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A MITIGAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO INTRODUÇÃO O crédito, elemento essencial para o desenvolvimento econômico, permite a antecipação das relações comerciais, na medida em que possibilita a troca de um valor atual por uma contraprestação futura, o que acelera a circulação da riqueza. Ampliou-se a utilização desse instituto na Idade Média com o surgimento dos títulos de crédito, documento hábil a permitir a circulação do crédito nele representado. Desde então, os títulos de crédito são extremamente utilizados por facilitarem a circulação das riquezas, bem como por serem regidos por princípios constantes da legislação cambiária que amplamente protegem seus adquirentes. Como bem conceituado pelo doutrinador César Vivante 1 , “título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo, nele mencionado”. Daí podem-se extrair os princípios caracterizadores desse instituto, quais sejam, a cartularidade, a literalidade e a autonomia, acrescentando, ainda, alguns estudiosos sobre o tema, a abstração, a independência, e a inoponibilidade das exceções pessoais. Devido ao princípio da cartularidade, tem-se que o título de crédito deve estar materializado em algo corpóreo e palpável, o que permite a identificação de sua existência e de sua titularidade, viabilizando, assim, a negociação. Desse modo, o titular deve apresentar a cártula para satisfazer a pretensão de exercício dos direitos nela incorporados. Já o princípio da literalidade garante segurança aos participantes da relação jurídica representada no título porque impõe a limitação dos direitos cambiários àqueles expressos na cártula, é dizer, o direito é limitado pelo que o título contém. Por meio do princípio da autonomia das obrigações cambiais, consideram-se autônomas as diversas obrigações constantes do título, razão pela qual o vício em uma delas não invalida as demais. Conforme referido, há autores que consideram a abstração como um quarto princípio dos títulos de crédito, que faz com que a cártula se desvincule do negócio jurídico a ela subjacente, tornando-se abstrata em relação à causa de sua emissão. 1 Apud MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5. 5

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A MITIGAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

INTRODUÇÃO

O crédito, elemento essencial para o desenvolvimento econômico, permite a antecipação das relações comerciais, na medida em que possibilita a troca de um valor atual por uma contraprestação futura, o que acelera a circulação da riqueza.

Ampliou-se a utilização desse instituto na Idade Média com o surgimento dos títulos de crédito, documento hábil a permitir a circulação do crédito nele representado. Desde então, os títulos de crédito são extremamente utilizados por facilitarem a circulação das riquezas, bem como por serem regidos por princípios constantes da legislação cambiária que amplamente protegem seus adquirentes.

Como bem conceituado pelo doutrinador César Vivante1, “título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo, nele mencionado”. Daí podem-se extrair os princípios caracterizadores desse instituto, quais sejam, a cartularidade, a literalidade e a autonomia, acrescentando, ainda, alguns estudiosos sobre o tema, a abstração, a independência, e a inoponibilidade das exceções pessoais.

Devido ao princípio da cartularidade, tem-se que o título de crédito deve estar materializado em algo corpóreo e palpável, o que permite a identificação de sua existência e de sua titularidade, viabilizando, assim, a negociação. Desse modo, o titular deve apresentar a cártula para satisfazer a pretensão de exercício dos direitos nela incorporados.

Já o princípio da literalidade garante segurança aos participantes da relação jurídica representada no título porque impõe a limitação dos direitos cambiários àqueles expressos na cártula, é dizer, o direito é limitado pelo que o título contém.

Por meio do princípio da autonomia das obrigações cambiais, consideram-se autônomas as diversas obrigações constantes do título, razão pela qual o vício em uma delas não invalida as demais.

Conforme referido, há autores que consideram a abstração como um quarto princípio dos títulos de crédito, que faz com que a cártula se desvincule do negócio jurídico a ela subjacente, tornando-se abstrata em relação à causa de sua emissão.

Mais um princípio elencado por parte da doutrina é o da independência, o qual se considera o título de crédito independente de qualquer outro documento representativo da dívida nele inserida, fazendo com que baste por si mesmo.

Por fim, tem-se a inoponibilidade das exceções pessoais que proíbe o devedor de alegar contra o beneficiário do título, visando o não pagamento, exceções que possui com antigos portadores da cártula. Assim, em embargos à execução, pode-se arguir, além de vícios formais do título, apenas matérias pertinentes à relação pessoal com o exeqüente.

1 Apud MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.

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A importância dos princípios acima explicitados para o instituto do título de crédito é extrema, já que eles são essenciais para sua caracterização, por constar do regime jurídico próprio a que se submetem. Assim, eles devem estar presentes a fim de se distinguir esses títulos daqueles meramente representativos de obrigações. Isso porque os títulos de crédito têm tratamento diferenciado, sendo amplamente protegidos para se viabilizar a circulação dos direitos creditórios nele inseridos, escopo do instituto. Ademais, a legislação processual civil garante maior rapidez e eficácia em sua cobrança judicial, os considerando títulos executivos extrajudiciais.

Desse modo, é fundamental a existência dos títulos de crédito para a economia mundial, vez que eles permitem a circulação do crédito de maneira segura. No mesmo sentido, é incontroversa a importância do estudo dos princípios dos títulos de crédito para a caracterização desse instituto jurídico.

No entanto, surge o questionamento sobre a possibilidade de se excepcionar os princípios supra, quebrando parte do dogma que os envolve, sem a descaracterização do título. É esse o ponto fundamental que a presente pesquisa pretende discutir, utilizando-se como referência, fontes doutrinárias e jurisprudenciais.

Para tanto, o trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro aborda questões gerais sobre o título de crédito como sua origem, sua evolução histórica, as legislações aplicáveis ao instituto, suas possíveis formas de circulação, e suas classificações.

O segundo capítulo traz, de forma detalhada, cada um dos princípios dos títulos de crédito, bem como exemplos jurisprudenciais de suas aplicações. Finalmente, o terceiro capítulo discute a possibilidade de mitigação dos princípios dos títulos de crédito, trazendo entendimentos doutrinários e jurisprudências de diversos Tribunais pátrios a respeito do tema.

1 OS TÍTULOS DE CRÉDITO

César Vivante2 definiu os títulos de crédito como sendo “o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo, nele mencionado”. Essa definição é normalmente considerada perfeita e adotada pela unanimidade dos comercialistas. Porém, antes de analisá-la, cumpre tecer alguns esclarecimentos, iniciando-se com o que vem a ser o crédito.

A palavra “crédito” deriva do latim creditum, que por sua vez, decorre de credere, cujo significado é crer, confiar, ter fé. Ela pode ser definida como “a confiança que uma pessoa inspira a outra de cumprir, no futuro, obrigação atualmente assumida”3. Desse modo, pode-se dizer que o crédito é a troca de um valor atual por uma contraprestação futura, antecipando as relações de comércio e acelerando a circulação da riqueza. Por meio dele, aqueles que não possuem dinheiro no momento podem suprir suas necessidades presentes, assumindo a obrigação de pagarem futuramente. Nesse diapasão, para se ter crédito, seus dois elementos fundamentais devem estar presentes: a confiança e o tempo.

Importante ressaltar ainda que o crédito não cria capitais, apenas os transfere, possibilitando a imediata circulação das riquezas. Assim, ele não é um agente de produção vez que, conforme Stuart Mill4, “o crédito não é mais do que a permissão para usar do capital alheio. O crédito não cria capitais como a troca não 2 Apud MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.3 Ibidem, p. 3. 4 Apud REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 358.

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cria mercadorias”. Tem-se a ilusão de que o crédito multiplica o capital porque, por meio dos títulos de crédito, ele pode ser negociado, circulando. Desse modo, quem o possui pode transformá-lo novamente em dinheiro.

Aliás, a função primordial dos títulos de crédito é a circulabilidade, conforme destaca Rosa Júnior5, permitindo a negociação dos direitos ali inseridos, inclusive com a realização de seus valores antes do vencimento. Assim, dentre suas principais características, os diferenciando dos demais títulos representativos de obrigações, segundo ensinamento de Fábio Ulhoa Coelho6, cita-se os fatos de inserirem em seu bojo apenas relações creditícias; de serem considerados pela lei processual civil títulos executivos extrajudiciais, o que facilita a cobrança em juízo; e, por fim, de terem o citado atributo da negociabilidade, adquirido pela facilidade que tem a circulação do crédito representado no título, devido à segurança dada ao adquirente pela legislação cambiária.

1.1 Origem e evolução histórica

Com o surgimento, na Idade Média, dos títulos de crédito, resolveu-se o problema relativo à dificuldade da circulação dos direitos creditórios.

Como o crédito é resultante de uma obrigação, no primitivo direito romano, seu cumprimento era indissociável da pessoa obrigada, que respondia pessoalmente, e não por meio de seu patrimônio. Assim, o próprio corpo do sujeito era utilizado para o pagamento de sua dívida, podendo o credor, se não satisfeito seu crédito, matar o devedor ou vendê-lo como escravo, conforme previa a Lei das XII Tábuas.

Com a evolução do direito, o patrimônio do devedor passou a responder pela dívida, ao substituir a garantia pessoal e corporal. Porém, apenas na Idade Média, devido à intensificação do tráfico mercantil, é que se aperfeiçoaram os títulos de crédito com o surgimento da letra de câmbio, viabilizando assim, a circulação dos direitos creditórios.

Segundo Rubens Requião7, a história dos títulos de crédito foi dividida em três períodos: o período italiano, que durou até 1650; o período francês, de 1650 a 1848 e o período germânico, de 1848 até os dias atuais. Rosa Júnior8 considera que o período germânico durou até 1930, quando se iniciou o período do direito uniforme, que vigora desde então.

O primeiro período se desenvolveu nas cidades marítimas italianas, então centro das operações mercantis, onde se localizavam feiras que atraiam mercadores de diversos lugares. Como cada cidade cunhava sua própria moeda, para a viabilização do comércio, surgiram as operações de câmbio, nas quais se trocavam a moeda trazida, pela da cidade em que se realizava o negócio.

Posteriormente, para não viajarem com grande quantidade de dinheiro, os mercadores passaram a depositar a quantia em um câmbio de sua cidade, com a promessa de que receberiam o valor no seu destino final, por meio do correspondente do banqueiro naquela cidade. Assim, o banqueiro emitia um documento, denominado cautio, que atestava o depósito das moedas e garantia futuro reembolso no local indicado. Emitia também uma carta, a littera cambii, determinando que seu correspondente no local de destino, entregasse o valor àquele

5 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 47.6 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 370-371.7 In Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 378.8 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 40.

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que a possuía. Tal ordem de pagamento deu origem à letra de câmbio, enquanto a cautio originou a nota promissória.

Destaca-se que na operação havia três posições pessoais em relação à letra de câmbio: o sacador, que recebia o dinheiro e entregava a promessa; o tomador, que entregava o dinheiro e recebia a letra e o sacado, mandatário do sacador que deveria pagar. Poderia também existir o mandatário do tomador, encarregado de receber a quantia.

Com o tempo, a littera cambii passou a ser entregue diretamente ao tomador que, na abertura das feiras, a apresentava ao sacado para a aceitação, momento em que este se obrigava ao pagamento da letra, reconhecendo como seu, o débito do sacador. Essa obrigação tinha caráter autônomo à anterior e não desobrigava o sacador, já que, se não cumprida, o credor poderia atestar a mora do sacado ao notário perante uma testemunha, o que lhe dava direito de regresso contra o sacador. Daí o surgimento dos institutos aceite e protesto.

Aproximadamente no ano de 1650 iniciou-se o período francês. Nesse período, a letra de câmbio transformou-se em um instrumento de pagamento, já que qualquer importância que o sacado devia ao sacador, independentemente do motivo, possibilitava a emissão da cambial.

A circularidade do título se intensificou com o surgimento da cláusula à ordem, autorizadora do endosso, que possibilitava ao tomador transferir o título sem a anuência do sacador, porém, como se mandato fosse, “não importando ainda o endosso um direito próprio e autônomo.”9 Assim, o novo possuidor agia em nome do mandante, o que permitia que o devedor alegasse contra ele as exceções pessoais que tinha contra o endossante.

Foi no período germânico, a partir do século XIX, que a letra de câmbio se transformou no título de crédito que hoje é conhecido, ou seja, passou a representar obrigações independentes de contrato preliminar, bastando a simples declaração da vontade do sacado, e o preenchimento dos requisitos legais, para valer o escrito do título. E, por se tratar de um direito autônomo e abstrato, independente da relação que o originou, as exceções oponíveis a antigos possuidores não atingiam os novos. Isto porque, como ensina Wille Duarte Costa10, “o seu possuidor adquire um direito próprio, autônomo, abstrato e independente da relação fundamental, que é o negócio que pode ter dado origem ao título.”

Para Rosa Júnior11, ainda existe uma quarta fase na evolução dos títulos de crédito, que vigora até o presente momento. Denomina-se período uniforme, cujo inicio foi em 1930 com a aprovação da Lei Uniforme de Genebra (LUG), momento em que se uniformizou a legislação cambiária sobre letras de câmbio e notas promissórias, seguindo com a uniformização da legislação sobre cheques, em 1931.

1.2 Legislações aplicáveis

No escopo de se uniformizar a legislação internacional sobre a cambial, facilitando o comércio entre os países, várias conferências foram realizadas, sendo aprovadas em Genebra duas Leis Uniformes, a primeira em 1930 sobre letra de câmbio e nota promissória (LUG) e a segunda em 1931, sobre cheque.

9 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 381.10 In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 13.11 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 46.

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O direito brasileiro adotou as Convenções de Genebra com algumas das reservas12 constantes do Anexo II das Leis Uniformes, tendo estas sido inseridas no ordenamento pátrio por meio dos Decretos n° 57.663 de 24/01/66 e n° 57.595 de 07/01/66. Este último, relativo aos cheques, foi revogado pela Lei n° 7.357 de 02/09/1985, que vigora atualmente.

Porém, a LUG sobre letra de câmbio e nota promissória não revogou integralmente o Decreto n° 2.044 de 31/12/190813, que regula estes títulos, já que ela não disciplina toda a matéria pertinentes a eles. Assim, quando a LUG disciplinar determinada questão, ela será a legislação aplicável, mesmo que o Decreto n° 2.044/08 a trate de modo diverso. No entanto, se a LUG silenciar sobre determinado assunto, ou ele for objeto de reserva adotada pelo Estado brasileiro, aplicar-se-á o Decreto n° 2.044/08.

Cumpre ressaltar ainda que a LUG é aplicada de forma subsidiária, no que couber, às duplicatas, conforme estabelece o artigo 25 da Lei n° 5.474 de 18/07/68, que regula tais títulos.

1.2.1 O Código Civil e a controvérsia de sua aplicabilidade aos títulos de crédito

A Lei n° 10.406 de 10/01/2002, que instituiu o Código Civil, regulamenta os títulos de crédito na Parte Especial, Livro I, Título VIII, artigos 887 a 926. Porém, estabelece o artigo 903 que “salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código”. Assim, a doutrina diverge quanto à possibilidade de aplicação de tais dispositivos já que, atualmente, todos os títulos de crédito existentes possuem legislação específica.

Fábio Ulhoa Coelho14 critica citada regulamentação dizendo que “temos hoje, na codificação civil, um conjunto de preceitos de direito cambiário de importância nenhuma”. Isto porque, entende ele, a teor do artigo 903, essas normas só serão aplicadas se posteriormente uma lei criar, sem regulamentação, um novo título de crédito, o que é improvável, já que os futuros títulos adotarão a “forma despapelizada”15, necessitando, assim, de novas regras, diversas das tratadas no diploma civil, que contempla o princípio da cartularidade ao conceituar título de crédito em seu artigo 887, como se verá posteriormente.

Argumenta, ainda, que, diferentemente do entendimento esposado por parte da doutrina, o Código Civil não introduziu no Direito brasileiro os títulos de crédito atípicos ou inominados, ou seja, aqueles “criados exclusivamente pelas partes, independentemente de previsão legal”16. Isto porque tal diploma legal não dá sustentabilidade para tanto. Assim, conclui dizendo que “se a intenção do legislador era tratar da matéria, fê-lo imprecisamente. [...] Sustento, em suma, que o Código

12 Rubens Requião, in Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 385, ao explicar o significado de reserva, cita o artigo 2°, n° 1, d, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que dispõe: “reserva significa uma declaração unilateral, qualquer que seja sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar os efeitos jurídicos de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado”. Assim, a LUG dispõe, em seu anexo II, as reservas que podem ser adotadas pelos países aderentes.

