delle garanzie giustifica la particolare attenzione ad esso dedicata dalla Costituzione, la quale ha disegnato appunto un modello di processo giurisdizionale. Come è noto, invero, la Carta costituzionale ha individuato alcuni connotati o requisiti che devono caratterizzare il procedimento strumentale all’esplicazione della giurisdizione. La presenza di tali elementi è, dunque, indefettibile e necessaria in ciascun procedimento che voglia ritenersi costituzionalmente giurisdizionale. Punti nodali del modello (modello tuttavia non rigido ma, al contrario, duttile e dinamico, perennemente in fieri, frutto di costante lettura e rilettura in chiave evolutiva del dettato costituzionale) disegnato dal costituente sono: a) il diritto di accesso alla giustizia; b) il diritto di difesa; c) il contraddittorio e la c.d. parità delle armi tra le parti; d) l’indipendenza e la terzietà del giudice; e) l’obbligo di motivazione dei provvedimenti giurisdizionali; f) il sindacato (diffuso) di legittimità, ad opera della Corte di Cassazione, sui provvedimenti giudiziali decisori (non altrimenti impugnabili). Sono questi gli elementi che caratterizzano la nozione di “giusto processo”; nozione che è, peraltro, antecedente alla modifica dell’art. 111 Cost. compiuta dalla legge cost. 23 novembre 1999, n. 2. (ANDOLINA, Ítalo Augusto. Il “Giusto Processo” nell’esperienza Italiana e Comunitária. Revista de Processo: RePro, v. 30, n. 126, ago. 2005, p. 93) 377 “(...) il processo in Itália é diventato un’entità “a modello único ed a tipologia plurima”: espressione che (nella sua apparente contraddittorietà) esprime efficacemente – ci sembra – l’idea che, se esiste un solo paradigma costituzionale di processo, esiste (recte: può esistere) altresì nell’ordinamento una pluralità di procedimenti giurisdizionali.” (ANDOLINA, Ítalo Augusto; VIGNERA, GIUSEPPE. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli Editore, 1990, p. 15).

Page 182: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

180

decomposto em uma pluralidade de procedimentos jurisdicionais (administrativo, penal, civil

ou trabalhista), aperfeiçoando-se e especializando-se para plena concretização das suas

finalidades, mas sempre moldado e interpretado a partir da Constituição para garantia dos

direitos fundamentais.

Nesse sentido, destaca-se a leitura realizada pela professora Flaviane de

Magalhães Barros, ao discorrer sobre o modelo constitucional de processo proposto por

Andolina e Vignera:

Tal compreensão de modelo constitucional de processo, de um modelo único e de tipologia plúrima, se adapta à noção de que na Constituição encontra-se a base uníssona de princípios que definem o processo como a garantia, mas que para além de um modelo único ele se expande, aperfeiçoa e especializa, exigindo do intérprete compreendê-lo tanto a partir dos princípios-bases como, também, de acordo com as características próprias daquele processo.378

Assim, mesmo considerando a variabilidade como característica importante do

modelo processual de Andolina e Vignera, não é possível admitir que a legislação

infraconstitucional, a pretexto de criar tutelas jurisdicionais diferenciadas para remediar

conflitos específicos, mitigue ou até mesmo elimine algumas das garantias constitucionais

inerentes ao modelo processual. Enfim, toda e qualquer técnica processual deve ser criada e

interpretada a partir da Constituição, de suas normas e garantias, sob pena de violação ao

núcleo intangível (elementos imutáveis e necessários) do modelo constitucional do processo.

3.5 O “processo justo” na visão de Comoglio

Dentro da perspectiva de constitucionalização do processo e do direito

fundamental de participação democrática das partes na construção do provimento

jurisdicional, também possuem relevância os estudos do italiano Luigi Paolo Comoglio acerca

da difícil tentativa de reunir e sistematizar os elementos mínimos para se definir o “processo

justo” como uma nova leitura do devido processo legal.

É bom ressaltar que antes mesmo da reforma constitucional realizada na Itália, em

1999, Comoglio já defendia a tese de que a Constituição garantia requisitos mínimos de um

processo justo e equânime, considerando o contraditório e a participação das partes em

igualdade substancial como uma garantia mínima, intangível, mesmo que, até então, não 378 BARROS, Flaviane de Magalhães. O Modelo Constitucional de Processo e o Processo Penal: a necessidade de uma interpretação das reformas do processo penal a partir da Constituição. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Constituição e Processo: A contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 335.

Page 183: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

181

prevista expressamente na Carta Magna daquele país379.

De igual modo, ao interpretar o novo art. 111 da Constituição italiana de 1948,

Comoglio parte do pressuposto metodológico de que o justo processo (giusto processo) não é

qualquer processo que apenas se amolde à previsão legal (devido processo legal). Justo é o

devido processo que se constitui em respeito aos parâmetros mínimos e essenciais fixados

pela norma constitucional e pelos valores partilhados pela coletividade, de sorte a se

desenvolver pelo debate travado pelas partes em contraditório, perante um juiz independente e

imparcial.380

A concepção do processo justo busca, portanto, superar uma visão formalista do

devido processo legal, trazendo uma perspectiva constitucionalizada do devido processo

dinâmico e substancial.

Para que coincida o devido processo com o processo justo é fundamental, na visão

de Comoglio, a presença de requisitos mínimos de justiça procedimental, consubstanciada na

imparcialidade e independência do juiz, no amplo acesso à justiça, ampla defesa, no

contraditório, além da coerência da forma com o escopo institucional do processo, de maneira

a excluir a possibilidade de alguém ser privado de seus direitos sem a adequada possibilidade

de ser ouvido e de se defender perante o julgador.381

O autor agrupa, ainda, como garantias mínimas do processo justo: a) a relação de

instrumentalidade entre o direito processual e o substancial; b) o amplo acesso às cortes de

379 Nella “costituzionalizzazione” del concetto di “giusto processo” – che è clausola generale di “giustizia procedurale”, “principio ad assetto variabile” o a “tessitura aperta”, eticamente accettabile perché conforme alla cultura giuridica della legalità, nello Stato di diritto moderno – trovano spazio sia l’idea del processo “giusto” in quanto “regolato per legge” (o secondo “legalità processuale”), sia la parità delle parti, intesa quale corrispondenza dinamica di reciproci diritti fra Le parti medesime sulla base di una loro sostanziale eguaglianza. Ma vi rientrano altresì: 1) il contraddittorio (quale garanzia di paritaria difesa e quale cânone oggettivo o strutturale del “giusto processo”, sino ad oggi non enunciati in forma esplicita nella Costituzione); 2) la “imparzialità” e la “terzietà” del giudice (intese: la prima, in senso funzionale, come “foro interiore” del magistrato giudicante, doverosamente scevro da personali pregiudizi, neutrale ed equidistante dalle posizioni di parte; la seconda, in senso strutturale, come garanzia dell’indipendenza e della diversità soggettiva del magistrato giudicante, rispetto alle parti in lite); 3) la garanzia della “durata ragionevole” del processo. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Il “Giusto Processo” Civile in Italia e in Europa. Revista de Processo: RePro, v. 29, n. 116, jul.-ago. 2004, p. 107) 380 “(...) E´ certo, invece, che il “processo” non possa dirsi “giusto”, se non in quanto la “legge”, da cui è comunque “regolato”, rispetti ab intrinseco le condizioni essenziali (quali sono: il contraddittorio, la parità delle parti, la terzietà e l’imparzialità del giudice), che sono dettate nel 2.º comma dell’art. 111 (giacché ogni diversa interpretazione sarebbe riduttiva e fuorviante). Tali condizioni o componenti essenziali rappresentano, a loro volta, talune garanzie minime, necessarie e sufficienti perché il “processo” che le rispetti o Le attui possa definirsi, appunto, “giusto”, “equo” e “dovuto”.” (COMOGLIO, Luigi Paolo. Il “Giusto Processo” Civile in Italia e in Europa. Revista de Processo: RePro, v. 29, n. 116, jul.-ago. 2004, p. 129) 381 COMOGLIO, Luigi Paulo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’ (modelli a confronto). Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte: UFMG, v. 2, n. 2, mar./1998, p. 272.

Page 184: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

182

justiça; c) a independência, autonomia e a imparcialidade do juiz; d) o exercício dos direitos

de ação e de defesa, em simétrica paridade; e) enfim, o direito das partes a um processo

justo.382

O contraditório, nesse contexto, não é visto apenas como o dizer e o contradizer.

O contraditório é um elemento estrutural indispensável do processo justo e uma exigência de

prevenção contra a “sentença surpresa”, impondo o prévio debate processual

(comparticipação) entre as partes sobre toda e qualquer questão, mesmo em relação às

matérias sujeitas à apreciação de ofício pelo julgador.

Ou seja, o juiz possui um verdadeiro poder-dever (e não uma mera

discricionariedade383) de assegurar o contraditório entre as partes, com paridade de armas, em

relação a toda e qualquer questão, de rito ou de mérito, de fato ou de direito, prejudicial ou

preliminar, com garantia de influência no resultado do processo.384

O processo justo na concepção de Comoglio se apresenta, portanto, sempre em

um ambiente dialógico, em que há um equilíbrio entre o poder do órgão julgador –

independente e imparcial – e a participação efetiva das partes e demais interessados no

processo, em contraditório, para construção da solução em tempo suficiente e razoável.

Conforme ressalta o professor Humberto Theodoro Jr.385, em sua precisa leitura

sobre a perspectiva de Comoglio, também integra o processo justo um conteúdo ético,

deontológico, transcendente a ele mesmo. A ética que anima o processo seria o conjunto dos

valores fundamentais da civilização e da democracia, que asseguram o respeito à pessoa e aos

seus direitos essenciais.

A propósito, importante citar as palavras de Humberto Theodoro Jr.:

(...) há uma presença ética na própria estrutura procedimental arquitetada pelo direito processual positivo, inspirado nos princípios constitucionais e

382 COMOGLIO, Luigi Paolo. Etica e técnica del ‘giusto processo’. Torino: G. Giappichelli Editore, 2004, p. 162. 383 “Nel nuovo contesto costituzionale, non vi è più spazio per alcun apprezzamento puramente discrezionale da parte del giudice, giacché la previa provocazione del contraddittorio e la previa “trattazione” di qualsiasi “questione pregiudiziale” non sono più materia di mere valutazioni di “opportunità” processuale, rimesse al medesimo giudice, ma diventano invece una conseguenza costituzionalmente necessaria della loro “indicazione” (o, se si preferisce, del loro rilievo d’ufficio).” (COMOGLIO, Luigi Paolo. Il “Giusto Processo” Civile in Italia e in Europa. Revista de Processo: RePro, v. 29, n. 116, jul.-ago. 2004, p. 139) 384 COMOGLIO, Luigi Paolo. Il “Giusto Processo” Civile in Italia e in Europa. Revista de Processo: RePro, v. 29, n. 116, jul.-ago. 2004, p. 138. 385 THEODORO JR., Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), jan.-jun. 2010, p. 68.

Page 185: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

183

nos princípios comuns infraconstitucionais que exigem dos sujeitos da relação processual e de seus representantes constante e rigoroso respeito aos preceitos da boa fé, lealdade e probidade. Ademais, a própria meta de fazer justiça aos litigantes, perseguida pela função jurisdicional, reclama um compromisso natural do processo com um valor ético, caro aos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Não se pode, por isso mesmo, desconectar o comportamento prático de todos os protagonistas do processo – partes, defensores, ministério público, juiz e auxiliares – dos valores éticos ou morais que envolvem a ideia de justiça. Diante disso, é perfeitamente adequada a qualificação de processo justo com a qual a Constituição Italiana identifica o meio de acesso à tutela jurisdicional, dentro das garantias fundamentais.386

Desse modo, entre os direitos essenciais e invioláveis também se coloca o próprio

direito ao processo justo, com o respeito aos seus elementos mínimos e intangíveis

assegurados pela Ordem Constitucional.

A tutela jurisdicional somente será justa se o Estado-juiz proporcionar às partes o

pleno acesso ao processo, a ciência dos atos processuais, o direito de alegar os fatos

relevantes, contraditar as questões adversas, provar a veracidade de suas alegações e,

principalmente, o direito de influenciar o conteúdo da decisão sem se afastar da carga ética

inerente à conduta dos sujeitos processuais.

3.6 O modelo de processo eficiente para a América Latina: uma proposta do Documento

Técnico nº 319 do Banco Mundial para a reforma do Poder Judiciário

Segundo os estudos divulgados pelo Banco Internacional para Reconstrução e

Desenvolvimento - Banco Mundial, o Poder Judiciário, em várias partes da América Latina e

Caribe, tem experimentado um aumento vertiginoso da litigiosidade, excessivo acúmulo de

processos, acesso limitado à população, falta de transparência e de previsibilidade de decisões

judiciais, além da frágil confiabilidade pública no sistema.

A ineficiência do Sistema de Justiça seria causada por muitos obstáculos,

incluindo a falta de independência do Judiciário, inadequada capacidade administrativa das

Cortes de Justiça, deficiência no gerenciamento de processos, reduzido número de juízes,

carência de treinamentos, prestação de serviços de forma não competitiva por parte dos

funcionários, falta de transparência no controle de gastos de verbas públicas, ensino jurídico e

estágios inadequados, ineficácia do sistema de sanções para condutas processuais

protelatórias, procedimentos enfadonhos e burocráticos, além da ausência de utilização efetiva

386 THEODORO JR., Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), jan.-jun. 2010, p. 67.

Page 186: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

184

dos mecanismos alternativos de resolução de conflitos.

A partir da análise do Sistema de Justiça na América Latina, o Documento

Técnico nº 319387, publicado em 1996, ou seja, há aproximadamente 20 anos, apresenta um

programa, ainda atualíssimo, de reforma do Judiciário, abordando os principais fatores, na

visão da pesquisadora Maria Dakolias, que afetariam a qualidade do processo jurisdicional e

sua efetividade.

O documento discute, sob um viés do desenvolvimento econômico e da

preservação da propriedade, os elementos necessários para se garantir um processo mais justo

e eficiente.388

Daí a importância da sua abordagem no contexto das reformas implementadas no

Brasil, principalmente, a partir da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, e, recentemente,

pelo CPC/2015 com a criação do sistema de precedentes vinculantes e do Incidente de

Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR.

Convém rememorar que já foi mencionado alhures muitos dos problemas

estruturais e de gestão apontados no Documento Técnico, a ausência de estímulo aos métodos

alternativos de solução de conflitos, e a “necessidade” de reformas legislativas para melhoria

do Sistema de Justiça.

Várias leis foram publicadas no Brasil nestes últimos 20 anos para se tentar

modificar o cenário da crise, mas os Relatórios da Justiça em Números divulgados pelo

Conselho Nacional de Justiça demonstram que a situação do Judiciário é ainda muito

preocupante em face do congestionamento processual e do aumento contínuo da litigiosidade.

Em razão dos impactos econômicos gerados pela atuação do Poder Judiciário, as

propostas apresentadas no Documento Técnico nº 319 se preocupam nitidamente com a busca

de maior previsibilidade decisória e celeridade processual. A diminuição do tempo e da

quantidade de processos demonstra importante sintonia do Documento com as reformas

legislativas já implementadas no Brasil, desde a súmula vinculante até o sistema de

387 Os Documentos Técnicos são publicados com a finalidade de comunicar com a maior brevidade possível os resultados dos trabalhos e pesquisas do Banco Mundial, no desenvolvimento comunitário. Os estudos são produzidos para auxiliar governos, pesquisadores e operadores do direito no desenvolvimento de futuros programas de reforma e aperfeiçoamento do Poder Judiciário. O Documento Técnico 319 foi publicado em junho de 1996. A permissão para reproduzir partes do documento para uso estudantil é garantida pelo Centro de Autorização para Direitos Autorais, suíte 910, 222, Rosewood Drive, Danvers, Massachusetts 01923, U.S.A. 388 DAKOLIAS, Maria. O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma. Trad. Sandro Eduardo Sardá. Banco Mundial. Documento Técnico n. 319. 1996, p. 08. Disponível em www.anamatra.org.br. Acesso em: mar. 2016.

Page 187: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

185

precedentes criado pelo CPC/2015.

O Documento Técnico nº 319 sugere, inicialmente, o fortalecimento da

independência do Poder Judiciário nos países da América Latina.

Não há processo justo e eficiente se não houver a garantia da independência

judicial389, de modo a permitir a atuação decisória livre do Poder Judiciário conforme o direito

aplicável e não baseada em pressões políticas, internas ou externas à instituição. A

independência do juiz pode ser preservada pela forma adequada de investidura no cargo,

salários competitivos e definição de atribuições jurisdicionais apropriadas. Nesse contexto, o

sistema de nomeações e promoções reveste-se de importante fator de fortalecimento da

independência judicial, devendo se basear no merecimento, através de processo democrático e

transparente, para se assegurar a qualidade e isenção dos magistrados.

Além disso, não se pode falar na independência total se não for assegurada a plena

autonomia orçamentária do Poder Judiciário. Sem os recursos necessários e sua gestão

eficiente é impossível adequar o processo ao desenvolvimento econômico da sociedade.

Visando garantir uma alocação eficiente de recursos orçamentários, o Judiciário deve

apresentar habilidades técnicas de contabilidade financeira e de auditorias. Na maioria dos

países latino americanos, o quadro de pessoal do Judiciário não esta suficientemente treinado

em matérias de contabilidade e finanças390. A propósito, no Brasil, a criação do Conselho

Nacional de Justiça pela Emenda Constitucional 45, de 2004, contribuiu fortemente para

maior controle e fiscalização dos gastos orçamentários pelo Poder Judiciário, evitando-se

abusos e malversação do erário.

O problema da autonomia orçamentária se destaca atualmente quando se depara

com as dificuldades enfrentadas pelo Judiciário em razão da falta de recursos para

implementação de melhorias tecnológicas, como o processo eletrônico, digitalização dos

autos, realização de audiências por vídeos conferências, treinamento e capacitação de juízes e

servidores, etc.

O Documento Técnico nº 319 sugere também a melhoria do ensino jurídico. A

baixa qualidade do ensino jurídico seria fator importante para a litigiosidade e a baixa

eficiência do processo nos países da América Latina. A qualidade dos cursos de Direito tem

389 DAKOLIAS, Maria. O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma. Tradução de Sandro Eduardo Sardá. Banco Mundial. Documento Técnico n. 319. 1996, p. 11-12. 390 DAKOLIAS, Maria. O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma. Tradução de Sandro Eduardo Sardá. Banco Mundial. Documento Técnico n. 319. 1996, p. 30.

Page 188: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

186

se deteriorado, existindo a necessidade de aperfeiçoar o nível educacional universitário, bem

como promover treinamento continuado para os profissionais.

De acordo com a pesquisa, na maioria dos países da América Latina, as

universidades públicas não exigem requisitos para admissão ou cada estabelecimento

educacional fixa seus próprios critérios sem qualquer padronização. Devido aos baixos

salários, os professores de Direito não trabalham em dedicação adequada, e,

consequentemente, tem pouco tempo para se dedicar à pesquisa voltada ao aperfeiçoamento

do Judiciário.391 Como resultado, frequentemente os juízes não estão preparados para a

magistratura e, de igual modo, os advogados não estão preparados para a advocacia.

Tais fatores, que podem parecer distantes do processo, não o são na realidade,

pois repercutem diretamente na atuação e cultura dos profissionais do Direito e, por

conseguinte, na qualidade e eficiência da condução e prática dos atos processuais.

Nesse contexto, o acesso à Justiça também se apresenta como fator determinante

para a garantia de um processo mais justo e eficiente. “O aprimoramento do acesso à justiça é

essencial para garantir serviços básicos para a sociedade, garantindo os objetivos previamente

mencionados de democratização e institucionalização, redefinindo as relações entre a

sociedade e o estado”392.

A pesquisa aponta diversos fatores considerados importantes para se avaliar a

garantia de pleno acesso à Justiça, tais como: tempo de julgamento, custos diretos e indiretos

das partes com a litigância (despesas com requerimentos, custas processuais, cauções,

honorários advocatícios, perdas salariais com o tempo despendido, etc.), acesso físico às

instalações do Poder Judiciário e a capacidade dos potenciais usuários, de ter acesso a

informação e possibilidade de acompanhamento das fases processuais.

Ou seja, o excesso de despesas processuais (custos da litigância), a ausência de

informações adequadas e a demora da tramitação processual constituem barreiras ao modelo

adequado de processo. Programas de assistência jurídica e defensoria pública adequados e

eficientes devem ser disponibilizados para promover assistência e aconselhamento às pessoas

que não podem arcar com os gastos da litigância ou se defenderem em um processo. A

propósito do tema, várias modificações legislativas implementadas no Brasil ao longo dos

391 DAKOLIAS, Maria. O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma. Tradução de Sandro Eduardo Sardá. Banco Mundial. Documento Técnico n. 319. 1996, p. 13. 392 DAKOLIAS, Maria. O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma. Tradução de Sandro Eduardo Sardá. Banco Mundial. Documento Técnico n. 319. 1996, p. 38.

Page 189: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

187

últimos anos melhoraram a estrutura e eficiência das defensorias públicas. Importante

ressaltar, ainda, que a defensoria pública foi fortalecida no Brasil com a aprovação da Emenda

Constitucional 74, que lhe conferiu autonomia administrativa e financeira no âmbito da

União, e pela Emenda Constitucional 80, que fixou prazo de 08 anos para que os entes

públicos dotassem todas as comarcas de defensores públicos. Não se tratam evidentemente de

meras promessas constitucionais, mas normas dotadas de força imperativa para efetivação do

direito à assistência judiciária no Estado Democrático de Direito.

A despeito da estruturação das Defensorias Públicas, da União e dos estados, sua

capacidade de atendimento da população ainda é limitado. Assim, a advocacia privada exerce

a representação dos hipossuficientes econômicos, todavia, a legislação não estabelece

parâmetros objetivos para a concessão do benefício da assistência judiciária. Com efeito,

constata-se abusividade do direito de litigar, uma vez que muitos indivíduos, dotados de

capacidade econômica, indevidamente invocam estado de pobreza e litigam sem ônus

financeiros. A consequência é a existência de aventuras judiciais, de forma implausível e

antiética, apostando na deficiência do sistema de justiça.

Na visão dos pesquisadores do Banco Mundial, o acesso à Justiça dependeria,

ainda, do incentivo à utilização das ações coletivas, o que se mostra muito tímido nos países

da América Latina. O Documento Técnico destaca a importância das ações coletivas (class

action) como forma mais econômica e eficiente de assegurar às partes um instrumento

processual adequado de propor uma demanda comum. A pesquisa também faz referência às

ações de grupo desenvolvidas no continente Europeu, criando um ambiente que assegura

maiores poderes aos demandantes e minimizam os custos individuais.

É possível perceber, por fim, que a pesquisa do Banco Mundial também deu

ênfase à verticalização do Poder Judiciário como forma de se assegurar a previsibilidade das

decisões e a tão desejada celeridade processual.

Para se alcançar a previsibilidade decisória, embora não faça recomendação

específica, o Documento Técnico nº 319 menciona, em diversas passagens, a necessária

urgência de se ampliar o poder vinculante das Cortes Supremas e a prevalência da

jurisprudência sumulada sobre as decisões das instâncias inferiores. Os países-membros dos

mercados comuns devem ter a certeza de que as leis serão aplicadas e interpretadas de acordo

com padrões regionais e internacionais. Nesse contexto, um Judiciário ideal, na proposta do

Banco Mundial, aplica e interpreta as leis de forma igualitária e eficiente, o que significa que

devem existir mecanismos para se assegurar maior previsibilidade nos resultados dos

Page 190: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

188

processos.

Foram sugeridas, assim, várias alterações nos procedimentos administrativos e

nos códigos de processo, para aumentar a eficiência no processamento das demandas. As

reformas processuais dependeriam da identificação dos procedimentos que obstruem a

eficiência das Cortes e causam atrasos nos julgamentos.

Não se pode negar que, após 20 anos da divulgação do Documento Técnico nº

319, muitas das referidas propostas do Banco Mundial para um modelo de processo mais

justo e eficiente foram incorporadas ao Sistema de Justiça no Brasil, especialmente a partir da

Emenda Constitucional 45 – a Reforma do Poder Judiciário – que implementou a súmula

vinculante e criou o Conselho Nacional de Justiça para controle administrativo e orçamentário

dos órgãos da Justiça.

Mais recentemente o CPC/2015 instituiu, dentro do mesmo viés, uma espécie de

sistema de precedentes vinculantes para conferir maior previsibilidade decisória, além de

“importar” novas técnicas de julgamento, dotadas de caráter coletivo, como o Incidente de

Demandas Repetitivas – IRDR como forma de se alcançar maior celeridade na uniformização

da interpretação do Direito.

A crítica que se coloca é que, embora muitas das recomendações formuladas pelo

Banco Mundial sejam, de fato, pertinentes para a melhoria da qualidade do processo, não se

pode relegar ao segundo plano a garantia efetiva de participação e do contraditório das partes

para a realização de um processo mais justo e eficiente, de acordo com normas e garantias

preconizadas pela Ordem Constitucional de cada país da América Latina.

A toda evidência, a pesquisa não se preocupou com a previsão de instrumentos

processuais para se assegurar, no processo realmente democrático, a efetiva participação das

partes na construção do provimento jurisdicional.

Enfim, a busca pela celeridade a qualquer custo e a verticalização do Poder

Judiciário, mediante a vinculação de precedentes e criação de técnicas de julgamento dotadas

de caráter coletivo e vinculante, se consideradas apenas isoladamente, não se mostram

compatíveis com a perspectiva do devido processo justo.

3.7 O modelo constitucional do processo civil brasileiro: é possível um modelo

diferenciado de processo para a tutela das demandas repetitivas?

Inicialmente, importante advertir que o modelo constitucional de processo civil

Page 191: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

189

brasileiro não é apenas uma mera concepção teórico-metodológica a ser estudada e

demonstrada cientificamente sem qualquer repercussão na realidade social.

Ao contrário, ele deve ser visto como sendo um paradigma interpretativo dotado

de diretrizes obrigatórias a serem seguidas na realidade prática do Sistema de Justiça, pois,

efetivando-se tal modelo, efetiva-se a própria Constituição e a garantia dos direitos

fundamentais concebidos no Estado Democrático de Direito.

Nessa perspectiva, destacam-se as palavras de Scarpinella Bueno:

Estudar o direito processual civil na e da Constituição, contudo, não pode ser entendido como algo passivo, que se limita à identificação de que determinados assuntos respeitantes ao direito processual civil são previstos e regulamentados naquela Carta. Muitos mais do que isso, a importância da aceitação daquela proposta metodológica mostra toda plenitude no sentido ativo de aplicar as diretrizes constitucionais na construção do direito processual civil, realizando pelo e no processo, isto é, pelo e no exercício da função jurisdicional, os misteres constitucionais reservados para o Estado brasileiro, de acordo com o seu modelo político, e para seus cidadãos.393

Na segunda metade do século XX, após duas guerras mundiais e diante das graves

barbáries cometidas, a constitucionalização do processo e a proteção das garantias

fundamentais passaram a ocupar espaço de estudo no direito comparado, tal como já

mencionado neste capítulo acerca das teorias de Andolina, Vignera e Comoglio, além de

diversos outros juristas394.

Acerca do contexto histórico, ensina Humberto Theodoro Jr.:

A segunda metade do século XX, depois da apavorante tragédia de duas grandes guerras mundiais, viria exigir da revisão constitucional dos povos democráticos um empenho, nunca dantes experimentado, de aprofundar a intimidade das relações entre o direito constitucional e o processo, já que os direitos fundamentais deixaram de ser objeto de simples declarações e passaram a constituir objeto de efetiva implementação por parte do Estado

393 BUENO, Cassio Scarpinella. O “Modelo Constitucional do Direito Processual Civil”: um paradigma necessário de estudo do direito processual civil e algumas de suas aplicações. In: JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (coord.). Processo Civil: Novas Tendências. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 158. 394 No mesmo sentido é a lição do jurista italiano, Nicolò Trocker, que defende o direito a um processo justo que se desenvolve segundo os parâmetros fixados pelas normas constitucionais e pelos valores aceitos pela coletividade (tradução livre). “Giusto é il processo che si svolge nel rispetto dei parametri fissari dalle norme costituzionali e dei valori condivisi dalla collectività”. (In: Processo civile e costituizione. Milano: Giuffre, 1974, p. 383-384.) O uruguaio Eduardo Couture também apresenta esboço de um direito processual constitucional, sob a perspectiva do caráter dialético do processo, que, através do contraditório, deve franquear o debate processual às partes e ao juiz para que a atividade jurisdicional alcance a verdade. (In: Introdução ao Estudo do Processo Civil: Discursos, Ensaios e Conferências. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2008, p. 44)

Page 192: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

190

Democrático de Direito.395

Para Humberto Theodoro Jr, pode-se constatar no referido período duas grandes

mudanças de rumo do direito processual: a primeira se refere à aproximação do tratamento

das figuras processuais em relação ao direito material, reforçando o papel do processo na

tutela dos direitos subjetivos permeados de valores humanos e éticos, dando origem ao devido

processo justo; a segunda consistente no fenômeno da constitucionalização do processo e da

regulação dos direitos fundamentais396. O processo passa a ser estudado e aplicado a partir de

suas relações com a Constituição.

No Brasil, seguindo os estudos do mexicano Hector Fix-Zamudio397, José Alfredo

de Oliveira Baracho foi um dos precursores, ao escrever, na década de 80, a respeito da teoria

constitucionalista do processo:

O processo, como garantia constitucional consolida-se nas constituições do século XX, através da consagração de princípios de Direito processual, com o reconhecimento e a enumeração de direitos da pessoa humana, sendo que esses consolidam-se pelas garantias que os tornam efetivos e exequíveis.398

Para Baracho, “o modelo constitucional do processo civil assenta-se no

entendimento de que as normas e os princípios constitucionais resguardam o exercício da

função jurisdicional”399, de modo que o processo não é mais considerado mero instrumento da

jurisdição, mas uma garantia da legitimidade do provimento jurisdicional e de efetivação dos

direitos fundamentais assegurados pela Constituição.

O processo constitucional efetiva-se, nesse contexto, através da consagração de

procedimentos que garantam os direitos das partes, outorgando-lhes oportunidade do pleno

395 THEODORO JR., Humberto. Constituição e Processo: desafios constitucionais da reforma do processo civil no Brasil. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (coord.). Constituição e Processo: A contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 234. 396 THEODORO JR., Humberto. Direito Processual Constitucional. Revista Estação Científica. Juiz de Fora, v. 01, n. 04, out-nov, 2009, p. 31. 397 O mexicano Hector Fix-Zamudio destacou em sua obra publicada na década de 70 que as garantias fundamentais previstas nas Constituições passaram a ter relevância no estudo e interpretação do direito processual, concluindo que é impossível desvincular qualquer legislação processual de tais direitos fundamentais previstos pelas normas constitucionais. (FIX-ZAMUDIO, Hector. Constituición y Proceso Civil en Latinoamérica. México: Instituto de Investigaciones Juridicas, 1974) 398 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 383, jan-fev. 2006, p. 132. 399 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito Processual Constitucional: Aspectos Contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 15.

Page 193: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

191

exercício de ampla defesa em contraditório e assegurando a efetiva igualdade em todas as

fases de atuação do processo.

Com efeito, nessa perspectiva constitucional, o processo deve garantir “direitos de

participação e condições procedimentais que possibilitam a geração legítima do provimento

jurisdicional”400.

O ápice da teoria constitucionalista no Brasil foi alcançado pela Constituição da

República de 1988, de cujo enorme leque de garantias e direitos constitucionais deriva a

necessidade de que todas as ramificações do sistema jurídico pátrio – processuais ou não –

sejam lidas e interpretadas sob o viés constitucional, nada escapando aos anseios do Estado

Democrático de Direito.

Ou seja, a Constituição é o fundamento de validade de todo o sistema jurídico,

visto que a produção e aplicação do direito devem irrestrita obediência ao seu texto, não

havendo devido processo que não seja, em sua essência, constitucional.

A Constituição Democrática de 1988 possui, nesse sentido, um conteúdo

processual próprio e intangível. Existem disposições que reconhecem um conteúdo

instrumental do processo, representado exemplificativamente pela inserção de instrumentos

de operacionalização do direito material (ações), das regras de competência na estrutura

organizacional do Poder Judiciário, da ampla defesa e do contraditório dinâmico, e também

um conteúdo fundamental criador de direito material, ou melhor, conteúdo responsável pela

atribuição, em favor de todo e qualquer jurisdicionado, de direitos substanciais para serem

gozados no e em razão do processo.

Os direitos fundamentais de natureza processual vinculam tanto o Estado-Juiz

(como fator de legitimação da prestação da tutela jurisdicional), como também o Estado-

Legislador (na elaboração da norma infraconstitucional), revelando a matriz constitucional

intangível do processo, ordem vinculante de toda e qualquer ramificação do direito

processual.

Nas palavras de Humberto Theodoro Jr.:

Não é só o acesso de todos à Justiça estatal que se resta assegurado. Diante de qualquer lesão ou ameaça a direito, o que a Constituição garante é que, através do judiciário, seja disponibilizada uma tutela efetiva, capaz de

400 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O processo constitucional como instrumento de jurisdição constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 03, n. 5 e 6, 2000, p. 165.

Page 194: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

192

proporcionar a todos o desfrute real (concreto) tanto dos direitos subjetivos individuais como, principalmente, que se efetive essa tutela de modo a fazer respeitar e cumprir tudo aquilo que na Constituição fora estabelecido em torno das garantias fundamentais. Em toda extensão o processo se fundiu no programa tutelar idealizado pela ordem jurídica constitucional. Passou, antes de tudo, a ser comandado pelas regras e princípios da Constituição. As normas procedimentais, por sua vez, se viram obrigadas a conviver, no dia-a-dia do foro, com a supremacia dos preceitos e garantias da Lei Maior.401

Conclui o referido processualista que “todo o direito processual, direito ao acesso

à justiça, se viu envolvido pelo manto da constitucionalidade, traduzido na declaração de

garantia de processo justo em substituição à velha noção de devido processo legal”402.

A fórmula mínima do “processo justo” para se demonstrar o perfil do modelo

constitucional de processo adotado no Brasil está em estruturar-se o formalismo processual de

modo a nele terem lugar privilegiado os direitos fundamentais à tutela jurisdicional adequada

e efetiva (art. 5, inciso XXXV, CF), ao juiz natural (art. 5, incisos XXXVII e LIII, CF), à

representação técnica (art. 133, CF), à paridade de armas (art. 5, inciso I, CF), ao contraditório

substancial (art. 5, inciso LV, CR), à ampla defesa (art. 5, inciso LV, CF), à prova lícita (art.

5, inciso LVI, a contrário sensu, CF), à publicidade (art. 5, inciso LX, e 93, inciso IX, CF), à

motivação do provimento produzido a partir do debate processual (art. 93, inciso IX, CF), à

assistência jurídica integral (art. 5, inciso LXXIV, e 134, CF) e à duração razoável do

processo (art. 5, inciso LXXVIII, CF).403

Para a completa adequação ao modelo concebido pela Constituição é necessário

equilibrar o tempo processual e a segurança jurídica. Nessa perspectiva, ofendem o modelo de

processo justo as técnicas processuais que, em prol da celeridade a qualquer custo, implicam

prejuízos ao contraditório, à ampla defesa ou à produção de provas necessárias à correta

solução da causa; ao mesmo tempo, é incompatível com esse mesmo modelo o processo que,

embora assecuratório da ampla defesa, seja extremamente lento, possibilitando

procrastinações e renuncie à preclusão, possibilitando a perpetuação do contraditório inócuo

sem justificativas plausíveis para a extensão do debate processual.404

401 THEODORO JR., Humberto. Direito Processual Constitucional. Revista Estação Científica. Juiz de Fora, v. 01, n. 04, out-nov, 2009, p. 30. 402 THEODORO JR., Humberto. Direito Processual Constitucional. Revista Estação Científica. Juiz de Fora, v. 01, n. 04, out-nov, 2009, p. 31. 403 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. v.1. São Paulo: Atlas, 2010, p. 28. 404 FRANCO, Marcelo Veiga. Processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 88-89.

Page 195: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

193

Ou seja, nas palavras de Marcelo Franco, “a tempestividade processual não se

confunde com a precipitação ou aceleração procedimental, da mesma forma que o

contraditório e a segurança jurídica não equivalem à eternização de discussões”405.

Também integra o modelo constitucional de processo a garantia de independência

judicial prevista no art. 95 da Constituição. A independência do juiz não é uma prerrogativa

da pessoa que ocupa o cargo, mas se apresenta como garantia da sociedade e do próprio

Estado Democrático de Direito.

A independência judicial constitui exigência política destinada a conferir ao

magistrado plena liberdade decisória no julgamento das causas a ele submetidas, em ordem a

permitir-lhe o desempenho autônomo do officium judicis, de acordo com os fatos e

fundamentos debatidos no processo, sem o temor de sofrer, por efeito de sua prática

profissional, ameaças ou intromissões indevidas, direta ou indiretamente, de quaisquer setores

ou por quaisquer motivos, além de abusivas instaurações de procedimentos penais ou civis.406

Trata-se de garantia para a existência de um processo justo, uma vez que a atuação

independente do Poder Judiciário promove a efetivação dos direitos fundamentais, corrigindo

as ilegalidades ou omissões dos demais poderes, figurando como mecanismo de freio e

contrapesos que visa a manter o equilíbrio entre os poderes.

Tais direitos fundamentais constituem elementos intangíveis e essenciais para a

caracterização do modelo constitucional do processo civil brasileiro, os quais não podem ser

mitigados ou eliminados pelo legislador infraconstitucional. Sobre a presença de elementos

permanentes e essenciais ao modelo de processo, destaca-se a lição de Guilherme Botelho:

O modelo constitucional do processo civil brasileiro também possui seus valores permanentes. Trata-se dos direitos fundamentais processuais civis ou, na expressão que mais comumente se empregará neste estudo, direitos informativos do processo civil. Enquanto vigente a ordem constitucional, tais valores devem ser promovidos servindo de norte à interpretação de todo sistema processual. Mais do que isso, trata-se de valores que transcendem determinado ambiente cultural, sendo, portanto, transnacionais e transtemporais, dado que correspondem a uma exigência sem fronteiras.407

405 FRANCO, Marcelo Veiga. Processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 89. 406 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Entendimento manifestado no Inq 2.699-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-3-2009, Plenário, DJE de 8-5-2009. 407 BOTELHO, Guilherme. Direito ao processo qualificado: o processo civil na perspectiva do Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 96.

Page 196: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

194

De igual modo, para o professor Ronaldo Brêtas, o modelo de processo concebido

pela Constituição é uma estrutura metodológica normativa constitucional de garantia dos

direitos fundamentais, devendo ser apreendido como bloco aglutinante e compacto de vários

direitos e garantias fundamentais inseparáveis408.

Ensina, ainda, o referido processualista mineiro que a viga-mestra do modelo do

processo brasileiro é o devido processo constitucional (processo justo na concepção dos

italianos já mencionados neste capítulo), que se efetiva no pleno contraditório, na ampla

defesa, no juízo natural, nas decisões fundamentadas em consonância com o princípio da

reserva legal, na razoável duração do processo, na paridade das armas, entre outros princípios

e garantias que fundamentam o devido processo constitucional, como forma de se assegurar o

verdadeiro Estado Democrático de Direito.409

Assim, nesse contexto do paradigma do Estado Democrático de Direito

assegurado pela Carta de 1988, o devido processo constitucional (processo justo) é o conjunto

mínimo de características intangíveis previstas constitucionalmente, que conferem ao

processo a condição de direito-garantia fundamental do cidadão410, permitindo a ampla

participação em espaço discursivo para a construção e aplicação do direito legislado ao caso

concreto411.

Não se pode admitir, dentro desse paradigma, que o legislador infraconstitucional,

a pretexto de conferir maior celeridade e previsibilidade decisória, mitigue ou elimine as

garantias do modelo constitucional de processo. O problema da litigiosidade repetitiva é, de

fato, um problema vivenciado pelo Poder Judiciário na sociedade massificada, mas isso não

franqueia a possibilidade de criação de um modelo “próprio e peculiar” de processo para

remediar tais conflitos de forma mais célere e uniforme. As garantias constitucionais são as

mesmas em qualquer modalidade de processo e não podem assumir o caráter de mera ficção

jurídica em razão de disposições infraconstitucionais.