13 Inteligência do artigo 2º, caput e § 1º, da Lei de Introdução do Código Civil, que assim dispõe: art. 2º “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.” § 1º “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”

14 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 478.15 Ibidem, p. 479.16 Penteado 1995: 33, apud COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva,

2004, p. 481.

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Civil não disciplina os títulos de crédito inominados, que continuam sendo produto exclusivo dos costumes que os criam.”17

No mesmo sentido, ao criticar a regulamentação da lei civil, Wille Duarte Costa18 comenta que “no nosso entender, aquela parte do novo Código Civil tratando dos títulos de crédito é uma aberração e deveria ser excluída.” Tal afirmação é feita porque, citando Mauro Brandão Lopes19, ensina que os títulos atípicos têm menos vantagens que os tradicionais, não sendo passíveis de protesto e nem de ação executiva. Assim, “tais títulos chamados também ‘de crédito’ são, em verdade, imprestáveis, de nada servem”20, não tendo razão de existir. Deste modo, entendendo-se pela impossibilidade de criação de títulos atípicos, a lei civil não teria aplicação, já que os títulos atualmente existentes já possuem regulamentação própria.

Divergindo das posições acima explanadas, e ao que parece com maior razão, Rosa Júnior21 entende que o Código Civil de 2002 inseriu no ordenamento jurídico brasileiro, com a redação de seu artigo 903, a figura do título atípico ou inominado, título de crédito criado pelos costumes, sem lei específica, que se subordina aos princípios gerais instituídos no Código Civil. Mencionado autor, citando Paulo Armínio Tavares Buechele, afirma22:

Assim, o mencionado Código adotou o princípio da liberdade de criação e emissão de títulos atípicos ou inominados, resultantes da criatividade da praxe empresarial, com ‘base no princípio da livre iniciativa, pedra angular da ordem econômica (Constituição de 1988, arts, 1° e 170°)’, visando a atender às necessidades econômicas e jurídicas do futuro, tendo em vista a origem consuetudinária da atividade mercantil.

Tal entendimento deve prevalecer na medida em que a prática comercial tende à criação de novos títulos de crédito ainda não sistematizados. Conforme Fábio Ulhoa Coelho23, não se pode dizer que os títulos inominados “sejam irregulares, ou que não possam ser criados”. A exemplo cita o “FICA ou vaca-papel”, título de crédito amplamente utilizado em negócios pecuários na região Centro-Oeste, e válido como tal, porém, produto exclusivo de costumes.

Com efeito, ao se considerar a existência de títulos de crédito atípicos, como o faz inclusive Fábio Ulhoa Coelho, crítico veemente do tratamento dispensado aos títulos de crédito no Código Civil, não haveria razão para se afastar a aplicação desse Código em tais títulos, alcançando seu disciplinamento à natureza de normas de caráter geral, já que, por serem frutos exclusivos da praxe mercantil, inexistirá regulamentação de lei específica.

Assim também entende o professor Venosa ao enfatizar a intenção do legislador em criar uma teoria geral para os títulos de crédito que, no entanto, não prevalecerá nos casos de conflito com a legislação especial de cada título, o que “aumenta-se a barafunda legislativa que graça o país”24, criticando ao concluir:

17 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 483.18 In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 26.19 Apud COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 24.20 Ibidem, p. 24.21 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 35.22 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 35.23 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 483.24 In Direito civil: contratos em espécie, vol. 1. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 454.

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Na verdade, essa matéria, caldeada no direito costumeiro da Idade Média e da Lei Uniforme de 1930, já estava suficientemente disciplinada no ordenamento pátrio, não havendo necessidade de um Código Civil fazê-lo, aumentando os riscos de conflito de interpretação. Melhor seria que toda essa matéria fosse extirpada do vigente Código, pois sua presença neste estatuto é injustificável em todos os sentidos.25

Deste modo, conclui-se que, não obstante a inconveniência da regulamentação do instituto do título de crédito no Código Civil de 2002, conforme críticas ferrenhas de grande parte da doutrina nacional, não há razões para afastar sua observância, devendo ele ser aplicado subsidiariamente aos títulos nominados, quando a lei específica silenciar sobre determinado assunto, bem como aos títulos atípicos, como normas de caráter geral.

Ademais, cumpre analisar a lei tendo em vista as regras de interpretação normativa e, conforme ensinamento do professor Carlos Maximiliano26:

Não se presumem, na lei, palavras inúteis. Literalmente: ‘Devem-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia.’ As expressões do Direito interpenetram-se de modo que não resultem frases sem significado real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis. [...] Dá-se valor a todos os vocábulos e, principalmente, a todas as frases, para achar o verdadeiro sentido de um texto; porque este deve ser entendido de modo que tenham efeito todas as provisões, nenhuma parte resulte inoperativa ou supérflua, nula ou sem significação alguma.

Assim, levando-se em consideração a regra de hermenêutica jurídica a qual estabelece que a lei não possui palavras vãs, deve-se entender que o Código Civil há de ser aplicado aos títulos que vierem a ser criados sem regulamentação específica, bem como subsidiariamente às normas regulamentares dos já existentes.

1.3 Formas de circulação

Como dito anteriormente, uma das funções primordiais dos títulos de crédito é facilitar a circulação dos direitos creditórios neles inseridos, maximizando, assim, as relações econômicas, ao permitir à grande número de pessoas o acesso ao crédito.

Fran Martins27 bem explica tal objetivo ao afirmar que “nos títulos de crédito, as ordens ou promessas de pagamento não são feitas exclusivamente para benefício de uma pessoa certa, mas de quaisquer outras que, legitimamente, se tornem proprietárias dos títulos”.

Nesse diapasão surgiu o endosso, meio próprio de transferência dos direitos nos títulos de crédito incorporados, cuja finalidade é facilitar a circulação destes, uma vez que se dá com a simples assinatura do legítimo possuidor (endossante) no verso ou anverso do título, transferindo a outem (endossatário) sua titularidade.

Ressalte-se que o endosso só pode ser feito no próprio título, sendo vedada a utilização de documento à parte. Dessa forma, em casos de eventual falta de espaço, poderá ser anexada uma folha para a continuação da cadeia de endossos, 25 In Direito civil: contratos em espécie, vol. 1. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 447.26 In Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: F. Bastos s/a, 1957, p. 311.27 In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 14.

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como possibilita o artigo 13 da LUG, dando-se a esta o nome de alongue, alongamento ou extensão.

Ao transferir o título, salvo disposição expressa em contrário, o endossante se vincula a seu adimplemento, assumindo uma obrigação solidária28 aos demais coobrigados.

Tendo-se em vista que não há sucessão jurídica entre endossante e endossatário, cada obrigação constante da cadeia de endossos é autônoma. Assim, ao endossatário de boa-fé não podem ser opostas exceções pessoais que eventualmente existirem entre as partes das relações jurídicas ocorridas em dita cadeia.

Conforme o artigo 20 da LUG, o endosso póstumo, ou seja, aquele feito após o vencimento do título, equivale ao anterior, sendo que se aplica os efeitos de cessão civil àquele ocorrido após o protesto do título por falta de pagamento, ou depois de expirado o prazo para tanto.

Muito embora o Código Civil, no artigo 914, estabeleça que “ressalvada cláusula expressa em contrário, constante de endosso, não responde o endossante pelo cumprimento da prestação constante do título”, tal regra não deve ser observada em relação aos títulos hoje existentes, haja vista a expressa regulamentação em contrário nas leis especiais que regem a matéria. Assim, para se isentar de responsabilidade no cumprimento da obrigação incorporada à cártula, o endossante deve utilizar-se do endosso com a cláusula “sem garantia”, conforme lhe faculta o artigo 15 da LUG. Pode também proibir novo endosso, oportunidade em que não garantirá “o pagamento às pessoas a quem a letra for posteriormente endossada” (art. 15 da LUG).

O endosso pode ser dado em branco ou em preto, ocorrendo o primeiro quando o endossante não designa o nome da pessoa a quem transfere o título, apenas apostando sua assinatura no verso do mesmo; e o segundo quando o proprietário do título redige o nome daquele a quem o transfere, no verso ou no anverso deste, assinando logo em seguida.

Destaca-se o fato de todos os títulos de crédito poderem circular por meio do endosso, excetuando-se somente os que possuem expressamente a cláusula não à ordem, que, no entanto, não proíbe a circulação da cártula, mas apenas altera o regime jurídico a ser aplicado, que será o de cessão civil, e não o mencionado acima, próprio do direito cambiário. Deste modo, faz-se importante colacionar as diferenças desses dois institutos.

Inicialmente, tem-se o fato do endosso ser ato unilateral e formal, enquanto a cessão é contrato bilateral e pode-se revestir de qualquer forma, inclusive em documento apartado do título.

28 A solidariedade cambial significa dizer que todos que lançarem sua assinatura no título (sacador, aceitante, avalistas e endossantes) são obrigados solidariamente por seu adimplemento. Assim, o beneficiário poderá acionar qualquer dos coobrigados existentes na cadeia de endossos. Do mesmo modo, aquele que pagar a obrigação poderá exigir sua totalidade de seus obrigados anteriores, exercendo o chamado direito regressivo, o que desonerará os obrigados posteriores.

Note-se que a solidariedade cambial difere-se da civil, vez que nesta, o direito de regresso daquele que pagou integralmente a dívida se dá somente em relação à quota parte a que não era obrigado. Maria Helena Diniz, in Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações, vol. 2. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 172, explica que “o co-devedor que satisfez espontânea ou compulsoriamente a dívida, por inteiro, terá o direito de exigir de cada um dos coobrigados a sua quota [...]. Tem o direito de regresso, pois cumpriu além de sua parte (RF, 90:761), e por isso poderá reclamar dos outros a quota correspondente, os quais deverão reembolsá-lo da importância que pagou para extinguir a obrigação solidária passiva.”

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Com o endosso, o endossatário adquire um direito novo e autônomo, desvinculado da relação anterior, de modo que o devedor não poderá alegar contra o beneficiário exceções pessoais que possuía com anteriores portadores; diferentemente do que ocorre na cessão, em que é transferido o próprio direito do cedente, com todos seus possíveis vícios, podendo, portanto, serem opostas pelo devedor quaisquer exceções pessoais que contra ele possuía.

Por fim, tem-se que, em regra, o endossante responde não só pela existência da obrigação, mas também por sua solvabilidade; enquanto na cessão, o cedente responde apenas pela existência do crédito ao tempo de sua transferência, não se obrigando ao adimplemento deste.

Rosa Júnior29 lembra ainda que quanto mais endossos existir no título de crédito, maior será a garantia de seu portador, na medida em que cada endossante é responsável por seu pagamento. Diferentemente, a multiplicidade de cessões diminui a segurança do título, pois o beneficiário ficará sempre sujeito a todas as exceções que poderão ser opostas pelo devedor e por todos os cedentes.

1.4 Classificação

Os títulos de crédito podem ser classificados observando-se diversos critérios, porém, os mais importantes para o presente trabalho são os que consideram a causa de emissão e o modo de circulação.

Quanto à causa de emissão, ou a natureza dos direitos incorporados, dividem-se em abstratos e causais. Fábio Ulhoa Coelho30 ainda acrescenta outra espécie, os títulos limitados.

Tem-se por títulos abstratos, aqueles que podem ser emitidos livremente, já que a lei não predetermina as causas de sua emissão. Uma vez criados, tais títulos se distanciam de sua causa debendi, ou seja, da relação fundamental que embasou sua origem. Assim, posto em circulação, o direito inserido no título vale por si só, o que impede o emitente de opor exceções pessoais que tinha contra o credor originário a terceiro de boa-fé. Exemplos destes títulos são a letra de câmbio, a nota promissória e o cheque.

Já os títulos causais só podem ser emitidos com base em uma causa fixada em lei. Eles “só existem em função de um determinado negócio fundamental”31. Assim, neles deve constar referências sobre o negócio inicial. Nas palavras de Rubens Requião32, “títulos causais são aqueles que estão vinculados, como um cordão umbilical, à sua origem”.

O exemplo típico de título causal é a duplicata, que só pode ser emitida se existir uma compra e venda ou uma prestação de serviços a prazo, nos moldes dos artigos 1º e 20 da Lei das Duplicatas (Lei nº 5.474/68).

Destaca ainda Rosa Júnior33 que, uma vez aceita, a duplicata se libera de sua causa debendi, tornando-se um título abstrato e podendo circular como tal, o que impede o devedor de alegar em embargos, vícios da relação jurídica fundamental.

29 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 225-226.30 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 382.31 MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 21.32 In Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 368.33 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 80.

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Por fim, na classificação posta por Fábio Ulhoa Coelho34, tem-se ainda os títulos limitados, que “são os que não podem ser emitidos em algumas hipóteses circunscritas pela lei”. O doutrinador cita como exemplo a impossibilidade de emissão da letra de câmbio para documentar o crédito do vendedor pela importância faturada ao comprador (artigo 2º da Lei das Duplicatas).

O segundo critério de classificação anteriormente mencionado, leva em consideração o modo de circulação dos títulos, e os divide em nominativos, à ordem, ao portador e não à ordem.

Títulos nominativos, conforme disposto no artigo 921 do Código Civil, são aqueles emitidos em favor de pessoa cujo nome conste do registro do emitente, sendo que sua circulação se faz mediante termo nesse registro, assinado pelo titular e pelo adquirente (art. 922 do CC). Assim, a transferência ocorrerá apenas por endosso em preto ou por cessão, e o devedor não reconhecerá como credor pessoa diversa da especificada em seus registros.

Ao conceituar esses títulos, Vivante35 esclarece que:

os títulos nominativos são títulos de crédito emitidos em nome de uma pessoa determinada, cuja transmissão não é perfeita senão quando se registra nos livros do devedor (entidade emissora). [...] Distinguem-se essencialmente dos títulos de crédito à ordem e ao portador porque se transferem com o freio de sua respectiva inscrição no Registro do devedor, que serve para proteger o titular contra o perigo de perder o crédito com a perda do título.

Wille Duarte Costa36 critica tal classificação ao dizer que os autores que a aceita, apenas cita como exemplo de títulos nominativos as ações de companhia que, para ele, não podem ser consideradas títulos de crédito por não representarem operações de crédito37. Assim, explica que “seu possuidor só adquire os direitos de acionista. O acionista pode votar, ser votado, participar dos lucros sociais, mas não pode acionar a companhia para receber o valor de suas ações. Quando muito, poderá alienar suas ações a terceiros ou em Bolsa”.

Deste modo, tal doutrinador considera ser um “absurdo flagrante” a inserção dessa classificação dentre os títulos de crédito, entendimento esse bastante plausível, por não serem as ações de companhia verdadeiros títulos de crédito. Isso porque a elas não se aplicam seus princípios norteadores:

a) autonomia porque o certificado de ações é apenas documento comprobatório da qualidade de acionista, não tendo natureza constitutiva; b)cartularidade porque a ação não depende, por sua natureza, de uma cártula, tanto que a ação nominativa pode prescindir de certificado, enquanto a ação escritural nem mesmo

34 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 382.35 Apud REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 371.36 In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 76.37 Entendimento também partilhado por Rosa Júnior in Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 83,

ao afirmar que “não nos referimos nesta classificação aos títulos nominativos porque não se confundem com os verdadeiros títulos de crédito, vez que sua propriedade prova-se pelo registro do nome do seu titular no livro de registro do emitente, como, por exemplo, a sociedade anônima, quanto às ações nominativas (LSA, art. 100, I). Além do mais, a sua transferência não se dá por endosso mas por termo de cessão, lavrado também no livro próprio da companhia (LSA, art. 100, II).”

No mesmo sentido, Fábio Ulhoa Coelho in Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 383, ao comentar mencionada classificação coloca que “a solução de Vivante é aplicável ao direito italiano, tendo em vista que o Codice Civile a adota de forma expressa. Para o direito brasileiro, entretanto, não faz sentido”. [grifo do autor]

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pode ter certificado; c) literalidade porque os direitos do acionista fundam-se no estatuto e nas decisões assembleares38.

Passando-se à segunda espécie da classificação, têm-se como títulos à ordem, aqueles que trazem o nome do beneficiário juntamente com uma cláusula indicando que seus direitos inerentes podem ser transmitidos a outrem “(‘Pague ao sr. F. ou à sua ordem...’)”39. Assim, sua transferência se dá por meio de endosso.

Há títulos que possuem essa cláusula implicitamente, como a letra de câmbio e a nota promissória, por dispor o artigo 11 da Lei Uniforme de Genebra que “toda letra de câmbio, mesmo que não envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via de endosso”, disposição também aplicável à nota promissória por força do artigo 77 da mesma lei. Do mesmo modo, a Lei do Cheque, em seu artigo 17, reza que “o cheque pagável a pessoa nomeada, com ou sem cláusula expressa ‘à ordem’, é transmissível por via de endosso”. Assim, independentemente de cláusula expressa, tais títulos podem circular por meio de endosso.

Já os títulos ao portador, são aqueles em que o nome do beneficiário da obrigação não é identificado na cártula, sendo considerado o titular dos direitos nela incorporados quem com ela legitimamente se apresentar. Considera-se como legítima, a posse que pode ser justificada e comprovada, mesmo que o detentor do título o tenha recebido de boa-fé, de alguém que não o possuía legitimamente.

Note-se que a circulação dos títulos ao portador é extremamente facilitada, bastando apenas a simples tradição dos mesmos (art. 904 do CC). Aliás, o objetivo da criação desses títulos foi facilitar tal circulação, uma vez que, ao assumir uma obrigação, o emitente da cártula não o faz apenas com o primeiro beneficiário, mas com todos aqueles que vierem a adquiri-la, já que os títulos de crédito são destinados à circulação.

Importante ressaltar que atualmente, em decorrência da política monetária, a emissão dos títulos ao portador está muito limitada. Isso porque o artigo 19, caput, da Lei nº 8.088/90 (que dispõe sobre a atualização do Bônus do Tesouro Nacional e dos depósitos de poupança) estabelece que “todos os títulos, valores mobiliários e cambiais serão emitidos sempre sob a forma nominativa, sendo transmissíveis somente por endosso em preto”, fixando seu § 2º, a pena de inexigibilidade aos títulos emitidos irregularmente, em inobservância a essa regra. Do mesmo modo, posteriormente, a Lei nº 9.069/95 (que dispõe sobre o Plano Real e o Sistema Monetário Nacional), em seu artigo 69, limitou significativamente a circulação de cheques ao portador ao estabelecer que “fica vedada a emissão, pagamento e compensação de cheque de valor superior a R$ 100,00 (cem reais), sem identificação do beneficiário”. Posteriormente, o Código Civil, no artigo 907, restringiu a emissão de títulos ao portador à expressa autorização de lei especial.

Por fim, têm-se os títulos não à ordem, que são aqueles cuja circulação se dá apenas por meio de cessão civil de crédito, já que proíbe o endosso. Assim, apesar de prejudicar um dos escopos dos títulos de crédito, que é a livre circulação por meio do endosso, esta cláusula não o descaracteriza, já que a operação de crédito continuará existindo.

38 Tavares Borba apud ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 77.

39 MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 15.

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2 PRINCÍPIOS CARACTERIZADORES DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

O vocábulo título tem sua origem no latim titulus, cujo significado é inscrição. Conforme explica Mamede40, em seu sentido estrito, tal palavra traduz a idéia de representação física de um sinal identificador. Um texto que adere à coisa ou à pessoa.

Assim, o título de crédito seria, nas palavras do autor, “o documento, a inscrição materialmente grafada, para o qual se usa como sinônimo a expressão papel, remetendo à base física de sustentação da inscrição jurídica de um crédito, tanto quanto de um débito.”41

No entanto, o título de crédito não é considerado um mero documento, mas um instrumento, na medida em que é confeccionado visando a preconstituição da prova de um ato. Assim, ele deve preencher os requisitos impostos por lei para atingir tal finalidade.

Importante, então, faz-se a caracterização destes títulos para distingui-los de outros meramente probatórios, uma vez que os títulos de crédito, por serem constitutivos de direito destacado de sua causa, possuem regras próprias. São regidos pelo chamado Direito Cambial42, que muitas vezes derroga o direito comum.

Nesse sentido, considera-se como título de crédito “o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado”43. Tal conceito, conforme anteriormente exposto, é considerado perfeito pela maioria dos doutrinadores comercialistas, haja vista incluir os princípios fundamentais que devem estar presentes para a caracterização do título de crédito: a cartularidade, a literalidade e a autonomia.

Além dos mencionados no conceito de Vivante, há autores que elencam outros princípios inerentes aos títulos de crédito, como a abstração, a independência e a inoponibilidade das exceções pessoais.

Fábio Ulhoa Coelho44, ao comentar a importância desses princípios, fundamenta dizendo que:

Como o atributo característico dos títulos de crédito – o elemento que o distingue mais acentuadamente dos demais documentos representativos de obrigações – é a negociabilidade, a facilidade da circulação do crédito documentado; e como esse atributo deriva do regime jurídico a que se submetem, não é incorreto apresentar os seus princípios informadores como fatores essenciais de caracterização dos títulos de crédito, como fazem, por exemplo, Fran Martins (1972:9/15), Rubens Requião (1971, 2:299/300) e Newton de Lucca (1979:47/65).

40 In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 23.41 Ibidem, p. 24.42 Segundo lição de Celso Marcelo de Oliveira, in Tratado de direito empresarial brasileiro. Campinas: LZN, 2004,

p. 130, o Direito Cambial ou Direito Cambiário, que regula os títulos de crédito, pode ser considerado um dos ramos do Direito Empresarial (antigo Direito Comercial), vez que o crédito, muito embora amplamente utilizado nas relações civis, tem natureza mercantil, haja vista que “a princípio, o crédito destinava-se a financiar o consumo e depois, além do consumo, a produção. Financiando as atividades de produção e venda de mercadorias e serviços, tornou-se o crédito um incentivador da economia, assumindo um aspecto mercantil, como ainda de natureza mercantil será o direito que dele se ocupar.”

43 César Vivante apud MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.44 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 372.

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Desse modo, passa-se agora ao estudo desses princípios, cuja importância é fundamental para a caracterização dos títulos de crédito, na medida em que visam proteger o adquirente dos direitos neles representados, viabilizando a circulação dos direitos creditórios, fim precípuo desses títulos.

2.1 Cartularidade

Conforme a definição de Vivante acima esposada, o documento é necessário para o exercício dos direitos inseridos no título de crédito. Daí a referência ao princípio da cartularidade, que impõe a apresentação da cártula, “isto é, o papel em que se lançaram os atos cambiários constitutivos de crédito”45 para a satisfação da pretensão de exercício dos direitos nela incorporados.

Infere-se daí a necessidade do título de crédito se materializar em um documento escrito, devendo ser algo corpóreo e palpável. Não podendo, portanto, ser uma declaração oral, como exemplifica Fran Martins46, ainda que essa declaração seja gravada e possa ser reproduzida a qualquer momento.

Isto porque é essa materialização do crédito, por meio de sua representação gráfica, que permite a identificação de sua existência e de sua titularidade, viabilizando a negociação e, portanto, sua circulação.

De acordo com Amador Paes de Almeida47, “em razão da cartularidade, título e direito se confundem, tornando imprescindível o documento para o exercício do direito que nele se contém”.

Tamanha é a importância desse princípio que não é admitida nem mesmo a cópia autenticada do documento para o exercício dos direitos nele mencionados, já que não haverá certeza quanto à titularidade do crédito, haja vista que o título pode ter sido endossado após a extração de sua cópia. Deste modo, sem a exibição material do título de crédito, não pode o credor exigir o direito nele incorporado.

Assim, a cópia do título não serve para embasar execução forçada, conforme se extrai do artigo 614, inciso I, do Código de Processo Civil que assim reza: “cumpre ao credor, ao requerer a execução, pedir a citação do devedor e instruir a petição inicial: I – com o título executivo, salvo se ela se fundar em sentença (artigo 584)”.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça não é diverso do acima colocado, a exemplo do julgado no Recurso Especial 337822, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi48, cujo acórdão dispõe que “a juntada da via original do título executivo extrajudicial é requisito essencial à formação válida do processo de execução e visa assegurar a autenticidade da cártula apresentada, bem como afastar a hipótese de ter o título circulado”.

No mesmo sentido, ao comentar o artigo supra, Paulo Henrique Lucon49 argumenta:

Na execução de título extrajudicial, o título deve acompanhar a petição inicial, sob pena de indeferimento. [...] Pelo aspecto

45 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 372.46 In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.47 In Teoria e prática dos títulos de crédito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 4.48 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 337822/RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Brasília, DF, 20

nov. 2001. DJ 18/02/2002, p. 424.49 In MARCATO, Antônio Carlos (coord.). Código de processo civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2004, p. 1822.

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formal do dispositivo em análise, o exeqüente deve juntar o original do título. Sobretudo nas cambiais, a jurisprudência rejeita execução instruída com cópia reprográfica do título, porque ‘restando em poder do credor, pode ensejar a circulação’ (STJ, 3ª T. REsp 33530-2-PR, 26.4.1993, rel. Min. Dias Trindade, DJU 24.3.1993, p. 10008). A circulação da cambial permite a alteração da legitimidade ativa da execução.

Desse modo, para o exercício do direito creditório, seu titular deve comprovar que se encontra na posse do documento apresentando-o ao devedor, ou em juízo, no caso de execução forçada. Por tal motivo, o título de crédito é considerado um título de apresentação. Vale dizer que o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação mediante a apresentação do título para que o devedor verifique:

a) se o documento reveste-se dos requisitos essenciais para que valha como título de crédito; b) se o valor cobrado pelo portador é aquele contido no título; c) se a pessoa que apresenta o título é ‘portadora legítima’, isto é, se justifica o seu direito por uma cadeia regular de endossos (LUG, art. 16, al. 1ª, e LC, art. 22).50

Isso ocorre porque é extrema a facilitação da circulação do título de crédito, permitindo que qualquer pessoa possa ser o titular dos direitos nele incorporados, havendo grande “variabilidade subjetiva ativa”51, característica intrínseca dos títulos de crédito.

Assim, ao pagar o título, o devedor deve exigir que esse lhe seja entregue, tanto para possibilitar o exercício de eventuais direitos de regressos existentes; bem como para evitar que haja circulação da cártula após seu adimplemento, o que o obrigaria a pagar novamente, já que, em conformidade com os princípios de regência dos títulos de crédito, considera-se inaplicável aos títulos de crédito o disposto no artigo 309 do Código Civil, que tem por teor: “o pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era credor”.

Desse modo, o devedor somente se desobriga ao efetuar o pagamento ao portador legítimo52 do título, ou seja, àquele cuja titularidade se justifica por uma série ininterrupta de endossos (art. 16 da LUG); e o resgatar. Daí porque o título de crédito é considerado título de resgate. É dizer, ao efetuar o pagamento e recuperar o título, o devedor liberta-se do débito que outrem – possuidor legítimo – tinha contra ele.

Por fim, ressalte-se que há doutrinadores que preferem à cartularidade o termo incorporação, a exemplo de Wille Duarte Costa53, Rosa Júnior54

e Eunápio Borges55. Argumentam que o título de crédito incorpora o direito cambiário de tal forma que este não pode ser exercido sem a apresentação daquele e, ao se transferir o título, transfere-se, em conseqüência, a titularidade do crédito. Assim,

50 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 55.51 MAMEDE, Gladston. Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 37.52 Dispõe o artigo 40 da LUG: “Aquele que paga uma letra no vencimento fica validamente desobrigado, salvo se da

sua parte tiver havido fraude ou falta grave. É obrigado a verificar a regularidade da sucessão dos endossos mas não a assinatura dos endossantes”. No mesmo sentido está o artigo 39, caput da Lei dos Cheques: “O sacado que paga cheque ‘à ordem’ é obrigado a verificar a regularidade da série de endossos, mas não a autenticidade das assinaturas dos endossantes...”

53 In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 70.54 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 64.55 In Título de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 12.

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explica Rosa Júnior56 que sem a incorporação “não há que se falar em cartularidade porque se o portador necessita apresentar o título para exercer o direito cambiário (cartularidade), é porque este (direito cambiário) materializa-se, incorpora-se no título (incorporação)”.

Todavia, observa-se da definição acima colocada que não há diferenças significativas entre as conceituações de cartularidade e incorporação, vez que ambas levam a mesma conclusão: a materialização do direito na cártula, impossibilitando, conseqüentemente, o exercício dos direitos nela mencionados sem sua apresentação.

2.2 Literalidade

O princípio da literalidade impõe a limitação do exercício dos direitos cambiários aos elementos expressamente mencionados no título de crédito, o que significa dizer que vale apenas o que nele está escrito.

Messineo, citado por Fábio Ulhoa Coelho57 explica que “o direito decorrente do título é literal no sentido de que, quanto ao conteúdo, à extensão e às modalidades desse direito, é decisivo exclusivamente o teor do título”.

Deste modo, quem adquire a cártula possui extrema segurança quanto a seu valor e a seus devedores, podendo cobrar de todos, e somente dos que apuseram sua assinatura na mesma. O direito é limitado pelo o que na cártula se contém. “Assim, só existe para o mundo cambiário o que está expresso no título”58.

Segundo ensinamento de Rosa Júnior59, “o princípio da literalidade explica-se pelo rigor formal que caracteriza o título de crédito, objetivando a proteção do terceiro de boa-fé porque a forma do título determina a natureza e a extensão da obrigação cambiária do subscritor”. [grifo do autor]

Mencionado princípio decorre do fato do título de crédito ser um instrumento formador de novo direito, e não apenas documentativo de relação jurídica anterior. Nessa esteira, tem-se que “tudo o que está escrito no título tem valor e, conseqüentemente, o que nele não está escrito não pode ser alegado”60. Assim, há o impedimento de que se oponha ao portador de boa-fé matérias pertinentes à relação causal originária do título em que ele não tenha participado, e não constante nesse, protegendo tal portador e facilitando a circulação da cártula, observando-se para cada uma das espécies, a legislação pertinente.

Celso Marcelo de Oliveira61 explica esse fato aduzindo que:

se a titularidade do direito não repousa sobre uma relação jurídica estabelecida com o devedor, nem sobre a sucessão dessa relação, mas sobre a propriedade do título, é natural que os limites do direito sejam expressos pela letra do documento, tendo em vista a incorporação do crédito ao documento.

Nesse contexto, a literalidade limita tanto o conteúdo da pretensão acionável pelo portador da cártula, como as matérias de defesa que poderão ser alegadas pelos devedores.

56 In Título de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 65.57 Apud Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 374.58 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 60.59 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 61.60 MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol.1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 7.61 In Tratado de direito empresarial brasileiro. Campinas: LZN, 2004, p. 142.

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A jurisprudência reafirma mencionado princípio em várias oportunidades, a exemplo do acórdão do Superior Tribunal de Justiça abaixo transcrito, de relatoria do Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, em julgamento do Agravo Regimental 436603/SP no Agravo de Instrumento 5600-5:

Direito Processual Civil. Ação de execução baseada em notas promissórias. Embargos do devedor em que se alega o pagamento parcial dos títulos. Quitação que não consta de documentos avulsos nem do próprio título, que, além disso, estava em poder do credor. Prova testemunhal cuja produção não interessa ao feito, em virtude do princípio da literalidade. I – A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” (Súmula nº 7/STJ). II – Agravo regimental desprovido62.

No presente julgado, o Ministro relator salientou o fato de que eventual quitação parcial do débito representado pelo título deveria estar anotada na cártula e, como tal não ocorreu, não há necessidade de oitiva de testemunhas na tentativa de provar alegada quitação, uma vez que se conclui pela inocorrência dessa, haja vista o princípio da literalidade que informa o direito cambial.

2.3 Autonomia

Ainda segundo o conceito de Vivante dantes transcrito, os títulos de crédito têm como característica a autonomia das obrigações cambiais, o que significa dizer que o cumprimento de uma obrigação assumida no título não está vinculado a qualquer outra nele existente. Desse modo, não pode o devedor alegar contra terceiro de boa-fé, visando se esquivar do pagamento, vício em relação constituída antes da sua, tampouco na relação fundamental que embasou a emissão do título.