Com efeito, a reforma da legislação processual e a criação de novas técnicas de

408 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Fundamentos constitucionais da jurisdição no Estado Democrático de Direito. In: GALUPPO, Marcelo Campos (Coord.). Constituição e democracia: fundamentos. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 229. 409 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 92. 410 ARAÚJO, Marcelo Cunha de. O novo processo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 97-98. 411 ARAÚJO, Marcelo Cunha de. O novo processo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 105.

Page 197: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

195

julgamento não podem esvaziar “o papel do processo como instituição garantidora de

implementação de direitos fundamentais”412, promovendo a rapidez procedimental a qualquer

custo e reduzindo o espaço público de debate processual para formação do provimento, com o

comprometimento do contraditório substancial e a independência judicial.

Conforme já colocado, segundo a teoria de Fazzalari, não haverá processo sem a

efetiva participação em contraditório daqueles que são os interessados na lide, por serem esses

os sujeitos que suportarão os efeitos do provimento. Por isso o contraditório substancial,

como elemento necessário e intangível do modelo constitucional de processo, merece estudo

destacado nos tópicos seguintes.

3.7.1 O contraditório como elemento essencial do modelo constitucional de processo

Para verificação da compatibilidade do Incidente de Resolução de Demandas

Repetitivas com o modelo constitucional de processo civil, faz-se necessária também a

abordagem da evolução da concepção do princípio do contraditório, demonstrando que a sua

visão meramente formal ou estática como direito à bilateralidade da audiência, na qual uma

das partes argumenta e a outra simplesmente rebate o argumento, não tem mais espaço de

sustentação no paradigma do Estado Democrático de Direito.

Em sua perspectiva formal ou estática, o princípio do contraditório inspirava a

simples ideia de “ciência bilateral e obrigatória dos atos do processo, bem como a

possibilidade de contrariá-los. É a informação necessária a ambas as partes, a quem se deve

assegurar a oportunidade de reação”413.

O princípio do contraditório estava intimamente vinculado a uma concepção

formal de processo, em que o juiz assumia uma posição essencialmente passiva, dentro de um

esquema vertical e impositivo no relacionamento perante as partes.

A referida concepção formal acarreta a superficialidade e, muitas vezes, a

inutilidade do debate travado pelas partes no processo, tendo em vista que suas razões não

precisam integrar a fundamentação do juiz, cuja sentença seria, num esquema processual

verticalizado, uma consequência apenas da sua interpretação e convicção pessoal.

Essa interpretação reducionista do princípio do contraditório não se compatibiliza 412 NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e prolicentrismo. Horizontes para a democratização processual civil (Tese de doutoramento). PUC-MG, Belo Horizonte, 2008, p. 106. 413 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório. In: TUCCI, José Rogério Cruz e; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: RT, 2002, p. 20.

Page 198: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

196

com o modelo constitucional do processo, por permitir que o julgador assuma

metaforicamente o papel de verdadeiro “juiz Hércules”414, onisciente, onipresente, dotado de

qualidades e argumentos superiores, capaz de dar a solução que considera mais adequada para

os conflitos de interesses que lhe são submetidos, sem precisar considerar as razões

apresentadas pelas partes envolvidas na lide.

Noutro sentido, a concepção contemporânea do contraditório – denominada visão

substantiva, dinâmica ou tridimensional – vai muito além da mera manifestação e reação das

partes, assegurando a participação democrática das partes na formação da convicção do

julgador, que, por sua vez, não transcenderá daquilo que foi debatido no processo para

elucidação da lide (garantia de não surpresa).

Desenvolve-se a ideia de que a colaboração das partes no processo é indispensável

à construção e à eficácia da sentença415. Para tanto, as partes devem agir com respeito à

lealdade e à boa-fé processuais, em regime de cooperação com o órgão julgador,

abandonando-se o esquema processual vertical e impositivo no relacionamento com o

julgador, em prol de uma postura horizontal e dialógica entre os sujeitos processuais. 416

A relevância do tema sobressai em razão do tratamento jurídico dado pelo

CPC/2015 ao Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR, cujos efeitos erga

omnes e vinculantes afetam diretamente as partes dos processos suspensos e obrigam os juízes

de primeiro grau que sequer tiveram a oportunidade de interpretar a questão de direito

controvertida.

Ora, se a decisão que resolve o IRDR define a interpretação jurídica de questão de

direito que interessa a muitos processos sobrestados, tal decisão não pode ser considerada

totalmente diferente daquela que, em ação individual, resolve questão de direito que

posteriormente também não poderá mais ser rediscutida em qualquer outro processo. Em

outras palavras, “a resolução que se dê à questão jurídica na ação paradigmática repercutirá

em todas as demais, como se a discussão que lá se travou tivesse sido travada ao mesmo

414 O juiz Hércules é uma metáfora utilizada por Dworkin (1999) para demonstrar as qualidades excepcionais, quase divinas, do juiz que toma a melhor decisão em cada caso, respeitando o princípio da integridade e garantindo a coerência do Direito. (DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 377-492) 415 PICARDI, Nicola. Il principio del contraddittorio. Rivista di Diritto Processuale. Padova, CEDAM, n. 3, 1998, p. 673-674. 416 JAYME, Fernando Gonzaga; FRANCO, Marcelo Veiga. O princípio do contraditório no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 39, n. 227, jan. 2014, p. 356.

Page 199: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

197

tempo em cada uma dessas ações” 417, assumindo o incidente verdadeiro papel de polo difusor

da resolução única e vinculante sobre a questão de direito repetitiva.

Nessa perspectiva, o julgamento proferido no IRDR não pode prejudicar terceiros,

que dele não participaram (art. 506 do CPC/2015). Interpretação contrária constituiria

flagrante violação ao direito fundamental de participar do processo e de influenciar o

julgador.

Daí a importância da análise da temática a partir do contraditório dinâmico ou

substancial para demonstrar que, no modelo constitucional de processo, a justa composição da

lide pressupõe, em qualquer situação, a participação das partes em simétrica paridade, com

efetivo direito de influência na construção da fundamentação do provimento jurisdicional,

como resultado legítimo do processo democrático.

3.7.2 A evolução do contraditório formal ao substancial: o direito de influência e o dever

de cooperação entre as partes e o juiz na construção do provimento jurisdicional

A Constituição Federal de 1988 consagrou o princípio do contraditório no art. 5º,

LV: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são

assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O princípio do contraditório é considerado um dos mais relevantes entre os

corolários do devido processo legal, ou melhor, do “processo justo”. Da mesma forma que

este, é um princípio fundamental do processo democrático.

Ao longo do tempo, o estudo do contraditório apontou duas concepções distintas

que se complementam no sistema processual contemporâneo para conferir real concretude ao

processo democrático, quais sejam: a concepção clássica de caráter formal, estático e a visão

moderna substantiva, dinâmica ou tridimensional do contraditório.

A visão meramente formal ou estática do contraditório desdobra o princípio

apenas no direito à informação e à reação.

O direito à informação refere-se à possibilidade de tomar conhecimento dos fatos

em que se sustenta o processo, bem como de vista dos documentos e de outros dados

presentes nos autos, e ainda ter acesso a todas as informações e atos que de alguma forma

possam interferir no julgamento.

417 BARBOSA, Andrea Carla; CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto do Código de Processo Civil: apontamentos iniciais. In: FUX, Luiz (coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em perspectiva. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 491-492.

Page 200: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

198

Frise-se que o direito à informação como expressão do contraditório formal

concretiza-se durante todo o processo, restando assegurada às partes a possibilidade de

acompanhar e de ter ciência dos atos processuais.

O direito à reação, por sua vez, relaciona-se à elaboração e apresentação de

argumentos contrários, fatos, documentos ou quaisquer instrumentos legais que objetivam

sustentar a posição defendida pela parte, demonstrando o caráter dialético do processo.

Nelson Nery Jr. explica que “garantir-se o contraditório significa a realização da

obrigação de noticiar (Mitteilungspflicht) e da obrigação de informar (Informationspflicht)

que o órgão julgador tem, a fim de que o litigante possa exteriorizar suas manifestações”418.

Também nas palavras de Alexandre Câmara, define-se o contraditório, sob o

aspecto formal, como a mera “garantia de ciência bilateral dos atos e termos do processo com

a consequente possibilidade de manifestação sobre os mesmos”419.

Ou seja, a visão formal ou estática do contraditório estaria relacionada com a

expressão audiatur et altera pars (“ouça-se a outra parte”). O importante é que se dê ao

processo uma estrutura dialética. Se o autor propôs a sua ação, tem o réu o direito de contestá-

la. Se forem arroladas testemunhas por uma das partes, a outra tem o direito de contraditá-las,

interrogá-las e também arrolar as suas. Se o autor arrazoou, deve ser dada igual possibilidade

ao réu420.

O contraditório estático limita-se, enfim, a reconhecer uma igualdade apenas

formal entre as partes no processo, o que não passa de uma mera ficção jurídica pela qual não

se exige do julgador uma postura horizontal e dialógica no sentido de assegurar às partes o

justo processo.

A toda evidência, a visão formal ou estática do contraditório reduz sobremaneira o

alcance do referido princípio, na medida em que não confere importância à finalidade do

debate travado entre as partes no processo, permitindo que o juiz não se vincule às razões

aduzidas e que a sentença seja consequência apenas da interpretação pessoal desse

magistrado.

418 NERY JR., Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. São Paulo: RT, 2009, p. 206. 419 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. I. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 50. 420 TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 44.

Page 201: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

199

No sistema processual contemporâneo, a concepção do referido princípio se

ampliou, a fim de que, como garantia constitucional, pudesse atingir sua verdadeira função no

paradigma do Estado Democrático de Direito, qual seja, assegurar a participação democrática

das partes na construção do provimento jurisdicional.

Trata-se, nas palavras de Fernando Jayme e Marcelo Franco, “da conjugação dos

direitos das partes ao conhecimento e à participação no processo em simétrica paridade

(dimensão estática), com a possibilidade de interferência e de fiscalização dos resultados

advindos do exercício da função jurisdicional (dimensão dinâmica)” 421.

A igualdade das partes e a sua mera audiência bilateral no processo não satisfazem

o contraditório participativo como instrumento do princípio político da participação

democrática. É necessário que o contraditório instaure um diálogo humano, que permita a

efetiva contribuição das partes na formação da decisão. O juiz confere às partes a

oportunidade concreta de apresentarem e debaterem seus argumentos, produzirem as provas e

influenciarem a formação do convencimento do juízo.

De acordo com a concepção contemporânea, “não se pode mais, na atualidade,

acreditar que o contraditório se circunscreva ao dizer e contradizer formal entre as partes, sem

que isso gere uma efetiva ressonância (contribuição) para a fundamentação do

provimento”422.

Por isso, Dierle Nunes adverte que o processo deve ser estruturado em qualquer

situação sob uma perspectiva comparticipativa e policêntrica, ancorado nas garantias

fundamentais previstas na Constituição, constituindo um espaço público no qual se

apresentam plenas condições comunicativas para que todos os legitimamente interessados

participem da formação do provimento jurisdicional 423.

É nesse momento que se destaca a visão substancial ou dinâmica do princípio do

contraditório. Esse elemento substancial do contraditório é chamado “poder de influência e de

não surpresa”.

A dimensão substancial do contraditório é ressaltada por Fredie Didier Jr.,

421 JAYME, Fernando Gonzaga; FRANCO, Marcelo Veiga. O princípio do contraditório no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 39, n. 227, jan. 2014, p. 344-345. 422 NUNES, Dierle José Coelho. Curso de Direito Processual Civil: fundamentação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 81. 423 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008, p. 211.

Page 202: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

200

segundo o qual:

Não adianta permitir que a parte simplesmente participe do processo. Apenas isso não é o suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado. Se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a decisão do órgão jurisdicional – e isso é o poder de influência, de interferir com argumentos, ideias, alegando fatos, a garantia do contraditório estará ferida. É fundamental perceber isso: o contraditório não se efetiva apenas com a ouvida da parte; exige-se a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar o conteúdo da decisão.424

Assim, enquanto na concepção estática do contraditório destacava-se o seu

aspecto meramente formal, significando apenas o direito da parte ser informada dos atos

praticados e de se manifestar no processo, a visão dinâmica ou substantiva passa a considerá-

lo sob três dimensões fundamentais e indissociáveis: a) direito de informação: o órgão

julgador deve informar às partes os atos praticados no processo e os elementos dele

constantes; b) direito de manifestação ou reação: é assegurado à parte o direito de se

manifestar oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do

processo; e c) direito de influência e de não surpresa: o julgador tem o dever de conferir

atenção às razões relevantes apresentadas, não somente para tomar conhecimento, mas

também para considerá-las detidamente quando do julgamento, sem surpreender as partes

com questões não debatidas.

O caráter tridimensional da referida concepção demonstra que o contraditório tem

diversas facetas, com destaque para o direito de influência e de não surpresa, que constitui o

aspecto substancial indispensável à concretude da participação democrática no processo. Ou

seja, as partes deixam de ser meros espectadores e sujeitos passivos à espera de uma decisão a

ser prolatada pelo juiz, como único intérprete do Direito, e passam a atuar ativamente de

forma a influenciar a construção da decisão.

A dimensão dinâmica do contraditório reflete, assim, a prerrogativa de simétrica

influência dos sujeitos processuais na construção do conteúdo da decisão judicial, em sintonia

com o dever imposto ao julgador, como terceiro imparcial, de assegurar às partes iguais

oportunidades de interferência nos resultados da atividade jurisdicional, inclusive quanto às

424 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 52.

Page 203: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

201

questões apreciáveis de ofício, não podendo surpreendê-las. 425

A propósito, Theodoro Jr. e Dierle Nunes ensinam que:

(...) o contraditório moderno constitui uma verdadeira garantia de não surpresa que impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive as de conhecimento oficioso, impedindo que, em “solitária onipotência”, aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou de ambas as partes.426

Nesse mesmo diapasão, estabelece Zaneti Jr.:

É justamente no contraditório, ampliado pela Carta do Estado Democrático brasileiro, que se irá apoiar a noção de processo democrático, o processo como procedimento em contraditório, que tem na sua matriz substancial a “máxima da cooperação” (...) O contraditório surge então renovado, não mais unicamente como garantia do direito de resposta, mas sim como direito de influência e dever de debate.427

O direito de influência – marcante na visão tridimensional ou substantiva do

contraditório – corporifica-se, nesse contexto, no princípio da cooperação, a propugnar pela

formação de uma verdadeira comunidade processual na qual atuam, em conjunto e em

simétrica paridade, todos os sujeitos do processo, partes e juiz, contribuindo para que o

processo seja conduzido da melhor forma possível e, principalmente, para que o provimento

jurisdicional seja construído a partir do debate e dos argumentos trazidos ao processo.

Nessa comunidade processual a direção do processo é “compartilhada”

igualitariamente entre as partes e o juiz, que assume a posição de interlocutor que dialoga

permanentemente com os sujeitos processuais. 428

Nas palavras de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira:

(...) a ideia de cooperação além de implicar, sim, um juiz ativo, colocado no centro da controvérsia, importará senão o restabelecimento do caráter isonômico do processo, pelo menos a busca de um ponto de equilíbrio. Esse

425 JAYME, Fernando Gonzaga; FRANCO, Marcelo Veiga. O princípio do contraditório no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 39, n. 227, jan. 2014, p. 345. 426 THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo. São Paulo, n. 168, 2009, p. 125. 427 ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 191. 428JAYME, Fernando Gonzaga; FRANCO, Marcelo Veiga. O princípio do contraditório no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 39, n. 227, jan. 2014, p. 346-347.

Page 204: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

202

objetivo impõe-se alcançado pelo fortalecimento dos poderes das partes, por sua participação mais ativa e leal no processo de formação da decisão, em consonância com uma visão não autoritária do papel do juiz e mais contemporânea quanto à divisão do trabalho entre o órgão judicial e as partes.429

Essa nova postura das partes em face do juiz no direito processual contemporâneo

também foi destacada nas palavras de Mancuso:

(...) esse renovado contexto participativo pressupõe um ambiente de colaboração entre os sujeitos da relação processual – juiz e partes – em prol do desdobramento da verdade dos fatos e da consecução de uma decisão justa e tempestiva, o que não se coaduna com um exacerbado sistema adversarial, aderente à terminologia tradicional: vencedor e vencido; sucumbente, executado, expressões que denunciam um processo visto como uma arena de combate, por onde se espraia o direito em pé de guerra. 430

Com efeito, a participação democrática reclama que os agentes do Estado -

especialmente do Poder Judiciário, que não foram eleitos pela vontade popular – exerçam

suas atribuições com a colaboração de todos que se apresentem como interessados no

processo de construção da decisão. Conforme parecer do deputado Paulo Teixeira:

(...) o projeto do novo Código de Processo Civil consagra, em combinação com o princípio do contraditório, a obrigatória discussão prévia da solução do litígio, conferindo às partes oportunidade de influenciar as decisões judiciais, evitando, assim, a prolação de “decisões-surpresa”. Às partes deve-se conferir oportunidade de, em igualdade de condições, participar do convencimento do juiz. (...) A necessidade de participação, que está presente na democracia contemporânea, constitui o fundamento do princípio da cooperação. Além de princípio, a cooperação é um modelo de processo plenamente coerente e ajustado aos valores do Estado Democrático de Direito. Além da vedação de decisão-surpresa, o processo cooperativo impõe que o pronunciamento jurisdicional seja devidamente fundamentado, contendo a apreciação completa das razões invocadas por cada uma das partes para a defesa de seus respectivos interesses.431

Leonardo Greco sintetiza com precisão o direito de influência na concepção atual

do contraditório, que recebe do autor a denominação “contraditório participativo”, no qual o

juiz e as partes atuam conjuntamente e em cooperação na solução da lide, in verbis: 429 ÁLVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa, v. 44, 2003. p. 26. 430 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2012, p. 435. 431 BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer da Comissão Especial referente ao Projeto de Lei nº 8.046, de 2010. Rel.: dep. Paulo Teixeira. Brasília, 26 mar. 2014, p. 35-36. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em: ago. 2015.

Page 205: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

203

(...) o contraditório deixou de ser um simples instrumento de luta entre as partes para transformar-se num instrumento operacional do juiz, ou melhor, um pressuposto fundamental do próprio julgamento. (...) Para isso, o contraditório não pode mais apenas reger as relações entre as partes e o equilíbrio que a elas deve ser assegurado no processo, mas se transforma numa ponte de comunicação de dupla via entre as partes e o juiz. Isto é, o juiz passa a integrar o contraditório, porque, como meio assecuratório do princípio político da participação democrática, o contraditório deve assegurar às partes todas as possibilidades de influenciar eficazmente as decisões judiciais.432

Ora, se o contraditório confere às partes o direito garantia de ver as suas alegações

e provas analisadas pelo órgão julgador, não se pode permitir que a decisão jurisdicional seja

proferida com explícito desprezo à colaboração dos seus próprios destinatários.

Por isso, o julgador não “proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja

previamente ouvida” (art. 9º do CPC/2015) e também não poderá “decidir, em qualquer grau

de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes

oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de

ofício” (art. 10º – princípio da não surpresa).

É certo que somente a partir da referida concepção contemporânea do

contraditório é que se poderá alcançar o “processo justo” defendido por Comoglio 433 já

estudado em tópico específico deste capítulo. Com efeito, para ser justo não basta apenas que

o processo seja célere e de acordo com a lei, mas principalmente que assegure a atuação de

forma adequada e efetiva de todas as garantias fundamentais, refletindo o devido processo tal

como preconizado pela Constituição.

A concepção dinâmica ou substantiva do contraditório como direito de

informação, reação e de influência exprime, em toda sua plenitude, o caráter democrático do

processo, possibilitando o debate participativo, cooperativo e pluralista para construção do

provimento jurisdicional – essencial para o processo justo e para a concretude do modelo

constitucional de processo.

A participação das partes que serão afetadas pelo provimento jurisdicional é

432 GRECO, Leonardo. O princípio do contraditório. Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005, p. 541. 433 COMOGLIO, Luigi Paolo. Etica e tecnica del giusto processo. Torino: G. Giappichelli, 2004, p. 60; No mesmo sentido: COMOGLIO, Il “Giusto Processo” Civile in Italia e in Europa. Revista de Processo: RePro, v. 29, n. 116, jul.-ago. 2004, p. 138.

Page 206: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

204

fundamental, portanto, para se assegurar efetivamente a garantia do contraditório substancial.

Transformá-lo em mera ficção jurídica para adequá-lo à nova técnica de resolução de

demandas repetitivas é o mesmo que negá-lo como garantia fundamental do processo justo.

3.7.3 A construção participativa da fundamentação das decisões judiciais: dever de

considerar os argumentos aduzidos pelas partes

No Estado Democrático de Direito, a legitimidade do Poder Judiciário – único

Poder da República cujos representantes não são democraticamente escolhidos pelo povo –

dá-se pela fundamentação da decisão construída a partir do discurso racional e participativo

no processo.

Quando Fazzalari define o processo como o procedimento realizado em

contraditório entre as partes – ou seja, o procedimento em que as partes participam, em

igualdade de condições, da elaboração do provimento final –, revela que as partes são

também, em certo sentido, tão autores da sentença quanto o juiz.

Vale dizer, o sentido da norma jurídica e a definição de qual norma regula

determinado caso só se revelam em sua inteireza quando os envolvidos participam

plenamente desse discurso racional de aplicação e de interpretação. 434

Portanto, na democracia, o processo decisório deve desenvolver-se em ambiente

discursivo propício à participação efetiva das partes e à valorização da argumentação jurídica,

visando sempre à definição e à aplicação do que é correto, válido ou devido.

A propósito, destaca-se o magistério de Robert Alexy:

A questão da legitimidade do Poder Judiciário surge sempre que se pergunta sobre o alcance da norma constitucional expressa no enunciado de que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único). Se o poder judicial não é exercido pelo povo “diretamente”, nem por meio de “representantes eleitos”, impõe-se investigar o que torna justificável a aceitação das decisões dos juízes por parte da cidadania. A única possibilidade de conciliar a jurisdição com a democracia consiste em compreendê-la também como representação do povo. Não se trata, obviamente, de um mandato outorgado por meio do sufrágio popular, mas de uma representação ideal que se dá no plano discursivo, é dizer, uma “representação argumentativa”. Essa representação argumentativa é exercida não no campo das escolhas políticas – cujas deliberações versam (predominantemente) sobre o que é bom, conveniente ou oportuno –, mas no campo da aplicação do Direito, sob as regras do discurso racional por meio do qual se sustenta e se declara o que

434 GALUPPO, Marcelo Campos. Hermenêutica constitucional e pluralismo. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coord.). Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 63.

Page 207: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

205

é correto, válido ou devido.435

Daí a relação intrínseca e direta entre o contraditório substancial e a

fundamentação das decisões judiciais no processo democrático, cujo pilar de sustentação é a

construção participativa do provimento jurisdicional.

Com efeito, “a motivação decisória é inserida como elemento estrutural do

contraditório, a partir de uma perspectiva comparticipativa do contraditório que considere as

partes como reais partícipes da construção do provimento” 436.

Nesse contexto, o entendimento em relação ao julgamento do IRDR não pode ser

diferente, sob pena de se admitir a existência de um contraditório meramente presumido no

incidente coletivo, cujo resultado da interpretação vinculante da questão de direito repetitiva

poderá prejudicar o direito individual daquelas partes ausentes (dos processos sobrestados)

que não tiveram a oportunidade de participar efetivamente ou serem representadas

adequadamente no debate processual.

O fato do incidente possuir a natureza jurídica de um processo objetivo, conforme

já se demonstrou no capítulo 02, não pode justificar a relativização da garantia do

contraditório substancial, especialmente em razão do caráter coletivo e concreto de que

também se reveste o procedimento já que influenciado na sua essência pelo modelo das ações

de grupo do direito comparado.

A legitimidade democrática do referido julgamento perpassa, assim, pela

indispensável participação das partes ausentes e, outrossim, pelo controle da

representatividade adequada dessas mesmas partes (que será objeto de análise em tópico

específico), sob pena de flagrante violação ao modelo constitucional de processo. 437

435 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 163. 436 JAYME, Fernando Gonzaga; FRANCO, Marcelo Veiga. O princípio do contraditório no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 39, n. 227, jan. 2014, p. 354. 437 Sofia Temer defende, por sua vez, uma nova concepção de contraditório, que não seja entendido como igualdade de condições de participação direta e pessoal, mas que atenda ao caráter objetivo do IRDR e seja compatível com a tutela das demandas repetitivas. Nas palavras da referida jurista: “a natureza objetiva do incidente dispensa, então, a perquirição da vontade dos sujeitos parciais das demandas repetitivas, porquanto não haverá direta interferência em sua esfera de direitos e, por conseguinte, no espaço em que devem poder exercer sua autonomia. Como o incidente visa à definição da melhor solução para um problema de conformidade e coerência do ordenamento jurídico, o direito à influência no debate que ocorre no incidente decorre da possibilidade de estabelecimento de diálogo fundado em argumentos racionais. A participação aqui é vista, então, como a possibilidade de convencimento, através da apresentação (direta ou indireta) de razões para a resolução da controvérsia jurídica”. (TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 137-138). Entende-se, ao contrário, que transformar o direito ao contraditório em mera ficção jurídica em relação, sobretudo, aos litigantes ausentes é o mesmo que desconsiderá-lo no

Page 208: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

206

Essa visão substancial ou dinâmica do contraditório e sua aplicação ao IRDR não

só reflete na atuação das partes, mas principalmente na atuação do órgão julgador. De mero

destinatário e expectador dos atos processuais, o juiz ou o tribunal local, no caso do incidente,

também alcançou a condição de ator processual ativo e comprometido com a condução do

processo de forma democrática e participativa.

Como justifica Bedaque:

Tanto quanto as partes, tem o juiz interesse em que sua função atinja determinados objetivos, consistentes nos escopos da jurisdição. Os valores determinantes do modo de ser do juiz na condução da relação processual não são os mesmos vigentes no início do século. A crescente complexidade das situações regidas pelo direito substancial, a enorme disparidade econômica entre os sujeitos do direito, a integração cada vez maior de culturas jurídicas diferentes, determinada pelo que se convencionou chamar de globalização, tudo isso exige maior preocupação do representante estatal com o resultado do processo. Vem daí a ideia do juiz participativo.438

Dierle Nunes também destaca o novo papel do juiz no contexto da concepção do

contraditório como direito de influência e de não surpresa:

O processo que durante o liberalismo privilegiava o papel das partes e que após os grandes movimentos reformistas pela oralidade e pela instauração do princípio autoritário implementou um ativismo judicial que privilegiava a figura do juiz passa em um estado democrático, com a releitura do contraditório, a permitir uma melhora da relação juiz-litigantes de modo a garantir o efetivo diálogo dos sujeitos processuais na fase preparatória do procedimento (audiência preliminar para fixação dos pontos controvertidos), e na fase de problematização (audiência de instrução e julgamento) permitindo a comparticipação na estrutura procedimental.439

O direito de ampla participação e influência atua ainda, sob outra ótica, como um

limite ao poder do juiz, gerando a existência de um dever de debate por parte do julgador,

mesmo nos casos em que seja possível e recomendável a sua atuação de ofício. 440

Em outras palavras, tudo que o juiz decidir fora do debate travado pelas partes

implica surpreendê-las, ofendendo o caráter dialético e democrático do processo, mesmo que

procedimento do IRDR. 438 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório. In: TUCCI, José Rogério Cruz e; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: RT, 2002, p. 21. 439 NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. Boletim Técnico da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Belo Horizonte, v. 1, jan.-jun. 2004, p. 41. 440ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 196.

Page 209: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

207

o objeto da decisão corresponda a matéria apreciável de ofício, o que se denomina de

princípio da não surpresa.

Sobre o tema, Álvaro de Oliveira assevera que:

A liberdade concedida ao julgador na eleição da norma a aplicar, independentemente de sua invocação pela parte interessada, consubstanciada no brocardo iura novit curia, não dispensa a prévia ouvida das partes sobre os novos rumos a serem imprimidos ao litígio, em homenagem, ainda aqui, ao princípio do contraditório. A hipótese não é pouco comum porque são frequentes os empecilhos enfrentados pelo aplicador do direito, nem sempre de fácil solução, dificuldade geralmente agravada pela posição necessariamente parcializada do litigante, a contribuir para empecer visão clara a respeito dos rumos futuros do processo. Aliás, a problemática não diz respeito apenas ao interesse das partes, mas conecta-se intimamente com o próprio interesse público, na medida em que qualquer surpresa, qualquer acontecimento inesperado, só faz diminuir a fé do cidadão na administração da justiça. O diálogo judicial e a cooperação, acima preconizada, tornam-se, no fundo, dentro dessa perspectiva, autêntica garantia de democratização do processo, a impedir que poder do órgão judicial e a aplicação da regra iura novit curia redundem em instrumento de opressão e autoritarismo, servindo às vezes a um mal explicado tecnicismo, com obstrução à efetiva e correta aplicação do direito e à justiça do caso.441

Nesse contexto, a fundamentação da decisão judicial não deve se constituir apenas

em uma justificativa racional do entendimento do julgador. Deve demonstrar também que o

juiz não só tomou ciência do conteúdo do debate travado no processo e de todas as questões

suscitadas, mas também que todas elas foram apreciadas séria e detidamente. 442

O juiz, na fundamentação, mais do que analisar deve resolver as questões de fato e

de direito. Portanto, fundamentar implica o dever de expor de forma lógica as razões, de fato e

de direito, que conduziram o magistrado até aquela decisão; e deve existir uma exteriorização

racional do convencimento do juiz, como meio de comprovar o distanciamento judicial de

arbitrariedades.

Com efeito, a exposição das razões de convencimento do julgador estaria para a

sentença assim como a causa de pedir está para a petição inicial; e as razões de defesa, para a

contestação. A par disso, as razões de decidir devem constituir o acolhimento dos argumentos

441 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. (org.) Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 194. 442 GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 271.

Page 210: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

208

de uma das partes e a rejeição de outros. 443

Ou seja, a fundamentação deve ser qualificada e analítica para legitimar a

representatividade outorgada ao Poder Judiciário pelo Estado Democrático de Direito e

consagrar o modelo constitucional de processo, pois impede o arbítrio e concretiza a garantia

fundamental do contraditório substancial.

Em relação ao IRDR, conforme preconiza a lei no § 2º do art. 984, que regula o

julgamento do incidente, deverão ser abrangidos pelo acórdão “todos os fundamentos

suscitados concernentes à tese jurídica discutida”, sejam eles favoráveis ou desfavoráveis ao

entendimento adotado pelo tribunal, sob pena de nulidade do julgado por ausência de

fundamentação.

De igual modo, determina o inciso IV do § 1º do art. 489 do NCPC que não deve

ser considerada fundamentada a decisão judicial que não enfrente todos os argumentos

deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador.

Os argumentos capazes de infirmar a conclusão são aqueles considerados

relevantes para o entendimento da controvérsia e, portanto, essenciais para a completa

prestação jurisdicional.

O art. 489, § 1º, inciso IV do CPC dispõe que o órgão julgador não tem o dever de

rebater todos os argumentos superficiais ou periféricos levantados pelas partes, mas sim

aqueles que são relevantes, ou seja, todos os que são capazes de infirmar a conclusão adotada

pelo julgador, aqueles que são idôneos para a alteração do julgado. 444

Com efeito, a relação direta entre a fundamentação e os argumentos apresentados

pelas partes não deve significar necessariamente que todo argumento, por mais insignificante

que seja, deva sempre ser objeto de análise no provimento jurisdicional. Do contrário, o dever

de fundamentação se transformaria na obrigação de responder questionários formulados pela

parte inconformada com eventual derrota no processo, o que comprometeria a eficiência da

prestação jurisdicional, além de permitir manobras protelatórias das partes, o que não condiz

com o propósito da novel legislação. Sem falar no desvirtuamento da função jurisdicional,

transformando em órgão consultivo ao invés de deliberativo.

443 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. IV. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 661. 444 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 493.

Page 211: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

209

Destarte, a decisão, no processo jurisdicional democrático, e isso também deve se

aplicar ao IRDR, não pode mais ser vista como expressão da vontade única do órgão julgador

e sua fundamentação não pode ser vislumbrada como mecanismo formal de legitimação de

um entendimento que este tinha antes mesmo do debate travado no processo. Pelo contrário,

deve-se buscar legitimidade a partir da consideração dos aspectos relevantes e racionais

suscitados e debatidos por todos os participantes e destinatários do provimento, informando

razões (na fundamentação) que sejam convincentes para todos os interessados no espaço

público e aplicando o arcabouço jurídico existente sem inovações subjetivistas.

A participação de todas as partes que serão afetadas pelo provimento jurisdicional

é, nesse contexto, fundamental para a legitimidade do julgamento do IRDR e para assegurar

que, de fato, todos os argumentos considerados relevantes serão apresentados e submetidos à

análise do órgão julgador.

Tal como previsto no CPC/2015, o Incidente de Resolução de Demandas

Repetitivas restringe o debate processual, na medida em que possibilita a concentração da

definição da interpretação do direito perante o tribunal local ou regional – instância

meramente ordinária –, prescindindo do julgamento do juiz de 1º grau e, ainda, prescindindo

do controle de representatividade das partes ausentes que serão afetadas pelo provimento

jurisdicional, conforme será abordado a seguir.

3.7.4 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o contraditório substancial

O STF também adotou a visão substantiva do contraditório e sua indispensável

repercussão na fundamentação das decisões.

No julgamento do Mandado de Segurança nº 24.268 445, o plenário da Suprema

445 É importante citar a ementa do Mandado de Segurança nº 24.268 (rel. min. Gilmar Mendes, Diário Oficial de 17/9/2004): “Mandado de Segurança. 2. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas da União. Ausência de comprovação da adoção por instrumento jurídico adequado. Pensão concedida há vinte anos. 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. 4. Direito constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. 7. Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 8. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. 9. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica.

Page 212: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

210

Corte decidiu que a pretensão à tutela jurídica justa (processo justo) envolveria não só o

direito de informação e de manifestação, mas também o direito de influência, isto é, o direito

de as partes verem seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. O entendimento foi

reiterado no Mandado de Segurança nº 25.787 446, conforme decisão do plenário do Supremo

Tribunal Federal publicada em 14 de setembro de 2007.

A propósito, o ministro Gilmar Mendes, relator em ambos os casos, consignou em

seu voto:

Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador (Recht auf Berucksichtigung), que corresponde, obviamente, ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção (Beachtenspflicht), pode-se afirmar que envolve não só o dever de tomar conhecimento (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungspflicht).447

Nos referidos precedentes, restou consignado que a fundamentação das decisões

deriva da obrigação de considerar as razões apresentadas pelas partes no processo, seja ele

judicial ou administrativo, de modo que o julgamento pelo órgão sem a oitiva e a participação

das partes envolvidas violaria o âmago do contraditório.

A parte tem, enfim, o direito de ver os seus argumentos considerados no

julgamento, exigindo do órgão julgador capacidade e isenção de ânimo para contemplar as

razões apresentadas.

A toda evidência, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal nos referidos

precedentes também contribui para a participação democrática no processo e, sobretudo,

assegura na essência o direito ao contraditório substantivo como direito de influência e de não

surpresa.

Embora o novo CPC admita a construção participativa da fundamentação das

Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV)”. 446 Ementa: “Mandado de Segurança. 2 Decisão do Presidente da República que, em processo administrativo, indeferiu recurso hierárquico e, por consequência, manteve decisão que declarou a caducidade da concessão outorgada à Transbrasil S.A Linhas Aéreas para a prestação de serviço de transporte aéreo. 3. Alegada violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório, assim como a dispositivos da Lei nº 9.784/99, pois a impetrante não teria sido comunicada da instauração do processo administrativo ou de qualquer ato nele praticado, não lhe tendo sido concedida oportunidade de proferir defesa de forma adequada. 4. Os documentos juntados aos autos pela própria impetrante, porém, demonstram cabalmente que lhe foram asseguradas todas as garantias da ampla defesa e do contraditório, como os direitos de informação sobre os atos produzidos no processo, de manifestação sobre seu conteúdo e de ter seus argumentos devidamente considerados pela autoridade administrativa. 5. Mandado de Segurança indeferido.” 447 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 24.268. Relator ministro Gilmar Mendes. 17/9/2004.

Page 213: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

211

decisões, isso poderá ser comprometido na aplicação prática do Incidente de Resolução de

Demandas Repetitivas, que se estrutura a partir de uma mera ficção da garantia do

contraditório, violando o modelo constitucional do processo.

3.8 A ausência de controle judicial da representatividade adequada das partes que serão

afetadas pelo IRDR e sua repercussão no contraditório substancial

Antes da abordagem do tema especificamente em relação ao IRDR, importante

apresentar algumas considerações introdutórias acerca do controle judicial da representação

adequada no direito comparado.

No sistema da class action do direito norte-americano, o controle da

representação adequada dos titulares dos direitos objetos da tutela é considerado requisito

essencial para legitimar a propositura de ação coletiva pelos representantes. Os

representantes precisam demonstrar em juízo suas condições de defender o direito coletivo

veiculado no processo, fazendo-o da maneira mais eficiente possível, sob pena da ação

coletiva não ser certificada como tal.

De acordo com Antonio Gidi, a finalidade desse requisito é “que o candidato a

representante proteja adequadamente os interesses do grupo em juízo” 448. E prossegue o

referido autor, “esse requisito é essencial para que haja o respeito ao devido processo legal

em relação aos membros ausentes e, consequentemente, indispensável para que eles possam

ser vinculados pela coisa julgada produzida na ação coletiva (...)”449.

“Nos casos em que o grupo ou alguns membros não foram representados

adequadamente na ação coletiva, os tribunais, em processo posterior, não reconhecem o efeito

vinculante da coisa julgada coletiva e podem decidir novamente a questão (collateral

attack)” 450.

Destaca-se que o referido controle da representação também se dá em relação aos

advogados atuantes no processo para verificar se possuem condições técnicas de realizar

defesa fiel e adequada aos interesses do grupo.451 A capacidade, experiência na matéria

448 GIDI, Antônio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: RT, 2007, p. 99. 449GIDI, Antônio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: RT, 2007, p. 99. 450 GIDI, Antônio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: RT, 2007, p. 101. 451 CAVALCANTI, Mauro de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas e ações coletivas.

Page 214: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

212

discutida nos autos, a reputação profissional e a dedicação do advogado do representante

serão submetidas ao controle judicial.

Nas palavras de Marcos Cavalcanti,

Verificada a adequação da representatividade e, por consequência, certificada a demanda como ação coletiva, presume-se que todos os integrantes da classe estão devidamente representados em juízo. Por essa razão, a vontade manifestada pela parte representativa será a vontade de todos os integrantes do grupo. Daí o motivo pelo qual o regime jurídico das modernas class actions permite que os membros ausentes do grupo sejam alcançados pelos efeitos da decisão e da coisa julgada material, independentemente do resultado da decisão, salvo quando exercido o direito de autoexclusão (opt-out). (...) O controle judicial é sempre contínuo. Se, a qualquer momento, durante o processamento da demanda, for verificado que as partes representativas não tem condições de efetuar a adequada defesa dos direitos coletivos, a ação coletiva deve ser decertificada. Com isso, a decisão ali proferida não terá o condão de atingir os membros ausentes do grupo.452

De forma semelhante, o procedimento modelo do sistema alemão, que inspirou a

criação do IRDR pelo CPC/2015, também prevê o controle de representação das partes do

grupo que será afetado pelo julgamento.

Compete ao tribunal de segunda instância (Oberlandesgericht-OLG), antes do

julgamento da questão isomórfica, proceder à escolha de um líder (parte principal) tanto para

a autora (Musterkläger) quanto para a parte ré (Musterbeklagte) que passam a ser os

interlocutores diretos com a Corte. Caberá ao líder da parte autora definir a estratégia

processual e a forma de condução do processo, não podendo os intervenientes contrariá-lo.453

A definição do líder (parte principal), contudo, não impede a participação direta

dos interessados. As partes dos processos individuais dependentes do julgamento do incidente

coletivo são consideradas intervenientes e também podem se valer de meios diretos de ataque

e defesa.

Os interessados ausentes não serão atingidos pela eficácia da decisão-modelo se a

atuação processual foi deficiente, se o líder não se utilizou dos meios de ataque e defesa

cabíveis em razão de negligência na condução do processo. A má gestão processual poderá,

Salvador: JusPodivm, 2015, p. 591. 452CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 592-593. 453 ROSSONI, Igor Bimkowski. O incidente de resolução de demanda repetitivas e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso? Disponível em http://www.tex.pro.br/home/artigos/44-artigos-dez-2010/4740-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocessol, p. 24-25. Acesso em: 21 dez. 2015.

Page 215: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

213

assim, comprometer a extensão dos efeitos da coisa julgada (pro et contra).

Nesse contexto, o contraditório substancial, entendido como direito fundamental

de participar e influenciar o convencimento do órgão julgador na construção do provimento

jurisdicional, somente será assegurado aos membros ausentes se houver atuação eficiente do

representante escolhido como líder processual para a defesa dos interesses do grupo.

O sistema processual brasileiro, por sua vez, não adota de maneira efetiva o

controle judicial da representação adequada.

No microssistema do processo coletivo pátrio, a legitimidade ativa se dá apenas

em virtude de lei, a qual elenca expressa e objetivamente os legitimados a substituírem a

coletividade. A mera previsão legislativa dos legitimados não é suficiente para assegurar que

aquele representante seja, de fato, o adequado para a defesa dos interesses da coletividade ou

de um grupo de pessoas determinadas em um caso específico.

Segundo Marcos Cavalcanti, “isso não elimina ou reduz a possibilidade de

atuação incompetente, negligente ou com má-fé no processo coletivo” 454.

Assim, justamente em razão da ausência de qualquer controle judicial mais efetivo

da representação do grupo ou classe no processo coletivo brasileiro, a coisa julgada relativa

aos conflitos que envolvem direitos individuais homogêneos ou massificados opera seus

efeitos secundum eventus litis, ou seja, somente quando procedente a pretensão, evitando

prejuízos aos sujeitos substituídos que não participaram de forma direta do processo. Do

contrário, restaria violado o processo justo e, por consequência, o contraditório substancial

como direito de participação e de influência na construção do provimento.

Todavia, se em relação às ações coletivas que defendem direitos individuais

homogêneos ou massificados o julgamento não impede que os interessados ingressem em

juízo com suas ações individuais ou nelas prossigam se assim desejarem, o mesmo não se

pode dizer em relação ao IRDR.

O legislador do CPC/2015 não mostrou a referida preocupação em relação ao

incidente de resolução das demandas repetitivas, o que compromete as garantias

fundamentais e estruturantes do modelo constitucional de processo, haja vista os efeitos

vinculantes e erga omnes (pro et contra) atribuídos ao julgamento do incidente.

454CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 599.

Page 216: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

214

Inspirado no modelo das ações de grupo, o IRDR constitui uma técnica

processual para definição, em bloco, da tese jurídica discutida em várias demandas repetitivas

ou massificadas.

A sua peculiaridade, de acordo com a novel legislação, está no fato de que a tese

jurídica definida pelo tribunal local repercutirá em caráter pro et contra diretamente sobre os

vários processos em curso e os futuros, vale dizer, poderá prejudicar ou beneficiar as partes

envolvidas em cada demanda independentemente da participação ou não no incidente

coletivo. Daí a importância de se garantir o contraditório substancial, com a efetiva

participação das partes afetadas.

Como é cediço o IRDR é instaurado a partir de um processo modelo, de um caso

piloto (processo originário). Não obstante, não foram previstos critérios objetivos para a

escolha do processo originário. Não foi prevista a escolha de um “líder” ou de controle

judicial da representação no incidente coletivo, tal como ocorre no direito comparado, para

assegurar a efetiva participação daqueles que serão afetados pelo processo e, ao mesmo

tempo, conferir legitimidade ao julgamento dotado de efeito vinculante.

A definição de critérios para a escolha ou afetação do processo originário é

fundamental, pois a estrutura normativa do procedimento do incidente coletivo confere certo

protagonismo às partes e advogados do processo originário. Por exemplo, o autor e réu do

processo originário terão uso da palavra na sessão de julgamento do IRDR em tempo igual

(30 minutos) àquele destinado a todos os demais interessados em conjunto (também 30

minutos). (art. 984, inc. II, alíneas a e b do CPC/2015)

Em outras palavras, de acordo com a lei, a escolha do processo modelo

(originário) interfere nas prerrogativas processuais dos sujeitos interessados. Assim, a

instauração do IRDR a partir de processo originário mal conduzido, com poucos e frágeis

argumentos jurídicos ou com acompanhamento técnico deficiente pode comprometer as

garantias processuais dos litigantes, especialmente daqueles ausentes.

Em tais casos, a decisão do incidente, dotada de caráter vinculante pro et contra,

pode não vir a ser a melhor e mais consistente solução da controvérsia de massa, com

evidente impacto prejudicial à conclusão da multiplicidade de demandas sobrestadas em

flagrante violação ao modelo constitucional de processo.455

455 CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 208.

Page 217: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

215

A situação se apresenta ainda mais preocupante quando se está diante dos

litigantes habituais, aqueles que possuam diversos processos versando sobre a mesma matéria,

conforme abordagem realizada no primeiro capítulo.

Os litigantes habituais podem, como parte processual, optar sobre qual dos

processos suscitarão o incidente coletivo. Desta maneira, poderão provocar o incidente a

partir de um litígio melhor instruído, com argumentos mais precisos em seu favor, bem

escritos ou completos, no qual a parte contrária não tenha apresentado fortes argumentos

contrários ou que não disponha do mesmo aparato profissional para o acompanhamento

técnico da causa.456

A propósito do problema da escolha do processo modelo e da representação

adequada dos litigantes ausentes, importante destacar a crítica do eminente Ministro Herman

Benjamin do Superior Tribunal de Justiça lançada em brilhante voto vencido em julgamento

impactante sobre milhares de demandas:

(...) Em litígios dessa envergadura, que envolvem milhões de jurisdicionados, é indispensável a preservação do espaço técnico-retórico para exposição ampla, investigação criteriosa e dissecação minuciosa dos temas ora levantados ou que venham a ser levantados. Do contrário, restringir-se-á o salutar debate e tolher-se-á o contraditório, tão necessários ao embasamento de uma boa e segura decisão do Colegiado dos Dez. (...) escolheu-se exatamente uma ação individual , de uma contratante do Rio Grande do Sul, triplamente vulnerável na acepção do modelo constitucional welfarista de 1988 - consumidora, pobre e negra -, para se fixar o precedente uniformizador, mesmo sabendo-se da existência de várias ações civis públicas , sobre a mesma matéria, que tramitam pelo País afora. Ou seja, inverteu-se a lógica do processo civil coletivo: em vez da ação civil pública fazer coisa julgada erga omnes, é a ação individual que, por um expediente interno do Tribunal, de natureza pragmática, de fato transforma-se, em consequência da eficácia uniformizadora da decisão colegiada, em instrumento de solução de conflitos coletivos e massificados. Não se resiste aqui à tentação de apontar o paradoxo. Enquanto o ordenamento jurídico nacional nega ao consumidor-indivíduo, sujeito vulnerável, legitimação para a propositura de ação civil pública (Lei 7347/1985 e CDC), o STJ, pela porta dos fundos, aceita que uma demanda individual – ambiente jurídico-processual mais favorável à prevalência dos interesses do sujeito hiperpoderoso (in casu o fornecedor de serviço de telefonia) - venha a cumprir o papel de ação civil pública às avessas, pois o provimento em favor da empresa servirá para matar na origem milhares de demandas assemelhadas - individuais e coletivas. (...) Finalmente, elegeu-se exatamente a demanda de uma consumidora pobre e negra (como dissemos acima, triplamente vulnerável), destituída de recursos financeiros para se fazer presente fisicamente no STJ, por meio de apresentação de memoriais,

456CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 205.

Page 218: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

216

audiências com os Ministros e sustentação oral. Como juiz, mas também como cidadão, não posso deixar de lamentar que, na argumentação(?) oral perante a Seção e também em visitas aos Gabinetes, verdadeiro monólogo dos maiores e melhores escritórios de advocacia do País, a voz dos consumidores não se tenha feito ouvir. Não lastimo somente o silêncio de D. Camila Mendes Soares, mas sobretudo a ausência, em sustentação oral, de representantes dos interesses dos litigantes-sombra , todos aqueles que serão diretamente afetados pela decisão desta demanda, uma gigantesca multidão de brasileiros (mais de 30 milhões de assinantes) que, por bem ou por mal, pagam a conta bilionária da assinatura-básica (lembro que só a recorrente, Brasil Telecom, arrecada, anualmente, cerca de três bilhões e meio de reais com a cobrança dessa tarifa (...)457

Logo a seguir, conclui o eminente ministro:

Em síntese, a vitória das empresas de telefonia, que hoje se prenuncia, não é exclusivamente de mérito; é, antes de tudo, o sucesso de uma estratégia judicial, legal na forma, mas que, na substância, arranha o precioso princípio do acesso à justiça, uma vez que, intencionalmente ou não, inviabiliza o debate judicial e o efetivo contraditório, rasgando a ratio essendi do sistema de processo civil coletivo em vigor (Lei 7347/85 e CDC). 458

Para se evitar tal nefasta consequência, defende-se que o órgão julgador tem o

dever de realizar o controle da representação adequada, independentemente de lei que

autorize, valendo-se da cláusula constitucional do devido processo legal, como ensina

Antonio Gidi459.

Nesse sentido, Antonio do Passo Cabral propõe critérios para escolha da causa-

piloto ou processo modelo. O referido autor indica dois vetores básicos que se complementam

e devem ser analisados conjuntamente: a amplitude do contraditório e a pluralidade e

representatividade dos sujeitos do processo originário. 460

A amplitude do contraditório corresponde aos aspectos do debate processual,

sendo, pois, um vetor de caráter objetivo. A fim de otimizar a escolha do processo modelo

(originário), alguns aspectos objetivos devem ser considerados: a) completude da discussão;

b) qualidade da argumentação apresentada pelas partes; c) divergência da argumentação; d)

457 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Voto-vista vencido proferido pelo Ministro Herman Benjamin no julgamento do REsp 911.802/RS, DJU. 24.10.2007. 458. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Voto-vista vencido proferido pelo Ministro Herman Benjamin no julgamento do REsp 911.802/RS, DJU. 24.10.2007. 459 GIDI, Antônio. Rumo a um código de processo civil coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 81. 460 CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 210.

Page 219: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

217

contraditório efetivo; e) existência de restrições à cognição e à prova.461

Segundo Cabral, “sempre que houver restrições ao contraditório, seja no

procedimento do processo originário, seja quando a escolha da causa puder limitar o

contraditório no próprio incidente, deve-se rever ou corrigir a seleção do processo-teste” 462.

O contraditório, na visão do referido jurista e em consonância com o que se

defendeu ao longo do presente capítulo, deve ser “compreendido como influência reflexiva

(isto é, os direitos de informação, expressão e consideração, abrangendo todos os sujeitos do

processo, inclusive o juiz, em ambiente dialogal cooperativo)” 463.

É importante nesse aspecto que um ou alguns dos processos modelo escolhidos

(originários do incidente) já tenham sentença do juiz de primeira instância. A fundamentação

da sentença apresenta na sua essência os argumentos debatidos e a construção interpretativa

da questão de direito realizada pelo juiz, como importante sujeito do processo, cujo papel

também é indispensável ao modelo constitucional de processo, conforme se verá no capítulo

próprio.

Na mesma toada, Cabral adverte que:

Definir uma tese em decisão paradigmática sem tomar em consideração um grupo mais completo dos fundamentos da pretensão e da defesa que comumente são encontrados nos processos repetitivos traz um duplo risco. Por um lado, a solução do incidente pode revelar-se equivocada porque justamente um daqueles argumentos não compreendidos no processo-teste poderia conduzir o Tribunal a uma conclusão diversa. E a decisão do incidente pode também ser menos eficiente, seja porque não vislumbrou uma possibilidade decisória, seja porque, ao omitir-se sobre certos argumentos, deixa espaço para novos dissensos, podendo surgir, posteriormente, questionamentos no sentido de evitar a aplicação da decisão do incidente a processos pendentes. Neste caso, o distinguishing teria fundamento na omissão do Tribunal julgador em considerar certos argumentos que, não debatidos, impediriam que a tese jurídica fosse aplicada porque aquele caso seria “diverso”, devendo ser apreciado à luz daqueles argumentos não analisados quando do julgamento do incidente.464

461 CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 210- 217. 462 CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 210. 463 CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 214. 464CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 211.

Page 220: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

218

Como alternativa à ausência de previsão específica do CPC/2015, Sofia Temer

defende a aplicação ao IRDR das regras do regime dos recursos repetitivos em relação à

escolha dos processos modelo, as quais também destacam o conteúdo dos argumentos como

critério objetivo de seleção:

Para os recursos repetitivos a lei dispõe que a decisão de afetação deverá selecionar no mínimo dois processos, que sejam admissíveis, com abrangente argumentação e discussão sobre a questão analisada. Dispõe ainda que, embora a escolha inicial caiba aos tribunais de justiça ou regionais, o tribunal superior não fica vinculado, podendo selecionar outros processos. Há, assim, um critério que pode ser extraído para a escolha dos líderes no IRDR: a abrangência e profundidade dos argumentos apresentados em seus processos originários em torno da questão de direito. 465

O segundo vetor elencado por Antonio do Passo Cabral possui aspecto subjetivo,

pois se relaciona aos sujeitos do processo e à sua representatividade. Em razão dos efeitos

vinculantes e erga omnes do IRDR, deve-se fomentar a participação no incidente e assegurar

o contraditório substancial.

Para que seja assegurado maior pluralismo do debate processual, deve ser

selecionado o processo modelo no qual preferencialmente se figuram vários autores, réus e

intervenientes. Ou seja, “se o pluralismo e o estímulo à participação são a tônica dos inciden-

tes de coletivização, ao buscar escolher uma causa-piloto em que esta participação tenha sido

tão mais plural já nas instâncias inferiores, reduz-se o problema do déficit de participação no

curso do próprio incidente” 466.

Ressalta-se que o pluralismo dos sujeitos no processo originário é não apenas um

fator relevante para carrear maior número de argumentos ou alegações diversificadas, mas

também se revela um importante impulso à repartição das formas de participação no curso do

incidente.

Desse modo, alguns critérios são apresentados:

1. uma causa com litisconsórcio deve ser preferida a uma causa com apenas um autor e um réu; 2. devem-se preferir litisconsórcios tanto no polo ativo como passivo; 3. deve-se priorizar um processo originário no qual tiver havido intervenção de terceiros; 4. entre os processos com intervenção de terceiros, deve ser preferido sobretudo um processo em que tenha havido a atuação de amicus curiae, que é um terceiro desinteressado e que intervém

465 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 158. 466CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 218.

Page 221: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

219

com a função de trazer elementos de convicção para o debate e oxigenar o contraditório com outros pontos de vista; 5. devem ser preferidos processos no curso dos quais tenha havido audiência pública.467

Segundo o mesmo processualista, se simultaneamente estiver tramitando ação

coletiva fundada na questão de direito repetitiva, deve esta ser preferida aos processos

individuais. E se vários processos coletivos estiverem tramitando, o incidente deve ser

instaurado preferencialmente a partir daquelas ações ajuizadas por órgãos independentes, que

atuam com base no interesse público, sem hierarquia. Assim, os processos ajuizados pelo

Ministério Público e pela Defensoria Pública deveriam ter preferência. De igual modo, as

associações privadas de caráter nacional deveriam preferir às associações de caráter local ou

regional. 468

Acrescente-se, ainda, a necessidade de se perquirir sobre a qualidade técnica dos

advogados e a sua indispensável atuação no tribunal. A defesa técnica deficiente pode

comprometer o debate processual e a amplitude das argumentações.

Enfim, para que seja assegurado o contraditório substancial inerente ao modelo

constitucional de processo, não basta apenas a ampla divulgação do IRDR, a participação das

partes do processo originário, do Ministério Público e do amicus curiae, é imprescindível que

se faça o controle judicial da representatividade adequada, a despeito da ausência de expressa

previsão normativa, estabelecendo critérios para a admissibilidade do incidente coletivo a

partir de processos modelo mais completos, seja no que se refere à amplitude da

argumentação, seja no que se refere à qualidade da representação do grupo e à atuação técnica

dos advogados.

3.9 A ausência de previsão da possibilidade de autoexclusão (modelo right to opt out) do

julgamento do IRDR e a ofensa ao direito de acesso à justiça

O modelo processual de autoexclusão assegura o direito subjetivo do membro da

classe ou do grupo, cuja pretensão é objeto de um processo de caráter coletivo, de manifestar

seu desejo de não sofrer os efeitos do julgamento e, portanto, não ser alcançado pela coisa

julgada.

Nas palavras de Ada Pellegrini Grinover,

467CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 219. 468 CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo: RePro, v. 39, n. 231, mai. 2014, p. 220.

Page 222: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

220

O sistema opt out consiste em permitir que cada indivíduo, membro da clas-se, requeira em juízo sua exclusão da ação coletiva de modo a ser consi-derado terceiro, não sujeito à coisa julgada. Todos os demais membros da classe, que não tenham exercido a opção de excluir-se, são considerados partes e sofrem os efeitos da coisa julgada, seja ela positiva ou negativa (...) O sistema exige ampla divulgação da demanda, por todos os meios de comunicação e – quando possível – até pessoal, para que os membros da classe que não queiram ser abrangidos pela coisa julgada, favorável ou desfavorável, possam exercer seu direito de opção, retirando-se do processo. É raro nos países da civil law – seguido apenas por Holanda e Portugal.469

No sistema norte americano das ações coletivas de indenização (class actions for

damages), os membros da classe ou do grupo devem ser intimados ou notificados da

existência da demanda.

A finalidade principal desta intimação é permitir que o interessado opte por não

fazer parte do processo, o que caracteriza o modelo right to opt out (direito de autoexclusão).

Exercido o opt out o representando não será beneficiário se a sentença for procedente e

tampouco prejudicado se a pretensão for improcedente. Esta opção de sair da demanda

somente é admitida na hipótese de ações indenizatórias – class action for damages – que

podem ser comparadas com a ação coletiva no Brasil que versa sobre a tutela do direito

individual homogêneo ou massificado.470

Na medida do possível, a intimação deverá ser pessoal. Os custos com o referido

ato processual são do representante adequado da classe, e se ele não tiver condições

econômicas de intimar todos os membros do grupo, deverá desistir da class action.

Antonio Gidi471 ressalta que a intimação, em geral, acontece na fase inicial, logo

após a certificação da class action, e tem o objetivo de informar os membros ausentes a

respeito da propositura e da certificação da ação coletiva, oportunizando que compareçam em

juízo e intervenham na ação ou, se for o caso, requeiram a sua autoexclusão do grupo. Se os

indivíduos se mantiverem inertes, se submeterão aos efeitos do julgamento

independentemente do resultado.

469 GRINOVER, Ada Pellegrini. Os processos coletivos nos países da civil law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda (Org). Os processos coletivos nos países da civil law e da common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 242. 470 BARROSO, Luís Roberto. A proteção coletiva dos direitos no Brasil e alguns aspectos da class action Norte Americana. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.8, jan./jun. 2007, p. 51. 471 GIDI, Antônio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 215.

Page 223: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

221

Assim, no sistema norte americano, proferida uma decisão de procedência ou de

improcedência da pretensão nas ações coletivas de indenização, os efeitos da coisa julgada

atingirão todos os membros do grupo, ficando ressalvados apenas aqueles que, após

pessoalmente intimados, manifestaram-se expressamente pela exclusão da lide, no prazo

estabelecido.472

De acordo com Marcos Cavalcanti 473, o procedimento modelo do direito alemão

também adota um sistema semelhante de autoexclusão. A KapMug permite que o autor da

demanda individual repetitiva desista de sua ação, sem a necessidade de consentimento do

réu, no prazo de 30 dias contado da comunicação da suspensão do processo, como forma de

não ser alcançado pelos efeitos da decisão-modelo.

No sistema inglês da Group Litigation Order (GLO), já estudado no segundo

capítulo, ocorre exatamente o contrário, tendo em vista a previsão do modelo opt in. Vale

dizer, cada parte interessada deverá optar expressamente por participar do julgamento das

demandas atingidas pela ordem de litígio coletivo. Se eventualmente já tiver sido ultrapassado

o prazo para a opção de inclusão, não haverá prejuízo ao indivíduo que poderá ajuizar ação

individual não submetida aos efeitos da GLO.

Pelo modelo opt in, quem não manifestar expressamente o desejo de inclusão no

processo de caráter coletivo não será abrangido pelos efeitos da coisa julgada, não sendo

prejudicado ou beneficiado pelo julgamento. Para Ada Pellegrini Grinover, a escolha pelo

modelo opt in “pode, em muitos casos, esvaziar o processo coletivo, frustrando seus ideais –

sobretudo o de resolver, de uma vez por todas, litígios de massa, evitando multiplicação das

demandas, decisões contraditórias, fragmentação da prestação jurisdicional” 474.

Segundo Vânila Moraes, o sistema brasileiro afastou-se dos modelos opt out ou

opt in, escolhendo inicialmente um critério mais condizente com sua realidade so-

cioeconômica, levando em consideração as deficiências de informação e de politização da

sociedade, as dificuldades de comunicação e a própria ausência de controle judicial da

472 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 604-605. 473CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 607. 474GRINOVER, Ada Pellegrini. Os processos coletivos nos países da civil law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda (Orgs). Os processos coletivos nos países da civil law e da common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 243.

Page 224: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

222

representatividade adequada. 475

A influência do sistema norte americano está na divulgação da propositura da

ação de caráter coletivo prevista no artigo 94 do CDC, que dispõe apenas sobre a publicação

de edital no diário oficial a fim de que os interessados possam intervir no processo. A norma

do direito brasileiro não assegura, de fato, o direito de autoexclusão como previsto no sistema

norte americano, pois lá a previsão é de intimação pessoal e os indivíduos podem optar por

não participar da demanda.

Nesse sentido, a lição de Alexandre Flexa, Daniel Macedo e Fabrício Bastos:

A intimação (fair notice) é indispensável para a configuração do sistema, pois a mera publicidade preconizada pelo art. 94, do CDC, não tem o condão de garantir a plena ciência da existência de demandas coletivas, versando sobre a mesma situação jurídica das demandas individuais correlatas. Caso não seja conferida ao autor da ação individual a oportunidade processual de se manifestar, restará relegado a oblívio o princípio do acesso à justiça (artigo 5, inciso XXXV, da Constituição da República), bem como o princípio da efetividade da tutela jurisdicional (artigo 5, inciso LIV, da Constituição da República). 476

Ou seja, a intimação de consumidores nas ações coletivas se dá apenas por edital e

estes só não se beneficiarão do julgamento se já tiverem ajuizado demanda individual e não

pedirem a suspensão do processo durante a tramitação da demanda coletiva, conforme

determina o art. 104 do CDC. 477

Ressalta-se que, se o resultado da ação coletiva for desfavorável, os interessados

substituídos poderão prosseguir com o andamento das suas respectivas ações individuais

suspensas, o que ameniza a ausência de adoção pelo Brasil do modelo de autoexclusão.

O microssistema do processo coletivo brasileiro previsto até então não adotava a

475 MORAES, Vânila C. A. Demandas repetitivas decorrentes de ações e omissões da administração pública: hipótese de soluções e a necessidade de um direito processual público fundamentado na Constituição. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2012, p. 84. 476 FLEXA, Alexandre. MACEDO, Daniel. BASTOS, Fabrício. Novo Código de Processo Civil. Temas inéditos, mudanças e supressões. Bahia: JusPODIVM, 2015, p. 635. 477 Hipótese semelhante foi prevista recentemente pela Lei 13.300, de 23 de junho de 2016, que disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo. O parágrafo único do art. 13 dispõe expressamente que “o mandado de injunção coletivo não induz litispendência em relação aos individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante que não requerer a desistência da demanda individual no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração coletiva”. Portanto, em relação ao mandado de injunção, a lei exige a desistência (e não mera suspensão) da ação individual para que o impetrante possa se beneficiar dos efeitos da ação coletiva. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13300.htm. Acesso em junho de 2016)

Page 225: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

223

possibilidade da coisa julgada pro et contra nas ações de caráter coletivo. A coisa julgada

relativa aos conflitos que envolvem direitos individuais homogêneos ou massificados opera

seus efeitos secundum eventus litis, ou seja, somente gera efeitos quando procedente a

pretensão, evitando prejuízos aos litigantes substituídos que não participaram de forma direta

do processo justamente por não haver a previsão do modelo de autoexclusão e do controle

judicial da representação adequada.

Essa técnica processual adotada no Brasil pelo microssistema do processo coletivo

protege, de certo modo, os interesses dos litigantes ausentes e, por conseguinte, resguarda o

pleno acesso à Justiça.

Não obstante, a situação se tornou extremamente perigosa quando se depara com

o novo modelo adotado em relação às demandas repetitivas ou de massa, no qual se insere o

IRDR como instrumento inspirado nas ações de grupo para definição rápida da interpretação

do direito dotado de caráter vinculante e erga omnes.

Com efeito, o Brasil consagrou no novo Código de Processo Civil o seu próprio

modelo de solução das demandas repetitivas, imputando a todos os jurisdicionados com

demandas individuais homogêneas os efeitos da decisão paradigma, seja ela favorável ou não

(pro et contra), inclusive para os casos futuros.

O regramento do IRDR prevê que as demandas repetitivas serão automaticamente

suspensas e o julgamento pro et contra alcançará de forma vinculante todos os processos em

tramitação na área de competência territorial do tribunal local ou regional. A vinculação é, a

toda evidência, de caráter absoluto, não tendo sido previsto o modelo de autoexclusão (opt

out), com a possibilidade do litigante prosseguir com o seu processo individualmente, ou de

inclusão mediante requerimento (opt in).

Previu-se apenas a possibilidade de distinção (técnica do distinguishing), pela

qual a parte interessada pode requerer o prosseguimento de seu processo, comprovando que

seu caso é distinto da questão jurídica objeto do incidente coletivo (IRDR), o que não afasta a

grave violação ao direito constitucional de pleno acesso à Justiça.

Para Marcos Cavalcanti,

Essa forma de vinculação absoluta fere o direito fundamental de ação (art. 5º, inciso XXXV, da CF/1988). Não há como o NCPC impedir o direito de a parte prosseguir com sua demanda isoladamente, ou seja, fora do regime jurídico do IRDR. O sistema processual deve sempre assegurar ao litigante o direito de opção. Essa possibilidade de escolha decorre do direito

Page 226: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

224

fundamental de ação, de sorte que o legislador não poder criar uma forma de vinculação absoluta pro et contra sem estabelecer mecanismos processuais que assegurem seu pleno exercício. 478

E, logo a seguir, o referido processualista defende a aplicação subsidiária da regra

do art. 104 do CDC ao regime processual do IRDR, in verbis:

Desse modo, para que não exista violação ao direito fundamental de ação, é preciso que seja assegurado aos litigantes dos processos representativos um dos sistemas acima referidos: opt-in ou opt-out. Isto é, o NCPC, de uma forma ou de outra, deve assegurar às partes o direito de optarem pela não participação no julgamento do IRDR. Como o NCPC é omisso quanto ao ponto, impõe-se a aplicação subsidiária do microssistema processual coletivo para suprir a lacuna. Feitas as adaptações necessárias, o art. 104 do CDC merece ser aplicado ao regime jurídico do IRDR. Assim, interpretando-se tal dispositivo a partir do direito fundamental de ação, deve ser extraída a regra no sentido de que o litigante tem o prazo de trinta dias para requerer sua exclusão do julgamento do IRDR, a contar da ciência formal da admissibilidade do IRDR nos autos do processo repetitivo. 479

Nas palavras de Júlio Rossi:

Não há como tolher o direito de ação de um indivíduo que não pretende aderir a um processo coletivo. É uma opção do titular de um direito homogê-neo ingressar em uma ação coletiva, na qualidade de litisconsorte (vinculando-se ao resultado da lide coletiva), como também suspender sua demanda individual para aproveitar o resultado favorável estabelecido naquela, ou, ainda, não se vincular ao pronunciamento exarado na ação coletiva. Essas posturas são conferidas pelo direito fundamental de ação (art. 5.º, XXXV, da CF/1988) e pelo devido processo legal (art. 5.º, LV, da CF/1988). 480

Sofia Temer defende, por sua vez, a inadequação da aplicação dos modelos opt-in

e opt-out ao IRDR em razão do caráter objetivo do incidente. Nas suas palavras:

Os modelos de opt-in e opt-out estão vinculados à ideia de participação como consentimento, da qual se distancia o sistema do IRDR (...) Assim, não há conduta da parte da demanda repetitiva em relação à inclusão ou exclusão, porque não há esse agrupamento que ocorre nas ações coletivas. A eficácia que incide em relação ao processo individual não decorre do fato de a parte ter “agregado” sua demanda a outras, porque sua demanda será inteiramente decidida pelo juízo em que estiver tramitando. A eficácia decorre da uniformização do tribunal sobre uma controvérsia jurídica,

478 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 606-607. 479 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015, p. 608. 480 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 232.

Page 227: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

225

decidida em abstrato, a qual é depois aplicável aos casos que se encontrem dentro da moldura fática relevante por ocasião do julgamento. 481

Entende-se, ao contrário, que a natureza objetiva do IRDR coincide com o seu

caráter coletivo e concreto, de modo que o resultado do julgamento da tese jurídica impacta

diretamente os processos sobrestados obrigando os respectivos julgadores a adotar aquele

posicionamento estabelecido pelo tribunal. Em razão desse nítido caráter coletivo, o direito de

exclusão adquire especial relevância para a compatibilidade do IRDR com o direito de acesso

à Justiça assegurado pelo modelo constitucional de processo.

Com efeito, o acesso à justiça não se resume à mera possibilidade de ingressar em

juízo ou à garantia de obtenção de um julgamento célere; é, sim, principalmente, a garantia de

que os jurisdicionados possam demandar e defender-se adequadamente, isto é, ter acesso à

efetividade no processo com os meios e recursos a ele inerentes de modo a obter um

provimento jurisdicional justo, construído a partir do amplo debate e participação dos sujeitos

interessados, respeitando-se as garantias estruturantes do modelo constitucional de processo.

Em se tratando de litígios de massa, que envolvem milhares de jurisdicionados e

várias demandas individuais e coletivas, é indispensável a preservação do espaço técnico-

retórico para exposição ampla, debate, investigação criteriosa e dissecação plena dos temas

ora levantados ou que venham a ser levantados, inclusive com a participação do julgador de

primeiro grau. Do contrário, o contraditório substancial e o acesso à justiça, vistos como

direitos fundamentais, serão relegados ao segundo plano. A vinculação dos processos

sobrestados de forma absoluta e irrevogável ao IRDR ofende tal direito.

Assim, com ou sem a aplicação do art. 104 do CDC, esse novo modelo processual

pode, em prol da celeridade processual a qualquer custo, culminar na perniciosa padronização

das decisões judiciais, restringindo a participação efetiva dos sujeitos interessados na

interpretação do direito e, em última análise, restringindo o próprio acesso à justiça – garantia

inerente ao modelo constitucional de processo.

481 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 235-236. A referida autora entende, portanto, que a previsão de vinculação dos órgãos jurisdicionais à tese jurídica definida pelo IRDR seria uma exigência constitucional que se funda no direito à isonomia, à segurança jurídica e à coerência e unidade do direito. A parte não teria o direito de autoexclusão para obter decisão que desrespeite essa uniformização, como não teria o direito a se autoexcluir de decisões em controle de constitucionalidade e de súmulas vinculantes.

Page 228: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

226

CAPÍTULO 04

A EFICÁCIA VINCULANTE DO IRDR E A INDEPENDÊNCIA

JUDICIAL

4.1 O movimento de aproximação dos sistemas civil law e common law: a valorização da

jurisprudência no Brasil como fonte normativa do Direito

Para facilitar o estudo dos sistemas de direito contemporâneo, René David os

agrupa em famílias, reduzindo os tipos de modo a facilitar sua compreensão e apresentação. O

autor trata da família romano-germânica, da família common law e da família dos direitos

socialistas. O próprio autor ressalta que essas famílias não refletem toda a realidade do mundo

contemporâneo, mas são úteis para apresentar um quadro sistemático com as principais

características e significados. 482

O sistema romano-germânico, também chamado civil law483, baseia-se

primordialmente nas codificações, e o sistema anglo-saxão, conhecido como common law484,

fundamenta-se na tradição e na teoria dos precedentes.

Acerca das principais diferenças entre os dois sistemas, Luiz Guilherme

Marinoni485 ensina que, no common law, os textos codificados não têm sua principal

preocupação em apresentar ao juiz todas as regras e soluções para todos os tipos de problemas

das relações sociais, mantendo entre seus principais aspectos a possibilidade de o juiz

482 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Lisboa: Meridiano, 1978 p.22. 483 “(...) o termo Civil Law refere-se ao sistema legal adotado pelos países da Europa Continental (com exceção dos países escandinavos) e por, praticamente, todos os outros países que sofreram um processo de colonização, ou alguma outra grande influência deles – como os países da América Latina. O que todos esses países têm em comum é a influência do Direito Romano, na elaboração de seus códigos, constituições e leis esparsas. É claro que cada qual recebeu grande influência também do direito local, mas é sabido que, em grande parte desses países, principalmente os que são ex-colônias, o direito local cedeu passagem, quase que integralmente, aos princípios do Direito Romano. E, por isso, a expressão Civil Law, usada nos países de língua inglesa, refere-se ao sistema legal que tem origem ou raízes no Direito da Roma antiga e que, desde então, tem-se desenvolvido e se formado nas universidades e sistemas judiciários da Europa Continental, desde os tempos medievais; portanto, também denominado sistema Romano-Germânico.” (VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2007, p. 270.) 484 O sistema do common law, por sua vez, possui balizamento firme nas decisões judiciais. Consiste, basicamente, em princípios, usos e regras de ação, aplicáveis ao Estado e à sociedade, cuja autoridade não é positivada em um ato normativo do Poder Legislativo, mas substancialmente criada pelos costumes e pelas decisões judiciais. Assim, o decidido (ratione decidendi) torna-se precedente, holding, paradigma, leading case, binding case, ou seja, a jurisprudência passa a constituir fonte do direito. A isso chamamos de sistema do stare decisis (stare decisis, et non quita movere – aderir ao que está decidido e não alterar as coisas que estão estabe-lecidas). (ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 206-207) 485 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 55-56.

Page 229: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

227

interpretar e integrar a lei, já que, na base deste sistema, está o reconhecimento de que é

impossível ao legislador regular todas as possíveis situações humanas.

Por sua vez, a principal fonte das normas jurídicas, no âmbito do civil law, sempre

foi tradicionalmente a lei, como estrutura abstrata e fechada, voltada à regulação de todas as

relações humanas, funcionando o “precedente judicial” dos tribunais apenas como uma

espécie de reforço argumentativo e persuasivo acerca da melhor interpretação da disposição

legal ou constitucional.

Existe atualmente, no entanto, um movimento global nos Estados ocidentais

voltado à flexibilização das fronteiras e à convergência entre os dois sistemas, seja pelo

aumento da codificação no common law para regulação das condutas sociais, seja pela

implementação de técnicas processuais de vinculação de precedentes e de padronização

decisória no civil law.486 Supera-se, assim, segundo Thomas Bustamante, o mito da autonomia

metodológica do common law.487

A crescente aproximação e a mútua influência entre os referidos sistemas são

muito bem retratadas na lição de Lorena Miranda Santos Barreiros:

(...) a civil law, tradicionalmente racionalista, vem sendo aproximada da realidade histórica e do empirismo, o que é possível de ser observado, por exemplo, com o fenômeno da decodificação, conducente, no Século XX, à proliferação de leis extravagantes e ao surgimento de microssistemas jurídicos, aos quais as codificações oitocentistas tiveram de ceder espaço. Também contribuem decisivamente para essa mudança o papel central assumido pelas Constituições (e a necessidade de concretização dos valores nela inseridos) e a adoção, em larga escala, da técnica de legislar por meio de cláusulas gerais, ampliativa do papel do juiz na construção do direito. Por outro lado, a common law vivencia a crescente influência do direito legislado, ao ponto de a Inglaterra, país no qual teve origem a tradição anglo-saxônica, haver adotado, no final do Século XX, um Código de Processo Civil (as RCP – Rules of Civil Procedure, de 1999), a despeito de, sabidamente, as codificações não possuírem, nos sistemas de tradição de common law, o sentido totalizante que alcançaram na tradição romano-germânica oitocentista.488

486 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2007, p. 310-312. 487 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, pp. 106 e ss. 488 BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Estruturação de um sistema de precedentes no Brasil e concretização da igualdade: desafios no contexto de uma sociedade multicultural. In: DIDIER JR., Freddie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. V. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 187.

Page 230: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

228

O sistema common law e o civil law representam, dentro desse novo contexto,

aspectos de uma mesma e grande tradição jurídica ocidental.489

O ordenamento jurídico brasileiro, de tradicional filiação ao sistema romano-

germânico490, não ficou imune ao referido movimento de convergência entre os dois sistemas,

tendo sido implementadas ao longo dos últimos anos modificações legislativas dotadas de

nítida influência do common law.

José Carlos Barbosa Moreira já alertava há mais de uma década que é “indubitável

que o peso do universo anglo-saxônico tem aumentado no direito brasileiro, talvez mais

noutros campos, agora diretamente alcançados pelas vagas da globalização econômica, mas

também no terreno do processo civil” 491.

Sergio Gilberto Porto também destaca a ocorrência do que denomina de

“commonlawlização” do direito brasileiro, haja vista a tendência de valorização da

jurisprudência como fonte de direito. Nas palavras do referido jurista:

Cumpre, outrossim, registrar que, hodiernamente, em face da globalização – a qual para o bem ou para o mal indiscutivelmente facilitou as comunicações - observa-se um diálogo mais intenso entre as famílias romano-germânicas e a da common law, onde uma recebe influência direta da outra. Da common law para civil law, há, digamos assim, uma crescente simpatia por algo que pode ser definido como uma verdadeira "commonlawlização" no comportamento dos operadores nacionais, modo especial, em face das já destacadas facilidades de comunicação e pesquisa postas, na atualidade, a disposição da comunidade jurídica. Realmente, a chamada "commonlawlização" do direito nacional é o que se pode perceber, com facilidade, a partir da constatação da importância que a jurisprudência, ou seja, as decisões jurisdicionais vêm adquirindo no sistema pátrio, particularmente através do crescente prestigiamento da corrente de pensamento que destaca a função criadora do juiz.492

Sofia Temer aponta, por sua vez, alguns motivos importantes que culminaram na

maior valorização das decisões judiciais no sistema brasileiro, entre os quais se destacam:

489 MARINONI, Luiz Guilherme. Apresentação. In: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). A força dos precedentes: estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual da UFPR. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 07. 490 Em sua clássica obra, René David explica que “as colônias espanholas, portuguesas, francesas e holandesas da América aceitaram de modo natural as concepções jurídicas típicas da família romano-germânica”. (in DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Lisboa: Meridiano, 1978 p. 77) 491 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O processo civil brasileiro entre dois mundos. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 41-42. 492 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre common law, civil law e o precedente judicial. Estudo em homenagem ao Professor Egas Moniz de Aragão. 2007, p. 06. Disponível em: www.abdpc.org.br. Acesso em: 22 abr. 2016.

Page 231: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

229

b) (...) falência da concepção de que a lei seria suficiente e unívoca, dispensando, por isso, qualquer atividade interpretativa e/ou criativa do direito. A constatação de que o texto legal admite variadas normas, que deve ser interpretado e que o juiz tem papel criativo no exercício da jurisdição evidenciaram a necessidade de abandonar dogmas do civil law, para buscar segurança jurídica e a previsibilidade em outras fontes que não na lei, como na decisão judicial; c) da inflação legislativa e da inatividade do legislador; d) da crescente exigência de segurança jurídica, racionalidade, previsibilidade, uniformidade e coerência, mormente diante da explosão da quantidade de processos judiciais, muitos versando sobres as mesmas questões, entre outros fatores.493

Percebe-se facilmente, nessa nova perspectiva, que as disposições legais e as

codificações no Brasil estão permeadas de princípios jurídicos, cláusulas gerais e conceitos

jurídicos indeterminados ou abertos que transferem para o juiz o papel de integração do

direito na solução dos conflitos sociais. São vários os exemplos: plausibilidade do direito,

perigo da demora, boa-fé objetiva, relevância social, função social da propriedade, dignidade

da pessoa humana, proporcionalidade, razoabilidade.

Como preencher esses conceitos? Como dar a eles força normativa, para

estabelecer regras de conduta e consequências jurídicas na solução concreta dos conflitos? A

partir do momento em que a lei não o faz, a tarefa passa ao juiz e aos tribunais que, apoiados

na doutrina, assumem um papel de interpretação e “criação”494 do direito.