Assim tem-se que “cada obrigação que deriva do título é autônoma em relação às demais”63, o que permite a segurança na circulação da cártula.

Devido ao principio da autonomia das obrigações cambiais, apenas a título exemplificativo, se uma pessoa assina um título de crédito avalizando um obrigado anterior, a posterior descoberta de que a assinatura do avalizado era falsa, não invalidará a obrigação de pagamento do título assumida pelo avalista no momento em que apostou sua assinatura no mesmo, já que cada obrigação constante da cártula possui autonomia em relação às demais64.

Ainda, nas palavras de Wille Duarte Costa65:

Criado um título de crédito por um incapaz sua validade permanece, principalmente quando for transferido a terceiro de boa-fé. O incapaz não se obriga, mas, existindo outras obrigações válidas no título, os demais signatários ficam obrigados, em razão da autonomia das obrigações.

Importante ressaltar que muitos doutrinadores, bem como a jurisprudência, considera que tal princípio traduz, além da autonomia das diversas

62 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. AgRg no Ag 436603/SP. Relator: Antônio de Pádua Ribeiro. Brasília, DF, 05 set. 2002. DJ 28/10/2002, p. 313.

63 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 360.64 Assim reza o artigo 7º da LUG: “Se a letra contém assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras,

assinaturas falsas, assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer outra razão não poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome das quais ela foi assinada, as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas.”

65 In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 73.

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obrigações assumidas no título, a autonomia do próprio título em relação à sua causa debendi, ou seja, ao negócio jurídico que o originou66. Essa segunda interpretação é chamada, por alguns autores, de abstração dos títulos de crédito, e por outros, de princípio da independência, como a seguir se demonstrará.

Nesse sentido, a autonomia dos títulos de crédito é explicada por serem esses constitutivos de nova obrigação, diversa do negócio jurídico que fundamentou sua criação. Rosa Júnior67 explica dizendo que “as relações causal e cartular não se confundem, embora coexistam harmonicamente porque a criação do título de crédito não implica em novação no que toca à relação causal, vez que esta não se extingue”. [grifo do autor]

Mamede68 explica mencionado princípio aduzindo que:

É precisamente a situação dos títulos de crédito que, por suas particularidades técnicas, devem ser compreendidos em si e não como parte de um outro negócio. É isso que se entende por autonomia do título de crédito. Apesar do título possuir uma história, de ser fruto de um negócio, como um empréstimo (mútuo), uma compra e venda, uma prestação de serviço, um pagamento etc., considera-se a cártula como uma declaração autônoma do devedor, comprometendo-se a solver a obrigação ali certificada.

Nesse diapasão, considerando a cártula autônoma em relação à obrigação que fundamentou sua emissão, é que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a discussão em juízo do contrato embasador do título não impede sua execução, verbis:

RECURSO ESPECIAL. TÍTULO DE CRÉDITO. REVISÃO DE CONTRATOS A QUE OS TÍTULOS ESTÃO VINCULADOS. PRECEDENTE DA CORTE. 1. Como é de comum sabença, o título de crédito goza de autonomia e esta não se abala pelo fato de estar ele preso a um determinado contrato. 2. O ajuizamento de uma ação para a revisão de contrato não tem o condão de invalidar o título de crédito, retirando-lhe a configuração de título apto a apoiar a execução, revestido das características de líquido, certo e exigível. 3. Recurso especial conhecido e provido.69

Ademais, tem-se que quem se obriga, o faz por ato unilateral de vontade, o que impede que posteriormente venha alegar, na tentativa de se eximir do adimplemento da obrigação, matéria diversa da estipulada no artigo 51 do Decreto 2.044/1908 que assim dispõe: “na ação cambial, somente é admissível defesa fundada

66 Rubens Requião, in Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 360, considera o título de crédito autônomo “(não em relação à sua causa, como às vezes se tem explicado)”, mas, segundo Vivante, porque o possuidor de boa-fé exercita um direito próprio”. Entendimento esse também partilhado por Fábio Ulhoa Coelho in Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 375-376.

No mesmo sentido, Fran Martins in Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 09-10, argumenta que “a abstração tem sido confundida com a autonomia mas, na realidade, são coisas diferentes”, explicando que os direitos são abstratos porque independem do negócio que deu origem ao título, enquanto a autonomia “faz com que as obrigações assumidas sejam independentes uma das outras”.

67 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 66.68 In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 42.69 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 57169/RS. Relator: Carlos Alberto Menezes Direito.

Brasília, DF, 10 mar. 1997. DJ 22/04/1997, p. 14422.

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no direito pessoal do réu contra o autor, em defeito de forma do título e na falta de requisito necessário ao exercício da ação”.

Deste modo, o devedor só pode opor as exceções pessoais que possui com quem se relaciona diretamente no título. E, segundo ensinamento de Rosa Júnior70, essa autorização se explica por evitar que o devedor cambiário pague o constante do título e em seguida intente ação extracambial para reaver o valor pago, no caso do credor cambiário ter descumprido a obrigação assumida na relação causal.

Referido autor conclui dizendo que “a possibilidade legal do devedor poder opor exceção pessoal ao credor, com quem se relaciona diretamente no título, não implica em negação da autonomia cambiária”, mas prestígio ao princípio da economia processual.

Conforme se verifica do julgado abaixo transcrito, o Superior Tribunal de Justiça consagra o princípio ora em comento ao aplicá-lo em suas decisões:

COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. COMPRA E VENDA IMOBILIÁRIA. CHEQUES DE PAGAMENTO. ENDOSSO A TERCEIRO DE BOA-FÉ. NEGÓCIO SUBJACENTE. AUTONOMIA DA CÁRTULA. RECONHECIMENTO EM ACÓRDÃO DO STJ. POSTERIOR RESCISÃO DO NEGÓCIO IMOBILIÁRIO. AÇÃO MOVIDA EXCLUSIVAMENTE CONTRA O VENDEDOR. SENTENÇA PASSADA EM JULGADO QUE DECRETOU O DESFAZIMENTO DO CONTRATO E A NULIDADE DOS CHEQUES. INOPONIBILIDADE CONTRA O PORTADOR DOS TÍTULOS DE CRÉDITO. PARTE ESTRANHA À RESCISÃO. EMBARGOS À ARREMATAÇÃO. IMPROEDÊNCIA. CPC, ART. 746. I. Reconhecido pelo STJ, em julgamento de embargos à execução, que os cheques endossados a terceiro de boa-fé, constituíam títulos autônomos em relação ao compromisso de compra e venda em que era comprador o emitente das cártulas, impossível opor-se à cobrança, que prosseguiu então, embargos à arrematação calcados em sentença proferida posteriormente à penhora, em ação de rescisão do aludido contrato. II. Errônea aplicação do art. 746 do CPC, eis que a decisão singular que desfez o compromisso e declarou nulos os cheques emitidos pelo comprador-executado, por que movida exclusivamente contra o vendedor, não tem efeito contra o exeqüente, portador dos cheques, que não integrou a lide. III. Recurso especial conhecido e provido, para julgar improcedentes os embargos à arrematação, ressalvado o direito de regresso do recorrido contra o vendedor do imóvel, que endossou os cheques ao terceiro de boa-fé.71

O fato trazido à colação trata da emissão de cheques para pagamento de imóvel, que foram posteriormente sustados, por descobrir o emitente que o vendedor não era legítimo proprietário do imóvel objeto do contrato de compra e venda. Ocorre que os títulos já haviam sido endossados e, como as obrigações assumidas perante a cártula são autônomas entre si, negou o colendo Superior Tribunal de Justiça a possibilidade do emitente se esquivar do pagamento ao portador de boa-fé, alegando o não cumprimento do contrato da relação fundamental.

70 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 67.71 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 50607/MT. Relator: Aldir Passarinho Júnior. Brasília,

DF, 04 nov. 1999. DJ 06/12/1999, p. 93.

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Deste modo, não obstante o juízo de primeira instância ter declarado a nulidade dos títulos cambiais emitidos pelo autor para cumprimento de contrato que foi rescindido judicialmente, entendeu o STJ que tal nulidade aplica-se somente às partes do negócio jurídico anulado, não atingindo, por conseguinte, o terceiro portador de boa-fé dos cheques.

Clara foi a explicação do Ministro-Relator Aldir Passarinho Júnior:

Acontece, porém, que a relação que se põe nos presentes autos, que cuidam de embargos à arrematação, se dá entre o comprador-emitente das cártulas, Manoel Cândido Ferreira, e o portador dos cheques, Walter de Mello. O acórdão do STJ discutiu exatamente esta relação litigiosa, e validou os cheques como títulos autônomos. O mesmo não ocorreu, todavia, com a decisão singular que apreciou a ação de rescisão do compromisso. Ela, como frisado, desconstituiu a avença e declarou nulos os cheques, mas isso apenas com referência às partes então contratantes, José Ferreira da Silva (vendedor) e Manoel Cândido Ferreira (comprador). [grifo do autor]

Assim, como exemplifica os julgados acima dispostos, a jurisprudência, em conformidade com a doutrina, inclusive com o conceito de títulos de crédito dado por Vivante, consagra o princípio da autonomia das obrigações cambiárias dos títulos de crédito.

2.4 Abstração

Há autores que elencam ainda, dentre os princípios caracterizadores dos títulos de crédito, a abstração, que deve ser entendida como a desvinculação do título ao negócio jurídico a ele subjacente.

Whitaker, citado por Amador Paes de Almeida72, ao explicar a eficácia cambiária que possui o título, independentemente de sua causa debendi, o que ocorre devido ao princípio da abstração, coloca que “a obrigação cambial não é, certamente, uma obrigação sem causa, mas é uma obrigação cuja causa é a letra, e sobre a causa da letra nenhuma influência direta pode exercer.”

Fábio Ulhoa Coelho73 considera a abstração cambiária como um subprincípio da autonomia dos títulos de crédito, por entender que, assim como o subprincípio da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, nada acrescenta ao já estipulado pelo princípio da autonomia, argumentando que ambos “correspondem a modos diferentes de se reproduzir o preceito da independência entre as obrigações documentadas no mesmo título de crédito”.

Pelo presente princípio tem-se que os títulos de crédito originam direitos abstratos dos existentes na relação fundamental, o que leva à conclusão de que esta não poderá ser alegada na tentativa de invalidar a prestação constante da cártula, tendo em vista que para exigi-la, não é necessário o cumprimento de qualquer contraprestação.

Deste modo, não interessa para o portador de boa-fé a ocorrência de vícios ou eventuais nulidades na relação fundamental que embasou a emissão do título, já que, uma vez posto em circulação, tais defeitos não poderão ser opostos para o não cumprimento da obrigação nele materializada. Assim, se protege a 72 Apud Teoria e prática dos títulos de crédito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 6. 73 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 376.

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circulação do crédito, que, como anteriormente dito, é o escopo dos títulos de crédito. Este é o ensinamento de Ascarelli74, verbis:

A cambial visa tornar possível a circulação desse crédito. É essa a sua função econômica e é esse o interesse que tipicamente preside a sua criação. Ela, portanto, deve ser disciplinada de modo a poder ligar-se a operações diversas e a poder, preenchendo sempre aquela função, satisfazer os vários fins exigidos pelas diversidades das situações concretas; isso equivale justamente a afirmar a sua abstração.

No entanto, a desvinculação do título com o negócio subjacente só se dará com sua circulação, ou seja, “só quando é transferido para terceiros de boa-fé, opera-se o desligamento entre o documento cambial e a relação em que teve origem”75.

Todavia, destaca-se, a abstração não é característica intrínseca a todos os títulos de crédito, mas tão-somente àqueles cuja emissão independe de qualquer causa, como exemplo a letra de câmbio, a nota promissória e o cheque. Já os títulos causais, ou seja, os que têm a causa de emissão determinada, como a duplicata, por se referirem ao negócio fundamental, as exceções dele decorrentes, passam a ser cartulares, via de conseqüência, permitidas.

Esclarece Bulgarelli76 que “a causa do título causal só poderá ser oposta aos que foram parte na relação fundamental, e ao terceiro ciente do vício do negócio fundamental”, ajudando a proteger a circulação também desses títulos. No entanto, admitindo tal teoria, não haveria diferença significativa entre a aplicação do princípio da abstração nos títulos abstratos e nos títulos causais, uma vez que em ambos ela se revelaria após a circulação.

Assim, melhor entendimento é o defendido por Rosa Júnior77 que considera o título causal vinculado à causa de sua criação predeterminada em lei, sendo que, no caso da duplicata, ela se torna um título abstrato com a aceitação do sacado, que a libera de sua causa debendi.

No mesmo sentido, Rubens Requião78 coloca que se o comprador aceitar a duplicata e o título for operado com terceiro, o aceitante não poderá opor a este exceção do contrato não cumprido, citando precedente do Supremo Tribunal Federal em que se estabelece que as duplicatas “conservam sua liquidez quando, devidamente aceitas, se encontram em poder de terceiro de boa-fé, não obstante a rescisão do contrato com que esteve relacionada sua emissão (Rec. Extr. Nº 71.096-SP, Rel. Min. Bilac Pinto, 2ª Turma, in Rer. Trim. de Jurisp., 56/673)”.

Diverso não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que se manifestou ao julgar o Recurso Especial 43849/RS79, de relatoria do Ministro Salvio de Figueiredo Teixeira, cujo ensinamento do voto passa-se a expor:

as duplicatas sem aceite não possuem abstração, podendo o sacado não-aceitante opor a falta de causa também ao endossatário-portador que as haja recebido nessas condições

74 Apud BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 61.75 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 377.76 In Títulos de crédito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 65.77 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 80.78 In Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 551.79 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 43849/RS. Relator: Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Brasília, DF, 28 mar. 1994. DJ 09/05/1994, p. 10880.

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sem certificar-se quanto ao efetivo aperfeiçoamento do negócio mercantil subjacente. [...] O aceite [...] constitui requisito sem o qual a duplicata não se reveste de abstração.

Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios demonstrou tal entendimento ao julgar o acórdão 17945580, cujo Desembargador-Relator José Divino de Oliveira, ao mencionar a duplicata aceita pelo sacado explica:

Assim sendo, de título meramente causal, por conseguinte cambiariforme, o referido documento transmudou-se em perfeito título cambiário, podendo, portanto, circular por intermédio do endosso, pois agora abstrato, desvinculado da causa de sua emissão, o saque fundado em crédito decorrente de contrato de compra e venda mercantil ou de prestação de serviços. Além da abstração, a duplicata já aceita pelo sacado é revestida dos demais atributos dos títulos de crédito, como a literalidade, cartularidade, autonomia etc, não podendo o sacado opor exceções pessoais ao portador de boa-fé, sendo que tal defesa é oponível somente em face do credor direto, o sacador, isto em homenagem à segurança da “circulação e negociabilidade dos títulos de crédito”, na precisa lição de Rubens Requião. [grifo do autor]

Assim, há de se entender que, apesar da duplicata ser um título causal, ela pode se desvincular da causa de sua emissão revestindo-se do princípio da abstração, porém, para que tal ocorra não basta sua circulação, mas sua aceitação pelo sacado, que participou do negócio fundamental.

2.5 Independência

Devido ao princípio da independência, considera-se que o título de crédito basta por si mesmo, não necessitando de qualquer outro documento para representar o crédito nele inserido. Oportuna é a conceituação de Mamede81 sobre o tema:

A independência do título, portanto, é a tradução técnica de uma relação direta e exclusiva entre o respectivo papel (a cártula) e o crédito: a cártula, independentemente de qualquer outro documento, traduz o crédito, bastando para sua representação e dispensando a remissão a qualquer outro documento ou instrumento.

No entanto, a característica ora em comento não é comum a todos os títulos, eis que alguns dependem de documentos complementares, a exemplo da cédula de crédito rural.

Bulgarelli82 leciona que a dependência do título pode decorrer:

a) da vontade das partes – quando referem no corpo do título a existência de outro documento, insertando-o na cártula por via da literalidade; b) de imposição legal, ou seja, quando é determinada por lei a ligação do título com outro documento,

80 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 1ª Turma Cível. Acórdão nº 179455. Relator: José Divino de Oliveira. Brasília, DF, 04 ago. 2003. DJ 15/10/2003, p. 30.