É natural, portanto, que, diante da referida postura legislativa, caiba à

jurisprudência, na sua força criativa complementar, estabelecer o melhor e mais adequado

entendimento acerca da inteligência das cláusulas gerais e das normas jurídicas incompletas,

493 TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 199. 494 Conforme esclarecimento realizado por Lucas Buril de Macêdo, citando Pontes de Miranda, com “criação” pretende-se significar que se chega institucionalmente a uma determinada norma jurídica que pode ser racionalmente atribuída aos elementos normativos fornecidos anteriormente, mas ainda assim até então inexistente de forma expressa. É também claro que a constituição, modificação e extinção do Direito realizada pelo juiz possuem limites, que são impostos pelo próprio ordenamento jurídico e que a criação judicial do Direito não significa uma inovação completa, a partir do nada. O Direito é construído e reconstruído sempre em determinado contexto histórico-social, do qual o intérprete não pode se alienar: a norma é gota de tinta em um copo, e sua cor é assumida em conformidade ao todo. Em interessante passagem do Sistema, Pontes de Miranda, tendo isso em mente, acaba por dizer que não há atos criativos do Direito: o direito é processo social de adaptação e é forjado pela e na própria sociedade, ao legislador e ao juiz cabe reconhecê-lo. (...) Para Pontes, o jurista não cria o Direito assim como o arquiteto nada cria, simplesmente reordena e combina os elementos encontrados na natureza para lhes dar o aspecto novo: constrói. Não há aí criação, pois toda substância era anterior ao ato, novidade só há na forma como se organizou e na função que se deu. O tema é extremamente complexo e sua tratativa de forma adequada requereria uma pesquisa à parte (...) Pode-se dizer que se utiliza, nesta tese, um sentido fraco ou superficial de “criação”, enquanto Pontes utiliza o termo em sentido forte ou profundo. (MACÊDO, Lucas Buril de. A disciplina dos precedentes no direito brasileiro: do anteprojeto ao Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Freddie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. V. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, nota 23, p. 464.)

Page 232: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

230

firmando os limites de sua interpretação e de seus efeitos práticos diante de cada caso. 495

Nas palavras de Gustavo Nogueira, “a partir do momento em que nossos

monumentos legislativos contém omissões, e elas são supridas pelos nossos Tribunais,

aproximamo-nos da common law. Judge made law, puro judge made law” 496.

Ou seja, constata-se, de forma nítida, um incentivo no Brasil à utilização cada vez

mais intensa das decisões jurisprudenciais como fonte de aplicação do Direito. 497

Nesse contexto de aproximação dos sistemas jurídicos e de influência das técnicas

de julgamento do common law, a adoção de um “sistema próprio de precedentes vinculantes”

pareceu ao legislador infraconstitucional uma opção legítima para, em curto prazo, minimizar

a crise causada pela “justiça intempestiva” no Brasil.498

É notório que o Sistema de Justiça do Brasil atravessa uma grave crise

institucional. A enorme quantidade de processos, o aumento da litigiosidade de massa, a

demora e a burocracia processuais, além do alto grau de instabilidade jurídica provocada

pelos acontecimentos políticos, sociais e econômicos, colocaram na ordem do dia a temática

sobre a criação de técnicas processuais e outras medidas que pudessem assegurar a celeridade

da uniformização jurisprudencial e, por conseguinte, uma maior previsibilidade decisória.

A tendência de se criar mecanismos de valorização dos julgamentos dos tribunais

começou a se destacar nas reformas legislativas implementadas no direito processual

brasileiro desde a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004. 499

Cita-se, a propósito, a introdução da “súmula vinculante”, que, nas palavras de

José Rogério Cruz e Tucci, foi “concebida como mecanismo de aceleração dos julgamentos,

em decorrência do óbice a demandas fulcradas em teses jurídicas já pacificadas na

495 THEODORO JR., Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 673. 496 NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 51. 497 THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da politização do Judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de processo, São Paulo: RT, v. 189, nov. 2010, p. 03. 498 TUCCI, Jogé Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 281. 499 SILVA, Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 141.

Page 233: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

231

jurisprudência dominante”500.

A referida reforma constitucional introduziu, ainda, a “repercussão geral” como

pressuposto de admissibilidade específico (filtro) para o recurso extraordinário, dando caráter

mais objetivo e abstrato ao controle difuso de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal

Federal, possibilitando que os efeitos do julgamento de alguns poucos recursos se irradiassem

para outros casos concretos.

A partir da introdução da repercussão geral, o simples pré-questionamento da

questão constitucional não é suficiente para o cabimento do recurso extraordinário. O

recorrente deverá demonstrar a relevância da matéria sob a ótica econômica, política, social

ou jurídica, que transcende o mero interesse subjetivo das partes litigantes. Ao regulamentar o

instituto, a Lei 11.418/2006 introduziu o § 5º ao art. 543-A do CPC de 1973, dispondo que, se

negada a repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre a mesma matéria,

que serão indeferidos liminarmente, ressalvada a hipótese de revisão da tese.

Destaca-se também a criação do regime de julgamento dos recursos especiais

repetitivos pela Lei 11.672/2008, aperfeiçoada no CPC/2015, que implementou a técnica

processual de “pinçamento” do caso modelo ou causa piloto para a resolução da questão de

direito de maneira uniforme para todas as demandas repetitivas. Trata-se de uma técnica pela

qual o tribunal de origem seleciona um ou mais recursos representativos da controvérsia e os

encaminha ao Superior Tribunal de Justiça, sobrestando os demais recursos sobre a mesma

questão jurídica até o pronunciamento da corte superior acerca da definição da tese jurídica.

Seguindo esse mesmo propósito, o legislador do CPC de 2015 implementou um

sistema próprio de precedentes para o direito processual civil.

A temática é relevante e causa preocupação quando, diante do modelo

constitucional de processo, depara-se com o status de precedente vinculante atribuído ao

julgamento do IRDR de competência de tribunal local de segunda instância, corte de mera

revisão, cujo papel não se confunde com o dos tribunais superiores, os quais possuem a

competência constitucional de definição de teses jurídicas e uniformização da interpretação do

direito.

Ressalta-se, ademais, o grave risco de engessamento da interpretação do direito

em uma sociedade plural em constante modificação e, ainda, de esvaziamento do papel do

500TUCCI, Jogé Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 281.

Page 234: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

232

juiz da primeira instância no debate processual. Em prol de estatísticas e da celeridade

processual, o julgador poderá se tornar um “juiz eletrônico” que apenas reproduz, de maneira

quase que automatizada, a tese jurídica (de caráter normativo) já definida pelo tribunal local.

Sob o mito da igualdade, corre-se extremado risco de asseverar as desigualdades considerando

a heterogeneidade existente no Brasil, país de dimensão continental, com nuances regionais

acentuadas. Assim, há o perigo de se negar a igualdade por se tratar igualmente cidadãos

substancialmente diferentes. A igualdade substancial ou material concretiza-se quando se trata

desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.

Com efeito, o juiz de primeiro grau da jurisdição é, em regra, aquele que realiza o

primeiro contato direto com as particularidades do conflito vivenciado pelas partes,

participando efetivamente do debate processual. A verticalização e a vinculação pura e

simples aos julgamentos dos tribunais, especialmente dos de segundo grau como ocorre no

caso do IRDR, podem acarretar precipitação, reduzindo o espaço cognitivo do processo,

espaço essencial ao debate público dos fundamentos aduzidos pelas partes.

Assim, diante dessa rígida verticalização do Sistema de Justiça e do risco de

esvaziamento do papel do juiz de primeiro grau, a análise da compatibilidade do IRDR com o

modelo constitucional de processo não pode prescindir da abordagem crítica do sistema de

precedentes criado pelo novo CPC, do efeito vinculante atribuído ao julgamento do incidente

coletivo pelos tribunais de segunda instância e da independência judicial, haja vista o papel

fundamental do juiz na construção do provimento jurisdicional no Estado Democrático de

Direito.

4.2 Apontamentos sobre precedente e seus elementos

Para a melhor compreensão da temática e sua contextualização no CPC/2015, não

se deve confundir ou utilizar como sinônimos os termos “precedente”, “jurisprudência” e

“súmula”. Importante ressaltar que não se aprofundará na distinção desses institutos, que

exigiria outra delimitação temática. Busca-se apenas estabelecer algumas premissas e

distinções necessárias para possibilitar a análise do IRDR e da sua concepção como

precedente no sistema instituído pelo CPC/2015.

Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, precedente é “a primeira decisão que

elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia deixando-a cristalina”501

e, por isso, deve formar-se a partir da análise de todos os principais argumentos e,

501 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo. Revistas dos Tribunais, 2010, p.216.

Page 235: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

233

preferencialmente, em mais de um caso concreto, mediante a construção da solução judicial

mais completa possível acerca da questão de direito que passa por diversos casos.

Para Lênio Streck e Georges Abboud, “o precedente constitui-se como critério

normativo a ser seguido em novos casos nos quais exista idêntica questão de direito”502. Os

precedentes devem constituir, portanto, as principais decisões de determinado ordenamento

jurídico, cuja função primordial consiste em servir de modelo para decisões posteriores.

Já segundo Fredie Didier Jr., Rafael Oliveira e Paula Braga, “precedente é a

decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como

diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”503.

O núcleo essencial do precedente constitui a chamada ratio decidendi, vale dizer,

a tese jurídica fixada pelo julgador como fundamentação determinante para a resolução do

caso concreto, que, nas palavras de Fredie Didier, “se desprende do caso específico e pode ser

aplicada em outras situações concretas que se assemelhem àquela em que foi originariamente

construída” 504.

Ao lado da ratio decidendi, o precedente judicial também pode ser composto por

considerações periféricas, no entanto, desprovidas de força vinculante para julgamentos

posteriores. Denominam-se obter dictum os argumentos jurídicos expostos apenas de

passagem na fundamentação do julgado, caracterizando, na essência, “juízos normativos

acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento jurídico-

hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão” 505.

O obiter dictum é normalmente identificado por exclusão, sendo compreendido

como tudo aquilo que não integra a ratio decidendi. É composto pelos elementos do

precedente que não se identificam com o núcleo da fundamentação do julgado, configurando

qualquer conclusão a que chega o Tribunal, mas que não é essencial para o julgamento do

caso concreto506. Assim, apesar de não se prestar para ser invocado como precedente

502 STRECK, Lênio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 63. 503 DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael; BRAGA, Paula. Curso de direito processual civil. v. II. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 385. 504 DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael; BRAGA, Paula. Curso de direito processual civil. v. II. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 428. 505 DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael; BRAGA, Paula. Curso de direito processual civil. v. II. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 430. 506SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2007, p. 139.

Page 236: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

234

vinculante em caso análogo, o obter dictum pode perfeitamente ser referido como argumento

de persuasão507.

Dierle Nunes também explica a diferença entre ambos:

(...) a ratio decidendi (elemento vinculante) justifica e pode servir de padrão para a solução do caso futuro; já o obter dictum constituem-se pelos discursos não autoritativos que se manifestam nos pronunciamentos judiciais de sorte que apenas as considerações que representam indispensavelmente o nexo estrito de causalidade jurídica entre o fato e a decisão integram a ratio decidendi, onde qualquer outro aspecto relevante, qualquer outra observação, qualquer outra advertência que não tem aquela relação de causalidade é obiter: um obter dictum ou, nas palavras de Vaughan, um gratis dictum.508

A distinção entre ratio decidendi e obiter dictum se mostra fundamental em um

sistema de precedentes vinculantes, como o proposto pelo CPC/2015, na medida em que o

efeito vinculante reside somente no elemento essencial da fundamentação, isto é, na parte do

ato decisório que compõe a ratio decidendi.

Pode-se perceber, assim, que nem toda decisão proferida pelo Poder Judiciário

deve adquirir o status de precedente judicial, mas, por outro lado, todo precedente judicial

deve possuir algumas características essenciais, como a relevância de seu conteúdo jurídico,

que delineia de forma cristalina determinada tese jurídica, e a antecedência, para que possa ser

apto a irradiar seus efeitos para outros casos subsequentes. Além disso, nem todo o conteúdo

do precedente judicial adquire força normativa vinculante, mas somente a parte do juízo

decisório que fundamenta a construção de determinada tese jurídica.

Destaca-se, ainda, que o precedente possui autoridade vertical para vincular o

órgão prolator da decisão e os demais que estão a ele submetidos em razão da competência

hierárquica funcional e também autoridade horizontal, haja a vista a necessidade dos próprios

tribunais respeitarem os seus julgamentos. 509

O precedente possui força vinculante no common law, pois, como fonte inovadora

do Direito, deve dar consistência ao sistema, assegurando a coerência e segurança jurídica. E 507 TUCCI, José Rogério Cruz e. O regime do precedente judicial no novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MACÊDO, Lucas Buril de; ATAIDE JR., Jaldemiro R. de (coords). Precedentes. Salvador: JusPodivm, p. 445/458, 2015, p. 177. 508 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisão. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 199, set. 2011, p. 38. 509 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisão. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 199, set. 2011, p. 438.

Page 237: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

235

quem diz que o precedente vincula não é a lei, mas outro precedente. Isso porque aquele

sistema não se baseia na lei, mas é formado por decisões judiciais proferidas nos casos

concretos, a partir das quais se extrai a norma de direito genérica que vai se reproduzindo nos

casos subsequentes. 510

A jurisprudência é, por sua vez, uma “sucessão de acórdãos consonantes, sobre

um mesmo tema, prolatados de modo reiterado e constante, por órgão jurisdicional colegiado,

num mesmo foro ou Justiça” 511.

A jurisprudência dominante, tal como atualmente é concebida e aplicada pelos

tribunais no Brasil, nem sempre se baseia em um verdadeiro “precedente judicial”, mas

muitas vezes em julgamentos desprovidos de ampla fundamentação que simplesmente foram

reprisados em outros casos semelhantes sem maior cotejo dos argumentos apresentados pelas

partes.

A expressão “jurisprudência dominante” é criticada pelo professor Dinamarco:

É indeterminado o conceito de jurisprudência dominante e, para aplicá-lo adequadamente, os relatores e os tribunais devem ter a consciência de que inexiste um critério quantitativo que seja suficiente para sua especificação. Nem há qualquer critério objetivo, que possa aplicar-se sempre. Aproximadamente, tem-se como jurisprudência dominante em dado tribunal uma linha de julgamentos significativamente majoritária em seus órgãos fracionários, ainda que não pacífica; a existência de decisões contrárias, ou de votos vencidos, não retira a essas linhas vitoriosas a condição de jurisprudência dominante, embora deva ser levada em conta para a verificação sobre a realidade da prevalência da jurisprudência no sentido majoritário. 512

Michele Taruffo destaca, ainda, a distinção entre precedente e jurisprudência em

razão da quantidade de julgados:

Quando se fala do precedente se faz normalmente referência a uma decisão relativa a um caso particular, enquanto que quando se fala da jurisprudência se faz normalmente referência a uma pluralidade, frequentemente bastante ampla, de decisões relativas a vários e diversos casos concretos. A diferença não é apenas do tipo semântico. O fato é que nos sistemas que se fundam tradicionalmente e tipicamente sobre o precedente, em regra a decisão que se

510 NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 129-130. 511 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. São Paulo: RT, 2010, p. 47. 512 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. São Paulo: RT, 2003, p. 186-187.

Page 238: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

236

assume como precedente é uma só (...) 513

Nessa perspectiva, quando um precedente judicial imbuído de relevância e de

substancioso conteúdo jurídico é reiteradamente aplicado pelo Poder Judiciário em casos

semelhantes se transforma em jurisprudência, que pode dar ensejo à edição de um enunciado

na súmula da jurisprudência deste tribunal.

Nas palavras de Nelson Nery e Rosa Nery, a súmula

é o conjunto das teses jurídicas reveladoras da jurisprudência reiterada e predominante no tribunal e vem traduzido em forma de verbetes sintéticos numerados e editado. O objetivo da súmula é fixar teses jurídicas in abstrato que devem ser seguidas pelos membros do tribunal, de modo a facilitar o exercício da atividade jurisdicional pelo tribunal que as editou. 514

As súmulas podem ser meramente persuasivas e, como o próprio nome diz,

apresentam-se como modelos recomendados ou sugestões para a solução de decisões futuras,

estando o juiz livre para utilizar o modelo ou não.

As vinculantes, introduzidas pela Emenda Constitucional 45, de 2004, possuem,

por sua vez, efeito incontrastável, ou seja, o efeito de que nenhum juiz, tribunal ou a

Administração Pública está livre ou autorizado a contrariar a súmula em suas decisões. Criam

elas, assim, um compulsório para todas as demais interpretações sobre a mesma matéria.

As súmulas são, portanto, enunciados de caráter geral e abstrato, características

semelhantes às presentes na lei, que retratam o posicionamento de determinado tribunal

acerca de um determinado tema, pois extraídos da ratio decidendi de casos anteriormente

julgados.

4.3 O sistema de precedentes adotado pelo CPC/2015: análise crítica da inclusão do

julgamento do IRDR como “precedente vinculante”

Feitos tais apontamentos introdutórios, percebe-se que o CPC/2015 intenta

aproximar o sistema judicial brasileiro ao sistema de valorização dos precedentes vinculantes,

com nítida influência do common law.

Ao contrário do que acorre naquele sistema, a força vinculante e a valorização dos

precedentes não decorreram da interpretação e construção do Direito pelos tribunais, mas por

513 TARUFFO, Michele. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 199, 2011, p. 142. 514 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada. São Paulo: RT, 2009. p. 529.

Page 239: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

237

imposição da própria codificação, que introduziu, por lei ordinária, a autoridade vinculante de

alguns julgamentos dos tribunais, inclusive de cortes regionais e locais da segunda instância,

para reduzir o grau de imprevisibilidade jurídica no Sistema de Justiça no Brasil.

De acordo com a novel legislação, o precedente judicial não detém somente a

função persuasiva de orientar a interpretação dos dispositivos legais ou constitucionais, mas

passa a obrigar o julgador a adotar o mesmo fundamento de decisão proferida anteriormente,

aproximando-se o sistema brasileiro da teoria do stare decisis (doutrina característica do

common law, decorrente da expressão latina stare decisis et non quieta movere, em uma

tradução livre: mantenha-se a decisão e não se mexa no que foi estabelecido) 515.

Nas palavras de Lênio Streck e Georges Abboud,

(...) a principal preocupação na elaboração do NCPC é a segurança jurídica pensada sob o ponto de vista do Judiciário e a crença de que os mecanismos vinculantes forjados para funcionar verticalmente assegurariam a concretização da segurança jurídica e acabariam com o fenômeno daquilo que se convencionou chamar de jurisprudência lotérica. 516

Nesse sentido, o art. 926 do CPC/2015 dispõe que a jurisprudência dos tribunais

deve se manter íntegra, coerente e estável, com intuito de que os tribunais respeitem seus

próprios precedentes, evitando a oscilação da interpretação jurídica. Uma das formas de se

alcançar esse intento, segundo o §1º do referido dispositivo legal, é que os tribunais devem

editar súmulas que correspondam à sua jurisprudência dominante.

Em seguida, o art. 927517 dispõe expressamente que os juízes e tribunais deverão

observar nos seus julgados as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado

515 NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 23. 516 STRECK, Lênio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 100. 517 Em razão da importância do referido dispositivo legal para o sistema de precedentes adotado pelo NCPC, oportuno destacar alguns enunciados interpretativos do Fórum Permanente dos Processualistas Civis: Enunciado 170 - “As decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art. 927 são vinculantes aos órgãos do jurisdicionais a eles submetidos”; Enunciado n. 173 – “Cada fundamento determinante adotado na decisão capaz de resolver de forma suficiente a questão jurídica induz os efeitos de precedente vinculante, nos termos do Código de Processo Civil”; Enunciado n. 318 – “Os fundamentos prescindíveis para o alcance do resultado fixado no dispositivo da decisão (obter dicta), ainda que nela presentes, não possuem efeito de precedente vinculante”; Enunciado n. 460 – “O microssistema de aplicação e formação dos precedentes deverá respeitar as técnicas de ampliação do contraditório para amadurecimento da tese, como a realização de audiências públicas previas e participação de amicus curiae”. (NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 363-365)

Page 240: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

238

de constitucionalidade, os enunciados de súmulas vinculantes, das súmulas do Supremo

Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria

infraconstitucional, os acórdãos proferidos em incidentes de assunção de competência ou de

resolução de demandas repetitivas e de julgamento de recurso extraordinário e especial

repetitivo e, por fim, a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem

vinculados.

Considera-se prescindível a previsão da eficácia obrigatória em relação ao

julgamento do controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal e

em relação às súmulas vinculantes, uma vez que já possuem eficácia vinculante e erga omnes

em razão da própria Constituição da República de 1988.

As súmulas, aliás, por sua característica de síntese e abstração, não tem condições

de expressar com precisão as circunstâncias de fato pertinentes aos casos julgados em que se

definiu a interpretação jurídica sintetizada nos enunciados, por isso “é ilógico dar-lhes a

função de precedentes, na medida em que só a decisão do caso concreto é capaz de espelhar

em toda a sua plenitude o contexto fático em que a ratio decidendi se insere” 518.

A inclusão como precedente obrigatório dos julgamentos proferidos em recurso

especial e extraordinários repetitivos tem, por sua vez, respaldo no papel constitucional

atribuído às Cortes Supremas, o qual não se confunde com a função das instâncias ordinárias,

conforme será tratado em tópico a seguir. Aliás, Marinoni critica o fato de terem sido

considerados como precedentes obrigatórios apenas os julgamentos dos recursos

extraordinários e especiais repetitivos, quando deveriam sê-lo também todos os demais

julgamentos de recursos relevantes pelo STJ e STF, haja vista o papel jurisdicional

desempenhado pelos referidos tribunais superiores:

É um grosso equívoco imaginar que apenas as decisões proferidas em recursos repetitivos têm eficácia obrigatória. A letra do art. 927 parece supor que a função das Cortes Supremas é resolver litígios que podem se repetir em massa para, dessa forma, otimizar a administração da justiça. Ora, isso nada tem a ver com a função das Cortes Supremas, que é de definir, mediante as melhores razões, a norma que deflui do texto legal ou constitucional. O exercício dessa função, por mudar o direito incrementadamente, acrescendo sentido à ordem jurídica vinculante, dá origem a decisões cujas rationes decidendi tem natural eficácia obrigatória. 519

518 MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedente e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: RT, 2015, p. 23. 519MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedente e decisão do recurso diante do

Page 241: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

239

As demais hipóteses da norma acima referida, como os acórdãos proferidos no

IRDR e no incidente de assunção de competência, adquiriram por lei ordinária o status

automático de precedente com eficácia vinculante no âmbito da estrutura hierárquica do Poder

Judiciário, julgamentos que, todavia, não têm a capacidade de efetivamente garantir a unidade

do direito, mas apenas primar pela celeridade processual e pelo engessamento da

jurisprudência.

Ou seja, no sistema brasileiro, alguns julgamentos serão considerados, por força

de lei, “precedentes judiciais obrigatórios” ainda que não proferidos pelos Tribunais

Superiores. Atribuiu-se a presunção absoluta de que todas as decisões proferidas nas hipóteses

elencadas no referido art. 927 terão relevância e ampla fundamentação para definição de teses

jurídicas dotadas de verdadeiro caráter normativo, as quais repercutirão, de forma vinculante,

nos casos subsequentes. “Pode-se, assim, dizer que no Direito brasileiro, diferentemente do

que acontece em outros ordenamentos, o precedente é criado ‘para ser precedente vinculante’.

Pode-se mesmo dizer que tais pronunciamentos são ‘precedentes de propósito’” 520.

Nas palavras de Júlio Rossi,

Criamos um precedente à brasileira: uma forma de solucionar os conflitos por meio da jurisprudência (seja ou não reiterada; matéria constitucional ou infraconstitucional) que servirá de parâmetro normativo obrigatório (não indicativo ou persuasivo), para que os órgãos inferiores do Poder Judiciário chancelem, com a mesma decisão padrão, casos aparentemente assemelhados. 521

Na verdade, o que se instituiu pela letra da lei foi o uso obrigatório de

determinados julgamentos, especialmente dos proferidos apenas pela instância ordinária,

como “padrões decisórios” com o principal objetivo de acelerar o andamento das ações

repetitivas e, por conseguinte, diminuir o acervo de processos em tramitação no Poder

Judiciário.

Isso vai de encontro à teoria do precedente no common law. Um precedente não

surge automaticamente ou recebe tal status antes mesmo que o julgamento aconteça e seja

reproduzido em outros casos.

novo CPC. São Paulo: RT, 2015, p. 22. 520 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 437. 521 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 206.

Page 242: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

240

Naquele sistema, é muito difícil surgir um precedente (um padrão decisório a ser

seguido) a partir de um único julgamento, o que, a toda evidência, será o caso do Brasil.

Conforme destacam Dierle Nunes e Humberto Theodoro Jr. em relação ao common law, “nem

todas as decisões se tornam precedentes, mesmo quando proferidas pela Suprema Corte (isso

pode ocorrer porque a decisão dividiu o Tribunal ou porque este, de toda sorte, se expressa no

sentido de que a decisão não cria precedente)” 522.

Além disso, no common law, o precedente é apenas um ponto de partida que

estabelece um princípio universalizável. Como ponto de partida, o juiz poderá aplicá-lo ao

caso subsequente, moldando-o e adaptando-o de forma a alcançar a realidade da decisão ao

caso concreto. “O processo de aplicação, quer resulte numa expansão ou numa restrição do

princípio, é mais do que apenas um verniz; representa a contribuição do juiz para o

desenvolvimento e evolução do direito” 523.

Nesse contexto, o julgamento de um caso específico somente adquire a condição

de precedente a partir da participação fundamental dos julgadores dos casos subsequentes, que

poderão aplicá-lo e, ainda, moldá-lo, se os conflitos se assemelharem em todos os aspectos e,

principalmente, se aquele julgamento precedente realmente for dotado de relevância e ampla

fundamentação para legitimar a repetição da ratio decidendi.

Conforme a lição do italiano Michele Taruffo:

O precedente fornece uma regra (universalizável, como já foi dito) que pode ser aplicada como critério de decisão no caso sucessivo em função da identidade ou – como acontece em regra – da analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso. Naturalmente, a analogia das duas fattispecie concretas não é determinada in re ipsa, mas é afirmada ou excluída pelo juiz do caso sucessivo conforme este considere prevalecentes os elementos de identidade ou os elementos de diferença entre os fatos dos dois casos. É, portanto, o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o precedente e desta forma – por assim dizer – “cria” o precedente. 524

Ou seja, de acordo com o processualista italiano, o precedente surge e se funda a

partir da analogia que o segundo juiz vê entre os fatos do caso que ele deve decidir e os fatos

522 THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Melo Franco Bahia; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Lei 13.105, de 16.03.2015. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 358. 523 RE, Edward D. Stare Decisis. Trad. Elle Gracie Northfleet. Revista Forense, v. 327, 1990, p. 38. 524TARUFFO, Michele. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 199, 2011, p. 142-143.

Page 243: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

241

do caso já decidido, porque somente com essa condição é que se pode aplicar a regra pela

qual a mesma ratio decidendi deve ser aplicada a casos idênticos ou ao menos similares. 525

No mesmo sentido, Leonard Schmitz defende a formação gradativa do precedente

pela adoção reiterada de determinado fundamento pelos juízes dos casos subsequentes,

criticando a teoria de precedente que foi implementada no Brasil:

(...) a decisão de adotar o precedente cabe ao juiz posterior, ou seja, àquele que está no momento julgando e não se constitui uma imposição do juízo anterior como no caso da edição de súmula, máxime quando e se de caráter vinculante. Em outras palavras, esses julgamentos-paradigma formam o que se pode chamar de “padronização decisória preventiva”, consistindo em uma teoria às avessas do precedente judicial. Acreditar, como se tem acreditado no Brasil, que a ementa de decisão jurídica pode conter em si mesma as soluções para os casos futuros é, no mínimo, uma ingenuidade, pois isso equivale a dizer que o julgador poderia abrir mão do raciocínio jurídico, utilizando o discurso previamente fabricado para justificar sua decisão. 526

Em razão da imposição legislativa no Brasil, corre-se o sério risco de que na

prática judiciária o rol dos precedentes obrigatórios do CPC/2015 seja aplicado de forma

absolutamente mecânica527, com a repetição das teses jurídicas, acarretando um verdadeiro

engessamento do processo argumentativo, além da restrição da participação democrática dos

sujeitos afetados pelo provimento jurisdicional e também do próprio julgador de primeiro

grau, cujo papel é fundamental na interpretação do Direito.

Marcelo Franco também externa preocupação com o sistema de precedentes

adotado no Brasil e a restrição à participação democrática:

(...) a aplicação de precedentes judiciais com eficácia vinculante (binding effect) pressupõe que a tese jurídica já se encontre totalmente discutida e consolidada na jurisprudência do tribunal. É necessário que o debate jurídico acerca do thema decidendum já esteja exaurido em relação a todos os argumentos deduzidos em contraditório pelos interessados, de modo que a ratio decidendi do julgado-paradigma é construída com a participação influente dos destinatários do provimento. Esse é mais um dos motivos pelos quais não é possível que o dispositivo decisório ou um enunciado sumular tenha força vinculante. Ora, terceiros estranhos à causa de origem, que não debateram as questões em contraditório, não podem se sujeitar à aplicação

525 TARUFFO, Michele. Processo civil comparado. Ensaios. Trad. Daniel Mitidiero. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 131. 526 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Compreendendo os “precedentes” no Brasil: fundamentação de decisões com base em outras decisões. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 38, n. 220, jun. 2013, p. 361. 527 NERY JR., Nelson; ABBOUD, Georges. Stare decisis vs direito jurisprudencial. In: FREIRE, Alexandre et al.(orgs.) Novas tendências do processo civil. Vol. I. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 497-498.

Page 244: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

242

obrigatória e vinculativa de determinada ordem jurisdicional. 528

O sistema de precedente imposto pela lei servirá como um perigoso instrumento

centralizador, de natureza presumidamente fechada e acabada, que engessará a interpretação

do direito por outros órgãos jurisdicionais, vulnerando o modelo constitucional de processo.

Cita-se no ponto a crítica de Lênio Streck para o qual o horizonte da dogmática

jurídica ingressa “num universo de silêncio: um universo do texto, do texto que sabe tudo, que

diz tudo, que faz as perguntas e dá as respostas”529. Ou seja, um horizonte de restrição do

debate processual e também de limitação da atuação do julgador de primeiro grau, que se

tornará um “juiz eletrônico”, mero repetidor de teses jurídicas de caráter normativo firmadas

pelos tribunais.

No mesmo sentido, importante transcrever as palavras de Dierle Nunes:

Ao contrário do que se passa no common law, a utilização, no Brasil, dos precedentes e, em maior medida, do direito jurisprudencial na aplicação do direito é fruto de um discurso de matiz neoliberal, que privilegiava a sumarização da cognição, a padronização decisória superficial e uma justiça de números (eficiência tão somente quantitativa), configurando um quadro de aplicação equivocada (fora do paradigma constitucional) desse mesmo direito jurisprudencial (...) 530

O receio não se encontra apenas no seio da doutrina. O Superior Tribunal Justiça,

o qual deverá assumir o papel de “Corte de Precedentes”, também já manifestou preocupação

sobre a padronização das decisões e o uso desmedido do procedimento de pinçamento de

recursos repetitivos representativos de controvérsia.

Nessa toada, Georges Abboud cita a fala do ministro Napoleão Nunes Maia em

debate no Superior Tribunal de Justiça sobre o impacto dos julgamentos dos recursos

repetitivos:

‘A nossa paixão pelos recursos repetitivos está nos tornando irracionais. Toda paixão tira a razão’, disse. Segundo o ministro, ‘as decisões tomadas pela sistemática de recursos repetitivos não nos dá o melhor’. Ele recordou que o julgamento nessa modalidade processual ‘gera um efeito cascata. Não

528 FRANCO, Marcelo Veiga. Processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 119. 529 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 107. 530 THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Melo Franco Bahia; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Lei 13.105, de 16.03.2015. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 327.

Page 245: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

243

sobe mais nada’. Questionando a possibilidade de reverter o leading case, afirmou que ‘mudar o precedente é um tsunami’: ‘São irreversíveis as decisões em recurso repetitivo. São mais veementes do que súmulas’, comentou. Para o ministro, ‘não é possível saber como vamos para o futuro com os repetitivos’. Napoleão Nunes Maia recordou a obra do sociólogo Zygmunt Bauman, ‘Medo Líquido’, que fala sobre os medos contemporâneos que assolam a sociedade: ‘Bauman, em seu livro, não falou dos recursos repetitivos, mas poderia’ – disse, arrematando sua fala com a frase: ‘Eu também tenho medo dos repetitivos!’531

Não se pode negar, pois, que o modelo de “precedentes obrigatórios” adotado pelo

CPC/2015 representa uma mudança de paradigma não só para a interpretação do direito

processual do país, mas na cultura jurídica brasileira, acarretando sérias consequências para a

prática judiciária. Talvez por isso tal modelo deveria ter sido implementado mediante uma

profunda reforma constitucional condizente com a ruptura do paradigma anterior, já que a

novel legislação atribuiu aos tribunais, inclusive àqueles de segundo grau, o poder de definir

teses jurídicas dotadas de caráter normativo geral e abstrato.

Nesse sentido, a crítica de José Rogério Cruz e Tucci ao art. 927 do CPC/2015:

Salta aos olhos o lamentável equívoco constante desse dispositivo, uma vez que impõe aos magistrados, de forma cogente – “os tribunais observarão” –, os mencionados precedentes, como se todos aqueles arrolados tivessem a mesma força vinculante vertical. Daí, em princípio, a inconstitucionalidade da regra, visto que a Constituição Federal, como acima referido, reserva efeito vinculante apenas e tão somente às súmulas fixadas pelo Supremo, mediante devido processo e, ainda, aos julgados originados de controle direto de constitucionalidade. À míngua de uma dogmática própria, o legislador pátrio perdeu uma excelente oportunidade para regulamentar um regime adequado da jurisprudência de nossos tribunais, entre as várias espécies de precedente judicial, a partir de sua natureza, considerando a sua respectiva origem. 532

Nelson Nery Jr.533 e Alexandre Freitas Camara534 também criticaram a sistemática

de precedentes adotada pela novel legislação, pois o poder normativo conferido aos tribunais

em razão dos julgamentos elencados no art. 927 superaria, segundo os referidos juristas, a

autoridade da própria lei e da Constituição. 531 ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e Judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: RT, 2014, p. 402-403. 532 TUCCI, José Rogério Cruz e. O regime do precedente judicial no novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MACÊDO, Lucas Buril de; ATAIDE JR., Jaldemiro R. de (coords). Precedentes. Salvador: JusPodivm, p. 445/458, 2015, p. 454. 533 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1837. 534 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 425-442.

Page 246: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

244

No que interessa ao objeto da presente pesquisa, a tese jurídica535 firmada no

julgamento do IRDR possui status de precedente, adquirindo, por previsão expressa do art.

927 do CPC/2015, caráter normativo dotado de eficácia prospectiva, como uma verdadeira

súmula vinculante, pois deverá ser adotada obrigatoriamente pelos tribunais locais e pelos

juízes de primeira instância em relação aos casos em tramitação e aos futuros.

O juiz de primeira instância deverá observá-la, sob pena de manejo de reclamação

ao tribunal local ou regional do qual emanou a tese vinculante, o qual poderá, conhecendo da

via impugnativa, cassar o ato decisório e determinar que o julgador profira novo julgamento

em consonância com o precedente formado no incidente coletivo.

Júlio Rossi adverte que, a pretexto de intentar resolver o problema da litigiosidade

relevante e de massa (constitucional e infraconstitucional), corre-se o risco de se alcançar uma

solução meramente estatística e funcionalmente conveniente, em detrimento de “decisões

qualitativamente satisfatórias sob o ponto de vista de uma prestação jurisdicional

absolutamente legítima e eficiente” 536.

Isso porque, segundo o referido processualista, a prática dos juízes e tribunais no

Brasil carece de uma teorização ou de uma doutrina da utilização dos precedentes, na medida

em que reprisam, de forma mecanizada, os julgados do Poder Judiciário em casos semelhantes

ou mesmo as meras ementas de acórdãos como se fossem “precedentes”, interpretando-os e

aplicando-os sem fazer a análise pormenorizada da causa da qual se originaram a partir dos

debates processuais.

Nessa perspectiva, Dierle Nunes defende o delineamento de uma teoria de

precedentes para o Brasil, que respeite o “processualismo constitucional democrático”, sem a

perniciosa padronização decisória superficial que restringe a análise e a reconstrução

interpretativa do direito. 537

535 Para Sofia Temer, “o termo “tese” deve ser compreendido de uma forma ampla, compreendendo tanto os fundamentos e argumentos sopesados como a própria conclusão sobre a questão de direito (seja em relação a sua interpretação, à sua constitucionalidade, à sua incidência em relação à determinada categoria fática). Por isso, talvez seja possível afirmar que, em relação à decisão do IRDR, há um regime de estabilidade e de eficácia vinculativa do conjunto fundamentos apreciados à luz de uma determinada categoria fática + conclusão. Para nós, essa é a tese jurídica.” (TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 212). 536 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 204. 537 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisão. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 189, set. 2011, p. 38.

Page 247: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

245

Para tanto, a legitimidade da aplicação do precedente dependeria, segundo Dierle

Nunes, dentre outras premissas elencadas, de longo e prévio debate sobre a temática antes de

sua utilização como um padrão decisório:

(...) ao se proceder à análise de aplicação dos precedentes no common law se percebe ser muito difícil a formação de um precedente (padrão decisório a ser repetido) a partir de único julgado, salvo se em sua análise for procedido um esgotamento discursivo de todos os aspectos relevantes suscitados pelos interessados. Nestes termos, mostra-se estranha a formação de um ‘precedente’ a partir de um julgamento superficial de um (ou poucos) recursos (especiais e/ou extraordinários) pinçados pelos tribunais (de Justiça/regionais ou Superiores). Ou seja, precedente (padrão decisório) dificilmente se forma a partir de um único julgado. 538

O IRDR tem o principal objetivo de acelerar a resolução das causas repetitivas e o

seu julgamento é considerado um precedente em razão de mera ficção legal de que abordará a

integralidade dos argumentos objetos da controvérsia jurídica, podendo ser instaurado, de

acordo com o CPC/2015, a partir de alguns poucos processos repetitivos, o que potencializa o

risco de uma padronização superficial e indesejável da interpretação do direito.

Desse modo, tal como concebido, o incidente coletivo não proporciona ou exige o

esgotamento prévio da temática antes da utilização do seu julgamento como padrão decisório,

especialmente pelo fato de que é da competência dos tribunais locais, cortes de apelação e não

verdadeiras Cortes de Precedentes, conforme se verá a seguir.

Com efeito, a vinculação ao julgamento do incidente de resolução de demandas

repetitivas traz “o risco de que o entendimento jurisprudencial venha a ser fixado de forma

prematura, ensejando novos dissensos, num curto lapso temporal, tendo em vista o

surgimento de novos argumentos não imaginados ou não trazidos à discussão na época do

incidente”539.

A propósito desse ponto, merece destaque a crítica apresentada por Júlio Rossi:

Parece que o Código projetado, ao criar o IRDR, fincou esforços para re-solver apenas questões antecipadas de forma, ao invés de estabelecer os con-tornos necessários a uma adequada decisão judicial e uma maneira efetiva de controlá-la em nível recursal. Preferiu-se impor apenas a força da autoridade

538 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva. A litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisão. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 189, set. 2011, p. 38. 539 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues. Precedentes vinculantes e irretroatividade do direito no sistema processual brasileiro: Os Precedentes dos Tribunais Superiores e sua Eficácia Temporal. Curitiba: Juruá, 2012, p.130.

Page 248: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

246

do órgão prolator da decisão, projetando a reclamação como o único meio adequado de atacá-la, inviabilizando a “oxigenação do direito” e a maturação necessária para a decisão (conteúdo), e impedindo que os órgãos judiciais in-feriores tenham contato com a causa e contribuam para uma jurisprudência firme; estrangulou-se o sistema recursal, inviabilizando o efetivo e democrático debate no âmbito do Poder Judiciário. 540

Evaristo Aragão Santos541 também critica o status de precedente obrigatório

conferido ao IRDR, em razão da previsão da possibilidade de uma única pessoa requerer ao

STF ou ao STJ (a depender da controvérsia em jogo) a suspensão dos processos individuais

sobre a matéria objeto do incidente, restringindo a diversidade e a possibilidade de se ampliar

a discussão da causa.

Enfim, sem o esgotamento da temática e o amplo dissenso interpretativo, o status

de precedente vinculante conferido pela lei ao julgamento do IRDR por tribunal de segundo

grau se mostra precipitado e absolutamente inadequado, sob a ótica do modelo constitucional

de processo, seja em razão das restrições à participação democrática das partes (conforme

abordado no capítulo 03), seja em razão da independência judicial e da restrição à

participação do juiz na construção do provimento jurisdicional, o que será analisado em

tópico específico.

O sistema de precedentes deveria ter sido previsto na própria Constituição e,

outrossim, deveria ter sido circunscrito somente aos julgamentos pelos tribunais superiores, os

quais possuem competência constitucional para uniformizar a interpretação do Direito e atuar

como Cortes de Precedentes para definir teses jurídicas com caráter prospectivo.

4.4 A inconstitucionalidade da visão dos tribunais ordinários como “Corte de

Precedente”: a diferença entre a função jurisdicional dos tribunais superiores e dos

tribunais locais

Diante da opção do legislador do CPC/2015 em conferir status de “precedente

vinculante” a determinados julgamentos pelos tribunais locais ou regionais, especialmente ao

julgamento do IRDR, importante abordar, sob a ótica do modelo constitucional de processo, a

distinção dos papéis desempenhados pela instância ordinária e a extraordinária no Sistema de

Justiça no Brasil.

540 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 234-235. 541 SANTOS, Evaristo Aragão. Em torno do conceito e da formação do precedente judicial. In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.176.

Page 249: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

247

Conforme distinção terminológica proposta por Daniel Mitidiero542, ao passo que

as “cortes superiores” têm como objetivo primordial o simples controle da legalidade das

decisões proferidas pelos tribunais ordinários, não sendo um órgão voltado à interpretação e

construção do direito (definição de teses jurídicas), as “cortes supremas” têm como finalidade

a formação de precedentes, julgamentos dotados de caráter normativo e prospectivo, com

intuito de assegurar a efetividade dos princípios constitucionais da isonomia e da segurança

jurídica.

No atual Estado Constitucional, o processo civil, segundo o referido

processualista, assume duas funções que se complementam: uma voltada à tutela do direito

subjetivo das partes através de uma decisão justa, garantidora dos direitos fundamentais

assegurados pela Lei Maior; outra dirigida à sociedade, que se dará a partir da formação de

precedente de relevância, projetando-se para o futuro para garantir a unidade do direito, sua

estabilidade e confiabilidade. Essa segunda função deve ser desempenhada por uma Corte

Suprema e não por um tribunal meramente de revisão da legalidade da decisão recorrida.

Nessa perspectiva, o ideal é que apenas determinadas cortes sejam vocacionadas à

prolação de decisões justas, voltadas à revisão dos julgados, e que outras cuidem da formação

de precedentes. Assim, uma organização judiciária ideal parte do pressuposto da necessidade

de uma cisão funcional entre os tribunais incumbidos de tomar decisões justas para solução

dos casos concretos, atendendo aos interesses subjetivos das partes em litígio, e outros de

editar precedentes ou, em fórmula mais sintética, entre Cortes de Justiça e Cortes de

Precedentes. 543

Michele Taruffo também aborda o papel das Cortes Supremas, na atualidade,

destacando genericamente que a função a ser desempenhada é dotada de dois aspectos: um

voltado para a “tutela” da legalidade e outro para a “promoção” da legalidade (considerada a

correta aplicação do direito).

A tutela da legalidade é entendida, segundo o autor italiano, como uma função

reativa, realizada quando uma violação da lei já ocorreu e a intervenção do tribunal tem o

objetivo de eliminá-la e, quando possível, neutralizar ou eliminar seus efeitos. A promoção da

legalidade se relaciona, por sua vez, com o caráter prospectivo da atuação da corte (atuação

ativa, ou pró-ativa), dirigida tanto no sentido de prevenir violações da lei, como no sentido de 542 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013, p. 11. 543 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013, p. 29-30.

Page 250: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

248

favorecer a evolução e transformação do direito.544 Os aspectos reativo e prospectivo da

função exercida podem coexistir e se desenvolver com intensidades diferentes a depender dos

casos julgados e das cortes analisadas.

Dando como exemplo os principais modelos do civil law de cortes de cassação ou

revisão na França, Itália e na Espanha, Taruffo destaca que a função reativa assume particular

relevância, tendo em vista o mero papel de controle da legitimidade da decisão proferida no

caso concreto para verificar se a lei, material e processual, foi aplicada corretamente nos

julgamentos de mérito.545 Uma função de natureza “privada”, pois voltada

preponderantemente à tutela dos interesses das partes.

Diferentemente da função reativa, a atuação proativa ou prospectiva na construção

e interpretação do direito constitui a principal função das modernas cortes supremas, que

assumem posição como vértice da organização hierárquica jurisdicional. Com os seus

julgamentos, na realidade, a corte suprema se torna ativa protagonista do complexo processo

de construção e interpretação do direito, orientando as decisões futuras sobre os problemas de

relevância jurídica que transcendem os meros interesses individuais das partes.

Nas palavras de Taruffo, “uma função desse gênero se manifesta com particular

evidência quando o acesso às cortes supremas é subordinado a uma seleção e a atividade

dessas cortes é orientada principalmente à produção e ao controle dos precedentes

jurisprudenciais” 546. (tradução livre)

É o caso quando a corte funciona como órgão de vértice da jurisdição ordinária e

também quando decide questões de natureza constitucional. Por isso as Cortes Constitucionais

544 La “tutela” della legalità allude alla funzione reattiva che molte corti svolgono, e che si esplica quando una violazione del diritto si è già verificata e l’intervento della corte è finalizzato ad eliminarla e – quando è possibile – a neutralizzarne o eliminarne gli effetti. La “promozione” della legalità allude alla funzione che (con un anglismo forse tollerabile) si potrebbe definire come proattiva: essa si esplica quando le decisioni delle corti supreme sono finalizzate (anche o soprattutto, o soltanto) ad ottenere effetti futuri, sia nel senso di prevenire violazioni della legalità, sia nel senso di favorire l’evoluzione e la trasformazione del diritto. (TARUFFO, Michele. Le Funzioni delle Corti supreme: cenni generali. Revista Magister de direito civil e processual civil, v. 8, n. 46, jan./fev. 2012, p. 96) 545 Controllo di legittimità della decisione nel singolo caso significa – come è chiaro ad esempio proprio nel caso della Cassazione italiana, della Cour de Cassation francese e del Tribunal Supremo spagnolo – che la funzione della corte consiste essenzialmente nel verificare se la legge, sostanziale e processuale, è stata correttamente applicata dai giudici di merito. Assume particolare rilievo la dimensione reattiva di questa funzione (...) (TARUFFO, Michele. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 199, 2011, p. 98) 546 Una funzione di questo genere si manifesta invero con particolare evidenza quando l’accesso alle corti supreme è subordinato ad una selezione25, e l’attività di queste corti è orientata principalmente alla produzione e al governo dei precedenti giurisprudenziali. (TARUFFO, Michele. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 199, 2011, p. 101)

Page 251: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

249

também podem assumir importante papel na evolução e interpretação do direito.

Nessa perspectiva, a decisão de uma Corte de Vértice de determinado Sistema de

Justiça – quando desempenha o papel de verdadeira Corte Suprema – passa a orientar a

sociedade e a guiar as decisões dos juízes e dos tribunais de apelação. Em razão de

desenvolver o direito ao lado do legislativo, tal decisão deve ganhar a autoridade que lhe

permita irradiar os seus efeitos perante o ordenamento jurídico. É nesse ponto que as decisões

das Cortes Supremas se sobressaem em relação às cortes de apelação, assumindo a qualidade

de precedentes. 547

No Brasil, a Constituição da República de 1988 definiu, de forma analítica, a

organização do Poder Judiciário nos artigos 92 a 126, estabelecendo precisamente a

competência dos tribunais superiores (instância extraordinária), dando-lhes papel de

relevância na interpretação e uniformização do direito, como verdadeiras “cortes supremas” e

não meras cortes superiores de revisão da legalidade das decisões recorridas (como se fossem

uma terceira instância).

Nesse contexto, o papel constitucional do Supremo Tribunal Federal e do Superior

Tribunal de Justiça adquire proeminência em relação à instância ordinária e com ela não pode

se confundir.

Trata-se de tribunais superiores que não pertencem a nenhum ramo específico da

Justiça, possuem jurisdição em todo território nacional e também são considerados órgãos

jurisdicionais de convergência e de superposição.

De acordo com a lição de Cândido Rangel Dinamarco:

Quanto às causas processadas na Justiça Federal ou nas locais, em matéria infraconstitucional a convergência conduz ao Superior Tribunal de Justiça, que é um dos Tribunais Superiores da União embora não integre Justiça alguma; em matéria constitucional, convergem diretamente ao Supremo Tribunal Federal. Todos os Tribunais Superiores convergem unicamente ao Supremo Tribunal Federal, como órgão máximo da Justiça Brasileira e responsável final pelo controle de constitucionalidade de leis, atos normativos e decisões judiciárias.548

Embora não pertençam a qualquer Justiça, as suas decisões se sobrepõem às

547 MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: RT, 2014, p. 65. 548 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. 1. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 368.

Page 252: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

250

decisões proferidas pelos órgãos inferiores das instâncias ordinárias. As decisões do Superior

Tribunal de Justiça se sobrepõem àquelas da Justiça Federal comum, da Estadual e do Distrito

Federal, ao passo que as decisões do Supremo Tribunal Federal se sobrepõem a todas as

Justiças e Tribunais do Poder Judiciário do Brasil. 549

Sob de tal perspectiva, passou-se a atribuir às referidas cortes extraordinárias não

apenas o objetivo de uniformizar a jurisprudência, mas, na essência, o papel de outorga de

unidade, coerência e segurança ao ordenamento jurídico pátrio.

Afora os casos excepcionais de competência originária e recursal ordinária

expressa e exclusivamente previstos na Constituição, o Supremo Tribunal Federal

desempenha a função fundamental de guardião da Lei Maior, segundo caput do art. 102.

Destacam-se, a propósito, as palavras do ministro Gilmar Mendes:

A discussão na Constituinte sobre a instituição de uma Corte Constitucional, que deveria ocupar-se, fundamentalmente, do controle de constitucionalidade, acabou por permitir que o Supremo Tribunal Federal não só mantivesse a sua competência tradicional, com algumas restrições, como adquirisse novas e significativas atribuições. A Constituição de 1988 ampliou significativamente a competência originária do Supremo Tribunal Federal, especialmente no que concerne ao controle de constitucionalidade das leis e atos normativos e ao controle da omissão inconstitucional. 550

Apesar de não ser uma Corte constitucional nos moldes, por exemplo, do sistema

adotado na Alemanha, no qual o Tribunal Constitucional foi criado especificamente para o

controle da constitucionalidade551, o Supremo Tribunal Federal possui relevante papel na

efetividade da jurisdição constitucional, seja no controle difuso, através do recurso

extraordinário, seja no controle concentrado, mediante o julgamento das ações diretas de

inconstitucionalidade por ação e omissão, da ação declaratória de constitucionalidade e de 549 LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. São Paulo: Método, 2005, p. 346. 550 MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 990. 551 O modelo da Europa continental, seguindo a tradição de Kelsen, caracteriza-se por concentrar em um só órgão especial, o chamado tribunal constitucional, colocado fora e acima do Judiciário, a função de velar pela constitucionalidade das leis e subsequente respeito do texto constitucional. A fisionomia técnico-jurídica do sistema europeu-continental caracteriza-se pelo fato de que, nos casos de inconstitucionalidades suscitada pelos órgãos judiciários, a decisão do tribunal constitucional é remetida ao órgão do judiciário que suscitou a questão de inconstitucionalidade para ser aplicada ao caso concreto. Cabe assinalar, porém, que o procedimento ante o tribunal constitucional não se esgota com a questão incidental suscitada pelos órgãos judiciários. Há também a impugnação direta da norma supostamente inconstitucional, a ser exercitada por certos sujeitos especialmente legitimados a tal fim. Finalmente, outro traço saliente do sistema europeu-continental está no fato de que a declaração de inconstitucionalidade do tribunal constitucional produz sempre efeito erga omnes, seja na suscitação incidental, seja na ação direta, já que, segundo a concepção kelseniana, o tribunal constitucional é um legislador negativo. (ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p.87-88)

Page 253: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

251

descumprimento de preceito fundamental.

Como órgão jurisdicional de cúpula do controle difuso de constitucionalidade,

compete também ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, inciso III da

Constituição, julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última

instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar

a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local

contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei

federal.

Conforme destaca Guilherme Bacelar, em brilhante dissertação sobre o tema, o

recurso extraordinário é o instrumento por excelência colocado à disposição do STF para a

fiscalização do exercício da jurisdição constitucional pelos demais órgãos do Poder Judiciário,

de modo a desempenhar a sua missão de guardião maior da Constituição, aclarando o

conteúdo e o alcance das normas constitucionais e extirpando do sistema os atos normativos

contrários à Constituição de 1988. 552

Destaca-se, nesse ponto, que a Emenda Constitucional 45, de 2004, introduziu a

“repercussão geral” como pressuposto específico de admissibilidade (filtro) do recurso

extraordinário. O recorrente deverá demonstrar a relevância da matéria sob a ótica econômica,

política, social ou jurídica, que transcende o mero interesse subjetivo das partes litigantes, o

que confere caráter mais objetivo e abstrato também ao controle difuso de

constitucionalidade, possibilitando que os efeitos do julgamento de alguns poucos recursos se

irradiem para outros casos concretos.

Nas palavras do professor Humberto Theodoro Jr.:

Esse tipo de recurso nunca teve a função de proporcionar ao litigante inconformado com o resultado do processo uma terceira instância revisora da injustiça acaso cometida nas instâncias ordinárias. A missão que lhe é atribuída é de uma carga política maior, é a de propiciar à Corte Suprema meio de exercer seu encargo de guardião da Constituição, fazendo com que seus preceitos sejam corretamente interpretados e fielmente aplicados. É a autoridade e supremacia da Constituição que toca ao STF realizar por via dos julgamentos dos recursos extraordinários. 553

552 ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. Precedentes vinculantes em recursos extraordinários e especial repetitivos. 2016, 296f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito. Belo Horizonte, 2016, p. 148. 553 THEODORO JR., Humberto. Repercussão geral no recurso extraordinário (Lei nº.11.418) e súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal (Lei nº 11.417). Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, n.18, maio/jun. 2007, p.6.

Page 254: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

252

Com efeito, a modificação constitucional demonstra a tendência normativa de

valorização dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, dando-lhe status de verdadeira

“Corte Suprema” e não de tribunal de “terceira instância” voltado apenas à revisão e controle

dos atos proferidos pelas instâncias ordinárias.

Nesse sentido, Arruda Alvim destaca a importância da atuação do Supremo

Tribunal Federal:

As decisões do STF configuram o referencial máximo em relação ao entendimento havido como o correto em relação ao Direito Constitucional. Tais decisões, em devendo ser exemplares, hão, igualmente, de carregar consigo alto poder de convicção, justamente porque são, em escala máxima, os precedentes a serem observados e considerados pelos demais Tribunais, ainda que não sejam sumulados pelo STF. 554

A definição do STF como Corte Suprema, vale dizer, como Corte de Precedentes,

tem, portanto, amparo na Carta de 1988555, o que se mostra essencial para se dar racionalidade

e coerência interna ao Sistema de Justiça, especialmente quando se admite o controle difuso

de constitucionalidade.

Nas palavras de Marinoni, “não há racionalidade em dar a todo e qualquer juiz o

poder de afirmar o significado de um direito fundamental e, não obstante isso, deixar-lhe

desobrigado perante a palavra final da Corte Suprema” 556.

De igual modo, foi conferida ao Superior Tribunal de Justiça, como instância

extraordinária (Corte de Vértice), a incumbência de zelar primordialmente pela unidade do

direito federal infraconstitucional mais do que simplesmente solucionar o conflito

intersubjetivo das partes submetido à apreciação do Poder Judiciário. Conforme lição de

Marinoni:

A autoridade dos precedentes também guarda relação com o fato de uma Suprema Corte ter posição diferenciada no sistema jurídico, destinada à

554 ARRUDA, Alvim. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. et. al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 84. 555 O Supremo Tribunal, sob pena de se comprometerem as elevadas funções que a Constituição lhe conferiu, não pode ter seus julgados desobedecidos (por meios diretos ou oblíquos), ou vulnerada sua competência. Trata-se (...) de medida de Direito Processual Constitucional, porquanto tem como causa finalis assegurar os poderes e prerrogativas que ao Supremo Tribunal foram dados pela Constituição da República. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Reclamação n. 1723-CE, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 06/04/2001) 556 MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: RT, 2014, p. 55.

Page 255: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

253

revelação do sentido do direito. No sistema brasileiro o Superior Tribunal de Justiça é uma Corte de Vértice, nada existindo acima dela no que diz respeito ao direito federal. Assim, a sua posição no sistema lhe confere a última palavra no que pertine à atribuição judicial de sentido ao direito federal. 557

Conforme se verifica do artigo 105, inciso III, da Constituição da República de

1988, compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas

decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou tribunais dos

Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei

federal, ou negar-lhes vigência, julgar válido ato de governo local contestado em face de lei

federal, ou der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.

Incumbe, portanto, ao STJ, uniformizar o direito infraconstitucional, mediante a

definição da correta interpretação da legislação federal vigente, a fim de evitar que cada

Tribunal Regional Federal ou de Justiça, ao interpretá-la, faça-o de forma distinta de outros,

decidindo casos substancialmente idênticos de forma diferente, violando a segurança jurídica

e o princípio da igualdade. 558

Alexandre de Moraes559 traça um importante paralelo ao afirmar que, se o

Supremo Tribunal Federal é entendido como guardião da Constituição, também se pode

afirmar, em igual proporção, que o Superior Tribunal de Justiça deve funcionar como

guardião do ordenamento infraconstitucional federal.

Assim, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça –

compreendidos, nesse novo contexto interpretativo, como “Cortes Supremas” e não meros

tribunais superiores de revisão – assumem papel relevante não apenas para dizer a exata

aplicação da norma constitucional e legal, respectivamente, mas, principalmente, para

construir, de forma prospectiva, o sentido da norma jurídica cuja interpretação lhes cabe fixar,

com o propósito de prevenir violações da Constituição ou da lei federal.

Ou seja, os recursos para as Cortes Supremas e os seus julgamentos não são

voltados à mera correção da injustiça no caso concreto. A tutela dos interesses das partes é

secundária e constitui apenas efeito reflexo do provimento jurisdicional. 557 MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema São Paulo: RT, 2013, p. 159. 558 ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. Precedentes vinculantes em recursos extraordinários e especial repetitivos. 2016, 296f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito. Belo Horizonte, 2016, p. 150. 559 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005, p. 512.

Page 256: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

254

A finalidade primordial dos recursos extraordinários (especial e extraordinário) é

a de propiciar ao STJ e ao STF o zelo pela validade, autoridade, uniformidade do direito

nacional no âmbito de suas respectivas competências, incumbência essa que não pode ser

atribuída, por lei infraconstitucional, às instâncias ordinárias, sob pena de se deturpar todo o

sistema da autoridade das decisões judiciais.

A propósito da importância dos julgamentos dos tribunais de cúpula, destaca-se a

lição de Arruda Alvim:

(...) conquanto a validade e a eficácia das decisões seja, normalmente, circunscrita às partes, as proferidas pelos Tribunais de cúpula transcendem o ambiente das partes, e com isto, projetam-se o prestígio e a autoridade da decisão nos segmentos, menor da atividade jurídica, de todos quantos lidam com o direito, e, mesmo em espectro maior, para a sociedade toda.560

Nas palavras de Marinoni, “a antiga corte de controle de legalidade ou de correção

das decisões agora é uma corte de interpretação e essa naturalmente é uma Corte de

Precedentes”561.

Nessa perspectiva, defende-se que somente ao órgão do Judiciário que

desempenha a função constitucional de uma verdadeira “Corte Suprema” é que se deve

outorgar a função de definir teses jurídicas, com eficácia erga omnes e vinculante, para

uniformização do direito, assegurando a coerência, previsibilidade e segurança jurídica ao

sistema.

A previsão do art. 927 do CPC/2015 que confere, por lei ordinária, o status de

precedente aos julgamentos do recurso extraordinário e especial repetitivos, além dos

julgamentos do controle de constitucionalidade concentrado, tem, sob a perspectiva do

conceito de “Corte Suprema”, respaldo na interpretação da competência constitucional do

Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Nesse sentido, importante destacar o voto proferido pelo Ministro Teori Zavascki,

do Supremo Tribunal Federal, citando Calamandrei:

Esse entendimento guarda fidelidade absoluta com o perfil institucional atribuído ao STF, na seara constitucional, e ao STJ, no domínio do direito

560 ALVIM, Arruda. A alta função jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do recurso especial e a relevância das questões. In: STJ 10 anos: obra comemorativa 1989-1999. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 1999, p. 38. 561 MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. São Paulo: RT, 2013, p. 80.

Page 257: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

255

federal, que têm entre as suas principais finalidades a de uniformização da jurisprudência, bem como a função, que se poderia denominar nomofilácica – entendida a nomofilaquia no sentido que lhe atribuiu Calamandrei, destinada a aclarar e integrar o sistema normativo, propiciando-lhe uma aplicação uniforme –, funções essas com finalidades “que se entrelaçam e se iluminam reciprocamente” (Calamandrei, Piero. La casación civil. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1945. t. II. p. 104) e que têm como pressuposto lógico inafastável a força expansiva ultra partes dos seus precedentes. 562

Marinoni também defende a institucionalização de um sistema de precedentes

obrigatórios somente em relação à instância extraordinária no Brasil:

(...) as decisões dos juízes de civil law, no mínimo quando abordam matéria constitucional ou se valem de cláusula geral, relacionam-se com a previsibilidade nos mesmos moldes das decisões de common law, o que significa que a nossa realidade, que convive com a correção da legislação a partir dos direitos fundamentais por qualquer juiz ou tribunal ordinário e com o emprego cada vez mais difundido de cláusulas abertas, não pode adiar a teorização de um sistema de precedentes obrigatórios capaz de dar a devida autoridade às decisões das Cortes Supremas – isto é, do STJ e do STF. 563

Essa interpretação, contudo, não pode ser admitida em relação às instâncias

ordinárias dotadas de cortes de apelação, cujo papel jurisdicional não se volta à definição de

teses jurídicas, mas ao controle de legalidade e revisão das decisões recorridas. 564

A justiça ordinária não exerce a função constitucional de “Corte Suprema”. É

organizada em duas instâncias ou graus: a justiça de primeiro grau, formada pelos juízes

estaduais, lotados por entrâncias (art. 93, II, da Constituição) na Justiça Estadual, ou divididos

em categoria de juiz federal substituto e juiz federal, na Justiça Federal; e a justiça de segundo

grau, representada pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais,

562 Trecho do voto proferido pelo Ministro Teori Zavascki que demonstra a evolução da legislação processual no Brasil e a tendência de valorização e de expansão da força dos precedentes das Cortes Superiores, especialmente do STF (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Reclamação n. 4335/AC, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJ. 22/10/2014). 563 MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: RT, 2014, p. 62-63. 564 O jurista Hermes Zaneti Jr. manifesta posição contrária. Segundo Zaneti Jr., de fato, “não se pode falar de ordenamento jurídico e de precedentes normativos formalmente vinculantes sem identificar nas Cortes Supremas as principais personagens da construção deste modelo. Como vimos acima um modelo de precedentes é um modelo de e para as Cortes Supremas. Contudo, não se pode esquecer da premissa fixada pela teoria do direito segundo a qual o direito regula inclusive as suas fontes, a sua criação. Como o direito é artificialmente construído nos parece impossível limitar os precedentes apenas às Cortes Supremas, especialmente no ordenamento jurídico brasileiro, formalizado pelo art. 927 e incisos. Neste caso serão precedentes mesmo as decisões que não forem de Cortes Supremas, desde que, por evidente, limitem-se à sua esfera de influência formal e, portanto, respeitem as decisões das instâncias formalmente superiores”. (O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 372)

Page 258: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

256

nomenclaturas da Justiça Estadual e Federal, respectivamente.

Na esfera estadual, existem 27 (vinte e sete) Tribunais de Justiça (um por unidade

federativa) e, na esfera federal, 5 (cinco) Tribunais Regionais Federais 565. A enorme

quantidade de tribunais locais já é suficiente para demonstrar que tais cortes locais não detém

o papel constitucional de uniformização do direito.

Ao contrário do previsto para as Cortes Supremas, cabem aos órgãos

jurisdicionais ordinários – juízes de primeira instância e aos tribunais locais ou regionais –

cuidarem da solução das controvérsias, realizando a devida apuração dos fatos e a aplicação

do direito aos casos concretos para tutelar o direito das partes. Em outras palavras, nas

instâncias ordinárias exercita-se a jurisdição com o objetivo de obter uma decisão justa para o

caso concreto voltado à satisfação dos interesses das partes.

No mesmo sentido, Guilherme Bacelar destaca a diferença de papéis entre a

instância ordinária e a extraordinária na organização do Poder Judiciário no Brasil:

Da leitura da organização hierárquica do Poder Judiciário, observa-se, então, que a Constituição fez uma nítida cisão dos órgãos judiciais, dividindo-os em instâncias ordinária e extraordinária, as quais naturalmente, devem exercer funções diversas para que haja alguma utilidade e racionalidade nessa divisão, conforme anteriormente analisado. Os juízes e os tribunais de segundo grau compõem as instâncias ordinárias da Justiça Comum, federal e estadual, cabendo-lhes, soberanamente, formular juízos definitivos sobre matéria fática presente no processo. Para tanto, devem determinar a produção de provas, interpretá-las para reconstruir os fatos da causa de acordo com os elementos probatórios carreados aos autos, a fim de assim cumprir sua função precípua e imediata de buscar a realização da justiça no caso concreto. O STF e o STJ, ressalvadas as suas competências originária e recursal ordinária, integram as instâncias extraordinárias do Poder Judiciário, cuja função sublime, instrumentalizada por meio dos recursos extraordinário e especial, é de nomofilaquia interpretativa, ou seja, de conferir unidade, certeza e coerência ao Direito constitucional e infraconstitucional federal, complementando e outorgando sentido aos textos legais escritos, por meio da interpretação judicial, reduzindo a equivocidade dos seus enunciados linguísticos. A essas cortes de vértice compete, soberanamente, emitir juízos

565 A Emenda Constitucional 73/2013, promulgada em junho de 2013, determinou a criação de mais quatro tribunais regionais federais (TRFs), com sedes em Curitiba, Belo Horizonte, Salvador e Manaus. Logo depois de ser promulgada, todavia, a emenda foi alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.017) ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores Federais (Anpaf) e o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, concedeu uma liminar para suspender seus efeitos. Atualmente a ação, relatada pelo ministro Luiz Fux, aguarda decisão de mérito do Plenário do STF. O Procurador Geral da República apresentou parecer pela improcedência da ADI, defendendo a constitucionalidade da emenda constitucional.

Page 259: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

257

definitivos e vinculantes sobre matéria de direito. 566

Nessa toada, a divergência jurisprudencial não pode ser vista como um mal para o

sistema. Ela se justifica principalmente pela extensão territorial do Brasil, na qual convivem

as mais variadas culturas dentro de díspares sistemas econômicos, e pelos pródigos

legisladores que, neste país de dimensões continentais, editam muitas leis que nem sempre

guardam concorrência entre si, fazendo com que os vários centros de dicção do direito tendam

mesmo à divergência interpretativa.

Com efeito, as divergências jurisprudenciais enriquecem o debate, de maneira que

as Cortes Supremas poderão desempenhar seu papel com maior segurança, valendo-se da

maior quantidade e qualidade dos fundamentos jurídicos apresentados em prol ou contra

determinada interpretação do direito.

Estender, nesse contexto, o papel das Cortes Supremas às instâncias ordinárias,

que não se encontram no vértice da estrutura jurisdicional, causará precipitação e o

engessamento do debate processual em prol unicamente da celeridade processual.

Como é cediço as discussões jurídicas chegam aos tribunais superiores pelo

sistema recursal após longo debate travado nas instâncias ordinárias em suas diferentes

localidades. Conferir também à corte de revisão o papel de definir precedente limitará o

debate que muitas vezes se resumirá àquele travado internamente no âmbito do próprio

tribunal local, prescindido da efetiva participação dos juízes de primeiro grau e das partes,

cujos processos ficaram sobrestados.

É importante deixar claro que não se está negando aos juízes e tribunais de

segundo grau a função jurisdicional de interpretação do direito. Pelo contrário, todos os

órgãos do Poder Judiciário devem desempenhar tal papel.

A questão é que, no caso das instâncias ordinárias, a interpretação do direito deve

se circunscrever à solução dos casos concretos apresentados, a partir das provas dos fatos e,

principalmente, do debate processual desenvolvido em contraditório dinâmico entre as partes.

Não cabe às instâncias ordinárias estabelecer teses jurídicas de caráter normativo e eficácia

prospectiva, como fonte do direito, pois não possuem o papel constitucional de “Corte de

Precedentes”.

566 ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. Precedentes vinculantes em recursos extraordinários e especial repetitivos. 2016, 296f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito. Belo Horizonte, 2016, p. 155.

Page 260: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

258

Conforme lição de Marinoni, “os juízes e tribunais de apelação tem a função de

resolver os casos conflitivos e, a partir daí, podem colaborar na construção do sentido do

direito”567. Essa colaboração é, porém, limitada pela última palavra dada pelas Cortes

Supremas – o STF e o STJ. Após a definição dada pela Corte de Vértice, os tribunais de

apelação não mais podem negar a aplicação do sentido definido pelo precedente, embora

possam continuar colaborando mediante a apresentação de opiniões dissidentes e razões que

demonstrem a necessidade de revisão do posicionamento adotado pela instância superior.

Com efeito, se as instâncias ordinárias pudessem assumir o mesmo papel de

“Cortes Supremas” para definição de teses jurídicas dotadas de eficácia vinculante e erga

omnes haveria uma total sobreposição dos papeis jurisdicionais, tornando sem sentido a

delimitação das competências traçada pela Lei Maior para as Cortes Superiores.

Assim, sob a ótica da competência constitucional conferida aos tribunais locais,

não pode ser conferido ao julgamento do IRDR o status de precedente obrigatório, pois não

emanado propriamente de uma “Corte Suprema”, vale dizer, de uma “Corte de Precedente”,

mas apenas de um tribunal local de revisão, de modo que os efeitos do julgamento devem se

restringir apenas ao âmbito do próprio tribunal, não assumindo caráter normativo (de tese

jurídica) para os demais órgãos jurisdicionais e aos casos futuros.

Poderia se admitir, de lege ferenda, o exercício excepcional da função típica da

Corte Suprema pelos tribunais de segundo grau apenas em relação às questões de direito local,

quando estiverem fora das hipóteses do controle recursal pelo Supremo Tribunal Federal ou

pelo Superior Tribunal de Justiça. Somente em tais hipóteses, o tribunal local ou regional

poderia desempenhar o papel da Corte Suprema para definição da interpretação jurídica em

caráter prospectivo, assegurando a uniformização do entendimento e prevenindo a violação ao

direito local.

4.5 A inconstitucionalidade do efeito vinculante do IRDR: uma interpretação construída

à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Além da impossibilidade de se conferir ao tribunal de apelação – instância

ordinária – o status de “Corte de Precedente”, também se questiona a legitimidade da lei

ordinária nº 13.105/2015, que instituiu o CPC/2015, para se atribuir eficácia vinculante ao

julgamento desse mesmo tribunal.

567 MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. São Paulo: RT, 2013, p. 160.

Page 261: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

259

A questão é polêmica e sua compreensão perpassa pela análise da evolução do

entendimento jurisprudencial, especialmente do Supremo Tribunal Federal, relativo a alguns

temas semelhantes, quais sejam: os prejulgados vinculantes da Justiça do Trabalho e da

Justiça Eleitoral; a eficácia vinculante da ação declaratória de constitucionalidade introduzida

pela Emenda Constitucional n. 03/93; e da ação direta de inconstitucionalidade prevista pela

lei ordinária nº 9.868/99; e, por fim, o tema da ampliação dos efeitos da decisão proferida pela

Corte Suprema em sede de controle difuso de constitucionalidade, independentemente da

intervenção do Senado da República.

O estudo crítico do tema, a partir da interpretação do Supremo Tribunal Federal,

demonstrará, sob a perspectiva do modelo constitucional de processo, que a atribuição de

eficácia vinculante para a interpretação judicial somente se mostra compatível com a

Constituição em hipóteses restritas e para determinados tribunais.

4.5.1 A inconstitucionalidade dos prejulgados vinculantes da Justiça do Trabalho e da

Justiça Eleitoral

Ainda na vigência da Constituição de 1946, restou assentado no julgamento pelo

Supremo Tribunal Federal da Representação de Inconstitucionalidade n. 946/ DF568 que o art.

902, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho, ao conferir força vinculante aos prejulgados

do Tribunal Superior do Trabalho, não seria compatível com a ordem constitucional. A lei não

poderia conferir força normativa vinculante aos prejulgados trabalhistas.

De acordo com texto legal do art. 902, “é facultado ao Tribunal Superior do

Trabalho estabelecer prejulgados, na forma que prescrever o seu Regimento Interno”. O § 1º

do art. 902 da CLT dispunha que “uma vez estabelecido o prejulgado, os Tribunais Regionais

do Trabalho, as Juntas de Conciliação e Julgamento e os juízes de Direito investidos na

jurisdição da Justiça do Trabalho ficarão obrigados a respeitá-lo”.

O prejulgado resultava de pronunciamento do Tribunal Superior do Trabalho, em

reunião plenária, por ocasião de julgamento de ação originária ou de recurso de sua

competência, ou independentemente desses procedimentos, sobre interpretação de norma

jurídica, dotado de caráter geral e vinculante.

O instituto tinha o objetivo de dar padrão decisório, coerência, estabilidade e

uniformidade à interpretação do direito trabalhista. Não por mera coincidência o mesmo

568 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Representação n. 946/DF, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, DJ 01/07/1977.

Page 262: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

260

objetivo é previsto nos artigos 926 e 927 do CPC/2015, para também se conferir eficácia

vinculante ao julgamento do IRDR pelos tribunais de segundo grau.

Importante destacar trecho do voto do eminente ministro Eloy da Rocha:

O prejulgado, com força vinculativa dos parágrafos do art. 902, da Consolidação das Leis do Trabalho, consubstancia, desde 18.9.1946, contrariedade à Constituição. Somente o Supremo Tribunal Federal, em virtude da Emenda Constitucional n. 7, de 13.4.1977 (...), pode, mediante representação do Procurador-Geral da República, dar a interpretação, em tese, de lei ou ato normativo federal ou estadual. Não se confunde o prejulgado, do Tribunal Superior do Trabalho, com a súmula de jurisprudência dominante, prevista no art. 479 do Código de Processo Civil, ou nos arts. 894, b, e 896, a, da Consolidação das Leis do Trabalho, combinados com art. 168 do Regimento Interno. Ainda posteriormente à Constituição de 1946, o Regimento Interno autorizou o Tribunal Superior do Trabalho a estabelecer prejulgado (...), mesmo independentemente de ação originária ou recurso, sempre que ocorra ou possa ocorrer discrepância de interpretação na aplicação da norma legal. Estes prejulgados são impostos aos Tribunais Regionais do Trabalho, às Juntas de Conciliação de Julgamento e aos Juízes de Direito investidos da jurisdição trabalhista. 569

Ficou definido pela Suprema Corte que seria inconstitucional qualquer ato

normativo que dissesse que os prejulgados daquele tribunal superior deveriam

necessariamente ser observados pelos juízes das instâncias inferiores. Ou seja, não caberia ao

Tribunal Superior Trabalho formular teses jurídicas de caráter normativo, geral e vinculante

para as instâncias inferiores da justiça laboral.

Oportuno ressaltar que, após o julgamento pelo STF, foi editada a Lei 7.033, de

05/10/1982, que revogou o instituto. O TST, em seguida, transformou os seus antigos

prejulgados em enunciados da sua jurisprudência dominante, mas sem eficácia vinculante.

Noutra oportunidade, já na vigência da Constituição da República de 1988, o

Tribunal Superior Eleitoral – TSE adotou o referido precedente da Suprema Corte para

reconhecer, em julgamento relatado pelo então ministro Sepúlveda Pertence, a

inconstitucionalidade dos “prejulgados vinculantes” previstos no Código Eleitoral. 570

Dispõe o art. 263 do Código Eleitoral: “no julgamento de um mesmo pleito

eleitoral, as decisões anteriores sobre questões de direito constituem prejulgados para os

demais casos, salvo se contra a tese votarem dois terços dos membros do Tribunal”. 569 Disponível no site: www.stf.jus.br. Acesso em: maio 2016. 570 BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral, Recurso Especial Eleitoral n. 9.936/RJ, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento de 14/09/1992. Disponível em www.tse.jus.br. Acesso em: maio de 2016.

Page 263: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

261

Entendeu o TSE que o texto legal positivo não pode emprestar força normativa

vinculante à interpretação judicial do direito no âmbito da Justiça Eleitoral.

Nesse sentido, o voto do relator ministro Sepúlveda Pertence proferido no TSE,

no qual foram feitos apontamentos sobre as semelhanças entre o “prejulgado eleitoral” e o

“prejulgado trabalhista”, além da inconstitucionalidade do efeito vinculante atribuído pela lei

a ambos:

É óbvio que a hipótese é um pouco diversa da do prejulgado trabalhista que é significativamente mais rígido; primeiro porque, o trabalhista, se impunha diretamente aos órgãos inferiores da estrutura da Justiça do Trabalho, enquanto o prejulgado eleitoral tem eficácia restrita a cada Tribunal; no tempo, enquanto o prejulgado trabalhista é de duração indeterminada, o eleitoral só vige no mesmo período eleitoral em que assentado. Dois, porém, são os pontos em que me parece haver o choque com a Constituição. O primeiro é idêntico ao do prejulgado trabalhista. Apesar das diferenças notadas, a menor extensão orgânica, a temporariedade e a maior flexibilidade – porque ainda neste período se permite a revisão por um quórum qualificado – o que é certo é que também o prejulgado trabalhista faz de um precedente jurisprudencial como norma vinculante da decisão do Tribunal. Logo, dá ao precedente judicial força de lei, o que viola o princípio da separação funcional aos poderes. (...) Ocorre-me, afinal, mais uma consideração. É tão violenta a força vinculante que o prejulgado pretende, que ele é maior do que a força obrigatória da lei. Veja V. Exa.: se nesta votação, tivermos quatro votos pela inconstitucionalidade de uma lei, podemos deixar de aplicá-la; mas teríamos que ter cinco votos para deixar de aplicar o critério de um precedente que, ao ver da maioria do Tribunal, não interpretou bem a lei. De tal modo, Senhor Presidente, que meu voto incidentemente declara inconstitucional o art. 263 desde a Constituição de 46, sob a qual foi editado.571

Os referidos julgados sinalizam inequivocamente que, ao atribuir eficácia

vinculante à interpretação judicial do direito pelos tribunais especializados da Justiça do

Trabalho e Eleitoral, a lei ordinária viola a ordem constitucional.

A inconstitucionalidade decorre da ofensa à separação dos poderes, em razão da

atribuição de poder normativo aos referidos julgados, e, ainda, ofensa à independência

judicial, garantia do Estado Democrático, na medida em que impede o julgamento da causa a

partir do debate em contraditório e do livre convencimento motivado do julgador.

4.5.2 A constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/93 que instituiu a ação

declaratória de constitucionalidade e sua eficácia vinculante

571 Disponível em: www.tse.jus.br. Acesso em: maio de 2016.

Page 264: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

262

Alguns anos depois, o Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade

da Emenda Constitucional n. 03/93, que instituiu a chamada ação declaratória de

constitucionalidade (ADC), um novo instrumento processual do controle concentrado. A

controvérsia residia justamente em relação à eficácia erga omnes e vinculante do julgamento

da referida ação pela Suprema Corte. 572

Nos termos do § 2º do art. 102 da Constituição de 1988, com redação dada pela

referida emenda, “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal

Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade (...), produzirão eficácia contra todos e

efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”.

Impende advertir, inicialmente, que o conceito de “eficácia erga omnes” não se

confunde com o de “efeito vinculante”, sob pena de se admitir a utilização de palavras inúteis

no texto constitucional. 573

A eficácia erga omnes ou “eficácia contra todos” se restringe à parte dispositiva

do julgamento da Suprema Corte e alcança a própria eficácia geral e abstrata da norma objeto

do controle, atingindo, por conseguinte, a todos.574 O efeito vinculante é, nas palavras de

Marcelo Alves Dias de Souza, “um plus em relação à eficácia erga omnes e significa a

obrigatoriedade da administração pública e dos órgãos do Poder Judiciário, excluindo o

Supremo Tribunal Federal, de submeter-se à decisão proferida na ação direta” 575.