81 In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 44.82 In Títulos de crédito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 59.

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como ocorre, por exemplo, na cédula de crédito rural que a Lei vincula ao orçamento (Decreto-lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967); e c) resultar da própria substância e conformação do negócio e do título, como ocorre, por exemplo, com as ações de emissão das sociedades por ações, as quais, como título de participação, são complementadas necessariamente pelo estatuto da sociedade emissora.

Cumpre esclarecer que nem todos os autores adota tal princípio como mais um atributo dos títulos de crédito, já que inserem sua conceituação nos princípios da autonomia, ou da abstração, como também o faz a jurisprudência pátria, em conformidade com os acórdãos anteriormente citados. No entanto, há aqueles que preferem diferenciá-lo, a exemplo de Rubens Requião83, Rosa Júnior84, Bulgarelli85 e Mamede86, entendendo serem conceitos complementares.

2.6 Inoponibilidade das exceções pessoais

O já citado princípio da autonomia das obrigações cambiárias dá origem a mais uma característica dos títulos de crédito: a inoponibilidade das exceções pessoais, razão pela qual Fábio Ulhoa Coelho87 a classifica como um subprincípio desses títulos.

Devido a tal atributo, é defeso ao executado alegar, em embargos, matérias que não constem de sua relação pessoal com o exeqüente. Destarte, circulada a cártula, o devedor não pode se escusar de seu pagamento argumentando exceções que possui com o sacador ou com outro obrigado do título. Assim determina o artigo 17 da LUG, verbis:

As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.

Aliás, em conformidade com o entendimento jurisprudencial pátrio, o egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios consagra esse princípio em seus arestos, a exemplo do abaixo transcrito, de relatoria do Desembargador Romeu Gonzaga Neiva:

EMBARGOS À EXECUÇÃO – COMPRA DE PONTO COMERCIAL – CONDIÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE ÔNUS ANTERIOR À NEGOCIAÇÃO – CHEQUES SUSTADOS PARA COBRIR DÉBITOS – IMPOSSIBILIDADES. 01. “Sendo o cheque autônomo e representativo de ordem de pagamento à vista, não se discute a prova do motivo de não pagamento mesmo quando fundado em ausência de transação com o portador” (CF. RT. 562/224). 02. “O cheque é ordem de pagamento a quem a cártula indicar ou ao portador. Conseqüentemente, se houve circulação, não pode o seu emitente opor as exceções pessoais que poderiam ser opostas ao primitivo beneficiário” (APC 46.776/97, Rel. Des. Romão C. Oliveira). 03. Apelação desprovida. Unânime.88

83 In Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 360.84 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 71.85 Op. cit., p. 59.86 In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 44.87 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 378.

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Entretanto, ressalte-se, tal regra não será observada se o beneficiário do título estiver imbuído de má-fé, oportunidade em que, além das exceções advindas da própria cártula, como defeito de forma, o devedor poderá opor as que possuía contra o anterior portador.

O professor Fábio Ulhoa Coelho89 entende que, para a caracterização da má-fé, basta que o adquirente do título tenha ciência da existência de exceções que poderão ser opostas ao endossante. Assim, não se exige a comprovação de conluio entre endossante e endossatário para que o devedor afaste a inoponibilidade e alegue contra o último as defesas que possui contra o primeiro. Importante é a conclusão de referido autor ao ensinar:

Note-se que o conhecimento pelo terceiro, da insatisfação do devedor cambial, em relação ao negócio originário, não é causa desconstitutiva do direito creditício. Apenas amplia os limites da matéria admitida à discussão em juízo. Se o devedor cambial não tem razão em suas alegações, ele deve pagar o portador do título, ainda que o último tivesse, ao tempo da circulação, conhecimento da insatisfação dele com a relação fundamental.

Porém, observa-se que o artigo 17 da LUG exige, para o afastamento da inoponibilidade, que o portador tenha “procedido conscientemente em detrimento do devedor”, motivo pelo qual não basta o simples conhecimento da exceção, como compreende Fábio Ulhoa Coelho. É necessário o dolo, a finalidade de prejudicar o devedor. Esse é o entendimento defendido por Fran Martins90 ao explicar:

Assim, se o portador sabia que ao seu antecessor seriam oponíveis exceções pessoais pelo devedor, e com a finalidade de prejudicar a este recebeu o título, o devedor pode opor as exceções que teria contra o portador anterior, demonstrado que seja que a aquisição do título teve por finalidade prejudicar o devedor.

Ademais, como é cediço, a má-fé não se presume. Não basta a simples alegação de que havia prévio conhecimento pelo adquirente do descumprimento da relação fundamental, necessário se faz a efetiva demonstração da finalidade de prejudicar o devedor.

3 A MITIGAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

Conforme anteriormente exposto, o título de crédito é extremamente importante para a economia, eis que facilita a circulação do crédito, fomentando as relações comerciais e aumentando a circulação da riqueza. Nesse diapasão, de extrema importância são seus princípios caracterizadores retro explicados, como a cartularidade, a literalidade, a autonomia, a abstração, vez que protegem o instituto, dando segurança jurídica a seus adquirentes.

Ocorre que atualmente os Tribunais têm relativizado a aplicação de tais princípios, quebrando parte do dogma que os envolve, na tentativa de buscar soluções mais equânimes para os litígios e consentânea ao estado atual da técnica. Assim, mitiga-se a forma em benefício da justiça e da operacionalidade dos seus protagonistas.

88 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 5ª Turma Cível. Acórdão nº 152975. Relator: Romeu Gonzaga Neiva. Brasília, DF, 07 fev. 2002. DJ 15/05/2002, p. 107.

89 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 378-379.90 In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 13.

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Aliás, a tendência do direito moderno é priorizar a intenção e a boa-fé das partes em suas relações privadas, buscando, assim, a justiça, com o escopo de se atingir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil traçados no artigo 3º da Constituição Federal, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem qualquer discriminação. Outrossim, deve-se priorizar também a dignidade da pessoa humana, fundamento elencado no artigo 1º da Carta Constitucional.

Baseados nesses fundamentos e objetivos constitucionais, o Código Civil de 2002 instituiu como princípios de regência das relações privadas a probidade, a boa-fé e a observância à função social dos contratos, conforme se infere de seus artigos 421 e 422, princípios esses que devem ser observados tanto na celebração dos contratos, quanto na emissão dos títulos de crédito que porventura garantam sua execução.

Mamede91 explica a relativização pela jurisprudência dos princípios dos títulos de crédito expondo:

Essa posição da jurisprudência é, por certo, consentânea com os princípios sobre os quais se assenta, a partir do Novo Código Civil, o Direito Privado Brasileiro, firmemente amarrado a princípios éticos, vale dizer, marcado pela necessidade de respeito a uma moralidade privada, fundada na boa-fé, na probidade, nos bons costumes. Em fato, mesmo na interpretação dos negócios jurídicos que envolvem títulos de crédito deve-se atentar para a boa-fé e os usos do lugar da celebração (art. 133 do Código civil), considerando-se inválidos aqueles que tenham motivo determinante ilícito, comum a ambas as partes (art. 166, III, do Código Civil), ou que tenham por objetivo fraudar lei imperativa (art. 166, VI, do Código Civil), invalidade essa que alcança até a simulação, na forma do art. 167, a esses seguintes. Ademais, na emissão, na circulação e na cobrança dos títulos de crédito exige-se das partes envolvidas o respeito aos limites da função social do contrato, guardando todos os envolvidos os princípios da probidade e boa-fé (arts. 421 e 422 do Código Civil).

Assim, os rígidos princípios dos títulos de crédito vêm sendo observados com temperamentos pela jurisprudência pátria, a fim de se evitar que eles encubram certas injustiças sob o rótulo da observância à forma.

Desse modo, em situações excepcionais mitiga-se alguns dos princípios dos títulos de crédito, como a abstração e a independência, para se buscar na origem da cártula a causa de sua emissão, a fim de se constatar a conduta dos contratantes, é dizer, se agiram imbuídos da necessária boa-fé objetiva, e dentro dos limites traçados pela função social do contrato.

Como dito, a tendência do direito brasileiro, principalmente após o advento do Código Civil de 2002, é velar pelo exercício do direito em consonância com a intenção da lei, em observância ao princípio teleológico. Não basta o agente estar amparado pela norma jurídica positivada, é necessário também que seu fim social seja observado. Cita-se como exemplo o artigo 187 do Código Civil, que assim reza: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede

91 In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 46.

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manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

Destarte, em tal norma, leia-se, é insuficiente a verificação apenas do exercício do direito como regulamentado. Faz-se necessário buscar o espírito da norma para observar se tal exercício se encontra nos limites de seu fim econômico e social, bem como da moralidade e bons costumes, na busca da efetiva justiça.

Ao explicar esse regulamento, Maria Helena Diniz92 comenta:

Caem na órbita do abuso do direito, ensejando, obviamente, a responsabilidade civil: [...] Os atos ofensivos aos bons costumes ou contrários à boa-fé, apesar de praticados no exercício normal de um direito. [...] Os atos praticados em desacordo com o fim social ou econômico do direito subjetivo. Como o direito deve ser usado de forma que atenda ao interesse coletivo, logo haverá ato abusivo, revestido de iliceidade, de seu titular se ele utilizar em desacordo com sua finalidade social. Assim, se alguém exercer direito, praticando-o com uma finalidade contrária a seu objetivo econômico ou social, estará agindo abusivamente. [grifo da autora]

A observância à intenção normativa e ao respeito à boa-fé, à probidade e aos bons costumes também deve ser feita no instituto dos títulos de crédito e nas relações dele decorrentes. Daí a tendência da jurisprudência em relativizar seus rígidos princípios na busca da melhor solução para os conflitos, tendo sempre como fim precípuo a justiça, na tentativa de se atingir a tão sonhada paz social.

Contudo, mister ressaltar também a ocorrência de exceções de alguns dos princípios dos títulos de crédito pela própria legislação, o que ressalta a natureza não absoluta de mencionados princípios.

Essa relativização é o que se passa agora a analisar.

3.1 Princípio da cartularidade

O advento do Código Civil de 2002 fez aumentar antiga discussão doutrinária sobre a possibilidade de emissão de títulos de crédito virtuais, ou seja, sem materialização física em cártula.

Isso ocorreu por dispor o artigo 889 sobre os requisitos mínimos que devem estar presentes nos títulos, quais sejam, a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente; estabelecendo seu parágrafo terceiro que “o título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo”.

Assim, autores que já defendiam a executividade de títulos virtuais – em especial da duplicata virtual, por ter se tornado praxe mercantil sua utilização – fundamentaram seu entendimento no artigo 889, § 3º do Código Civil, como o fez Rosa Júnior93:

Trata-se de inovação notável que poderá ajudar a resolver os problemas jurídicos relativos à duplicata virtual, decorrente da

92 In Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil, vol. 7. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 513-516.93 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 37.

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evolução tecnológica e que reduz a importância do dogma da cartularidade. Assim, se o título virtual está reconhecido pelo parágrafo terceiro do art. 889, que se posiciona nas Disposições Gerais, entendemos que não se poderá mais negar executividade à duplicata virtual, por ser reconhecida como título de crédito, e, conseqüentemente, consubstanciar obrigação líquida e certa, desde que os caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente constem da escrituração do emitente e o título observe os requisitos mínimos previstos no art. 889. [grifo do autor]

Muitos empresários deixam de sacar, nas vendas ou prestações de serviços a prazo, a duplicata, título próprio para essas transações, conforme determina o artigo 2º da Lei 5.474/68. Assim, o que freqüentemente ocorre é que, para o desconto, ou a cobrança do valor, são emitidas ao banco, por meio magnético como a Internet, apenas informações sobre o devedor e sobre a obrigação. Desta feita, o banco emite o boleto bancário para que o devedor faça seu pagamento em qualquer agência. Anote-se, não há cártula formal representativa da operação.

Entretanto, ocorrendo a inadimplência da obrigação, o título não poderá ser enviado a protesto, vez que nem mesmo foi sacado. Assim, é utilizado o protesto por indicações, faculdade dada pela Lei das Duplicatas, no artigo 13, § 1º que assim determina: “Por falta de aceite, de devolução ou de pagamento, o protesto será tirado, conforme o caso, mediante apresentação da duplicata, da triplicata, ou, ainda, por simples indicações do portador, na falta de devolução do título”.

Como a Lei 9.492 de 10 de setembro de 1997, que regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos, possibilita, em seu artigo 8º, parágrafo único, a recepção por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, das indicações a protesto das duplicatas, a prática é de que os próprios bancos remetam ao cartório, por meio magnético, as informações recebidas pelo credor para a realização do protesto.

Ademais, o artigo 15, inciso II da Lei das Duplicatas, faculta ao credor a realização da cobrança judicial da duplicata ou triplicata não aceita, desde que acompanhada do protesto, de documento que comprove a entrega das mercadorias e, desde que o sacado não tenha recusado legitimamente a aceitar o título, ou seja, não esteja amparado por um dos motivos previstos nos artigos 7º e 8º da mesma lei94. Tais regras também valem para as duplicatas enviadas para aceite e não devolvidas, protestadas por indicações (art. 15, § 2º, LD), oportunidade em que o título não será juntado na execução por impossibilidade fática, vez que estará retido pelo devedor.

Aí começam as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais sobre a possibilidade de se admitir a execução fundada apenas no instrumento de protesto por indicações e no comprovante de entrega das mercadorias, sem a efetiva comprovação da retenção da duplicata pelo sacado. Ou, juntada a triplicata, sem a comprovação de que sua emissão se deu em conformidade com a legislação, que permite seu saque apenas nos casos de perda ou extravio da duplicata (art. 23 da LD) e, por entendimento jurisprudencial, de retenção injustificada do título pelo sacado.

94 Art. 7º A duplicata, quando não for à vista, deverá ser devolvida pelo comprador ao apresentante dentro do prazo de 10 (dez) dias,contador da data de sua apresentação, devidamente assinada ou acompanhada de declaração, por escrito, contendo as razões da falta do aceite.Art. 8º O comprador só poderá deixar de aceitar a duplicata por motivo de:I – avaria ou não-recebimento das mercadorias, quando não expedidas ou não entregues por sua conta e risco;II – vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade das mercadorias, devidamente comprovados;III – divergência nos prazos ou nos preço ajustados.

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3.1.1Entendimento doutrinário

Wille Duarte Costa95 tem posicionamento contrário à prática aqui referida, por entender que, ao não enviar a duplicata para aceite, o sacador impede a aplicação dos artigos 6º, 7º e principalmente do artigo 8º da Lei das Duplicatas, pois não oportuniza ao sacado a possibilidade de impugnar o título, deixando de aceitá-lo por avaria, não-recebimento, vícios ou defeitos nas mercadorias, o que poderia “impedir uma execução infundada ou uma cobrança que mereça melhor exame por via de uma ação de conhecimento”. O autor ressalta ainda:

O protesto por simples indicações só poderá ocorrer havendo comprovada retenção da duplicata que foi enviada ao comprador para aceite e que não foi devolvida. Por isso, o remetente tem de possuir o comprovante de entrega da duplicata, sem o que não há como falar em retenção. Se esta prova (da remessa) não ocorrer, o protesto é irregular, não podendo produzir os efeitos pretendidos, devendo o Tabelião responder por perdas e danos que ele e seus prepostos causarem a terceiros na prática dos atos da serventia (art. 22 da Lei 8.935, de 18/11/1994).

Por fim, conclui que “a certidão do protesto e o canhoto comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria, sozinhos, não suprem a inexistência da duplicata.”96

Compartilhando o mesmo entendimento, Memede97 explica ser obrigatória a emissão da duplicata, e defende:

Se a duplicata não foi emitida, nem foi remetida, como manda a lei, ao devedor para que aceite ou, sendo o caso, a recuse motivadamente, não há falar em execução de triplicata ou de indicações feitas ao cartório de protestos, pois não se atenderam aos requisitos legais elementares dos títulos de crédito.