O objetivo da modificação da Carta de 1988 pela Emenda Constitucional nº 03 foi

criar um instrumento processual capaz de uniformizar de forma célere o entendimento sobre a

constitucionalidade de determinada norma, em contrapartida à força outorgada aos juízes de

primeira instância no controle difuso. Ou seja, era necessário criar um mecanismo alternativo

ao controle difuso de constitucionalidade, para que a Suprema Corte pudesse intervir de forma

rápida, direta e vinculante sobre eventual controvérsia acerca da validade de uma lei ou ato

normativo federal. 572 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Questão de ordem na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 01, Rel. Ministro Moreira Alves, julgamento em 27/10/1993, DJ 16/06/1995. 573 A literalidade dos textos normativos que consagram o efeito vinculante o dissocia da eficácia contra todos. Ao atribuir às decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade eficácia contra todos e efeito vinculante, lógica e naturalmente, está-se a distinguir conceitualmente os dois institutos. Assimilar o efeito vinculante à eficácia erga omnes, ou mesmo à coisa julgada, seria negar-lhe autonomia de conteúdo e utilidade prática, bem como violentar o dogma do legislador. (LEAL, Roger Stiefelmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 145) 574 LEITE, Glauco Salomão. Súmula Vinculante e jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 157. 575 SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2007, p. 210.

Page 265: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

263

Considerou, assim, o legislador constituinte, a partir de um juízo de valoração

jurídica e política, que seria preponderante o interesse geral na solução imediata pela Suprema

Corte da controvérsia sobre a legitimidade constitucional de uma determinada lei, em prol da

defesa da integridade da ordem jurídica, impedindo a ocorrência de julgamentos discrepantes

que poderiam acarretar danos irreversíveis em função do transcurso do tempo, além de

assegurar o mesmo tratamento jurídico a situações idênticas.

O STF entendeu, nesse contexto, que os efeitos da ação declaratória de

constitucionalidade eram compatíveis com a ordem constitucional vigente. A eficácia erga

omnes não seria uma característica exclusiva da ADC, mas da própria natureza do processo

objetivo de controle abstrato das normas, sendo também inerente à ação direta de

inconstitucionalidade.

A eficácia vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, por sua

vez, redundaria em importante consequência de ordem processual. Isso porque a

inobservância do julgamento da ação declaratória de constitucionalidade configurará afronta à

autoridade da Suprema Corte, dando ensejo à reclamação.

O referido efeito também foi considerado compatível com a Constituição e suas

cláusulas pétreas na medida em que o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder

Judiciário, ao qual se atribuiu o papel de guardião da Constituição e, por conseguinte, a

atribuição do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Se a observância de seus

julgados nesta seara não fosse obrigatória, haveria o total esvaziamento do seu papel

constitucional e do próprio controle concentrado de constitucionalidade.

Nessa perspectiva, a emenda constitucional apenas explicitou um poder que a

Suprema Corte já detinha. Nas palavras do relator Ministro Moreira Alves,

(...) é o efeito vinculante da decisão de mérito na ação declaratória de constitucionalidade que lhe permite, prontamente, defender a segurança jurídica com o respeito da ordem constitucional assegurado por esse meio de controle. Mesmo nos países em que só se admite o controle concentrado de constitucionalidade exercido por Corte Constitucional, nunca se sustentou que, com ele, se retirou a independência da magistratura. Essa crítica – que não decorreria da criação da ação declaratória de constitucionalidade, mas que poderia ser feita quanto à ação direta de inconstitucionalidade – é tanto mais improcedente que é certo que, no Brasil, o órgão que exercita esse controle concentrado, em face da Constituição Federal, é, por força dela mesma, o Supremo Tribunal Federal, que não apenas integra o Poder

Page 266: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

264

Judiciário, mas se encontra no ápice de sua hierarquia. 576

Merecem destaque também as indagações do Ministro Francisco Rezek em seu

voto proferido naquele julgamento:

(...) faz sentido não ser vinculante uma decisão da Suprema corte do país? Não estou falando, naturalmente, de fatos concretos, cada um com seu perfil, reclamando esforço hermenêutico da lei pelo juiz que conhece as características próprias do caso. Estou me referindo a hipóteses de pura análise jurídica. Tem alguma seriedade a ideia de que se devam fomentar decisões expressivas de rebeldia? A que serve isso? Onde está o interesse público em que esse tipo de política prospere? 577

O efeito vinculante é uma medida de utilidade que o legislador constituinte

entendeu oportuno adotar no Brasil no âmbito do controle de constitucionalidade pela

Suprema Corte. É medida necessária para que uma decisão da Corte Superior se faça

respeitada e obrigatória.

O fundamento determinante para o reconhecimento da constitucionalidade da

ADC e da sua eficácia vinculante relaciona-se, portanto, com o papel constitucional da

Suprema Corte e o princípio da supremacia da Constituição para assegurar a uniformidade da

interpretação e segurança jurídica ao ordenamento.

Desse modo, é possível concluir, a partir da interpretação da STF no caso em

questão, que a eficácia vinculante de determinado pronunciamento do Poder Judiciário não

corresponde à regra do sistema de Justiça e não pode ser outorgada aos julgamentos de

qualquer órgão jurisdicional, mas daqueles que estejam no vértice da estrutura hierárquica e

que desempenham papel fundamental na uniformização da interpretação do direito.

4.5.3 A constitucionalidade da Lei Ordinária n. 9.868/99 que atribuiu eficácia vinculante

aos julgamentos de mérito da ADI: legitimidade da eficácia vinculante prevista para a

jurisdição constitucional

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal também reconheceu, por maioria

de votos, a constitucionalidade do art. 28, parágrafo único, da lei ordinária nº 9.868, de 1999,

que atribuiu eficácia vinculante aos julgamentos definitivos de mérito proferidos pela Corte

576 Trecho do voto proferido pelo ministro Moreira Alves, relator da questão de ordem na Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC n. 01. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: maio 2016. 577 Trecho do voto proferido pelo ministro Francisco Rezek, no julgamento da questão de ordem na Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC n. 01. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: maio 2016.

Page 267: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

265

Suprema em ação direta de inconstitucionalidade (ADI). 578

Para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de lei ou ato normativo,

entendeu-se que havia similitude substancial de objetos entre a ação declaratória de

constitucionalidade, criada pela Emenda Constitucional nº 03/93, e a ação direta de

inconstitucionalidade. Enquanto a primeira se destina à aferição positiva de

constitucionalidade, a segunda possui pretensão de caráter negativo. Ambas as ações são,

portanto, de natureza dúplice ou ambivalente, de modo que a eficácia do julgamento se

equivaleria nas hipóteses de procedência ou de improcedência.

Assim, a eficácia vinculante da ação declaratória de constitucionalidade conferida

pelo § 2º do art. 102 da Constituição não deve se distinguir, na essência, dos efeitos das

decisões de mérito proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade, o que assegura a

compatibilidade constitucional ao dispositivo legal que apenas confirmou a mesma eficácia

das referidas ações. Com efeito, a lei ordinária não teria inovado o ordenamento jurídico em

relação ao tema, mas apenas explicitado a inteligência da disposição constitucional, visando

conferir mais força ao controle concentrado de constitucionalidade.

O ministro Gilmar Mendes defendeu em seu voto que o efeito vinculante está

intimamente relacionado à própria natureza da jurisdição constitucional, no Estado

Democrático, e à função de guardião da Constituição desempenhada pela Suprema Corte.

Nesse contexto, o legislador ordinário não estaria impedido de atribuir essa

proteção processual especial a outras decisões de controvérsias constitucionais proferidas pelo

STF, como teria sido reconhecido, inclusive, em relação à ação de descumprimento de

preceito fundamental 579.

A validade da lei ordinária para estabelecer a eficácia vinculante estaria

circunscrita, a toda evidência, aos julgamentos da Suprema Corte no controle de

constitucionalidade e para concretização do papel fundamental a ela atribuído de guardiã da

Constituição.

Para o Ministro Gilmar Mendes:

Na verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-

578 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Ag. Reg. na Reclamação n. 1880-6, Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ 19/03/2004. 579 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2231/DF, Rel. Ministro Néri da Silveira, Julgamento 05/12/2001.

Page 268: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

266

institucional desempenhado pela Corte, ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais. Foi exatamente esse o entendimento que imperou na Alemanha. O efeito vinculante não está previsto na Constituição, ao contrário da “força de lei” (...), ou da chamada “eficácia erga omnes”. Não obstante, o efeito vinculante foi imposto por lei. (...) Esse foi o entendimento adotado por este Tribunal na Ação Declaratória n. 04, ao reconhecer efeito vinculante à decisão proferida em sede de cautelar, a despeito do silêncio do texto constitucional e da ausência à época de disposição legal sobre o texto.580

Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004, constou

expressamente na Constituição a eficácia vinculante ao julgamento das ações diretas de

inconstitucionalidade, terminando com qualquer controvérsia.

O professor Humberto Theodoro Jr. sustenta que a constitucionalidade da referida

lei ordinária nº 9.868/1999 reconhecida pelo STF corroboraria a legitimidade da lei

13.105/2015, que instituiu o CPC/2015, para atribuir eficácia vinculante também a outros

julgamentos do Poder Judiciário, inclusive de tribunal de segundo grau, como no caso do

IRDR:

Muito se tem discutido sobre a possibilidade ou não de a lei ordinária instituir casos de jurisprudência de força vinculante geral, fora das previsões constitucionais. O STF, no entanto, já considerou constitucional, por exemplo, a Lei 9.868/1999, que estabeleceu efeito vinculante para todas as ações de controle de constitucionalidade, quando, a seu tempo, a Constituição só previa tal eficácia para as ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. 581

A referida interpretação não convence, porquanto a Suprema Corte não

reconheceu naquele julgamento a legitimidade da lei ordinária para conferir eficácia

vinculante a qualquer julgamento ou em relação a qualquer órgão do Poder Judiciário.

Ao contrário, para o reconhecimento excepcional da constitucionalidade da

referida lei ordinária, os fundamentos determinantes adotados pelo Supremo Tribunal Federal

no julgamento da Reclamação n. 1880-6 repousaram na simetria de objetos das ações

pertinentes à jurisdição constitucional e, outrossim, na relevância do papel constitucional

daquele Tribunal Superior como guardião da Constituição.

580 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Ag. Reg. na Reclamação n. 1880-6, DJ 19/03/2004, p. 19. 581 THEODORO JR., Humberto. OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 749.

Page 269: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

267

Portanto, os fundamentos da inconstitucionalidade dos prejulgados vinculantes da

Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral previstos por legislação ordinária, já citados nesta

análise, não foram infirmados pelo posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação

à lei ordinária 9.868/1999.

4.5.4 A polêmica sobre a ampliação dos efeitos da decisão proferida pelo STF em sede de

controle difuso de constitucionalidade: existe vinculação aos demais órgãos do Poder

Judiciário?

O tema da ampliação dos efeitos da decisão proferida em sede de controle de

difuso de constitucionalidade – chamado de “abstrativização” do controle difuso – foi tratado

no caso emblemático da Reclamação Constitucional n. 4.335. 582

Discutiu-se a possibilidade de utilização da ação de reclamação para assegurar a

vinculação vertical dos efeitos das decisões proferidas pela Suprema Corte em sede de

controle difuso de constitucionalidade.

No caso analisado, o juízo de primeiro grau da Vara de Execuções da Comarca de

Rio Branco, no Estado do Acre, indeferiu a concessão do benefício de progressão de regime

nos casos de crime hediondos, não obstante o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido

incidentalmente, no julgamento do Habeas Corpus 82.959, a inconstitucionalidade (por seis

votos a cinco) do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/1990, que vedava a progressão de regime de

cumprimento de pena para tais crimes. O habeas corpus não havia sido concedido em favor do

mesmo condenado que teve o benefício de progressão de regime negado pelo juízo de

primeira instância.

O relator ministro Gilmar Mendes, acompanhado pelo ministro Eros Grau,

entendeu que a recusa do juiz da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco em conceder

a progressão do regime nos casos de crime hediondos desrespeitaria a eficácia erga omnes e

vinculante que também deveria ser atribuída à decisão proferida pela Suprema Corte no

julgamento do Habeas Corpus 82.959, tal como sucede no controle concentrado de

constitucionalidade, independentemente da manifestação do Senado Federal. Sustentou-se ter

582 Com a seguinte ementa: Reclamação. 2. Progressão de regime. Crimes hediondos. 3. Decisão reclamada aplicou o art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.072/90, declarado inconstitucional pelo Plenário do STF no HC 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 1.9.2006. 4. Superveniência da Súmula Vinculante n. 26. 5. Efeito ultra partes da declaração de inconstitucionalidade em controle difuso. Caráter expansivo da decisão. 6. Reclamação julgada procedente. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Reclamação n. 4335/AC, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJ. 22/10/2014)

Page 270: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

268

havido uma mutação constitucional no art. 52, inciso X, da Constituição Federal, na medida

em que o papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade teria se

restringido apenas a dar publicidade às decisões proferidas pela Suprema Corte.

Conforme destacou o ministro Gilmar Mendes em seu voto:

Vê-se, assim, que a Constituição de 1988 modificou de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, especialmente da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. O Supremo Tribunal Federal percebeu que não poderia deixar de atribuir significado jurídico à declaração de inconstitucionalidade proferida em sede de controle incidental, ficando o órgão fracionário de outras Cortes exonerado do dever de submeter a declaração de inconstitucionalidade ao plenário ou ao órgão especial, na forma do art. 97 da Constituição. Não há dúvida de que o Tribunal, nessa hipótese, acabou por reconhecer efeito jurídico transcendente à sua decisão. Embora na fundamentação desse entendimento fale-se em quebra da presunção de constitucionalidade, é certo que, em verdade, a orientação do Supremo acabou por conferir à sua decisão algo assemelhado a um efeito vinculante, independentemente da intervenção do Senado. Esse entendimento está hoje consagrado na própria legislação processual civil (...) Portanto, é outro o contexto normativo que se coloca para a suspensão da execução pelo Senado Federal no âmbito da Constituição de 1988. Ao se entender que a eficácia ampliada da decisão está ligada ao papel especial da jurisdição constitucional, e, especialmente, se considerarmos que o texto constitucional de 1988 alterou substancialmente o papel desta Corte, que passou a ter uma função preeminente na guarda da Constituição a partir do controle direto exercido na ADI, na ADC e na ADPF, não há como deixar de reconhecer a necessidade de uma nova compreensão do tema. (...) De fato, é difícil admitir que a decisão proferida em ADI ou ADC e na ADPF possa ser dotada de eficácia geral e a decisão proferida no âmbito do controle incidental - esta muito mais morosa porque em geral tomada após tramitação da questão por todas as instâncias - continue a ter eficácia restrita entre as partes.583

E, logo a seguir, conclui o ilustre julgador, citando o direito comparado:

Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão

583 Inteiro teor do acórdão da Reclamação n. 4335/ AC disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: maio 2016.

Page 271: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

269

substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140,5 - publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art.31, (2), publicação a cargo do Ministro da Justiça). 584

Ou seja, a própria decisão da Suprema Corte, no controle difuso ou incidental de

constitucionalidade das leis, conteria força normativa bastante para suspender a execução da

lei declarada inconstitucional, possuindo eficácia erga omnes e vinculante, e não apenas

eficácia inter partes.

Naquela assentada, porém, os Ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e

Ricardo Lewandowski divergiram do relator e reafirmaram o papel do Senado Federal para

conferir a eficácia erga omnes à decisão proferida no controle difuso de constitucionalidade,

destacando, no entanto, o instrumento da Súmula Vinculante como alternativa processual para

se obter a pretendida eficácia normativa aos julgamentos da Suprema Corte no controle

incidental. Nas palavras do ministro Sepúlveda Pertence, o efeito vinculante “ou decorre, no

nosso sistema, de decisões nos processos objetivos de controle direto, ou decorrerá da adoção

solene, pelo Tribunal, da súmula vinculante”.

O papel do Senado, no art. 52, inciso X da Constituição, sempre foi a de ampliar a

força vinculativa das decisões de declaração de inconstitucionalidade tomadas pelo STF em

controle difuso, conferindo-lhes, assim, eficácia erga omnes semelhante à do instituto do

stare decisis. Trata-se de opção do legislador constituinte que se mantém hígida no sistema de

controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil.

A polêmica sobre o tema ainda persiste, uma vez que, em 14 de março de 2014, o

Supremo Tribunal Federal julgou procedente a referida Reclamação n. 4.335, mas por

fundamento determinante diverso, qual seja, a violação à Súmula Vinculante n. 26, editada

três anos após o ajuizamento daquela ação. Entendeu-se que a aprovação do enunciado da

súmula vinculante sobre o mesmo tema (inconstitucionalidade da proibição da progressão de

regime em relação aos crimes hediondos) constituiria fato superveniente que não poderia ser

desconsiderado pelos julgadores.

Nos debates travados no julgamento da referida reclamação constitucional, ficou

claro que a preocupação com o tema de fundo se deu em razão da importância das decisões

proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na qualidade de guardião da Constituição. Mais

584 Inteiro teor do acórdão da Reclamação n. 4335/ AC disponível no site www.stf.jus.br. Acesso em: maio 2016.

Page 272: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

270

uma vez se evidencia que a força de um precedente depende da Corte da qual ele emana e do

papel constitucional desse tribunal no Sistema de Justiça.

Nesse contexto de valorização dos julgamentos da corte superior, vale destacar

que a Emenda Constitucional 45, de 2004, expandiu a eficácia das decisões do STF proferidas

no controle difuso, ao instituir como novo requisito de admissibilidade do recurso

extraordinário, a demonstração da “repercussão geral das questões constitucionais discutidas

no caso, nos termos da lei” (art. 102, § 3.º da CF, regulamentado nos arts. 543-A e 543-B do

CPC de 1973). A norma regulamentadora, também reproduzida no CPC/2015, considerou

como indispensável à caracterização da repercussão geral que as questões discutidas sejam

relevantes sob dois distintos aspectos: o material (relevantes do ponto de vista econômico,

político, social e jurídico) e o subjetivo (que ultrapassem o interesse subjetivo da causa).

Esse segundo requisito evidencia o caráter mais objetivo de que se reveste

atualmente a formação do precedente da Suprema Corte também em relação ao controle

difuso ou incidental de constitucionalidade. Justamente com base nessa circunstância, o STF,

ao examinar a natureza e o alcance do novo regime, deixou inequivocamente acentuado o

efeito expansivo das decisões dele decorrentes para os demais recursos, já interpostos ou que

vierem a sê-lo.

O sistema atual não apenas confere especial força expansiva aos julgamentos do

STF na jurisdição constitucional, com amparo na própria Constituição, mas também institui

fórmulas procedimentais para tornar concreta e objetiva a sua aplicação aos casos pendentes

de julgamento. 585

585 O CPC/2015 prevê, inclusive, a possibilidade de utilização da ação de reclamação constitucional em caso de descumprimento de julgamento do STF de recurso extraordinário com repercussão geral após esgotadas as instâncias ordinárias. A lei ordinária visa superar a jurisprudência restritiva do STF sobre o não cabimento da reclamação em tais casos. Por tratar-se de competência originária da Suprema Corte, com hipóteses taxativas de cabimento extraídas com base no texto constitucional, entende-se que a ampliação por mera lei ordinária das hipóteses de cabimento da ação constitucional de reclamação não é compatível com a Constituição. Conforme entendimento pacífico do STF antes da vigência do CPC/2015, “(...) a reclamação é inadmissível pelo só descumprimento de tese fixada em repercussão geral assentada no julgamento de recurso extraordinário, por isso que o instituto não é servil à substituição dos recursos cabíveis in itinere contra as decisões judiciais, porquanto raciocínio inverso consagraria pleito per saltum com indevida supressão de instância (Reclamação nº 10.793/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j. em 13 de abril de 2011). Reclamação ajuizada contra decisão de segundo grau que, em sede de apelação, declarou a inconstitucionalidade da contribuição social prevista no arts. 25 da Lei nº 8.212/91 e 25 da Lei nº 8.870/94, ressaltando, porém, que o crédito do contribuinte deveria sofrer “compensação com contribuições sobre folha de salários prevista no art. 22, incisos I e II, da Lei nº 8.212/91”. Alegação de descumprimento da autoridade dos precedentes proferidos por este Supremo Tribunal Federal no julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 363.852/MG e 596.177/RS, oportunidade nas quais restou rejeitado o pleito de modulação da declaração de inconstitucionalidade das normas tributárias em jogo. Inexistindo, in casu, precedente fruto de exercício da fiscalização abstrata de constitucionalidade, a reclamação constitucional não pode ser admitida, sob pena de frustrar a teleologia indispensável para a subsistência do sistema recursal pelo manejo indevido da medida como sucedâneo de recurso de índole ordinária ou extraordinária. Reclamação não

Page 273: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

271

Não há que se cogitar na violação ao papel do Senado Federal já que a previsão da

repercussão geral também foi prevista por norma constitucional, introduzida pela Emenda

Constitucional 45. As duas regras coexistem e se complementam. A repercussão geral permite

a expansão objetiva da eficácia do julgado no âmbito interno do Poder Judiciário com o

propósito de assegurar o respeito do precedente pelas demais instâncias e a sua reprodução

nos recursos sobrestados sobre a mesma temática. A atuação do Senado Federal servirá para

expandir a eficácia do julgamento também para o âmbito da Administração Pública.

Dentro dessa polêmica acerca da tendência586 de objetivação dos efeitos do

controle difuso e da constatação de que a expansão da eficácia normativa dos julgados do STF

se deu a partir de reformas constitucionais, sobretudo a partir da Emenda Constitucional 45,

que introduziu a súmula vinculante e a repercussão geral, outra não pode ser a conclusão

senão a de que constitui flagrante ofensa à Constituição a previsão por lei ordinária de eficácia

vinculante e erga omnes ao julgamento do IRDR, já que se trata de incidente processual de

competência dos tribunais ordinários de segundo grau, os quais não desempenham a função

de Corte Suprema para uniformização do direito.

Fazendo uma comparação entre os temas, Júlio Rossi também aponta a

inconstitucionalidade da eficácia vinculante atribuída ao IRDR por lei ordinária, in verbis:

(...) a decisão firmada no IRDR possui a mesma carga de eficácia das súmulas vinculantes, com um agravante: não há amparo constitucional, o que nos leva arriscar a afirmação que o art. 941 do PLS 166/2010 (art. 980 do PLC 8.046/2010) é inconstitucional. A subversão gerada nos processos subjetivos (com a força vinculante da decisão-quadro tomada em IRDR) importaria no acesso direto aos Tribunais por meio de reclamação, colocando em cheque a estrutura judiciária escalonada, principalmente no que se refere aos meios ordinários de impugnação. Salienta-se que, nem mesmo em processos incidentais de constitucionali-dade, há objetividade automática dos efeitos das decisões judiciais para ou-tros processos, sendo necessário o reconhecimento de repercussão geral pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário e aplicação do disposto no art. 52, X, da

conhecida”. (BRASIL, STF, Rcl 12692 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 27/02/2014, DJe 21-03-2014) 586 Em suas atuações no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes e o então Ministro Eros Grau destacaram-se como os maiores defensores da objetivação dos efeitos do controle difuso de constitucionalidade, conforme se depreende do acórdão da lavra do ministro Eros Grau proferido no julgamento do RE n. 376.852: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. ALTERAÇÃO. BASE DE CÁLCULO. LEI N. 9.718/98. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 239 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O Supremo Tribunal Federal tem entendido, a respeito da tendência de não-estrita subjetivação ou de maior objetivação do recurso extraordinário, que ele deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL, STF, RE 475812 AgR, Relator(a): Min. Eros Grau, 2º Turma, J. 13.06.2006, DJ 04.08.2006)

Page 274: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

272

CF/1988, em ato privativo do Senado Federal (somente assim seria atribuído efeito erga omnes à decisão). 587

Assim, à luz de alguns casos emblemáticos da jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, dessume-se que a expansão normativa dos efeitos do julgamento de um

determinado tribunal depende, antes de tudo, de sua posição na organização hierárquica do

Poder Judiciário e, outrossim, da previsão no texto da própria Constituição da função daquela

corte de assegurar a unidade do direito, definindo teses jurídicas e uniformizando a

interpretação.

4.6 A independência judicial e o modelo constitucional de processo: o impacto do IRDR

no papel do juiz na interpretação do direito

Conforme já estudado no capítulo 03, o modelo constitucional de processo

concebido pela Carta de 1988 estabelece contornos minuciosos e intangíveis da atividade

jurisdicional, servindo como um norte de fortes limitações ao legislador infraconstitucional.

O CPC/2015 e todas as demais normas processuais infraconstitucionais devem

ser, portanto, aplicados à luz das balizas estabelecidas pela ordem constitucional para que,

havendo a mitigação de uma garantia, prevaleça “(...) a interpretação que, conforme o caso,

restrinja menos o direito fundamental, dê-lhe maior proteção, amplie mais o seu âmbito,

satisfaça-o em maior grau” 588.

A independência judicial589 assegurada pelo art. 95 da Constituição de 1988

constitui, nesse contexto, núcleo intangível do modelo constitucional de processo concebido

no Estado Democrático de Direito.

É mais do que uma garantia pessoal do magistrado, é uma garantia da própria

sociedade590, pois possibilita, em qualquer caso, um julgamento imparcial, isento de pressões

587 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 234. 588 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. (org.) Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 09. 589 Para Guilherme Botelho, a independência judicial não estaria incluída entre os direitos informativos do processo civil, indo além de seus princípios e garantias. O referido autor considera que a independência do juiz é fenômeno que pressupõe a própria existência da jurisdição. “Vale dizer, onde inexiste julgador independente e imparcial, sequer existe jurisdição”. (BOTELHO, Guilherme. Direito ao processo qualificado: o processo civil na perspectiva do Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 100-101) 590 A independência do julgador depende da conjugação de outras cinco garantias que devem ser observadas em prol do juiz, mas que indiretamente também resguardam à própria sociedade no Estado de Direito: inamovibilidade; dignidade da profissão judicial, mediante instituição de carreira; independência econômica (remuneração condizente ao cargo e a garantia da sua irredutibilidade); execução de suas decisões (autoridade); e

Page 275: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

273

sociais, políticas, econômicas ou de exigências dos próprios órgãos jurisdicionais.

Com efeito, a independência conferida aos magistrados outorga legitimidade

democrática à atuação do Poder Judiciário, possibilitando que a função jurisdicional seja

exercida com a responsabilidade, autonomia e a imparcialidade necessárias à adequada

resolução dos conflitos sociais. 591

A propósito, José de Albuquerque Rocha aponta as prerrogativas da

independência e imparcialidade como essenciais à função jurisdicional exercida pelos

membros do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito:

Do ponto de vista teórico pode-se definir a independência como sendo a capacidade de decidir livre de toda influência interna ou externa. Significa a negação de sujeição a qualquer poder. A finalidade última da independência é de vincular o juiz exclusivamente à lei. O juiz é independente interna e externamente para ser dependente só da lei, ou seja, para que possa julgar com base somente na lei. A independência é, pois, um instrumento de realização do princípio da legalidade. Do ponto de vista político-sociológico, a independência tem por finalidade legitimar o judiciário, dando-lhe, assim, autoridade para impor suas decisões. (...) a imparcialidade, constituindo na posição de terceiro que o magistrado deve observar em relação às partes de um dado processo e aos interesses de que são portadoras, é, efetivamente, uma nota indispensável à configuração do papel do juiz e, por consequência da jurisdição. Independência e imparcialidade, embora conceitos conexos, eis que servem ao mesmo valor de objetividade do julgamento, no entanto têm significações diferentes. Enquanto a imparcialidade é um modelo de conduta relacionado ao momento processual, significando que o juiz deve manter uma postura de terceiro em relação às partes e seus interesses, devendo ser apreciada em cada processo, pois, só então é possível conhecer a identidade do juiz e das partes e suas relações, a independência é uma nota configuradora do estatuto dos membros do Poder Judiciário, referente ao exercício da jurisdição em geral, significando ausência de subordinação a outros órgãos. 592

Existem diversas formas de independência judicial e todas devem ser igualmente

protegidas e respeitadas: a independência substantiva que corresponde à independência

funcional ou decisória (as decisões judiciais e o exercício das atribuições de magistrado não

estão sujeitas a nenhuma outra autoridade senão a do direito), independência pessoal

(garantias individuais da magistratura, como a inamovibilidade e vitaliciedade no cargo),

independência coletiva (participação judicial na administração das Cortes), e independência

um órgão adequado para assegurar a realização das condições anteriores. (FIX-ZAMUDIO, Hector. Constituición y Proceso Civil en Latinoamérica. México: Instituto de Investigaciones Juridicas, 1974, p. 35-53) 591FRANCO, Marcelo Veiga. Processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 9-11. 592 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 28-30.

Page 276: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

274

interna (independência de interpretação do direito em relação aos julgamentos das cortes

superiores). 593

De igual modo, reprisando o já analisado no capítulo 03 desta pesquisa, Andolina

e Vignera defendem a independência judicial como elemento integrante do modelo

constitucional de processo.

Os referidos juristas destacam, com amparo na doutrina italiana, que a

independência institucional dos juízes possui dois aspectos: a independência externa e a

interna. O aspecto externo se refere à garantia de exclusão de qualquer interferência de outros

órgãos públicos na atuação dos juízes. O Poder Judiciário constitui um ramo autônomo e

independente dos outros poderes. O aspecto interno da independência judicial se refere, por

sua vez, à garantia de não interferência na atividade jurisdicional do juiz vinda de outros

órgãos do próprio Poder Judiciário. Ou seja, deve se considerar estranha à organização do

Poder Judiciário a aplicação dos princípios da hierarquia e de direção, característica própria

das relações entre os órgãos do Executivo.594

Os magistrados se distinguem entre si apenas em razão das funções exercidas no

âmbito das suas respectivas competências constitucionais.

Assim, no sistema jurídico do Brasil de tradição romano-germânica, o juiz poderá,

de forma fundamentada, dar diferente significado à lei nos casos submetidos ao seu

julgamento, ainda que exista posicionamento em outro sentido fixado pelo tribunal,

especialmente quando se está falando apenas nos tribunais das instâncias ordinárias, a quem

compete analisar o IRDR. Isso não violaria o direito da parte, pois tem à sua disposição os

recursos e outros meios de impugnação das decisões judiciais.

A questão assume especial relevância diante da atual legislação processual que

preconiza a instituição de um sistema de precedentes vinculantes, pelo qual se deu força

593 DAKOLIAS, Maria. O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma. Tradução de Sandro Eduardo Sardá. Banco Mundial. Documento Técnico n. 319. 1996, p. 20-21. Disponível em: www.anamatra.org.br. Acesso em: maio 2016. 594 La dottrina non ha mancato, poi, di precisare che nell’indipendenza istituzionale del giudice é possibile cogliere e distinguere due aspetti: quello dell’indipendenza esterna e quello dell’indipendenza interna. Di indipendenza esterna suole parlarsi per designare la (garantita) esclusione di ogni ingerenza nell’operato del giudice da parte di altri organi pubblici incardinati in un potere diverso da quello cui egli appartiene. (...) Per indipendenza interna, a sua volta, si intende la (garantita) esclusione di interferenze com l’attività del giudice promananti da altri organi giurisdizionali inquadrati nel suo stesso ordine: con la conseguenza che deve considerarsi sicuramente estranea all’organizzazione del potere giurisdizionale l’operatività dei principi di gerarchia e di direzione (caratteristici nelle relazioni tra organi della Pubblica Amministrazione) (...) (ANDOLINA, Italo Augusto; VIGNERA, Giuseppe. Il Modello Costituzionale del Processo Civile Italiano. Torino: G. Giappichelli Editore, 1990, p. 36-37.)

Page 277: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

275

obrigatória vertical não apenas aos julgamentos das Cortes Superiores, o que se considera

salutar, mas também a alguns dos tribunais locais e regionais.

É certo que, a partir dos estudos abordados neste capítulo acerca do papel

constitucional das Cortes Supremas, a definição de teses jurídicas no âmbito do Supremo

Tribunal Federal, no que se refere à interpretação da Constituição, e do Superior Tribunal de

Justiça, acerca da interpretação da legislação federal, privilegia a unidade do direito, podendo

servir de parâmetro decisório para outras instâncias do Judiciário sem que isso vulnere a

garantia da independência judicial.

Eduardo de Albuquerque Parente enfrenta a questão, defendendo que algumas

decisões dos Tribunais Superiores deveriam ser realmente seguidas pelos demais juízes,

mesmo que com elas discordem. Conclui que:

(...) essa nova realidade pressupõe que o juiz, individualmente, sinta-se parte da estrutura propulsora da interpretação, não seu opositor. Deve ver na decisão uniformizante uma regra de direito para o bem da realidade jurídica e da própria estrutura judicial da qual faz parte, não uma camisa de força. (...) Isso equivale a dizer que o juiz consciente do seu papel deve pautar suas ações de acordo com a cúpula da estrutura judicial como se obrigação houvesse, mesmo que contrário à sua própria convicção. Isso não significa estar tolhido da sua liberdade de decidir, e sim ter noção de que é parte de uma estrutura que deve ter uma visão sobre determinados temas (em que a divergência seja infundada), sob pena de contribuir com a desigualdade e a incerteza jurídica. Esse é um reflexo do caráter público da jurisdição. 595

O mesmo entendimento não pode se aplicar, contudo, em relação ao julgamento

do IRDR submetido à competência dos tribunais locais e regionais, os quais não se

caracterizam como “Cortes de Precedentes”.

Ao se atribuir a eficácia vinculante e erga omnes ao julgamento de um mero

tribunal local ou regional que não ostenta a função constitucional de uma Corte de Precedente,

mas apenas de instância revisora, o CPC/2015 restringiu sobremaneira o debate processual e,

por conseguinte, a independência do juiz de primeiro grau, vulnerando sob esse viés o modelo

constitucional do processo.

O incidente coletivo concentra no tribunal de segundo grau o desate da

controvérsia jurídica, produzindo enunciado normativo genérico que não poderá ser

rediscutido nos processos sobrestados, como se tratasse de uma súmula vinculante, o que

595 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência – da divergência à uniformização. São Paulo: Atlas, 2006, p. 21.

Page 278: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

276

mecanizará a atividade dos demais magistrados.

Haveria, assim, dois tipos de juízes: aqueles que interpretam a questão de direito,

definindo tese jurídica de caráter erga omnes e vinculante, que são os julgadores do incidente;

e aqueles que se limitam a aplicar a decisão padronizada às demandas individuais, repetindo

as anteriores, tornando o precedente judicial para as demandas repetitivas algo estático e

acabado.

Marcelo Barbi Gonçalves critica a força vinculante do IRDR, entendendo que, tal

como previsto pela legislação infraconstitucional, vai de encontro à garantia da independência

judicial:

Confessa-se aqui a dificuldade de compreensão da forma pela qual a subtração da liberdade para aplicar a norma jurídica ao caso concreto pode ser descrita como uma forma de prestígio. O que se tem, ao revés, é uma imposição a priori de um determinado modo de dizer o direito ao magistrado, o qual fica castrado para formar livremente sua convicção e executar sua tarefa livre de qualquer espécie de coação. A independência da magistratura, é bem de ver, consubstancia uma tríplice garantia: institucional do regime democrático, individual dos cidadãos e pessoal do magistrado. Esse protovalor constitucional não se coaduna com uma compreensão militarizada das instâncias judiciárias, já que não há qualquer subordinação hierárquica entre os juízes. 596

Em destacada passagem, o Ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal

também manifestou seu inconformismo com a eficácia vinculante atribuída por lei ordinária a

determinado julgamento do Poder Judiciário:

Não creio que aqueles que têm a função de julgar possam estar submetidos a algo diverso, estranho à própria consciência. Estou certo de que, pelo menos, da parte dos juízes, teremos uma resistência democrática e republicana, porque, se estivesse na primeira instância, trilharia esse caminho. Repito: as decisões do Supremo Tribunal Federal se impõem, não pelo papel, pelo fato de um dispositivo de lei ordinária dizer que essas decisões são obrigatórias, mas pela respeitabilidade, pelo conteúdo dessas mesmas decisões. A adoção da jurisprudência há de ser espontânea; cada processo é um processo, e devemos fugir a tudo que leve à generalização e à tendência do homem de se acomodar e evitar o maior esforço. 597

O engessamento da função judicante decorrente dessa hermenêutica de submissão

que se propõe no IRDR faz lembrar uma metáfora crítica em relação aos três tipos de

596 GONÇALVES, Marcelo Barbi. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a magistratura deitada. Revista de Processo. Volume 222. São Paulo: RT, ago/2013, p. 233-234. 597 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Ag. Reg. na Reclamação n. 1880-6, DJ 19/03/2004, p. 72. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: maio 2016.

Page 279: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

277

magistraturas na França: a magistratura sentada, porque os juízes trabalham sentados para

análise e julgamento dos conflitos; a magistratura de pé, que é o Ministério Público que fala

em pé ao nível do chão, e não sobre o estrado ao lado do magistrado (como acontece

atualmente), e por isso se chama Parquet; e, por fim, a “magistratura deitada”, que, em uma

metáfora, representaria a posição do juiz ao aplicar a sistemática do IRDR no Brasil. É aquela

magistratura, que antes de decidir, deve esperar a posição do tribunal para saber como deve

aplicar o direito.598

A censura realizada pelo tribunal de segundo grau, como corte de revisão na sua

essência, deveria situar-se apenas no plano jurisdicional para resolver, em novo julgamento, a

causa apresentada, sem interferir na independência do juiz a quo. Ou seja, os tribunais

ordinários devem se limitar a dar solução ao caso sem ditar parâmetros obrigatórios e teses

jurídicas para julgamentos futuros.

É bom ressaltar que não se defende a rebeldia judicial e a chamada

“jurisprudência lotérica”, mas sim o respeito indispensável ao protagonismo legítimo do juiz

na interpretação do direito para a construção do provimento jurisdicional no espaço público

discursivo e comparticipativo do processo democrático.

Defende-se, na verdade, a rebeldia preconizada por Nalini, que reforça o papel do

juiz moderno na interpretação do ordenamento e na busca do direito justo, in verbis:

(...) Um juiz rebelde - leia-se juiz ético - não se conforma com esse estado de coisas. E muitos deles já existem. (...) Para afirmar-se como Poder do Estado, o Judiciário precisa dos bons rebeldes. Aqueles que se não recusem a um plus. Além da produtividade na solução dos problemas, a formulação de soluções novas para a justiça. (...) É por isso que se insiste num juiz rebelde, revoltado, teimoso e desobediente. Rebelde com causa; revoltado com a justiça; teimoso em reformar o mundo; desobediente em relação a regras superadas, formalismos estéreis e preconceitos alimentados pelo arcaísmo. 599

Ou seja, um juiz que personaliza o modelo constitucionalista de atuação judicial,

na visão de Luiz Flávio Gomes. 600

598 GONÇALVES, Marcelo Barbi. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a magistratura deitada. Revista de Processo. Volume 222. São Paulo: RT, ago/2013, p. 235-236. 599 NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 154-158. 600 Luiz Flávio Gomes elabora, de forma crítica, cinco modelos de atuação judicial. O juiz adstrito exclusivamente à lei representa o modelo “positivista-legalista”; o que coloca, de acordo com seus critérios pessoais, o valor “justiça” acima de tudo, inclusive da lei, retrata o modelo “alternativista extremado”; o que aceita a súmula vinculante, espelha o modelo opressivo hierárquico; por último, o que tem por base o “direito”

Page 280: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

278

Com efeito, o juiz de primeiro grau não pode ser visto como um mero aplicador

mecânico da letra da lei ou do enunciado da jurisprudência, ou do precedente vinculante, um

computador programado para apenas processar a tese jurídica definida pelo tribunal, extraindo

uma solução automática ao caso concreto.

Dentro do contexto de uma sociedade globalizada e de uma produção jurídica

superlativa e complexa, o juiz contemporâneo deve ser comprometido, antes de tudo, com a

completude da decisão do conflito, vista não como ato processual isolado, mas como

resultado da efetiva cooperação e do debate processual desenvolvido em contraditório pelas

partes no modelo constitucional de processo.

Para tanto, faz mister um juiz pró-ativo e independente, que analise com

propriedade direitos e princípios debatidos no processo para que não apresente soluções

demasiadamente simplistas frente à complexidade dos fatos ou para que não reproduza

mecanicamente a interpretação já dada pelo tribunal sem se debruçar sobre os fundamentos

submetidos ao debate processual.