Não obstante a lei em momento algum permitir a execução judicial sem a duplicata por ausência de sua extração, os institutos do protesto por indicações e da execução da duplicata não aceita são amplamente utilizados para esse fim, vez que o envio dos dados pode ser feito por meio magnético. Assim, torna-se mais fácil para o empresário a não emissão da duplicata materializada, passando-se apenas os dados a ela referentes (ao banco para fins de desconto, cobrança etc, e ao cartório para protesto).

Nesse diapasão, é crescente a utilização da chamada duplicata virtual, ou seja, o crédito não materializado em papel, mas tão-somente constante da fita magnética do computador do vendedor. A ela também se dá o nome de duplicata escritural, já que seus dados deverão ser escriturados no Livro de Registro de Duplicatas da empresa, conforme imposição do artigo 19 da Lei das Duplicatas, e do artigo 889, §3º do Código Civil.

Devido à disseminação da duplicata virtual no meio empresarial, o professor Fábio Ulhoa Coelho98 entende ser uma tendência irreversível a desmaterialização do título de crédito, leia-se, a substituição do papel como suporte de informações, pelo meio magnético.

95 In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 234.96 In Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003., p. 235. 97 In Títulos de crédito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 338.98 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 385.

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Ao analisar a informatização e seu crescente uso na administração do crédito, o autor critica o instituto do título de crédito argumentando que na Idade Média, quando de seu surgimento, ele cumpriu sua função de facilitar a circulação do crédito comercial, no entanto, “ao longo dos séculos, sobrevindo às mais variadas mudanças nos sistemas econômicos, esses documentos entram agora em período de decadência, que poderá levar até mesmo ao seu fim como instituto jurídico”.

Desse modo, Fábio Ulhoa Coelho99 defende a possibilidade de se executar em juízo a duplicata virtual, entendendo ser desnecessária sua materialização em papel, bastando apenas o instrumento de protesto por indicações e o comprovante de entrega das mercadorias. E, baseado nesses institutos, conclui dizendo que “o direito brasileiro, independentemente de qualquer alteração legislativa, já ampara a executividade de duplicata virtual, isto é, de título constituído, negociado e protestado exclusivamente em meios magnéticos”.

Em sentido idêntico, o professor Lister de Freitas Albernaz100, membro do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico, explica que os títulos de crédito eletrônicos, que trazem celeridade às práticas comerciais, são operados por assinaturas digitais, legalmente reconhecidas pela Medida Provisória nº 2.200-2 de 24 de agosto de 2001, que institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira, cujo artigo 1º determina:

Fica instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.

Assim, com a assinatura eletrônica do emitente, o título de crédito virtual preencheria todos os requisitos impostos pelo artigo 889 do Código Civil, inexistindo motivos para a sua não aceitação como tal.

Por fim, importante citar a constatação de Amadeu José Ferreira101

sobre a tendência mundial de desmaterialização dos títulos de crédito:

No que respeita à letra de câmbio é hoje cada vez mais limitada a tendência para a sua circulação, em particular através da utilização do chamado sistema de truncagem, isto é, da imobilização do documento original numa instituição de crédito, apenas passando a circular um sinal em fita magnética. Esse sistema é já praticado em vários países e está consagrado legislativamente. (...) Também desde há muito se enveredou pela truncagem dos cheques. Trata-se da desmaterialização de uma das suas fases de circulação: o título é transformado numa mensagem electrónica, enquanto o documento original fica retido junto do sujeito que envia a mensagem, o banco que recebe o cheque.

Levando-se tal tendência em consideração é que conclui Rosa Júnior102:

99 Ibidem, p. 466-467.100 In Títulos de crédito eletrônicos. Disponível em: http://www.ideco.com.br/artigos.php?Ntx_id=21. Acesso em: 28

jul. 2005.101 In Valores mobiliários escriturais – Um novo modelo de representação e circulação de direitos. Coimbra: Livraria

Almedina, 1997, p. 70.102 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 67.

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Os avanços tecnológicos têm demonstrado a necessidade de se repensar a doutrina sobre a cartularidade ou a incorporação, como, ocorre, por exemplo, com os cartões de banco com tarja magnética, que permitem a retirada do dinheiro da conta-corrente bancária em substituição ao cheque. O mesmo ocorre com as duplicatas virtuais, correspondente a registros eletromagnéticos transmitidos via computador por empresário ao banco, que, também através de computador, pode processar a cobrança ao devedor. Não estaria a praxe comercial suprindo a lacuna da legislação ultrapassada sobre títulos de crédito? [grifo do autor]

Assim, observa-se que a doutrina ainda se encontra bastante dividida sobre a possibilidade de existência válida de títulos de crédito virtuais, chegando alguns até mesmo a questionar a atual importância e necessidade desse instituto jurídico da maneira como posta.

3.1.2 Entendimento jurisprudencial

Bem como a doutrina, a jurisprudência também diverge sobre a possibilidade de execução, individual ou coletiva, da dita duplicata virtual. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em posicionamento quase unânime, ainda não admite essa possibilidade, negando os pedidos de falência lastreados em triplicatas emitidas irregularmente, ou em comprovante de entrega de mercadorias acompanhado de instrumento de protesto por indicações sem a prova da emissão do título para aceite e de sua retenção pelo devedor.

Como é cediço, um dos requisitos que legitima a decretação da falência é a existência de obrigação líquida constante de título executivo103, o que permite também a execução singular. Assim, a duplicata vencida e devidamente protestada serviria para embasar o decreto. No entanto, o egrégio TJDFT entende que a duplicata virtual não é título hábil a lastrear ação executiva.

O acórdão nº 205574, da 2ª Turma Cível, relatado pela Desembargadora Carmelita Brasil confirmou à unanimidade a sentença que extinguiu o pedido de falência sem julgamento de mérito por inépcia da inicial, entendendo que a extração da triplicata teria se dado de maneira irregular, não existindo, assim, título hábil para a execução. Ficou assim ementado:

FALÊNCIA. COMPRA E VENDA MERCANTIL. EMISSÃO DE TRIPLICATAS SEM BASE LEGAL. PROTESTO IRREGULAR. INDÍCIOS DE AUSÊNCIA DE SAQUE DA DUPLICATA. NÃO ENCAMINHAMENTO DOS TÍTULOS PARA ACEITE. INÉPCIA DA INICIAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM EXAME DO MÉRITO. RECURSO IMPROVIDO. Ainda que se admita a emissão de triplicata no caso de retenção da duplicata, aquela representaria o título a ser levado a protesto por falta de pagamento. Não demonstrado que os títulos foram levados ao sacado para aceite, e tampouco que foram retidos por este, evidencia-se que os

103 Os acórdãos aqui colacionados referem-se a julgados sob a vigência do Decreto-Lei 7.661/45, antiga Lei de Falências, a qual determinava em seu artigo 1º: “considera-se falido o comerciante que, sem relevante razão de direito, não paga no vencimento obrigação líquida, constante de título que legitime a ação executiva”. No entanto, a existência do título executivo continua sendo requisito para um dos fundamentos da decretação da quebra sob a égide da lei atual, nos dizeres do artigo 94, inciso I da Lei 11.101/05, a nova Lei de Falências: “será decretada a falência do devedor que: I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência”.

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protestos por indicação foram tirados de forma irregular, não estando o pedido falimentar instruído consoante a legislação de regência104.

Em seu voto, a Desembargadora-Relatora citou o entendimento da Juíza sentenciante, que reflete de maneira clara o posicionamento do TJDFT sobre o tema, o qual passe-se a expor:

Ao afirmar a requerente que utiliza-se de cobrança escritural da duplicata, através de bancos, refere-se ela a um procedimento muito comum nos dias de hoje, que é a cobrança eletrônica.

Assim, não é extraído o título, mas sim apenas enviados por meio eletrônico os dados do mesmo à instituição bancária que imprime o boleto e depois manda este a cartório para protesto.

Embora seja uma prática muito difundida, é certo que nunca, nem nos mais áureos tempos do direito comercial, quando este era julgado por tribunais de comércio, exclusivo de comerciantes, onde o costume chegava a revelar a lei, foi o costume suficiente para a criação de título executivo.

O título executivo tem seu fundamento na lei e só nela, não existindo previsão legal para a criação de títulos por meio eletrônico.

A barreira da cartularidade, embora pareça aos nossos olhos obsoleta, é ainda indispensável à constituição dos títulos de crédito, não se podendo aceitar como válida uma duplicata eletrônica, ou como se chama eufemisticamente pelo mercado, duplicata escritural, nome aliás inadequado uma vez que refere-se à inscrição do título em livro, o que não acontece na prática.

Várias são as decisões nesse sentido, entendendo o TJDFT que o boleto bancário não é título executivo, não podendo, portanto, ser protestado em substituição à duplicata. Do mesmo modo, exige-se, para que o protesto por indicações seja considerado válido, a juntada da duplicata sem o aceite, ou a comprovação do envio e de sua retenção pelo sacado. Assim, o simples comprovante de entrega das mercadorias com o instrumento de protesto por indicações não basta para lastrear ação executiva se não devidamente justificada a falta da duplicata.

Importante colacionar também a explicação da Desembargadora-Relatora Adelith de Carvalho Lopes, em seu voto no acórdão 182157105 que, por unanimidade, confirmou a sentença de indeferimento da inicial por ausência de título executivo, vez que juntada triplicata emitida sem causa, bem como ter sido o protesto por indicações lavrado irregularmente, já que não houve retenção da duplicata pelo sacado. Verbis:

Consoante se sabe, a simples compra e venda mercantil não é capaz de gerar direito líquido, certo e exigível capaz de instruir pedido de falência.

104 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 2ª Turma Cível. Acórdão nº 205574. Relator: Carmelita Brasil. Brasília, DF, 25 out. 2004. DJ 03/02/2005, p. 44.

105 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 2ª Turma Cível. Acórdão nº 182157. Relator: Adelith de Carvalho Lopes. Brasília, DF, 20 out. 2003. DJ 26/11/2003, p. 37.

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A lei confere ao comerciante um favor extraordinário de criar unilateralmente, em seu próprio favor, a duplicata. Contudo, esta deve ser enviada para apresentação ao comprador no prazo de 30 dias de sua emissão (conforme o art. 6º da Lei 5.474/68), sem o que a obrigação não se torna líquida, certa e exigível.

Dessa forma, o envio da duplicata ao sacado para o aceite é medida que se impõe como uma forma de garantia para o devedor, face ao caráter unilateral da emissão do título.

No entanto, como anteriormente referido, o entendimento acima amparado não é unânime na jurisprudência dos diferentes tribunais do país. O Tribunal de Justiça de São Paulo, bem como o do Rio Grande do Sul, entende perfeitamente exeqüível o instrumento de protesto acompanhado do recibo de entrega das mercadorias, considerando desnecessária a juntada do título materializado. Vejam-se alguns exemplos:

FALÊNCIA. PETIÇÃO INICIAL INDEFERIDA. EXTINÇÃO AFASTADA. Hipótese em que, embora sem aceite, as duplicatas foram protestadas por indicação, havendo, ademais, comprovante de entrega da mercadoria. Recurso provido, deferindo-se a inicial para que o feito prossiga.106

FALÊNCIA. REQUISITOS LEGAIS SATISFEITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. Tendo, a credora, satisfeito os requisitos dos arts. 1º e 11, da Lei de Falências, a decretação da falência da devedora é de rigor. Duplicatas virtuais. Protesto mediante indicações por meio magnético. Aplicação do parágrafo único do art. 8º da Lei nº 9.492/97. Não faz diferença tratar-se de duplicatas ou triplicatas. Certidões de intimação pessoal do protesto, cuja fé pública não restou desmerecida pela devedora. A realização do protesto comum dispensa a do protesto especial para instruir pedido de falência. Agravo desprovido.107

O Superior Tribunal de Justiça, nas poucas vezes que se manifestou sobre o tema, demonstrou inclinação também para esse entendimento, ou seja, diverso do sustentado pelo TJDFT. Assim exemplifica o voto dado pelo Ministro Barros Monteiro, relator do Recurso Especial 228637108 que, à unanimidade, reformou o acórdão que confirmara sentença de indeferimento da inicial em pedido de falência por não ter comprovado o requerente o envio da duplicata para aceite, o que legitimaria o protesto por indicações.

Entendeu o Ministro que o acórdão impugnado, assim como a sentença, conferiu interpretação apenas literal ao dispositivo da Lei das Duplicatas que possibilita a execução forçada da duplicata ou triplicata não aceita, acompanhada do protesto e do comprovante de entrega das mercadorias, desde que o sacado não tenha, comprovadamente, recusado o aceite por motivos válidos (art. 15, inciso II, alínea “c”, LD). A sentença, então, exigiu prova da remessa da duplicata ao sacado para aceite, extinguido o processo sem apreciação do mérito por não fazê-la o requerente.

106 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. 1ª Câmara de Direito Privado. APC nº 81.500-4/0. Relator: Gildo dos Santos. São Paulo, SP, 02 jun. 1998.

107 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. 5ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento nº 70005233812. Relator: Leo Lima. Porto Alegre, RS, 15 mai. 2003.

108 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 228637/SP. Relator: Barros Monteiro. Brasília, DF, 18 mar. 2004. DJ 07/06/2004, p. 229.

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Porém, o Recurso Especial ora em comento, considerou dispensável tal comprovação de cunho meramente formal, entendendo-a excessiva, motivo pelo qual presumiu a retenção da cártula pelo devedor, o que gerou a válida emissão da triplicata protestada. Concluiu ao afirmar:

Esta Corte, de modo reiterado, tem entendido que a lei permite a execução e, conseqüentemente o pedido de falência (art. 1º, § 3º, do Decreto-Lei nº 7.661, de 21.6.1945), sem a apresentação da duplicata ou triplicata, desde que a petição venha acompanhada do comprovante do protesto e de documento hábil a demonstrar a entrega da mercadoria (art. 15, §2º, da Lei nº 5.474, de 18.7.1968). Nessa linha os REsp’s nºs 309.829-CE, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar; 40.078-RS, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira; REsp nº 119.263-SP, de minha relatoria; e REsp nº 46.261-4/MG, Relator Ministro Costa Leite (in RSTJ, vol. 62, pág. 441).

O acórdão ficou assim ementado:

PEDIDO DE FALÊNCIA. FALTA DE ACEITE. AUSÊNCIA DE PROVA DA REMESSA DA DUPLICATA AO SACADO. TRIPLICATA PROTESTADA E ACOMPANHADA DA PROVA DA ENTREGA DA MERCADORIA. TÍTULO HÁBIL. Constitui título executivo, hábil a instruir o pedido de falência, a triplicata protestada e acompanhada da prova de entrega da mercadoria, sendo dispensável a comprovação formal da remessa da duplicata ao sacado para aceite, o qual se presume em face da não devolução pelo devedor. Recurso especial conhecido e provido.

Apesar de haver vários posicionamentos nesse sentido, como ressaltado pelo Ministro Barros Monteiro em seu voto, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça ainda não se encontra pacificado, como comprova o aresto a seguir:

FALÊNCIA. DUPLICATA MERCANTIL. COMPROVAÇÃO. REMESA PARA ACEITE. PROTESTO DE BOLETOS BANCÁRIOS. IMPOSSIBILIDADE. EXTRAÇÃO DE TRIPLICATAS FORA DAS HIPÓTESES LEGAIS. I – Para amparar o pedido de falência, é inservível a apresentação de triplicatas imotivadamente emitidas, eis que não comprovados a perda, o extravio ou a retenção do título pelo sacado. II – A retenção da duplicata remetida para aceite é condição para o protesto por indicação, inadmissível o protesto de boletos bancários. Recurso não conhecido.109

Ante a análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pode-se concluir que essa Corte, acertadamente, na maioria de seus acórdãos, tem se posicionado de maneira avançada ao permitir a mitigação do princípio da cartularidade, aceitando a execução judicial quando ausente o título, nos moldes acima referidos.

Aliás, pensamento diverso, seria negar a efetiva prestação jurisdicional em execuções de duplicatas, na medida em que a evolução tecnológica permite maior praticidade na mobilização do crédito por elas documentadas eletronicamente, além de simplificar a cobrança e reduzir os custos. Assim, o uso da duplicata virtual tornou-se praxe dentre os empresários, razão suficiente para a 109 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 369808/DF. Relator: Castro Filho. Brasília, DF, 21

mai. 2002. DJ 24/06/2002, p. 229.