Calamandrei explica muito bem o dilema vivido pelo magistrado:

O risco das causas costuma estar neste antagonismo: entre o juiz lógico e o juiz sensível; entre o juiz consequencial e o juiz precursor; entre o juiz que para não cometer uma injustiça está disposto a se rebelar contra a tirania da jurisprudência e o juiz que, para salvar a jurisprudência, está disposto a deixar esmagar nas inexoráveis engrenagens da sua lógica um homem vivo. 601

Desse modo, ao interpretar o direito para resolver os casos concretos que lhe são

apresentados, o magistrado não só os resolve, mas aponta um caminho inovador e mais seguro

para a sociedade. Vale dizer, manejando a lei no caso concreto, o juiz também a enriquece e

contribui para o desenvolvimento do direito e o alcance da interpretação mais justa e

adequada para aquele tipo de conflito. Isso é verdade tanto para os países da common law

quanto para os países da tradição romano-germânica.602

(globalmente considerado – interno e internacional) personaliza o modelo constitucionalista de atuação judicial. Um “quinto” modelo de atuação judicial que, na verdade, não é nenhum modelo, senão uma aberração, não se vale de nenhum dos referenciais até aqui mencionados: consiste no juiz politicamente engajado com o Estado “autoritário” (...) Cuida-se de “modelo” que nem sequer alcança o nível mínimo da legalidade (exercita-se, destarte, na sublegalidade) (GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no estado constitucional e democrático de direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilização do juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 128-129) 601 CALAMANDREI, Pietro. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 185. 602 VILELA, Hugo Otávio Tavares. Além do Direito: o que o juiz deve saber. A formação multidisciplinar do

Page 281: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

279

Esse papel fundamental do magistrado, especialmente daquele atuante no primeiro

grau, somente poderá se efetivar se respeitada a garantia constitucional da independência

judicial, o que foi restringido pela força normativa e vinculante do julgamento do IRDR.

A questão merece ser analisada ainda sob o viés do pensamento de Ronald

Dworkin acerca da teoria da integridade do direito e sua aplicação no common law, que

também deve ser considerada para o melhor entendimento do Sistema de Precedentes

concebido pelo CPC/2015 e, especialmente, para a definição do papel do juiz de primeiro

grau.

Com efeito, a criação de técnicas processuais, como é o caso do IRDR, voltadas

primordialmente à aceleração da prestação jurisdicional e à concentração da proteção jurídica

no âmbito da segunda instância da jurisdição ordinária, mitigando-se garantias processuais e

materiais (ausência de controle da representatividade, contraditório meramente ficto) possui

tão somente a capacidade de conduzir a uma justiça pronta e padronizada, sem espaço para o

debate e a interpretação do direito.

Para Dworkin, por sua vez, embora o direito deva ser analisado como um todo,

evitando-se julgamentos isolados do contexto geral e da história institucional, o juiz não pode

agir de maneira mecanizada, simplesmente reproduzindo decisões prontas.

O referido autor americano se utiliza de uma metáfora, “o romance em cadeia”, ao

comparar o juiz a um crítico responsável por interpretar as variadas dimensões e sentidos

possíveis de uma peça ou poema complexo. 603

Em outras palavras, a história do Direito, da atividade legislativa e da

interpretação judicial pode ser comparada a um romance redigido de modo coerente e

continuado, em que cada romancista posterior, desprovido de liberdade plena, escreve sua

parte da obra em continuação ao que já havia sido escrito pelos anteriores.

Cada juiz agiria, segundo o autor americano, como um verdadeiro romancista em

um grupo encarregado da construção de um capítulo de uma obra, devendo, assim como num

romance, preocupar-se em manter uma lógica evolutiva desse novo capítulo com toda a obra

que já fora escrita, sem, contudo, encerrá-lo, de forma a permitir que outro romancista possa

dar continuidade à obra com um novo capítulo. Cada um deve escrever o capítulo de modo a

juiz. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2015, p. 18. 603 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 275.

Page 282: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

280

criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, assegurando sua evolução. 604

O Direito também é assim, um produto coletivo de uma sociedade não estática,

mas em permanente evolução. Ao proferir um julgamento, os juízes devem se voltar para os

julgados do tribunal e chegar a um posicionamento sobre o que os demais julgadores

decidiram, de forma coletiva, sobre aquele caso semelhante. Ao agir dessa forma, esse juiz

atuará como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, sem desprezar o que tem

em mãos a partir de uma nova decisão.

Enfim, o juiz, ao decidir um caso, não pode considerá-lo como um caso isolado,

mas inserido em um todo (integridade), num processo construtivo a que o julgador dá

necessária continuidade. Isso não significa que o juiz tenha de repetir mecanicamente a

mesma decisão passada quando está diante de um caso similar, pois que o juiz, ao mesmo

tempo em que aplica o direito, é também autor (pois acrescenta algo ao edifício jurídico) e

crítico do passado (pois que o interpreta).605 O juiz não é um mero repetidor, mas, ao mesmo

tempo, intérprete e criador da decisão.

Nesse sentido, a advertência de Maurício Ramires:

(...) quando se diz que o juiz tem uma obrigação de respeitar a integridade e a coerência do direito, não significa que ele deve ser “a boca da jurisprudência”. Menos ainda se quer dizer que lhe bastará, para resolver um caso, repetir ementas e trechos de julgados anteriores, como se só lhe fosse exigido seguir uma “corrente jurisprudencial”. A integridade não traz semelhantes facilidades e, ao contrário, traduz-se em um ônus adicional. 606

A racionalidade e objetividade do conteúdo da decisão judicial, que deve respeitar

a integridade do direito, estão presentes na sua coerência e conexão com a evolução histórica,

as necessidades, tendências e ideais da sociedade em determinado tempo refletidos na

Constituição. Em razão disso, Marcelo Franco leciona que:

Ao juiz cabe exercer a jurisdição como um participante que dialoga com a sociedade mediante a reinterpretação construtiva do Direito, o respeito à Constituição e a aplicação dos princípios jurídicos adquiridos ao longo da

604 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 276. 605 NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Tendências de padronização decisória no PLS n. 166/2010: o Brasil entre o Civil Law e o Common Law e os problemas na utilização do “Marco Zero Interpretativo”. In: MAGALHÃES, Flaviane Barros; BOLZAN, José Luiz (Coord.). Reforma de processo civil: perspectivas Constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 86. 606 RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação dos precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 104.

Page 283: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

281

tradição histórico-institucional da comunidade onde está imerso. 607

Tal como previsto no CPC/2015, o IRDR apresenta-se como um precedente

vinculante nocivo ao sistema jurídico, pois implica, em prol da celeridade para a solução de

demandas repetitivas, que o direito se limitará ao que já foi decidido no passado, não havendo

mais espaço para reinterpretação, mas apenas para se aplicar mecanicamente o que definido

pelo tribunal local como uma fórmula padronizada e fechada, pois se presume que nela

conterá absolutamente toda a solução da questão jurídica conflituosa. Tanto é assim que o

CPC/2015 possibilita a reclamação direta ao tribunal local, caso o juiz da demanda repetitiva

não reproduza a tese jurídica padrão ao caso.

Destarte, o IRDR, como instituto que visa retirar matérias jurídicas do âmbito do

debate processual realizado perante o juiz natural de primeiro grau, fixando-lhes interpretação

unívoca e obrigatória, apresenta-se maculado de inconstitucionalidade, colidindo com a

construção do direito a partir do contraditório e da independência do julgador e, assim, com o

próprio Estado Democrático de Direito.

4.6.1 A técnica de ressalva de entendimento como forma de se minimizar o esvaziamento

do papel do juiz de primeiro grau na interpretação do direito

Para além das questões colocadas acerca da violação ao modelo constitucional de

processo pelo sistema de precedentes adotado pelo CPC/2015, especialmente em relação ao

IRDR, é necessário indagar se é possível vislumbrar uma forma de atuação do juiz de

primeira instância que amenize o esvaziamento de sua atuação na interpretação do direito e,

principalmente, permita-lhe influir concretamente na formação e superação de precedentes.

Mesmo em um sistema de precedentes obrigatórios, a primeira instância deve ser

valorizada. É a porta de entrada da grande massa dos jurisdicionados no Brasil, estando em

contato direto com os fatos do caso concreto e com o cidadão que intenta uma prestação

jurisdicional rápida, efetiva, mas principalmente qualificada, que analise as questões

relevantes debatidas no processo, sem causar surpresa ou perplexidade.

Já advertia o mestre Carlos Maximiliano, citado em outra passagem desta

pesquisa, sobre a importância da atuação do magistrado de primeiro grau:

(...) veem estes de mais perto os interesses e os desejos dos que recorrem à

607FRANCO, Marcelo Veiga. Processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 74.

Page 284: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

282

justiça: uma jurisdição demasiado elevada não é apta a perceber rápida e nitidamente a corrente das realidades sociais. A nova lei vem de cima; as boas jurisprudências fazem-se embaixo. 608

Oportuna também a crítica de Mayara de Carvalho e Juliana Coelho Tavares da

Silva e a necessidade de valorização da primeira instância:

Se o modelo de precedentes judiciais se presta a reforçar o poder e o dever do Judiciário na solução de litígios, deve partir, portanto, de uma reestruturação na forma de gerir, publicar e conceber as decisões de primeira instância, sob pena de assumir o risco de cometer os mesmos equívocos de outrora: estabelecer um plano estratégico a partir de cima com a massificação irrefletida de baixo.609

Nesse contexto, a aplicação dos precedentes, ainda que se admita a força

vinculativa tal como preconizada pela novel legislação e combatida neste estudo, não deve

ocorrer de modo mecânico, impossibilitando que o juiz prolator da decisão promova a

possibilidade de melhoria do sistema, sob pena de reduzi-lo a um mero autômato, um juiz

eletrônico.

Visto o juiz de primeiro grau como um dos sujeitos do contraditório substancial

no modelo constitucional do processo democrático, cuja participação é fundamental para

assegurar a legitimidade do provimento jurisdicional, ele também deve ter o poder de auxiliar

na formação dos precedentes, seja concordando com sua aplicação, seja distinguindo em

virtude de especificidades do caso, seja sustentando contrapontos para que o tribunal leve em

consideração novos argumentos, mesmo que seja instado a aplicar o padrão decisório do

tribunal.

Nesse sentido, ao comentar o sistema inglês, Thomas Bustamante leciona que o

caráter vinculante do precedente não induz à impossibilidade do juiz ou tribunal dialogar com

a corte que formou o precedente:

Fora da House of Lords, aliás, a prática de rever os próprios precedentes é ainda considerada expressamente proibida, de sorte que, se uma corte inglesa de apelação tiver posicionamento contrário ao seu próprio precedente, deve, ao invés de revê-lo, conceder leave to appeal e remeter o processo para a corte superior. Esse é, com efeito, o entendimento reiterado por Lord

608 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 180. 609 CARVALHO, Mayara de; SILVA, Juliana Coelho Tavares da. Ressalva de entendimento e valorização da primeira instância no sistema de precedentes brasileiro. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. V. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 744.

Page 285: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

283

Bingham em um caso de discrepância entre os tribunais ingleses acerca da aplicação da Convenção Européia de Direitos Humanos: “Como Lord Hailsham observou, ‘em questões jurídicas, um certo grau de certeza é ao menos tão valioso quanto uma parte de justiça ou perfeição’. Esse grau de certeza é mais bem alcançado ao se aderir, mesmo no contexto convencional, a nossas regras sobre precedentes judiciais. Será com certeza ônus dos juízes revisar os argumentos convencionais dirigidos a eles, e se eles considerarem um precedente vinculante inconsistente, ou possivelmente inconsistente, com as authorities de Strasbourg, eles podem expressar suas opiniões e dar trânsito à apelação [leave to appeal], como a Court of Appeal fez aqui. Leap-frog appeals podem ser apropriados. Nesse sentido, na minha opinião, eles se desincumbem de seu dever estabelecido pelo Act de 1998. Mas eles devem seguir o precedente vinculante, como também fez a Court of Appeal nesse caso. 610

Assim, para possibilitar o referido diálogo com a Corte, ganha relevância a

“técnica da ressalva de entendimento” (disapproval precedent). Ou seja, constatada, em

primeira instância, alguma interpretação mais adequada à Constituição e à legislação

infraconstitucional, que contrarie um precedente obrigatório, o julgador aplicará o precedente

vinculante, mas deverá fazer referência ao seu entendimento divergente com ampla

fundamentação, dando a oportunidade para que as demais instâncias possam superar a

interpretação firmada.

Nas palavras de Mayara de Carvalho e Juliana Coelho Tavares:

(...) vale ressaltar que a ressalva de entendimento a que se refere nesse tópico é, como dito, a técnica específica de decisão, na qual o dispositivo está em conformidade com o precedente, mas a fundamentação é realizada segundo o entendimento que pretende influir para revertê-lo. Difere, portanto, do sentido majoritariamente atribuído à expressão no Brasil em que é empregada para designar que dado julgamento colegiado não foi unânime, sem referir-se a divergência específica quanto aos elementos condicionantes da ratio de dado precedente. (...) A técnica não é voltada especificamente para a primeira instância, ressalta-se, antes, constitui método de decisão estratégica no sistema de precedentes. Tem aptidão, assim, para influir concretamente na reformulação de entendimentos sem interferir negativamente na segurança jurídica e na expectativa das partes. 611

Importante ressaltar que a decisão que aplica o precedente vinculante, com a

técnica de ressalva de entendimento do julgador para ‘dialogar’ com a corte superior e

610 BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 425-426. 611 CARVALHO, Mayara de; SILVA, Juliana Coelho Tavares da. Ressalva de entendimento e valorização da primeira instância no sistema de precedentes brasileiro. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. V. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 745.

Page 286: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

284

influenciar eventual alteração ou superação do precedente, não é contraditória em sua

fundamentação, de modo que não seriam cabíveis os embargos de declaração.612 A

fundamentação apresentada pelo juiz é apenas uma técnica para marcar seu posicionamento,

permitindo que as instâncias superiores tenham ciência daqueles argumentos.

Ou seja, eventual recurso da parte interessada, em tais casos, devolverá o

conhecimento ao tribunal da importância dos argumentos propostos em instância inferior que

se contrapõem ao precedente, o que pode convencer o tribunal sobre a necessidade de

modificar ou superar a interpretação do direito até então definida.

O uso da referida técnica encontra respaldo no CPC/2015, que permite a alteração

da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e demais Tribunais Superiores,

bem como a alteração de enunciado de súmula e de tese jurídica adotada em julgamento de

casos repetitivos desde que amplamente fundamentada, observando-se a segurança jurídica, a

proteção da confiança e a isonomia (§4º do art. 927). Ademais, inclusive deixa aberta a

possibilidade da modulação temporal da alteração atendidos os interesses sociais e a

segurança jurídica (§3º do art. 927).

Ou seja, o overrruling pode ser reconhecido tanto em relação às súmulas quanto

em relação aos precedentes. Poderá o Tribunal, impulsionado pela técnica da ressalva de

entendimento, decidir que houve modificação substancial do entendimento acerca de

determinada norma (decorrente de "alteração econômica, política ou social referente à

matéria") ou, mais formalmente, que a própria norma foi alterada, havendo a necessidade de

"superação".

Desse modo, a técnica da ressalva de entendimento, possibilita a aplicação do

precedente, respeitando a expectativa das partes, mas ao mesmo tempo, pelo menos na teoria,

valoriza a primeira instância quanto à possibilidade de construção e aperfeiçoamento da

interpretação do direito, já que pode influenciar novos debates e a reformulação da tese

jurídica já definida pela Corte Superior.

Não se quer defender algo utópico. A referida técnica existe, de fato, no direito

comparado e é importante para a oxigenação do direito jurisprudencial, mas somente terá

612 Nesse sentido é o enunciado n. 172 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis: “a decisão que aplica precedentes, com a ressalva de entendimento do julgador, não é contraditório”. (NUNES, Dierle; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 365)

Page 287: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

285

utilidade prática no sistema de precedentes adotado no Brasil se ocorrer uma drástica

mudança quanto à forma atualmente existente de julgamento pelos tribunais.

4.6.2 Técnica de utilização do precedente: o distinguishing como forma de incentivo à

interpretação do juiz de primeira instância

Para se evitar o esvaziamento do papel do juiz da primeira instância e do próprio

contraditório substancial – elementos intangíveis do modelo constitucional de processo, o

precedente vinculante jamais poderá ser visto como um esgotamento argumentativo que deve

ser aplicado de modo automático para as causas repetitivas, especialmente quando emanado

dos tribunais locais da instância ordinária (os quais, ressalta-se, não possuem o papel

constitucional de Corte de Precedentes pelos motivos já descritos neste capítulo).

É preciso assegurar que, diante do caso subsequente (e das especificidades deste),

o juiz terá o poder de analisar, de modo discursivo, amplo e profundo se o precedente

obrigatório deverá ou não ser repetido como fundamento determinante daquele julgamento.

Por isso, segundo Guilherme Bacelar, a aplicação subsuntiva da tese obtida a

partir da ratio decidendi de um precedente ao caso subsequente depende da demonstração não

apenas das semelhanças fáticas, mas principalmente da identidade substancial das questões de

direito debatidas no processo. Se, no caso posterior, existir algum outro ponto controvertido,

além daqueles analisados no precedent case, o julgador deverá resolvê-lo no caso concreto,

podendo ampliar ou reduzir o campo de incidência da tese firmada. Pode ocorrer, inclusive, o

afastamento justificado do precedente – judicial departures. 613

Fala-se em distinguishing quando houver distinção entre o caso concreto em

julgamento e o caso paradigma que deu origem ao precedente, seja porque não há

coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio

decidendi (tese jurídica) constante do precedente, seja porque, a despeito de existir uma

aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação da

orientação vinculante. Segundo Cruz e Tucci, é o método de confronto “pelo qual o juiz

verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma” 614.

Trata-se, enfim, de uma técnica, típica do common law, consistente em não se

613 ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. Precedentes vinculantes em recursos extraordinários e especial repetitivos. 2016, 296f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito. Belo Horizonte, 2016, p. 57-58. 614 TUCCI, Jogé Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 174.

Page 288: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

286

aplicar o precedente quando o caso subsequente a ser decidido apresenta alguma

peculiaridade, que autoriza o afastamento da tese jurídica, possibilitando que a nova decisão

seja tomada independentemente daquela.615 A referida técnica não implica a revogação ou

abandono do precedente – sua validade como norma universal não é infirmada – mas apenas

permite sua não aplicação a determinado caso considerado distinto.

Guilherme Bacelar enfatiza a existência de dois momentos na aplicação da técnica

de distinção de casos: a distinção operada dentro do próprio precedente pela qual se identifica

a ratio decidendi (a tese jurídica), distinguindo-a da parte da sua fundamentação que constitui

apenas obter dictum, de modo a separar os fatos materialmente relevantes daqueles

irrelevantes para o resultado da decisão; e, no segundo momento, a distinção entre casos, pela

qual se demonstra as diferenças relevantes entre o caso anterior e o presente, mostrando

racionalmente que a tese jurídica do precedente não se aplica ou se adéqua ao processo

presente. Os dois momentos são essenciais para a correta realização da distinção e para o

afastamento racional do precedente pelo julgador do caso subsequente. 616

Percebe-se, nesse contexto, que a distinção é fundamental para a participação do

juiz e dos demais sujeitos processuais na interpretação e construção do direito, contribuindo

para a evolução do ordenamento. Na lição de Dierle Nunes e André Horta:

É a partir das distinções, das ampliações e das reduções que os precedentes são dinamicamente refinados pelo Judiciário (sempre a partir das contribuições de todos os sujeitos processuais), à luz de novas situações e contextos, a fim de se delimitar a abrangência da norma extraída do precedente. Se, de um lado, é verdade que o precedente originário estabelece o primeiro material jurisprudencial (não se ignora o texto legal e a doutrina) sobre o qual se debruçarão os intérpretes dos casos subsequentes, com o passar do tempo, uma linha de precedentes se formará a partir daquele primeiro precedente, confirmando-o, especificando-o e conferindo-lhe estabilidade, e a técnica da distinção (distinguishing) desempenha importante função nesse processo de maturação do direito jurisprudencial. 617

O distinguishing qualifica-se, no contexto do sistema de precedentes obrigatórios,

615NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 212. 616ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. Precedentes vinculantes em recursos extraordinários e especial repetitivos. 2016, 296f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito. Belo Horizonte, 2016, p. 61. 617 NUNES, Dierle; HORTA, André Frederico. Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015: Uma breve introdução. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. V. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 309.

Page 289: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

287

como instrumento indispensável para a ruptura do engessamento jurisprudencial e tanto maior

será sua importância e necessidade no ordenamento jurídico quanto maior for a autoridade

conferida aos precedentes judiciais, assegurando o espaço argumentativo e discursivo em que

poderão transitar os sujeitos processuais – partes e o juiz – na construção em contraditório do

provimento jurisdicional a ser dado ao caso concreto.618

A dificuldade prática encontrada se refere justamente à identificação das

diferenças que podem ou não justificar o afastamento do precedente vinculante. Conforme

leciona Gustavo Nogueira,

Todos os casos submetidos ao Judiciário contém diferenças entre si, posto que se forem idênticos estaremos diante do fenômeno da duplicidade de ações (litispendência), porém os casos, quando postos em comparação, podem conter semelhanças que justifiquem a aplicação ao caso que está sendo julgado da ratio decidendi do precedente. Não há uma fórmula que identifique com precisão que tipo de diferenças podem justificar ou não a aplicação do precedente, cabendo ao juiz fazer a sua análise e ao Tribunal que elaborou o precedente verificar, quando cabível, se o distinguishing foi corretamente feito.619

O CPC/2015 adotou a técnica da distinção, prevendo que a decisão não será

considerada fundamentada se o julgador deixar de seguir precedente vinculante sem

demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento (inciso VI, § 1º do art. 489). As

diferenças que serão ou não relevantes para a adoção da técnica da distinção serão avaliadas

pelo juiz caso a caso.

Deve-se valorizar o distinguishing no sistema brasileiro, sob pena do total

engessamento e mecanização da prática judicial. Distinguir obter dicta de ratio decidendi é

fundamental para a aplicação da técnica.

Defende-se que, para se assegurar a ampla participação do juiz na construção do

provimento jurisdicional, a técnica da distinção deve ser utilizada sem restrições, bastando

que haja qualquer diferença relevante capaz de alterar a interpretação do direito no caso em

julgamento. Ou seja, a diferença que justifica a adoção da técnica pode ser tanto de substrato

fático quanto de fundamento jurídico.

618NUNES, Dierle; HORTA, André Frederico. Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015: Uma breve introdução. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. V. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 332-333. 619 NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 213.

Page 290: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

288

Com efeito, muitas vezes se depara com demandas repetitivas, que apresentam

fundamentos jurídicos distintos, uns de natureza constitucional e outros, infraconstitucional,

por exemplo, de modo que se o julgamento paradigma que deu origem ao precedente não tiver

analisado todos aqueles fundamentos, caberá ao juiz do caso concreto proceder à nova

interpretação do direito a partir daqueles argumentos ainda não analisados, sem que haja

violação à força vinculante do precedente.

Se, de um lado, a formulação de teses jurídicas e de enunciados de súmulas pelas

Cortes de Precedentes podem favorecer a uniformidade do direito e a previsibilidade das

decisões, de outro, não deve servir como engessamento da interpretação jurídica, devendo o

juiz, em qualquer caso, analisar, de forma racional e discursiva, os casos que lhe são

submetidos, aplicando ou deixando de aplicar o precedente judicial com base em razões de

fato e de direito construídas e debatidas em contraditório substancial pelos sujeitos

processuais.

O que é essencial na utilização da referida técnica é que haja, em qualquer

hipótese, a motivação, conforme preconiza o art. 93, inciso IX, da Constituição de 1988,

assegurando a participação do juiz na interpretação do direito a partir do contraditório

desenvolvido no processo. A fundamentação da decisão judicial implica que o julgador não

deve se reportar apenas a artigos de lei, a súmulas ou a ementas de julgamento. A decisão

deve expor os elementos fáticos e jurídicos em que o magistrado se apoiou para realizar a

distinção e não aplicar o precedente ou para aplicá-lo se entender adequado à espécie em

julgamento.

Page 291: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

289

CONCLUSÃO

A partir dos fundamentos desenvolvidos nos capítulos desta pesquisa,

demonstraram-se graves inconstitucionalidades do Incidente de Resolução de Demandas

Repetitivas – IRDR e, outrossim, sua incompatibilidade com o modelo constitucional de

processo civil no Brasil.

Para se alcançar tal desiderato, apresentou-se, inicialmente, uma visão crítica da

crise do Poder Judiciário para alertar, inclusive mediante análise de dados estatísticos e dos

relatórios da “Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça, que a criação de novas

técnicas processuais imbuídas do intuito de conferir maior celeridade à prestação jurisdicional

não constituiu, ao longo da história, remédio adequado à solução dos problemas vivenciados

pelo Sistema de Justiça no Brasil.

Os números apresentados demonstraram, por exemplo, que a técnica de

pinçamento de recursos para julgamento de questões repetitivas (como é o caso do recurso

especial representativo de controvérsia e do recurso extraordinário com repercussão geral) não

acarretou a diminuição de processos nas Cortes Superiores. Ao contrário, os dados destacados

ao longo do capítulo 01 demonstraram o enorme congestionamento dos tribunais responsáveis

pela definição das teses jurídicas.

Ou seja, as ondas de reformas processuais, principalmente após a Constituição de

1988, e os Pactos Republicanos por uma Justiça mais célere não trouxeram reflexos concretos

para a celeridade e melhoria da qualidade da prestação jurisdicional e, principalmente, não

contribuíram para a efetiva diminuição da litigiosidade de massa, em que pese terem

representado profunda modificação no direito processual, inclusive com a promulgação da

recente Lei 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil.

O enorme arcabouço legislativo somente demonstra que a cultura jurídica

brasileira seria adepta da nomocracia, em razão do imediatismo da solução legislativa e o fato

de que a edição e divulgação de uma nova lei a respeito de assunto problemático podem

passar à sociedade a impressão de que as medidas já foram tomadas pelos entes competentes,

diminuindo a insatisfação geral.

É certo, porém, que, antes mesmo do CPC/2015, o Brasil já poderia orgulhar-se

de ter uma das mais completas e avançadas legislações em matéria processual, inclusive de

proteção de interesses supra individuais, de modo que, se ainda é insatisfatória e morosa a

Page 292: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

290

tutela dos direitos dos cidadãos, certamente não é a carência de instrumentos processuais que

responde por isso.

É de se ver que o Poder Judiciário e as recentes alterações legislativas trabalham

apenas com as consequências do não cumprimento dos direitos, mas dificilmente com as

causas, para as quais, em grande medida, haveria a necessidade de políticas públicas mais

idôneas promovidas pelo Poder Executivo, em todas as suas esferas na federação, além de

medidas concretas para prevenir o uso patológico do Sistema de Justiça.

Nessa toada, não é possível falar-se em diminuição da litigiosidade e em

celeridade da prestação jurisdicional sem que se resolva, com prioridade, o problema

gravíssimo da litigância habitual patológica no Brasil.

Os números confirmam, e isso se repetirá ao longo dos anos, que um enorme

percentual dos processos em tramitação possui como parte processual alguns poucos sujeitos,

entre os quais se destacam os entes públicos, as instituições financeiras e as pessoas privadas

prestadoras de serviços públicos.

A figura do litigante habitual adquire em razão disso enorme relevância para o

diagnóstico e o combate à litigiosidade repetitiva. Não se vislumbra, contudo, conforme se

destacou na pesquisa, uma maior preocupação com a atuação abusiva do referido agente, que

permite a pulverização de demandas de idêntica natureza mesmo diante de posicionamentos

contrários já firmados pelos tribunais.

As evidências demonstram que é melhor para os grandes litigantes, sob a ótica

financeira, manter sua postura e práticas adotadas extrajudicialmente do que adequá-las aos

posicionamentos dos tribunais. Haveria por trás uma lógica econômica perversa que

justificaria a conduta dos litigantes habituais, sejam eles agentes privados ou públicos, de

insistirem na utilização do Poder Judiciário, retroalimentando a litigiosidade.

As novas legislações e técnicas de julgamentos, inspiradas inclusive no common

law, não combatem diretamente a litigância habitual patológica no Brasil. As medidas de

punição são tímidas e praticamente inoperantes, sobretudo em relação aos entes públicos

considerados os maiores litigantes.

Assim, mais do que a publicação de novas leis e a criação de novas técnicas de

julgamento seria necessário estabelecer um diálogo institucional aberto e constante entre o

Poder Judiciário e os demais poderes da Republica para se modificar a cultura do litígio, de

maneira que principalmente o Poder Público – considerado o maior litigante – comece a

Page 293: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

291

adotar uma postura coerente com a intenção manifestada de melhoria do Sistema de Justiça.

Uma postura de respeito aos posicionamentos firmados pela Justiça, alterando-se as práticas

administrativas consideradas ilegais não só em favor daqueles que obtiveram êxito no

processo, mas também em favor de todos os administrados na mesma situação, o que, de fato,

reduziria a litigiosidade.

A referida análise crítica da Crise do Poder Judiciário mostrou-se extremamente

importante para o foco da presente pesquisa, pois a partir dela se conseguiu esmiuçar o IRDR

e suas características processuais, desvestindo o olhar da falsa premissa de que a referida

inovação legislativa resultará, como um passe de mágica, na redução da litigiosidade e na

melhoria da prestação jurisdicional.

O IRDR não resultará em redução de processos, pois não remedia a causa da

litigiosidade, mas apenas as suas consequências e a um preço muito caro: a ofensa a garantias

intangíveis do modelo constitucional de processo.

A partir de tais considerações, a análise teórica do IRDR se desenvolveu pelas

lentes do modelo constitucional do processo civil brasileiro.

Como premissa da interpretação que se defendeu ao longo da pesquisa, o referido

modelo de processo não pode ser tido apenas como uma mera concepção teórico-

metodológica a ser estudada e demonstrada cientificamente sem qualquer repercussão na

realidade social. Ao contrário, ele deve ser visto como sendo um novo paradigma

interpretativo dotado de diretrizes obrigatórias a serem seguidas na realidade prática do

Sistema de Justiça, pois, efetivando-se tal modelo, efetiva-se a própria Constituição e a

garantia dos direitos fundamentais concebidos no Estado Democrático de Direito.

Realizou-se, sob esse viés, o necessário confronto e a interlocução entre o IRDR e

a garantia de participação democrática no processo a partir do conceito do contraditório

substancial, adotando-se uma visão constitucional da teoria estruturalista de Fazzalari

capitaneada no Brasil pelo professor Aroldo Plínio, para se demonstrar a importância da

participação das partes e também do juiz na construção do provimento estatal.

A concentração do poder apenas nos tribunais ordinários de segundo grau, como

Cortes de Precedentes, não se coaduna, nesse contexto, com a visão constitucionalista da

teoria de Fazzalari, restringindo sobremaneira a participação em simétrica paridade dos

demais sujeitos do processo afetados pelo julgamento vinculante.

O tema percorreu, ainda, o estudo comparado do modelo único constitucional de

Page 294: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

292

processo civil italiano de Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera e, ainda, do processo justo

(devido processo) na perspectiva de Comoglio, perfeitamente aplicáveis ao Brasil em razão

das garantias processuais da Constituição da República de 1988.

Pela perspectiva defendida por Andolina e Vignera, constatou-se que o processo é

um modelo único com tipologia plúrima. Vale dizer, um modelo constitucionalizado de

processo dotado de elementos intangíveis, mas que permite ser decomposto em uma

pluralidade de procedimentos jurisdicionais (administrativo, penal, civil ou trabalhista),

aperfeiçoando-se e especializando-se para plena concretização das suas finalidades, mas

sempre moldado e interpretado a partir da Constituição para garantia dos direitos

fundamentais.

Não é a Constituição que deve ser interpretada a partir das técnicas processuais

criadas em prol da celeridade, mas são as referidas técnicas que devem se moldar às garantias

constitucionais intangíveis do devido processo justo. Garantias essas que devem se

concretizar na prática jurídica, não podendo ser reduzidas a uma mera presunção ou ficção

jurídica.

Conforme se demonstrou, o modelo constitucional de processo civil brasileiro

assegura, enfim, garantias e direitos fundamentais intangíveis, ou seja, valores permanentes,

entre os quais se destaca o contraditório substancial entre as partes e o juiz, que não podem

ser derrogados ou mitigados pelo legislador infraconstitucional.

O contraditório, sob a ótica do modelo constitucional, não é visto apenas como o

dizer e o contradizer. O contraditório é um elemento estrutural dinâmico do processo justo e

uma exigência de prevenção contra a “sentença surpresa”, impondo, sem restrições, o prévio

debate processual (comparticipação) entre as partes e o juiz sobre toda e qualquer questão,

mesmo em relação às matérias sujeitas à apreciação de ofício pelo julgador, para assegurar-

lhes o direito de diálogo e de influência.

A participação democrática das partes constitui, portanto, direito fundamental

indispensável à validade da tutela jurisdicional em qualquer procedimento. Ofende o âmago

desse devido processo justo qualquer técnica processual prevista pelo legislador ordinário que

acarrete a mitigação daquele direito ou o transforme em mera ficção jurídica para se assegurar

a uniformização célere da interpretação do direito.

Nesse contexto, mostra-se extremamente relevante o estudo do Incidente de

Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR a partir das garantias do processo constitucional.

Page 295: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

293

O referido incidente coletivo foi introduzido no direito brasileiro pelo legislador

do novo CPC com o propósito de trazer celeridade e uniformidade à prestação jurisdicional

relativa aos conflitos de massa que tem por objeto questão de direito repetitiva. Seu

regramento não pode ser visto como um modelo à parte daquele assegurado pela Constituição.

Trata-se de uma técnica processual para definição, em bloco (caráter coletivo), da

tese jurídica discutida em várias demandas repetitivas ou massificadas.

Embora tenha sido inspirado no procedimento-modelo alemão, demonstrou-se, ao

longo da pesquisa, que o IRDR adquiriu contornos próprios que o diferenciam

fundamentalmente dos institutos do direito comparado, em razão da ausência do controle

judicial da representatividade das partes afetadas e da não previsão do direito de exclusão dos

efeitos do julgamento.

De tudo que foi analisado, pode-se concluir que o IRDR constitui uma categoria

distinta de processo, que não se identifica propriamente com os instrumentos utilizados nas

demandas puramente individuais e tampouco com os mecanismos de representação e

substituição processual típicos da ação coletiva, tendo inspiração, ao contrário, nas chamadas

ações de grupo instituídas na Europa.

Por meio de um processo modelo que servirá de paradigma, instaura-se o

procedimento do IRDR que adquire autonomia processual e contornos objetivos, pois não

soluciona a lide intersubjetiva, mas apenas define uma tese jurídica vinculante com caráter

geral e abstrato, como uma súmula vinculante.

Ao se analisar os aspectos processuais do IRDR, constatou-se que seu cabimento

deve pressupor a efetiva repetição de processos e a existência de antagonismo jurisprudencial

em relação à questão de direito repetitiva.

Sem a existência de decisões ou sentenças antagônicas, seria admitida a produção

de tese jurídica vinculante – efeito previsto para o julgamento do IRDR pelo tribunal local –

acerca de questões de direito apresentadas inicialmente na primeira instância sem a

participação efetiva do magistrado de primeiro grau em qualquer das etapas de sua construção

e sem o debate processual maduro e suficiente para definição da melhor interpretação.

Demonstrou-se, ainda, que a admissibilidade do incidente coletivo deve pressupor

a tramitação no respectivo tribunal de recurso, remessa necessária ou processo de

competência originária que tenha por objeto a mesma questão de direito repetitiva.

Page 296: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

294

Admitir a instauração do IRDR a partir de processos em tramitação apenas na

primeira instância sem qualquer prévio pronunciamento judicial, seja ele por decisão ou

sentença, colide frontalmente com o contraditório substancial robustecido pelo debate

processual mais amplo que deveria permear qualquer procedimento voltado à fixação de

posicionamentos vinculantes de modo a lhes conferir legitimidade constitucional.

A interpretação quanto à necessidade de processo pendente no tribunal de

segundo grau para a admissibilidade do IRDR também se mostra insuperável do ponto de

vista da constitucionalidade formal da lei. Ou seja, sem que exista processo pendente no

tribunal de segundo grau, a instauração do IRDR configurará ampliação, por meio de lei

ordinária, da competência originária dos tribunais em total afronta à Constituição da

República de 1988.

Em relação ao procedimento, destacou-se a necessidade de ampla participação das

partes, inclusive daquelas dos processos suspensos, e também da figura do amicus curiae,

como forma de se conferir legitimidade ao julgamento e de influenciar concretamente (e não

de forma fictícia) o convencimento dos julgadores.

Como se trata de procedimento inspirado nas ações de grupo do direito europeu,

cada membro do grupo envolvido naquela temática em litígio deve ser considerado parte no

processo com todos os ônus e poderes processuais inerentes. Não se pode aceitar apenas um

contraditório ficto, presumindo-se de forma absoluta pela lei que todos estariam sendo

legitimamente representados no procedimento a ponto de sofrerem os efeitos do julgamento

ainda que desfavorável.

Com efeito, a participação de diversos atores nos processos objetivos dotados de

eficácia vinculante e erga omnes é essencial para que ocorra a integração do Direito à

sociedade. A atuação dos terceiros enriquece a discussão, privilegiando o interesse público e

esmiuçando a questão em discussão sob diversas perspectivas, de forma a se obter uma

decisão mais segura e completa possível.

No caso do IRDR, a situação se mostra inconstitucional, pois não existe na

legislação a previsão do controle da representatividade adequada e de escolha de um líder

para a condução do processo em nome das partes, além de não haver critérios objetivos para a

própria escolha do processo ou dos processos modelos para a instauração do incidente, o que

configura grave violação ao modelo constitucional de processo.

A instauração do incidente a partir de processo originário mal conduzido, com

Page 297: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

295

poucos e frágeis argumentos jurídicos ou com acompanhamento técnico deficiente

compromete as garantias processuais dos litigantes, especialmente daqueles considerados

ausentes.

Em tais casos, a decisão do incidente, dotada pela lei de caráter vinculante pro et

contra, pode não vir a ser a melhor e mais consistente solução da controvérsia de massa, com

evidente impacto prejudicial à conclusão da multiplicidade de demandas sobrestadas.

Em outras palavras, tal como previsto pelo CPC/2015, o novel instituto favorece

os litigantes habituais, que possuam diversos processos versando sobre a mesma matéria, os

quais poderão provocar o incidente a partir de um litígio com argumentos mais precisos em

seu favor, bem escritos ou completos, no qual a parte contrária não tenha apresentado fortes

argumentos contrários ou que não disponha do mesmo aparato profissional para o

acompanhamento técnico da causa.

Defende-se, nesse contexto, que o órgão julgador tem o dever de realizar o

controle da representação adequada, independentemente de lei que autorize, valendo-se da

cláusula constitucional do devido processo justo. Os critérios poderão ainda ser definidos pelo

regimento interno de cada tribunal, evitando-se prejuízo à participação das partes na

construção da melhor e mais adequada interpretação do direito.

De igual modo, é importante que um ou alguns dos processos modelos escolhidos

(originários do incidente) já tenham decisão ou sentença do juiz de primeira instância acerca

da questão de direito controvertida. A fundamentação da decisão judicial apresenta os

argumentos debatidos e a construção interpretativa da questão de direito realizada pelo juiz,

como importante sujeito do processo, cujo papel também é indispensável ao modelo

constitucional de processo.

Assim, à luz da garantia constitucional do contraditório, é imprescindível que

sejam estabelecidos critérios rigorosos para a admissibilidade do incidente coletivo a partir de

processo modelo mais completo, seja no que se refere à amplitude da argumentação e da

ampla participação das partes, seja no que se refere à qualidade da representação do grupo e à

atuação técnica dos advogados.

Outro ponto relevante trabalhado pela pesquisa se refere à ausência de previsão do

direito de autoexclusão dos efeitos do julgamento do IRDR, caracterizando restrição

desproporcional ao acesso à Justiça – garantia inerente ao modelo constitucional do processo

civil.

Page 298: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

296

O sistema opt out consiste em permitir que cada indivíduo, membro da classe ou

do grupo, requeira em juízo sua exclusão de qualquer processo de natureza coletiva de modo a

ser considerado terceiro não sujeito aos efeitos do julgamento. Todos os demais membros

daquele grupo, que não tenham exercido a opção de excluir-se, são considerados partes e

sofrem os efeitos do julgamento, seja ele positivo ou negativo (pro et contra).