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flexibilização do formalismo extremado, tendo-se em vista que não se podem fechar os olhos para a evolução social, eis que, hodiernamente, com o estado atual da técnica, o argumento da vida (real), por vezes, supera o argumento legal (formalismo). Ademais, o Direito deve servir à sociedade, e não o contrário.

3.2 Princípio da literalidade

Viu-se anteriormente que o princípio da literalidade faz com que valha apenas o escrito no título de crédito. Dessa maneira, “atos documentados em instrumentos apartados, ainda que válidos e eficazes entre os sujeitos diretamente envolvidos, não produzirão efeitos perante o portador do título.”110

Por tal razão, o beneficiário só poderá cobrar a obrigação literalmente constante da cártula, nos moldes ali estabelecidos, e somente daqueles que a assinaram, obrigando-se. Igualmente, eventual quitação parcial do débito deve ser anotada no título, eis que, se não o feito, uma vez transmitida a cártula à terceiro de boa-fé, o devedor não poderá se eximir do pagamento integral.

Ocorre que também há exceções ao princípio da literalidade, desta feita, postas pela própria legislação cambiária.

Veja-se o que reza o artigo 9º e parágrafos da Lei das Duplicatas:

Art. 9º É lícito ao comprador resgatar a duplicata antes de aceitá-la ou antes da data do vencimento. §1º A prova do pagamento é o recibo, passado pelo legítimo portador ou por seu representante com poderes especiais, no verso do próprio título ou em documento, em separado, com referência expressa à duplicata. § 2º Constituirá, igualmente, prova de pagamento, total ou parcial, da duplicata, a liquidação de cheque, a favor do estabelecimento endossatário, no qual conste, no verso, que seu valor se destina à amortização ou liquidação da duplicata nele caracterizada.

Assim, a lei autoriza a quitação da duplicata em documento diverso, desde que esse contenha referência expressa àquela. No entanto, conforme ressalta Eunápio Borges111, a quitação dada em separado não vale de prova bastante da extinção da obrigação em todas as circunstâncias. Isso porque, o devedor somente deve pagar o título se lhe restituído. Dessa maneira, ao dispensar tal prerrogativa, corre o risco de ver a cártula transmitida a adquirente de boa fé, oportunidade em que deverá novamente cumprir a obrigação, em consonância com o princípio da autonomia das obrigações cambiais.

Nesses contornos, a quitação apartada da duplicata somente produzirá o efeito pretendido “quando, não aceita a duplicata, for a respectiva importância enviada ao credor, sem o título, que permaneceu em poder do comprador”112.

Como bem salientado por Fran Martins, o artigo 10 da Lei das Duplicatas permite, no pagamento da duplicata, a dedução de créditos a favor do devedor resultantes de “devolução de mercadorias, diferenças de preço, enganos verificados, pagamentos por conta e outros motivos assemelhados, desde que devidamente autorizados”. Assim, ao não se observar literalmente o disposto na

110 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 374.111 In Título de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 219-220.112 BORGES, João Eunápio. Título de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 220.

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cártula, tem-se mais uma exceção ao princípio da literalidade, pelo que coloca dito doutrinador:

“A dedução, na importância mencionada na duplicata, altera o princípio da literalidade, de que este título deve estar revestido, por serem aplicáveis às duplicatas normas do direito cambiário, donde, em regra geral, na duplicata valer o que está escrito e nada mais ou menos do que está escrito (princípio de literalidade)”. [grifo do autor]

Mais uma vez o princípio ora em comento é excepcionado no artigo 15, inciso II da Lei das Duplicatas, já que consagra o aceite tácito, ou seja, permite a execução judicial da duplicata ou triplicata não aceita, acompanhada do instrumento de protesto e do comprovante de entrega das mercadorias, desde que a recusa não tenha se dado justificadamente.

Por fim, pode-se encontrar nova exceção ao princípio da literalidade na Lei Uniforme de Genebra, por dispor seu artigo 29, última alínea, que o aceite dado em uma letra de câmbio, e riscado antes de sua devolução, continuará produzindo efeitos, nos termos postos na cártula, em relação àqueles que o sacado tiver informado por escrito a colocação de sua assinatura113.

Rosa Júnior114 explica esse fenômeno aduzindo que “tal ocorre porque quem tomou ciência do aceite já contava com a assunção da obrigação cambiária pelo sacado e o cancelamento pode lhe acarretar prejuízos”. Assim, entende o doutrinador que a fonte da obrigação do aceitante para com aqueles que tomaram por ele ciência do aceite, é uma convenção extracartular.

3.3 Princípios da autonomia, abstração, independência e inoponibilidade

Dos conceitos anteriormente expostos sobre os princípios da autonomia, abstração, independência e inoponibilidade, tem-se que os três primeiros muitas vezes se confundem, sendo que o último, é deles conseqüência.

Explica-se: alguns autores, a exemplo de Fran Martins115, Rubens Requião116 e Fábio Ulhoa Coelho117, entendem serem as obrigações cartulares autônomas não em relação ao título de crédito, mas entre si. Assim, por serem independentes, o vício em uma delas não atinge as demais. No entanto, parte da doutrina e a jurisprudência entendem que o princípio da autonomia traduz a separação do título com sua origem, não podendo, devido à sua incidência, buscar na relação subjacente defesas para embargar eventual execução forçada, tendo em vista as relações causais e cartulares não se confundirem.

Essa última interpretação é chamada por alguns de princípio da abstração118, e por outros de princípio da independência119, já que o título torna-se abstrato e independente do negócio jurídico que o originou. Assim, as exceções relativas ao negócio fundamental, como inadimplência da obrigação ou negócio

113 Conforme ensinamento de Rubens Requião, in Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 414, o disposto no art. 29, última alínea, da LUG, consagra a única exceção ao princípio formal de inexistência de aceite em documento diverso da letra.

114 In Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 201.115 In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 09-10.116 In Curso de direito comercial, vol. 2. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 360.117 In Curso de direito comercial, vol. 1. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 375-376.118 REQUIÃO, Rubens. Op. cit., p. 360; BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998,

p. 59; ALMEIDA, Amador Paes de. Teoria e prática dos títulos de crédito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 4.119 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 71.

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ilícito, não poderão ser opostas perante o portador de boa-fé da cártula, visando o seu não pagamento. Tem-se, então, que dos princípios anteriores – autonomia, abstração e independência – origina o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais.

Valeri120 entende ser o princípio da abstração “a exacerbação da autonomia, do mesmo modo que o formalismo é exacerbação da literalidade”.

Independentemente das diversas interpretações, não há como negar que esses quatro princípios estão invariavelmente interligados, motivo pelo qual suas mitigações serão aqui analisadas conjuntamente.

3.3.1 Ausência de circulação

A primeira mitigação ao princípio da abstração ocorre quando o título de crédito não houver circulado. É certo que ele é independente e autônomo em relação à sua causa debendi, no entanto, o entendimento pacífico doutrinário e jurisprudencial é no sentido de que esse princípio só atingirá o título de crédito com sua circulação.

Dessa forma, dentre as partes do negócio jurídico que originou a cártula não há se falar em abstração, o que permite a discussão do contrato antes do pagamento do débito.

Conforme anteriormente mencionado, referida mitigação é feita em respeito ao princípio da economia processual, já que evita o pagamento de um crédito ilegítimo representado na cártula, que posteriormente será devolvido se julgada procedente ação extracambiária para a anulação do negócio jurídico originário do título.

Assim, tanto a doutrina quanto a jurisprudência são unânimes em reconhecer a abstração do título somente após sua circulação, o que exemplifica o acórdão colacionado121:

JUIZADO ESPECIAL. COMERCIAL. NOTA PROMISSÓRIA. NÃO CIRCULAÇAÕ DO TÍTULO. DISCUSSÃO “CAUSA DEBENDI”. TÍTULO DE CRÉDITO EM PODER DO CREDOR. AUSÊNCIA DE PROVA DE QUITAÇÃO. JUROS EXORBITANTES. FALTA DE PROVA. 1. A nota promissória acostada é título de crédito líquido, certo e exigível, vez que presentes os requisitos de existência e validade. Como tal, traz consigo todos os atributos dos títulos de crédito, entre os quais a cartularidade, a literalidade, a autonomia e a abstração. Em face deste último, tem-se que o título abstrai-se da causa que lhe deu origem, tendo vida própria, valendo por si só, independentemente do negócio jurídico subjacente. 2. Em razão da não circulação do título, essa abstração é mitigada, admitindo-se discutir a “causa debendi”. 3. Não havendo prova de que a alegada quitação, mediante entrega dos bens móveis, tenha alcançado, inclusive a nota promissória objeto da execução, há que prevalecer a cobrança da dívida. 4. Isto porque é da natureza das obrigações afetas aos títulos de crédito que o pagamento dar-se-á mediante a devolução da

120 Apud BORGES, João Eunápio. Título de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 17.121 No mesmo sentido estão os seguintes arrestos: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 3ª Turma Cível. Acórdão nº 124656.

Relator: Jeronymo de Souza. Brasília, DF, 23 mar. 2000. DJ 03/05/2000, p. 34. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 3ª Turma Cível. Acórdão nº 123468.

Relator: Jeronymo de Souza. Brasília, DF, 13 dez. 1999. DJ 05/04/2000, p. 30.

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cártula pelo credor ao devedor, vez que ‘a entrega do título ao devedor firma presunção do pagamento’, na exata dicção do art. 945 do Código Civil122. [...]

No entanto, para que essa mitigação ocorra, há de estar o adquirente do título imbuído de boa-fé, pois, se tiver conhecimento sobre fato na relação fundamental que ensejaria o não pagamento do título e, no intuito de prejudicar o devedor, adquirir a cártula, a abstração não ocorrerá, e o devedor poderá opor em desfavor do endossatário as exceções que possuía contra o endossante, a teor do artigo 17 da LUG.

Foi considerando a ausência de abstração antes de circulada a cártula, que o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp nº 162.332123, admitiu a possibilidade de mitigação do princípio da autonomia das obrigações cartulares, para permitir que o avalista opusesse as exceções que o avalizado possuía em detrimento do credor.

De fato, no caso em comento, um contrato foi firmado e, para a garantia de seu adimplemento, emitiu-se uma nota promissória. Entretanto, medida cautelar incidental à ação ajuizada visando a anulação desse contrato foi julgada procedente, suspendendo todos os seus efeitos.

Assim, o credor ajuizou ação executiva em desfavor do avalista da nota promissória, cujos embargos foram julgados procedentes, admitindo a sentença a possibilidade do executado alegar, visando o não pagamento, o inadimplemento do negócio jurídico embasador da emissão da cártula, exceção essa, pessoal entre o avalizado e o beneficiário. Ocorre que o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença por entender que do aval resulta obrigação autônoma. Porém, o STJ, à unanimidade, proveu o REsp, restabelecendo a autoridade da sentença.

Isso porque entendeu que, não obstante o artigo 32 da LUG estabelecer que a obrigação do avalista “mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”, no presente caso o título não circulou, não incidindo, conseqüentemente, o princípio da abstração cambiária.

Assim, suspensos os efeitos da relação fundamental, o credor não tem direito ao valor representado na cártula e, o rigorismo extremado de se admitir, nesse caso, a autonomia da obrigação do avalista, causaria dano reversível apenas após o exercício do direito de regresso por duas vezes, ou geraria o locupletamento indevido do credor.

Ao explicar os inconvenientes da aplicação de mencionado princípio, o Ministro-Relator Eduardo Ribeiro coloca:

De sua aplicação resultaria devesse o credor, em virtude do título, receber o que, com base no negócio que lhe deu origem, não lhe seria devido. Quando há circulação isso se entende. O portador é estranho àquela relação. O pagamento do valor do título lhe é devido exclusivamente por ser dele portador. Assim, não se pode obviamente considerar um vínculo jurídico em que não se figura. Tratando-se, porém, de cobrança efetuada pelo

122 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 3ª Turma Cível. Acórdão nº 135565. Relator: Arnoldo Camanho de Assis. Brasília, DF, 03 out. 2000. DJ 28/03/2001, p. 82.

123 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 162332/SP. Relator: Eduardo Ribeiro. Brasília, DF, 29 jun. 2000. DJ 21/08/2000, p. 117.

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mesmo credor, difícil aceitar haja de receber o que realmente não lhe era devido.

Mais se patenteia insatisfatória a solução quando se considera que, exercendo o avalista o direito de regresso contra o avalizado, a esse, por seu turno, será dado voltar-se contra o credor do título, postulando a reposição de que recebeu excedendo o que teria direito com base na relação originadora da cambial. Negar-se essa possibilidade seria a consagração do enriquecimento ilícito.

Destarte, não tendo circulado o título, o avalista da obrigação nele representada poderá opor exceções referentes ao não cumprimento do contrato que o originou. Assim, o princípio da autonomia das obrigações cambiárias é amenizado na tentativa de se alcançar uma decisão mais justa, tendo-se em vista os inconvenientes que a sua observância causaria.

3.3.2 Habilitação de crédito em processo falimentar

O princípio da abstração é mais uma vez mitigado na habilitação dos créditos em processo falimentar. O Decreto-Lei nº 7.661 de 21 de junho de 1945, a antiga Lei de Falências, determinava, em seu artigo 82, caput, que os credores do falido deveriam apresentar em cartório declaração por escrito que mencione, dentre outras exigências, a importância exata do crédito e sua origem. Assim, não era observada, na hipótese, a desvinculação da cártula com o negócio subjacente, já que apenas os créditos devidamente justificados eram habilitados para serem pagos no rateio.

A nova Lei de Falências, Lei nº 11.101 de 9 de fevereiro de 2005, também mitiga o princípio da abstração, vez que seu artigo 9º, inciso II exige que o credor, para habilitar seu crédito, apresente ao administrador judicial, dentre outras informações, “o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação”.

Assim, não basta o credor apresentar o título de crédito para ver reconhecida sua dívida, outrossim, deve declinar sua origem, no intuito de se “impedir a fraude, o conluio e a primazia da má-fé, assegurando o império da legalidade e o tratamento proporcional dos créditos”124.

Não há divergência jurisprudencial quanto à existência da mitigação ora relatada. Veja-se o exemplo125:

FALÊNCIA. HABILITAÇÃO DE CRÉDITO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO POR FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DA ORIGEM E EXISTÊNCIA DO CRÉDITO. 1. ‘O cheque, dada a sua natureza cambial, goza, em princípio, da característica da abstração e, assim, dispensa ao credor o relato da origem da dívida. Portanto, tal caráter não é absoluto, cede – na cobrança coletiva – diante do procedimento da lei de quebras, com o objetivo de controlar a legitimidade dos créditos. A demonstração dessa origem, pois, nesses casos, é de rigor’ (APC 62.496-4/99). 2. Apelação desprovida. Unânime.126

124 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2005. 125 No mesmo sentido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 1ª Turma Cível.

Acórdão nº 146182. Relator: Eduardo de Moraes Oliveira. Brasília, DF, 24 set. 2001. DJ 21/11/2001, p. 140.126 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 5ª Turma Cível. Acórdão nº 195016.

Relator: Romeu Gonzaga Neiva. Brasília, DF, 31 mai. 2004. DJ 05/08/2004, p. 38.

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Não obstante o acórdão trazido se referir à aplicação do Decreto-Lei 7.661/45, a exigência da comprovação da origem da dívida, mesmo que essa esteja representada por um título de crédito, permanece nos dispositivos da nova Lei de Falências.

3.3.2 Vinculação do título a contrato

O princípio da abstração é mitigado, mais uma vez, quando o título de crédito traz expressa vinculação ao contrato que o originou, oportunidade em que eventual endossatário adquirirá direito derivado, ou seja, sujeito às exceções advindas do negócio jurídico fundamental, mesmo que dele não tenha participado.

Esse entendimento é pacífico tanto na jurisprudência quanto na doutrina. Veja-se ensinamento do professor Fran Martins127 sobre o tema:

A nota promissória encerra, por natureza, um direito abstrato. [...] Acontece, entretanto, que, muitas vezes, a emissão de notas promissórias é uma condição de um contrato original. A existência do título fica, assim, presa ao cumprimento do contrato, de que resultou a promissória como uma condição para a perfeição daquele.