A propósito, o procedimento modelo do direito alemão amplamente estudado no

capítulo 02, que teria inspirado a criação do IRDR brasileiro, adota um sistema semelhante de

autoexclusão. A lei alemã permite que o autor da demanda individual repetitiva desista de sua

ação, sem a necessidade de consentimento do réu, no prazo de 30 dias contado da

comunicação da suspensão do processo, como forma de não ser alcançado pelos efeitos da

decisão-modelo. A eficácia do julgamento do incidente não atinge os processos futuros, de

maneira que a ação poderá ser ajuizada novamente pela parte e o julgador poderá realizar

outra interpretação do direito mais adequada ao caso sem a necessidade de se valer da técnica

do distiguishing.

O microssistema do processo coletivo previsto até então no Brasil não adotava a

possibilidade do julgamento pro et contra nas ações de caráter coletivo. O julgamento relativo

aos conflitos que envolvem direitos individuais homogêneos ou massificados opera seus

efeitos secundum eventus litis, ou seja, somente gera efeitos quando procedente a pretensão,

evitando prejuízos aos litigantes substituídos que não participaram de forma direta do

processo justamente por não haver a previsão do controle judicial da representação adequada.

Essa técnica processual adotada no Brasil protege, de certo modo, os interesses

dos litigantes ausentes e, por conseguinte, resguarda o pleno acesso à Justiça.

Isso não foi previsto pelo novo modelo adotado em relação às demandas

repetitivas ou de massa, no qual se insere o IRDR como instrumento de definição rápida da

interpretação do direito dotado de caráter vinculante e erga omnes.

O regramento do IRDR prevê que as demandas repetitivas serão automaticamente

suspensas e o julgamento pro et contra alcançará de forma vinculante todos os processos em

tramitação na área de competência territorial do tribunal local ou regional, inclusive os casos

futuros. A vinculação é de caráter absoluto, total e fechada, e, portanto, inconstitucional, não

tendo sido previsto o modelo de autoexclusão (opt out), com a possibilidade do litigante

prosseguir com o seu processo individualmente.

Não passou despercebida também a inconstitucionalidade da extensão dos efeitos

Page 299: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

297

do julgamento do IRDR aos processos dos juizados especiais, em razão da manifesta ausência

de competência funcional absoluta dos tribunais locais ou regionais para uniformizarem a

interpretação jurídica no âmbito dos juizados especiais.

A competência, como forma de organização do Poder Judiciário e de limitação da

atividade jurisdicional, constitui elemento intangível do modelo constitucional de processo.

Os tribunais ordinários de segundo grau não possuem competência funcional e

hierarquia jurisdicional para reexaminar as decisões, sentenças e acórdãos proferidos pelos

juízes atuantes nos juizados especiais, inclusive através de meios impugnativos autônomos

como, por exemplo, o mandado de segurança, conforme já decidiram o Supremo Tribunal

Federal e o Superior Tribunal de Justiça.

Com efeito, os juizados especiais federais e estaduais estão subordinados,

respectivamente, aos tribunais regionais federais e aos tribunais de justiça apenas no aspecto

administrativo, de modo que os atos jurisdicionais dos referidos tribunais não podem interferir

de forma vinculante nos juizados, gerando a insegurança jurídica que o incidente coletivo visa

justamente coibir, haja vista a possibilidade de conflito de entendimentos com a turma

nacional de uniformização – órgão próprio da estrutura organizacional dos juizados.

Nesse contexto, considera-se inconstitucional estabelecer a eficácia do ato

jurisdicional entre órgãos do Poder Judiciário sem hierarquia ou vinculação processual entre

si.

Outro ponto controvertido do novel instituto se refere ao seu efeito vinculante.

Percebe-se uma preocupação do legislador muito mais voltada ao efeito obrigatório e à

extensão da tese jurídica para atingir milhares de processos do que com o modo da definição

da melhor interpretação do Direito.

O efeito vinculante não se resume apenas a um grupo específico de casos como

acontece no contexto alemão. Na realidade, a intenção do legislador é atingir todos os

processos em curso durante o julgamento do IRDR, assim como todos os futuros que tratarem

da mesma temática.

Surge, então, no direito brasileiro, a controvérsia acerca da constitucionalidade da

previsão do efeito vinculante das decisões proferidas no IRDR, sua compatibilidade com o

contraditório substancial e o papel do juiz na interpretação do Direito.

Demonstrou-se, no capítulo 04, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal

Page 300: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

298

Federal, que o efeito vinculante não pode ser atribuído por lei ordinária a julgamentos de

tribunais da instância ordinária.

No julgamento de questão de ordem na ADC n. 01, o Supremo Tribunal Federal

reconheceu a constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 03/93 – a qual instituiu a ação

declaratória de constitucionalidade com eficácia vinculante – ao entendimento de que a

eficácia obrigatória dos julgamentos no controle concentrado é indispensável à garantia do

papel do Supremo como guardião da Constituição. A emenda apenas teria explicitado um

poder que a Corte Suprema já detinha para assegurar a unidade do direito e a segurança

jurídica ao ordenamento.

Motivação semelhante foi apresentada no julgamento da constitucionalidade do

art. 28, parágrafo único, da lei ordinária nº 9.868, de 1999, que atribuiu eficácia vinculante

aos julgamentos definitivos de mérito proferidos pela Corte Suprema em ação direta de

inconstitucionalidade (ADI).

A lei ordinária somente foi considerada constitucional para veicular a imposição

de força obrigatória ao julgamento da ADI em razão da similitude substancial do seu objeto

com a ação declaratória de constitucionalidade, criada pela Emenda Constitucional nº 03/93.

São ações dúplices. Desse modo, a referida lei não teria inovado o ordenamento jurídico em

relação ao tema, mas apenas explicitado a inteligência da disposição constitucional, visando

conferir mais força ao controle concentrado de constitucionalidade.

A validade da lei ordinária para estabelecer a eficácia vinculante estaria

circunscrita aos julgamentos da Suprema Corte no controle de constitucionalidade e para

concretização do papel fundamental a ela atribuído de guardiã da Constituição.

Corrobora, ainda, o referido entendimento a expansão da eficácia normativa dos

julgados do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade a partir de

reformas constitucionais, sobretudo a partir da Emenda Constitucional 45, que introduziu a

súmula vinculante e a repercussão geral. Tais reformas permitiram que os efeitos do controle

difuso se estendessem para além das partes do caso concreto.

A impossibilidade de uma mera lei ordinária atribuir força obrigatória a

julgamento de qualquer tribunal tem respaldo igualmente no entendimento manifestado pelo

Supremo Tribunal Federal em relação à inconstitucionalidade da eficácia vinculante atribuída

pela CLT aos prejulgados trabalhistas. A lei infraconstitucional não pode atribuir tal força aos

julgamentos estranhos à Suprema Corte e, principalmente, estranhos à jurisdição

Page 301: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

299

constitucional.

O prejulgado era previsto pelo § 1º do art. 902 da CLT e resultava de

pronunciamento do Tribunal Superior do Trabalho, em reunião plenária, por ocasião de

julgamento de ação originária ou de recurso de sua competência, ou independentemente

desses procedimentos, sobre interpretação de norma jurídica, dotado de caráter geral e

vinculante.

O instituto tinha o objetivo de dar padrão decisório, coerência, estabilidade e

uniformidade à interpretação do direito trabalhista. Não por mera coincidência o mesmo

objetivo é previsto nos artigos 926 e 927 do CPC/2015, para também se conferir eficácia

vinculante ao julgamento do IRDR pelos tribunais de segundo grau.

Ficou definido pela Suprema Corte, ainda sob a vigência da Constituição de 1946,

que seria inconstitucional qualquer ato normativo que dissesse que os prejulgados do Tribunal

Superior do Trabalho deveriam necessariamente ser observados pelos juízes das instâncias

inferiores. Ou seja, não caberia ao Tribunal Superior Trabalho formular teses jurídicas de

caráter normativo, geral e vinculante para as instâncias inferiores da justiça laboral.

Já na vigência da Constituição da República de 1988, o Tribunal Superior

Eleitoral – TSE adotou o referido entendimento da Suprema Corte para reconhecer, em

julgamento relatado pelo então ministro Sepúlveda Pertence, a inconstitucionalidade também

dos “prejulgados vinculantes” previstos no Código Eleitoral.

Os referidos julgados sinalizam inequivocamente que, ao atribuir eficácia

vinculante à interpretação judicial do direito pelos tribunais especializados da Justiça do

Trabalho e Eleitoral, a lei ordinária violou a ordem constitucional.

A inconstitucionalidade decorre da ofensa à separação dos poderes, em razão da

atribuição de poder normativo aos referidos julgados, e, ainda, ofensa à independência

judicial, garantia do Estado Democrático, na medida em que impede o julgamento da causa a

partir do debate em contraditório e do livre convencimento motivado do julgador.

Não se defende a rebeldia judicial e a chamada “jurisprudência lotérica”, mas sim

o respeito indispensável ao protagonismo legítimo do juiz na interpretação do direito para a

construção do provimento jurisdicional no espaço público discursivo do processo

democrático.

Defende-se, por outro lado, a valorização da primeira instância, compreendendo

Page 302: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

300

sua participação e autoridade como necessárias para moldar o direito ao caso concreto,

gerenciando os litígios para que se preze por uma prestação jurisdicional qualificada e não

padronizada.

O IRDR concentra no tribunal de segundo grau o desate da controvérsia jurídica,

produzindo enunciado normativo genérico como se tratasse de uma súmula vinculante, o que

mecanizará a atividade dos demais magistrados.

Haveria, assim, dois tipos de juízes: aqueles que interpretam a questão de direito,

definindo tese jurídica de caráter erga omnes e vinculante, que são os julgadores do incidente;

e aqueles que se limitam a aplicar a decisão padronizada às demandas individuais, repetindo

as anteriores, tornando o precedente judicial para as demandas repetitivas algo estático e

acabado.

Com efeito, o juiz de primeiro grau não pode ser visto como um mero aplicador

mecânico da letra da lei ou do enunciado da jurisprudência, um computador programado para

apenas processar a tese jurídica definida pelo tribunal, extraindo uma solução automática ao

caso concreto.

No processo democrático, o juiz deve ser comprometido, antes de tudo, com a

completude da decisão do conflito, vista não como ato processual isolado, mas como

resultado da cooperação e do debate processual desenvolvido em contraditório pelas partes.

Esse papel fundamental do magistrado, especialmente daquele atuante no primeiro

grau, somente poderá se efetivar se for respeitada a garantia constitucional da independência

judicial, restringida de maneira inconstitucional pelo CPC/2015 ao atribuir força normativa e

vinculante ao julgamento do IRDR pelo tribunal da instância ordinária.

Não se pode olvidar, nesse ponto, da crítica ao sistema de precedentes adotado

pelo CPC/2015 que demonstra a impropriedade da definição do julgamento do IRDR como

um precedente vinculante.

No sistema brasileiro, alguns julgamentos serão considerados, por força de lei,

“precedentes judiciais obrigatórios” ainda que não proferidos pelos Tribunais Superiores.

Atribuiu-se a presunção absoluta de que todas as decisões proferidas nas hipóteses elencadas

no art. 927 do CPC/2015 terão relevância e ampla fundamentação para definição de teses

jurídicas dotadas de verdadeiro caráter normativo, as quais repercutirão, de forma vinculante,

nos casos subsequentes.

Page 303: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

301

Em outras palavras, esses julgamentos-paradigma formam o que se pode chamar

de “padronização decisória preventiva”, consistindo em uma teoria às avessas do precedente

judicial. Servirão, na verdade, como um perigoso instrumento centralizador, de natureza

presumidamente fechada e estática, que engessará a interpretação do direito por outros órgãos

jurisdicionais, vulnerando o modelo constitucional de processo.

Por isso se mostra absolutamente inadequada a equiparação dos tribunais da

instância ordinária a Cortes de Precedentes. Conforme se demonstrou no capítulo 04, não se

pode falar de um modelo de precedentes normativos formalmente vinculantes sem identificar

nas Cortes Supremas como suas personagens centrais.

A atuação proativa ou prospectiva na construção e interpretação do direito

constitui a principal função das modernas cortes supremas, que assumem posição como

vértice da organização hierárquica jurisdicional. Com os seus julgamentos, na realidade, a

corte suprema se torna ativa protagonista do complexo processo de construção e interpretação

do direito, orientando as decisões futuras sobre os problemas de relevância jurídica que

transcendem os meros interesses individuais das partes.

Ou seja, somente ao órgão do Judiciário que desempenha a função constitucional

de uma verdadeira “Corte Suprema” é que se deve outorgar a função de definir teses jurídicas,

com eficácia erga omnes e vinculante, para uniformização do direito, assegurando a

coerência, previsibilidade e segurança jurídica ao sistema.

No Brasil, defende-se que somente o Supremo Tribunal Federal e o Superior

Tribunal de Justiça desempenham o papel constitucional de “Cortes Supremas”, permitindo

que suas decisões assumam a qualidade de precedentes.

Os tribunais locais e regionais, por sua vez, integram apenas a instância ordinária,

cujo papel é apenas de corte de revisão das decisões proferidas pela primeira instância. Ao

contrário do previsto para as Cortes Supremas, cabem aos órgãos jurisdicionais ordinários –

juízes de primeira instância e aos tribunais locais ou regionais – cuidarem da solução das

controvérsias, realizando a devida apuração dos fatos e a aplicação do direito aos casos

concretos para tutelar o direito das partes. Em outras palavras, nas instâncias ordinárias

exercita-se a jurisdição com o objetivo de obter uma decisão justa para o caso concreto

voltado à satisfação dos interesses das partes. Não agem com caráter prospectivo e para

construção de teses jurídicas. Mesmo porque também não deteriam a última palavra sobre a

questão, que ficará sujeita aos meios impugnativos endereçados às Cortes Supremas.

Page 304: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

302

Estender, nesse contexto, o papel das Cortes Supremas às instâncias ordinárias,

que não se encontram no vértice da estrutura jurisdicional, causará precipitação e o

engessamento do debate processual em prol unicamente da celeridade processual.

Eventuais divergências jurisprudenciais no âmbito das instâncias ordinárias não

podem ser vistas como um mal para o Sistema de Justiça, pois elas enriquecem o debate, de

maneira que as Cortes Supremas poderão desempenhar seu papel com maior segurança, no

tempo próprio e pelos meios processuais constitucionalmente previstos, valendo-se da maior

quantidade e, principalmente, qualidade dos fundamentos jurídicos apresentados em prol ou

contra determinada interpretação do direito.

Portanto, sob a ótica da competência constitucional conferida aos tribunais locais,

defende-se que não pode ser conferido ao julgamento do IRDR o status de precedente

obrigatório, pois não emanado propriamente de uma “Corte Suprema”, vale dizer, de uma

“Corte de Precedente”, mas apenas de uma instância ordinária de revisão, de modo que os

efeitos do julgamento devem se restringir apenas ao âmbito do próprio tribunal, não

assumindo caráter normativo para os demais órgãos jurisdicionais e aos casos futuros.

Em uma sociedade globalizada na qual as relações jurídicas se multiplicam, é

natural que ocorram as demandas repetitivas.

A preocupação do legislador, das instituições e dos operadores do Direito deve-se

voltar para o combate às causas da litigiosidade, incentivando-se outros meios de solução de

conflitos, como a conciliação, a mediação e a arbitragem, além do diálogo institucional

constante e democrático para se prevenir as condutas recalcitrantes, principalmente dos entes

públicos, de modo a adequar suas práticas administrativas aos posicionamentos

jurisprudenciais, o que, de fato, poderia reduzir a litigiosidade.

O que não pode se admitir é a criação de um modelo processual próprio para se

alcançar, acima de tudo, a solução rápida das referidas demandas pelo Poder Judiciário,

reduzindo e transformando as garantias fundamentais do processo constitucional em uma

mera ficção jurídica que servirá, em última análise, apenas à mecanização da aplicação e

interpretação do direito.

Page 305: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

303

REFERÊNCIAS

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e Judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: RT, 2014. ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

AGUIAR, Mirella de Carvalho. Amicus Curiae. Coleção Temas de Processo Civil. v.5. Salvador: JusPODIVM, 2005.

ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. v. I. São Paulo: Atlas, 2010. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa, v. 44, 2003. p. 179-212. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2003. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. (org.) Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004. ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende. O case management inglês: um sistema maduro? Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. v. VII. Rio de Janeiro. Janeiro a junho de 2011. p. 288-335. Acesso em: 23 dez. 2015. ALVIM, Arruda. A alta função jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do recurso especial e a relevância das questões. STJ 10 anos: obra comemorativa 1989-1999. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 1999, p. 37-47. ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. et. al. (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. ALVIM, Arruda; MARTINS, Critiano Zanin. Apontamentos sobre o sistema recursal vigente no direito processual civil brasileiro à luz da lei 10.352/2001. In: NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

ANDOLINA, Ítalo Augusto; VIGNERA, GIUSEPPE. Il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli Editore, 1990.

ANDOLINA, Ítalo Augusto; VIGNERA, GIUSEPPE. Il “Giusto Processo” nell’esperienza Italiana e Comunitária. Revista de Processo: RePro, v. 30, n. 126, ago. 2005, p. 95-113.

Page 306: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

304

ANDOLINA, Ítalo Augusto; VIGNERA, Giuseppe. I fondamenti costituzionali della giustizia civile: il modello costituzionale del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli, 1997. ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista os Tribunais, 2009. ARAÚJO, José Henrique Mouta. O incidente de resolução das causas repetitivas no novo CPC e o devido processo legal. In: MACEDO, Lucas Buril et al (orgs.). Processo nos Tribunais e Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. Coleção novo CPC – Doutrina Selecionada. Vol. 06. Salvador: Juspodivm, 2015. ARAÚJO, Marcelo Cunha de. O novo processo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. As demandas de massa e o projeto do novo Código de Processo Civil. In: FREIRE, Alexandre (org.). Novas tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. 3. Salvador: Juspodivm, 2014. ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. Precedentes vinculantes e irretroatividade do direito no sistema processual brasileiro: Os Precedentes dos Tribunais Superiores e sua Eficácia Temporal. Curitiba: Juruá, 2012. ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. Precedentes vinculantes em recursos extraordinários e especial repetitivos. 2016, 296f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Direito. Belo Horizonte, 2016. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 383, , jan-fev. 2006, p. 131-180. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito Processual Constitucional: Aspectos Contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2008. BARBOSA, Andrea Carla; CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto do Código de Processo Civil: apontamentos iniciais. In: FUX, Luiz (coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em perspectiva. Rio de Janeiro: Forense, 2011. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da Justiça: alguns mitos. In: Revista Forense, v. 96, n. 352, out-dez, 2000.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns aspectos do processo (civil e penal) nos países anglo-saxônicos. Temas de direito processual: sétima série. São Paulo: Saraiva, 2001.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. Temas de Direito Processual – 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1988.

Page 307: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

305

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O que deve e o que não deve figurar na sentença. Temas de Direito Processual – 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O processo civil brasileiro entre dois mundos. Temas de Direito Processual. Oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004. BARROS, Flaviane de Magalhães. O Modelo Constitucional de Processo e o Processo Penal: a necessidade de uma interpretação das reformas do processo penal a partir da Constituição. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Constituição e Processo: A contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Estruturação de um sistema de precedentes no Brasil e concretização da igualdade: desafios no contexto de uma sociedade multicultural. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. V. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 183-213. BARROSO, Luis Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 12, n. 96, fev/maio 2010.

BARROSO, Luis Roberto. A proteção coletiva dos direitos no Brasil e alguns aspectos da class action Norte Americana. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, n.8, jan.-jun. 2007, p. 34-55.

BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. O devido processo legal nas causas repetitivas. p. 4940-4954. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/ antonio_adonias_aguiar_bastos.pdf> Acesso em: 12 jan. 2016. BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. A necessidade de compatibilização do interesse público com os direitos processuais individuais no julgamento das demandas repetitivas. In: DIDIER Jr, Fredie; BASTOS, Antonio Adonias Aguiar (coord.). O Projeto do Novo Código de Processo Civil: estudos em homenagem ao professor José Joaquim Calmon de Passos. Salvador: JusPodiym, 2012. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório. In: TUCCI, José Rogério Cruz e; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: RT, 2002. p. 20-38. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade. Para uma teoria geral da política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra. 2011.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

Page 308: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

306

BOTELHO, Guilherme. Direito ao processo qualificado: o processo civil na perspectiva do Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Presidência. Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010 (Do Senador José Sarney, proveniente dos trabalhos da Comissão de Juristas, instituída pelo ato nº 379, de 2009, do Presidente do Senado Federal). Dispõe sobre a reforma do Código de Processo Civil. Diário do Senado Federal, Brasília, DF, 09 jun. 2010, pp. 26692-26950.

BRASIL. Substitutivo da Câmara dos Deputados nº 8.046, de 2010, ao projeto de lei do Senado n. 166 de 2010. Subsecretaria de Coordenação Legislativa do Congresso. BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer da Comissão Especial referente ao Projeto de Lei nº 8.046, de 2010. Rel.: dep. Paulo Teixeira. Brasília, 26 mar. 2014. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. Acesso em ago. 2015.

BRASIL. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Brasília-DF, 2010. 381 pp. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf. Acesso em: 09 mar. 2015.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 57/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão n. 1 a 6/94. Diário Oficial da União. Brasília: Senado Federal: Subsecretaria de Edições Técnicas, 2009.

BRASIL. Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17 jan. 1973. BRASIL. Lei no 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17 mar. 2015. BRASIL. Lei n. 13.256, de 04 de fevereiro de 2016. Altera o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 05 fev. 2015. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias; SOARES, Carlos Henrique. Manual Elementar de Processo Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias; SOARES, Carlos Henrique. Fundamentos constitucionais da jurisdição no Estado Democrático de Direito. In: GALUPPO, Marcelo Campos (Coord.). Constituição e democracia: fundamentos. Belo Horizonte: Fórum, 2009. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias; SOARES, Carlos Henrique. FIORATTO, Débora Carvalho. A conexão entre os princípios do contraditório e da fundamentação das decisões na

Page 309: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

307

construção do Estado Democrático de Direito. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro, 2010, p. 228-260. BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015. BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2012. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. v.1. São Paulo: Saraiva, 2009. BUENO, Cassio Scarpinella. O “Modelo Constitucional do Direito Processual Civil”: um paradigma necessário de estudo do direito processual civil e algumas de suas aplicações. In: JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (coord.). Processo Civil: Novas Tendências. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. BULOW, Oskar von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação das regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Muterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, mai. 2007, pp. 123-146. CABRAL, Antônio do Passo. A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos. Revista de Processo, v. 39, n. 231. São Paulo: RT, maio 2014, p. 201-223. CABRAL, Antônio do Passo. O contraditório como dever e a boa-fé processual objetiva. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 126, p. 59-82, 2005. CABRAL, Antônio do Passo. Il principio del contraddittorio come diritto d’influenza e dovere di dibattito. Revista di Diritto Processuale, anno LX, n. 2, aprile-giugno, p. 449-464, 2005. Padova, Itália. CABRAL, Antônio do Passo. Comentários aos arts. 976 a 987. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1415-1454. CALAMANDREI, Pietro. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. I. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015.

Page 310: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

308

CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de novo CPC: a comparação entre a versão do Senado Federal e a da Câmara dos Deputados. In: FREIRE, Alexandre et al (Orgs.). Novas tendências do processo civil. vol. III. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 279-311. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Papnótica, Vitória, ano 1, n: 6, fev. 2007, p. 1-44. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988. CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo: elementos para uma definição. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro; PUGLIESI, Marcio (coords.). 20 anos da Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2009. CARNEIRO, Athos Gusmão. Sentença mal fundamentada e sentença não fundamentada. Revista de Processo. São Paulo, RT, ano 21, n. 81, jan.-mar. 1996. p. 220-225. CARVALHO, Mayara de; SILVA, Juliana Coelho Tavares da. Ressalva de entendimento e valorização da primeira instância no sistema de precedentes brasileiro. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 729-751. CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos Pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de direito comparado. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade O processo constitucional como instrumento de jurisdição constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 03, n. 5 e 6, 2000. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas. Salvador: JusPodiym, 2015. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1965. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINARMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 1998. CLÈVE, Clemerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995. COMOGLIO, Luigi Paolo. Etica e tecnica del giusto processo. Torino: G. Giappichelli, 2004.

Page 311: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

309

COMOGLIO, Luigi Paolo. Il “Giusto Processo” Civile in Italia e in Europa. Revista de Processo: RePro, v. 29, n. 116, jul.-ago. 2004, p. 97-158. COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’ (modelli a confronto). Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte: UFMG, v. 2, n. 2, mar./1998. CORRÊA, Priscila Pereira Costa. Direito e desenvolvimento: Aspectos relevantes do Judiciário brasileiro sob a ótica econômica. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2014. COUTURE, Eduardo. Introdução ao Estudo do Processo Civil: Discursos, Ensaios e Conferências. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2008. CUNHA, Alcides A. Munhoz. Evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, São Paulo, ano 20, n. 77, jan.-mar.1995, p. 224-235. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 193, mar. 2011, p. 255-271. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. Revista de processo. São Paulo: RT, n. 179, jan. 2010, p. 139-174. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Jurisdição e competência. São Paulo: RT, 2008. DAKOLIAS, Maria. O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma. Tradução de Sandro Eduardo Sarda. Banco Mundial. Documento Técnico n. 319. 1996, p. 08. Disponível em: www.anamatra.org.br. Acesso em: mar. 2016. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Lisboa: Meridiano, 1978. DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2007 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Processo Coletivo. v. 4. Salvador: Juspodivm, 2008. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Possibilidade de Sustentação Oral do Amicus Curiae. Revista Dialética de Direito Processual nº 8, out./2003, p. 33-38. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador, Editora JusPodvm, 2010. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael; BRAGA, Paula. Curso de direito processual civil. v. II. Salvador: Juspodivm, 2013. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. O princípio da cooperação: uma apresentação. Revista de Processo. São Paulo, RT, n. 127, 2005. p. 75-79. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Princípio do contraditório: aspectos práticos. Revista de Direito Processual Civil. Curitiba, Gênesis, n. 29, 2003.

Page 312: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

310

DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil: Lei 8.455, de 24-08-92, 8.637, de 31-3-93, 8.710, de 24-9-93, 8.718, de 14-10-93, 8.898, de 29-6-94, 8.950, de 13-12-94, 8.951, de 13-12-94, 8.952 de 13-12-94 e 8.953, de 13-12-94. São Paulo: Malheiros, 1995. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. I. São Paulo: Malheiros, 2001. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. IV. São Paulo: Malheiros, 2004. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2002. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. São Paulo: RT, 2003. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Trad. Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. FIX-ZAMUDIO, Hector. Constituición y Proceso Civil en Latinoamérica. México: Instituto de Investigaciones Juridicas, 1974. FLEXA, Alexandre. MACEDO, Daniel. BASTOS, Fabrício. Novo Código de Processo Civil. Temas inéditos, mudanças e supressões. Bahia: JusPODIVM, 2015. FRANCO, Marcelo Veiga. Processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. FRANCO, Marcelo Veiga. A evolução do contraditório: a superação da teoria do processo como relação jurídica e a insuficiência do processo como procedimento em simétrico contraditório. Revista do Programa de Pós-graduação em Direito da UFBA, Salvador, vol. 22, n. 24, 2012, p. 165-193. GALUPPO, Marcelo Campos. Hermenêutica constitucional e pluralismo. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coord.). Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 47-65. GIDI, Antônio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. GIDI, Antônio. Rumo a um código de processo civil coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

Page 313: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

311

GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no estado constitucional e democrático de direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilização do juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. GONÇALVES, Gláucio Maciel; DUTRA, Victor Barbosa. Apontamentos sobre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas no Código de Processo Civil de 2015. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015 p. 189-202. GONÇALVES, Marcelo Barbi. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a magistratura deitada. Revista de Processo. Volume 222. São Paulo: RT, ago/2013, p. 221-248. GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual. In: SOUZA, Márcia Cristina Xavier de. RODRIGUES, Walter dos Santos (Coord.). O novo Código de Processo Civil: o projeto do CPC e o desafio das garantias fundamentais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. GRECO, Leonardo. A reforma do poder judiciário e o acesso à justiça. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Oliveira Rocha, n. 27, jun. 2005, p. 67-87. GRECO, Leonardo. O princípio do contraditório. In: Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005. p. 541-556. GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2009. GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. v. II.Rio de Janeiro: Forense, 2010. GRINOVER, Ada Pellegrini. Deformalização do processo e deformalização das controvérsias. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. GRINOVER, Ada Pellegrini. Os processos coletivos nos países da civil law. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda (Org). Os processos coletivos nos países da civil law e da common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. HADDAD, Carlos. Acredite: a Justiça pode melhorar, basta bem administrar. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-17/segunda-leitura-acredite-justica-melhorar-basta-bem-administrar Acesso em: 18 jan. 2016.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. HOLANDA, Marcelo Cunha. A possibilidade do controle judicial da adequação do autor coletivo no direito brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual. Belo Horizonte: Editora Fórum, n. 69, jan-mar. 2010, p. 146-165.

Page 314: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

312

JAYME, Fernando Gonzaga. Obstáculos à tutela jurisdicional efetiva. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense. v. 399, 2008, p. 95-110. JAYME, Fernando Gonzaga; FRANCO, Marcelo Veiga. O princípio do contraditório no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 39, n. 227, jan. 2014, p. 335-359. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976. LAMY, Eduardo de Avelar; TEMER, Sofia Orberg. A representatividade adequada na tutela de direitos individuais homogêneos. Revista de Processo, vol. 206, 2012, p. 167-189. LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. LEAL, Roger Stiefelmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo, Primeiros Estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2001. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. O acesso à Justiça como direito humano e fundamental. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª. Região. Belém: TRT 8ª Região, v. 41, ano 80, 2008, p. 91-92. LEITE, Glauco Salomão. Súmula Vinculante e jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. São Paulo: Método, 2005. LÉVY, Daniel de Andrade. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Exame à luz da Group Litigation Order Britânica. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 196, jul/2011, p. 165-205. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984. MACÊDO, Lucas Buril de. A disciplina dos precedentes no direito brasileiro: do anteprojeto ao Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Freddie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2015. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2011.

Page 315: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

313

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. São Paulo: RT, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. Da teoria da relação jurídica processual ao processo civil do Estado Constitucional. In: DIDIER Jr., Fredie e JORDÃO, Eduardo. Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: Editora Juspodivm, 2008, p. 541-574. MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas de processo civil. São Paulo: Malheiros, 2000. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC. Críticas e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. Apresentação. In: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). A força dos precedentes: estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual da UFPR. Salvador: JusPodivm, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo. Revistas dos Tribunais, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. São Paulo: RT, 2013. MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: RT, 2014. MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedente e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: RT, 2015. MARINONI, Luiz Guilherme. O “problema” do incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Vol. 28, n. 5/6, maio/junho 2016, p. 36-46. MATTOS, Luiz Norton Batista. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo CPC. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC, Magistratura, v. 1. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 145-228.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; NETO, Oldilon Romano. O incidente de resolução

Page 316: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

314

de demandas repetitivas (IRDR) e os Juizados Federais. In: GAJORDONI, Fernando da Fonseca. (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC. Magistratura, v. 1.. Salvador: Juspodivm, 2015, p.15- 59. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 243, maio/2015, p. 283-332. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013. MORAES, Anderson Júnio Leal. Audiências públicas como instrumento de legitimação da jurisdição constitucional. Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011. MORAES, Vânila C. A. Demandas repetitivas decorrentes de ações e omissões da administração pública: hipótese de soluções e a necessidade de um direito processual público fundamentado na Constituição. Séries Monografias do CEJ. Brasília: CJF, 2012. MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. NERY JR., Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2010. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada. São Paulo: RT, 2009. NERY JR., Nelson; ABBOUD, Georges. Stare decisis vs direito jurisprudencial. In: FREIRE, Alexandre et al.(orgs.) Novas tendências do processo civil. Vol. I. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 485-514. NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2013. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2010. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008. NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo: horizontes para a democratização processual civil. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito. Belo Horizonte, 2008. NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. Boletim Técnico da Escola Superior de Advocacia - ESA/MG, v. 1, jan/jul. 2004, p. 39-55.

Page 317: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

315

NUNES, Dierle José Coelho. Direito constitucional ao recurso: da teoria geral dos recursos, das reformas processuais e da comparticipação nas decisões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. NUNES, Dierle José Coelho. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva, a litigância de interesse público e as tendências ''não compreendidas'' de padronização decisória. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 199, set 2011. NUNES, Dierle José Coelho. Novo enfoque para as tutela diferenciadas no Brasil? diferenciação procedimental a partir da diversidade de litigiosidades. Revista de Processo. São Paulo, n. 184, p. 109-140, jun. 2010. NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório: uma garantia de influência e de não surpresa. In: DIDIER JR, Fredie. (Org.). Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. v.1. Salvador: Juspodivm, 2007, p. 151-174. NUNES, Dierle José Coelho. Curso de Direito Processual Civil: fundamentação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2011. NUNES, Dierle José Coelho. Precedentes, padronização decisória preventiva e coletivização – Paradoxos do sistema jurídico brasileiro: uma abordagem constitucional democrática. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012. NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre. Tendências de padronização decisória no PLS n. 166/2010: o Brasil entre o Civil Law e o Common Law e os problemas na utilização do “Marco Zero Interpretativo”. In: MAGALHÃES, Flaviane Barros; BOLZAN, José Luiz (Coord.). Reforma de processo civil: perspectivas Constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 75-92. NUNES, Dierle José Coelho; SILVA, Natanael Lud Santos e. Código de Processo Civil. Lei nº. 13.105/2015. Referenciado com os dispositivos correspondentes no CPC/73 Reformado, com os enunciados interpretativos do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e com artigos da Constituição Federal e da Legislação. Belo Horizonte: Fórum, 2015. NUNES, Dierle José Coelho; HORTA, André Frederico. Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015: Uma breve introdução. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; MACÊDO, Lucas Buril de. (coords.) Precedentes. Coleção Grandes Temas do NCPC. V. 3. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 301-333. OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de. OLIVEIRA, Mário Esteves de. Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado. Coimbra: Almedina, 2004. PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência – da divergência à uniformização. São Paulo: Atlas, 2006. PICARDI, Nicola. Il principio del contraddittorio. Rivista di Diritto Processuale. Padova, CEDAM, n. 3, 1998, p. 673-681.

Page 318: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

316

PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre common law, civil law e o precedente judicial. Estudo em homenagem ao Professor Egas Moniz de Aragão. 2007. Disponível em: www.abdpc.org.br. Acesso em: abr. 2016. RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação dos precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. RE, Edward D. Stare Decisis. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Revista Forense, v. 327, 1990. ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. ROMÃO. José Eduardo Elias. Justiça Procedimental: a prática da mediação na teoria discursiva do Direito de Jurgen Habermas. Brasília: Maggiore, 2005. ROSA, Renato Xavier da Silveira. Incidente de resolução de demandas repetitivas: artigos 895 a 906 do Projeto de Código de Processo Civil, PLS n.º 166/2010. Monografia apresentada em Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito. Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010. ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. Ano 37, vol. 208, jun 2012, p. 203-240. ROSSONI, Igor Bimkowski. O incidente de resolução de demanda repetitivas e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso?. Disponível em http://www.tex.pro.br/home/artigos/44-artigos-dez-2010/4740-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocessol.

SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Porto: Afrontamento, 1999. SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manual Leitão; PEDROZO, JOÃO. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 11, n. 30, fev. 1996, p. 29-62. SANTOS, Evaristo Aragão. Em torno do conceito e da formação do precedente judicial. In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 133-201. SANTOS, Marina França. A garantia constitucional do duplo grau de jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

Page 319: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

317

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.

SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Compreendendo os “precedentes” no Brasil: fundamentação de decisões com base em outras decisões. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 38, n. 220, jun. 2013, p. 349-382. SERRA, Umpierre de Mello. Gestão de Serventias. v. 1. Rio de Janeiro: FGV, 1996. SILVA, Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. SILVA, Ticiano Alves e. Intervenção de sobrestado no julgamento por amostragem. Revista de Processo. v. 182. São Paulo: RT, abr. 2010, p. 234-248. SILVA, Ticiano Alves e. Os embargos de declaração no novo Código de Processo Civil. In: MACEDO, Lucas Buril et al (Orgs.). Processo nos Tribunais e Meios de Impugnação às Decisões Judiciais. Coleção novo CPC – Doutrina selecionada. Vol. 06. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 661-684. SOUZA, Artur César de. Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Almedina, 2015. SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2007. STRECK, Lênio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. STURNER, Rolf. Sobre as reformas recentes no direito alemão e alguns pontos em comum com o projeto brasileiro para um novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 193, mar/2011, p. 355-371. TARUFFO, Michele. Precedentes e Jurisprudência. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 199, set. 2011, p. 139-155. TARUFFO, Michele. Le Funzioni delle Corti supreme: cenni generali. Revista Magister de direito civil e processual civil, v. 8, n. 46, jan./fev. 2012, p. 93-115. TARUFFO, Michele. Processo civil comparado. Ensaios. Trad. Daniel Mitidiero. São Paulo: Marcial Pons, 2013. TAVARES, André Ramos. Manual do Poder Judiciário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012. TEIXEIRA, Ludmila Ferreira. Acesso à Justiça Qualitativo. 2012. 195f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, MG, 2012.

Page 320: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

318

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A reforma do Poder Judiciário. In: MARTINS, Ives Gandra; NALINI, José Renato (Coordenadores). Dimensões do direito contemporâneo: estudos em homenagem a Geraldo de Camargo Vidigal. São Paulo: IOB, 2001. p. 55-61. TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Salvador: Juspodivm, 2016. TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993. THEODORO JÚNIOR. Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. BAHIA, Alexandre. Litigiosidade em massa e repercussão geral no recurso extraordinário. Revista de processo, nº 177, p. 09-46, nov., 2009. THEODORO JÚNIOR. Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo. São Paulo, n. 168, p. 107-141, 2009. THEODORO JÚNIOR. Humberto; NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Melo Franco Bahia; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Lei 13.105, de 16.03.2015. Rio de Janeiro: Forense, 2015. THEODORO JÚNIOR. Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim de. REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras linhas sobre o novo direito processual civil brasileiro (de acordo com o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015). Rio de Janeiro: Forense, 2015. THEODORO JÚNIOR. Humberto. O processo justo e as tutelas jurisdicionais proporcionáveis aos direitos substanciais em crise. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, n. 123, jun., 2013, p. 32-61. THEODORO JÚNIOR. Humberto. O processo civil brasileiro: no limiar do novo século. Rio de Janeiro: Forense, 2002. THEODORO JÚNIOR. Humberto. Celeridade e efetividade na prestação jurisdicional: insuficiência da reforma das leis processuais. Revista de Processo, n. 125, jul. 2005, p. 61-78. THEODORO JÚNIOR. Humberto. Direito Processual Constitucional. Revista Estação Científica. Juiz de Fora, v. 01, n. 04, out-nov. 2009, p. 28-43. Disponível em http://portal.estacio.br/media/2654365/artigo%202%20revisado.pdf Acesso em fevereiro de 2016. THEODORO JÚNIOR. Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), jan.-jun. 2010, p. 64-71.

THEODORO JÚNIOR. Humberto. Constituição e Processo: desafios constitucionais da reforma do processo civil no Brasil. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA,

Page 321: A (IN)COMPATIBILIDADE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE

319

Marcelo Andrade Cattoni de (coord.). Constituição e Processo: A contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

THEODORO JÚNIOR. Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da politização do Judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de processo, São Paulo: RT, v. 189, nov. 2010. THEODORO JÚNIOR. Humberto. Repercussão geral no recurso extraordinário (Lei nº.11.418) e súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal (Lei nº 11.417). Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, n.18, maio/jun. 2007, p. 5-32. TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituizione. Milano: Giuffre, 1974. TUCCI, Jogé Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. TUCCI, Jogé Rogério Cruz e. O regime do precedente judicial no novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MACÊDO, Lucas Buril de; ATAIDE JR., Jaldemiro R. de (coords). Precedentes. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 445-458. VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: os dois grandes sistemas legais comparados. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2007. VILELA, Hugo Otávio Tavares. Além do Direito: o que o juiz deve saber. A formação multidisciplinar do juiz. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2015. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Questão de fato e questão de direito. Revista da Academia Paulista de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 3, jan./jun., 2012, p. 235–256. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre o novo art. 543-C do CPC: sobrestamento de recursos especiais “com fundamento em idêntica questão de direito”. Revista de Processo, v. 33, n. 159, maio/2008, p. 215-221. YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 206, abr., 2012, p. 243-270. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário. Crise, Acertos e Desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. Salvador: Juspodivm, 2016. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.