Tem-se, então, que, consignada na cártula vinculação ao negócio subjacente, seu emitente expressa vontade em retirar da mesma a abstração que lhe seria peculiar. Desse modo, caso endossada, os direitos transmitidos não serão novos, mas sim derivados, como houvesse cessão civil.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça encontra-se em consonância com o ora colocado128:

COMERCIAL. ESCRITURA DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. RESOLUÇÃO. NOTAS PROMISSÓRIAS VINCULADAS. ANULAÇÃO. ENDOSSO-CAUÇÃO. ABSTRAÇÃO E AUTONOMIA. DOUTRINA. RECURSO NÃO CONHECIDO. Ainda que de boa-fé, o endossatário de notas promissórias, das quais conste expressa vinculação a contrato, fica sujeito às exceções de que disponha o emitente com base no ajuste subjacente. Os títulos, em hipóteses tais, perdem a natureza abstrata que lhes é peculiar, sendo oponível ao portador, mesmos nos casos em que tenha havido circulação por endosso, recusa fundada em vicissitude ou desconstituição da ‘causa debendi’.129

Hodiernamente, é comum a nota promissória garantir contrato de abertura de crédito bancário que, por sua vez, devido à falta de liquidez, não é considerado título executivo, a teor da súmula 233 do STJ: “o contrato de abertura de crédito, ainda que acompanhado de extrato da conta-corrente, não é título executivo”.

127 In Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 291.128 No mesmo sentido: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 109869/MG. Relator: Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Brasília, DF, 09 jun. 1998. DJ 21/09/1998, p. 170. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 50633/PE. Relator: César Asfor Rocha. Brasília, DF, 03

set. 1996. DJ 07/10/1996, p. 37642. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 1ª Turma Cível. Acórdão nº 62560.

Relator: Deocleciano Queiroga. Brasília, DF, 21 set. 1992. DJ 17/03/1993, p. 8492.129 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 14012/RJ. Relator: Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Brasília, DF, 10 ago. 1993. DJ 06/09/1993, p. 18034.

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Assim, o entendimento jurisprudencial consolidado é de que nesses casos, como a nota promissória não foi sacada como promessa de pagamento, mas tão-somente para garantia do negócio jurídico subjacente, ela perde sua natureza cambial, e, conseqüentemente, as características da abstração, da independência e da autonomia.

Desse modo, entende-se que a iliquidez do contrato de abertura de crédito contamina o título que o garante, pelo que o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 258, a qual ora se transcreve: “a nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito não goza de autonomia em razão da iliquidez do título que a originou”.

Veja-se julgado sobre o tema:

PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE EXECUÇÃO. EMISSÃO DE TÍTULO DE CRÉDITO. NOTA PROMISSÓRIA VINCULADA A CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO. AUSÊNCIA DE EXIGIBILIDADE. TÍTULO CAMBIAL EMITIDO COMO GARANTIA DE DÍVIDA BANCÁRIA. AUSÊNCIA DE CIRCULAÇÃO. PERDA DA NATUREZA CAMBIÁRIA. I – Não havendo circulação do título, resta patente que este se destinou à garantia de negócio jurídico subjacente, refugindo da principiologia cambiária. II – Nota promissória que não é sacada como promessa de pagamento, mas como garantia de contrato de abertura de crédito, a que foi vinculada, tem sua natureza cambial desnaturada, subtraída a sua autonomia. Precedente da 3ª Turma: REsp 239.352.130

Nesse diapasão, as notas promissórias vinculadas a contrato de abertura de crédito perdem a abstração peculiar dos títulos de crédito, mesmo que essa vinculação não seja expressa, necessitando apenas constar do contrato a emissão do título para garantia. Tal fato explica-se pela iliquidez do contrato se transmitir à cártula, pelo que se mitigam mais uma vez os princípios embasadores dos títulos de crédito.

3.3.3 Indícios de fraude na emissão da cártula

Por fim, os princípios ora em comento também deverão ser relativizados quando há sérios indícios de que a relação fundamental se constituiu em flagrante desrespeito à ordem jurídica, já que nesses casos, a proteção do título de crédito por meio dos princípios cambiários serviria apenas para encobrir casos de fraude e má-fé, solução que seria teratológica.

A jurisprudência, embora ainda tímida, caminha para esse entendimento, como exemplifica o aresto do Superior Tribunal de Justiça a seguir colacionado:

COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. CHEQUE. INVESTIGAÇÃO DA CAUSA DEBENDI. CIRCUNSTÂNCIAS ESPECIAIS, QUE O PERMITEM. LEI N. 7.357/85. EXEGESE. HONORÁRIOS. FIXAÇÃO EQUITATIVA. CPC, ART. 20, §4º. I. A autonomia do cheque não é absoluta, permitida, em certas circunstâncias especiais, como a prática de ilícito pelo vendedor de mercadoria não entregue, após fraude notória na praça, a investigação da causa subjacente e o esvaziamento do título pré-datado em poder de empresa de ‘factoring’, que o recebeu por endosso. II.

130 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp nº 264850/SP. Relator: Nancy Andrighi. Brasília, DF, 15 dez. 2000. DJ 05/03/2001, p. 159.

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Honorários advocatícios já fixado em valor módico, não cabendo ainda maior redução. III. Recurso especial não conhecido.131

O precedente trazido julgou um caso em que chequem haviam sido emitidos para o cumprimento de um contrato de compra e venda cujas mercadorias não foram entregues. Porém, um desses cheques foi transmitido, via endosso, para empresa de factoring que, como terceira de boa-fé, pretendeu executar o título.

Entretanto, os embargos do devedor foram julgados procedentes, para reconhecer a inexigibilidade do título executado. Confirmada a decisão pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, a empresa de factoring interpôs Recurso Especial. Porém, melhor sorte não lhe sobreveio.

Entenderam os julgadores que a empresa de factoring tinha conhecimento que os títulos emitidos fundaram-se em um negócio jurídico, vez que lhe foram endossados por pessoa jurídica. Assim, sabia que o crédito adquirido tinha relação direta com uma dívida que deveria ser adimplida.

Como a contraprestação do negócio jurídico inicial não foi solvida, tendo, inclusive, caracterizado fraude pelo fechamento da empresa vendedora, não poderia o emitente das cártulas arcar com o prejuízo, ou seja, quitar a dívida representada no cheque apenas por ele ter circulado.

Caberia, outrossim, à endossatária, em observância à boa-fé objetiva, empenhar esforços mínimos no sentido de se verificar a regularidade do negócio jurídico subjacente, a fim de se proteger de eventual esvaziamento do título endossado em virtude de fraude realizada naquele negócio. Por outro lado, em não o fazendo, aplicar-se-á o disposto no artigo 916 do Código Civil o qual estabelece que “as exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé”.

O Ministro-Relator Aldir Passarinho Júnior citou parte do voto do aresto recorrido, o qual transcreve-se agora:

Embora atribua-se ao cheque a presunção juris tantum, de certeza, liquidez e exigibilidade, creio que se deve admitir a discussão da causa debendi entre o emitente e o terceiro portador do cheque, quando este resultar de contrato bilateral. [grifo do autor]

Uma vez provado, como nos autos, o não cumprimento do contrato ao qual se acha vinculado o título cobrado, entendo ser indevida a execução. Penso que, neste caso em especial, deve o cheque pré-datado ter o mesmo tratamento que se dá à nota promissória ligada a um contrato, podendo assim, o devedor opor-se ao pagamento pelo não cumprimento do contrato.

Então, como base nesses argumentos, chegou à seguinte conclusão:

Pertinente o entendimento empregado pelo aresto estadual, no sentido de utilizar, analogicamente, a sistemática da promissória vinculada a contrato, como acima explicado, em que a causa debendi, o negócio subjacente pode ser investigado e, conforme a circunstância, tem o condão de esvaziar o título de crédito,

131 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. REsp nº 434433/MG. Relator: Aldir Passarinho Júnior. Brasília, DF, 25 mar. 2003. DJ 23/06/2003, p. 378.

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como na espécie em comento, por derivada de prática comercial ilícita e criminosa, que se estende aos cheques dela derivados. [grifo do autor]

Vê-se, no caso em tela, que, não obstante circulada a cártula, todos os julgadores permitiram a mitigação dos princípios informadores dos títulos de crédito para possibilitar a discussão da causa debendi e, conseqüentemente, permitir ao devedor opor as exceções pessoais que possuía com o primeiro beneficiário, mesmo sendo o atual portador terceiro de boa-fé.

Assim ocorreu por ter sido o cheque emitido com base em negócio jurídico fraudulento, violador da ordem jurídica, pelo que se entendeu que seu vício contaminou o título. Para tanto, utilizou-se como justificativa, a analogia da vinculação da nota promissória a contrato de abertura de crédito, em que a iliquidez desse é transmitida àquela; para vincular o cheque emitido à sua causa subjacente, sendo a ilicitude dessa estendida àquele.

No caso trazido à colação, o entendimento trouxe justiça ao afastar os princípios da abstração, da autonomia e da independência, vez que, se assim não fosse, o emitente do título pagaria pelo débito sem a contraprestação devida, sendo que o negócio jurídico que ensejou a emissão da cártula foi nitidamente fraudulento, desrespeitando a função social do contrato e a boa-fé objetiva.

Ademais, deve-se levar em consideração que o título foi endossado à empresa de factoring, que tem total liberdade para escolher as empresas com quem contratará, devendo observar, no mínimo, se suas operações são lícitas. Por fim, ressalte-se que a endossatária não ficará totalmente prejudicada, vez que possui direito regressivo contra a empresa endossante, que é responsável pela existência da obrigação.

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CONCLUSÃO

Os títulos de crédito surgiram na Idade Média com a função primordial de permitir a circulação de direitos creditórios. Desde então esse instituto foi aprimorado visando a proteção dos adquirentes da cártula, a fim mais eficientemente atingir tal escopo.

Na tentativa de se buscar a melhor definição para título de crédito, o conceito considerado mais apropriado, por conter todas as características essenciais, foi o de César Vivante132 que afirmou ser o “documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo, nele mencionado”.

Aí se têm os princípios caracterizadores do instituto, quais sejam, a cartularidade, a literalidade e a autonomia, elencando, ainda, alguns doutrinadores, a abstração, a independência e a inoponibilidade das exceções pessoais. Assim, ao se tratar de títulos de crédito, sabe-se que esses elementos estarão presentes, proporcionando grande segurança jurídica aos participantes da relação cartular.

No entanto, esses princípios não são absolutos, sendo certo que ora a própria legislação os excepciona e, por vezes, a jurisprudência também o faz.

Tratando-se do princípio da cartularidade, há grande controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a possibilidade de sua mitigação, o que permitiria a execução singular, ou o pedido de falência, sem a apresentação do título de crédito materializado em um documento físico como o papel.

Levando-se em consideração o estado atual da técnica e a praxe mercantil que aboliu a utilização da duplicata materializada, emitindo-a apenas por meios magnéticos, ou seja, a chamada duplicata virtual, o melhor entendimento é o que permite a execução forçada lastreada apenas no comprovante de entrega das mercadorias juntamente com o instrumento de protesto feito por indicações, mitigando-se, assim, o dogma da cartularidade.

Esse entendimento baseia-se no fato do legislador prever a possibilidade do protesto ser tirado apenas por indicações do credor que poderão ser passadas ao Tabelionato de Protesto, inclusive, por meios magnéticos (art. 13, § 1º, da Lei nº 5.474/68 c/c art. 8º, parágrafo único, da Lei nº 9.492/97), não necessitando da apresentação da duplicata para esse fim.

Alia-se também a previsão constante do artigo 15, inciso II, da Lei das Duplicatas, que admite a possibilidade de execução de duplicata ou triplicata não aceita acompanhada do instrumento de protesto e de documento comprobatório da entrega das mercadorias. Assim, não obstante esses dispositivos legais tratar de matérias específicas como a retenção da duplicata pelo devedor, ou sua não aceitação injustificadamente, o que freqüentemente ocorre é a utilização deles nos casos em que a duplicata não foi materialmente emitida.

Tem-se também o fato de, segundo o posicionamento de alguns estudiosos sobre o tema, o artigo 903 do Código Civil de 2002 ter inserido no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de criação de títulos de crédito atípicos, ou seja, exclusivos da praxe mercantil, sem legislação própria, que seriam regidos pelas disposições gerais nesse Código fixadas.

132 Apud MARTINS, Fran. Títulos de crédito, vol. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.

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Assim, poder-se-ia aplicar o disposto no artigo 889 do diploma civil, que possibilita a emissão de títulos de crédito a partir de caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente.

Nesse diapasão, utilizando-se dos dispositivos ora referidos, há como sustentar a possibilidade de execução da duplicata virtual, fazendo com que ocorra o efetivo amparo estatal, na medida em que a duplicata materializada em papel já não é mais utilizada, recorrendo-se os empresários à documentação eletrônica, que simplifica o procedimento e reduz os custos. Assim, os costumes hão de ser considerados para que se possibilite a flexibilização do formalismo extremado, visando a efetiva tutela jurisdicional.

O princípio da literalidade também sofre algumas mitigações, dessa feita, pela própria legislação cambiária. Ocorre, por exemplo, quando o artigo 9º da Lei nº 5.474/68 permite a quitação da duplicata em documento dela apartado. Também, quando o artigo 10 dessa mesma Lei prevê a possibilidade de dedução de créditos a favor do devedor da cártula quando se seu pagamento, se autorizado pelo credor.

O aceite tácito contemplado pelo artigo 15, inciso II da Lei das Duplicatas também é tido como exceção ao princípio da literalidade. Por fim, mais uma exceção é trazida pelo artigo 29 da LUG, que considera válido o aceite riscado, em relação aos que receberam anterior comunicado de que a assinatura seria colocada no título.

Igualmente, os princípios da autonomia, abstração, independência e inoponibilidade são por diversas vezes relativizados.

Na ausência de circulação da cártula, a abstração não se fará presente, o título não se desvinculará de sua causa debendi, e o devedor poderá opor as exceções que possui contra o beneficiário.

A legislação falimentar (art. 9º, inciso II, Lei nº 11.101/05) também excepciona esses princípios ao exigir, para a habilitação do crédito no processo de falência, a comprovação da origem da dívida, a fim de se evitar conluio e má-fé, proporcionando tratamento justo aos credores.

Outra forma de se mitigar os princípios ora em comento dá-se quando o título de crédito é vinculado expressamente ao contrato que o originou, oportunidade em que, segundo posicionamento unânime doutrinário e jurisprudencial, o endossatário adquirirá direito derivado como se cessão civil fosse.

No mesmo sentido, conforme já sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, a nota promissória vinculada à contrato de abertura de crédito bancário perde a abstração peculiar dos títulos de crédito por servir apenas como garantia do negócio jurídico subjacente, desvirtuando-se de sua finalidade, que é a promessa de pagamento.

Por fim, a mitigação dos princípios da autonomia, abstração, independência e inoponibilidade deve-se dar quando há sérios indícios de fraude na emissão do título de crédito, constituindo-se em flagrante desrespeito à ordem jurídica, à boa-fé objetiva e à função social do contrato, oportunidade em que a ilicitude do negócio subjacente se estenderá à cártula.

No entanto, essa mitigação só poderá ocorrer se, circulado o título, o endossatário tinha condições de verificar a licitude do seu negócio fundamental. Esse

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é o caso das empresas de factoring, que têm amplo poder para escolher as pessoas jurídicas com quem contratarão.

Porém, há de se ter extrema cautela na mitigação ora tratada, sob pena de se causar insegurança jurídica ao se desproteger o instituto do título de crédito retirando-lhe seus princípios caracterizadores, ou ver a injustiça reinar ao proteger título advindo de relação jurídica ilícita.

Assim, posta a controvérsia, deve-se prevalecer a solução que mais se aproxime com a justiça, tendo-se sempre em vista a probidade, a boa-fé, a função social dos contratos, os bons costumes e a intenção normativa, princípios básicos a serem seguidos para se alcançar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil constantes do artigo 3º da Constituição Federal.

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