a importancia do canto coral

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  • Vol. 7 - N 1 - 2007 99MSICA HODIE

    O PROCESSO DE SOCIALIZAO NO CANTO CORAL: UM ESTUDO SOBRE AS DIMENSES PESSOAL,

    INTERPESSOAL E COMUNITRIATHE PROCESS OF SOCIALIZATION IN THE SING CHOIR: A STUDY ABOUT THE

    PERSONAL, INTERPERSONAL AND COMMUNITARIAN DIMENSIONS

    liton Pereira (EMAC/UFG)[email protected]

    Miri Vasconcelos (SEED/GO)[email protected]

    Resumo: Este estudo de ps-graduao analisa as dimenses: pessoal, interpessoal e comunitria presentes no processo de socializao no canto coral. A hiptese de que a atividade do canto coral implica no desenvolvimento humano enquanto agente socializador fundamentada por um referencial terico que tem por base a sociologia, a psicologia educacional e a pedagogia musical. Propomos, alm da reflexo terica, um estudo de campo no qual entrevistas realizadas junto a regentes de cros institucionais de Goinia revelam a conscincia destes profissionais sobre o potencial de socializao e sociabilizao presentes no canto coral. Palavras-chave: Canto coral, Socialidade, Sociabilidade, Regentes de cro.

    Abstract: This after-graduation study analyzes the dimensions: staff, interpersonal and communitarian - gifts in the process of socialization in sing choir. The hypothesis of that the activity of choir implies in the human development as agent of socialization is based by a theoretical referential that has for base the sociology, the educational psychology and the musical pedagogy. We consider, beyond the theoretical reflection, a study of field in which interviews with institutional choirs regents of Goiania. This study showed the conscience of these professionals allusive to the potential of socialization and sociabilizao of the choir.Keywords: Sing coral, Sociality, Sociability, Regents of choir.

    Introduo

    A prtica de canto coral uma das mais remotas formas de inte-grao social. Isto possvel de ser verificado nos escritos sobre a formao do homem grego e nas atividades scio-musicais nas demais civilizaes antigas (BEYER, 1999; JAEGER, 2001). Na histria da humanidade o canto em grupo comumente foi uma prtica constante e engendrada de socializa-o. Na histria da igreja crist, por exemplo, desde seus primrdios esta prtica foi uma atividade sempre presente na liturgia (PALISCA, 1988).

    O canto coral, em seus diversos aspectos e manifestaes, est presente na grande maioria das culturas mundiais, o que mostra que esta

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    atividade um tipo de ao especificamente social, cultural e humana (VI-GOTSKY, 1998). Na histria do Brasil a presena do canto coral enquanto agente social pde ser verificada com a chegada dos jesutas, mas mesmo nas atividades vocais em grupo dos ndios brasileiros e dos africanos tra-zidos para o Brasil j era possvel constatar o canto enquanto prtica so-cial-cultural (MARIZ, 1994). Posteriormente, j no sculo XX, o principal movimento que focou e abriu espao para o canto coral no Brasil enquanto prtica cultural e educativa de sucesso foi o movimento do Canto Orfeni-co desenvolvido por Villa Lobos (1976).

    O canto coral, enquanto prtica social e enquanto atividade edu-cativa-musical estudado por alguns autores que enfatizam os aspectos re-lacionados aos benefcios desta atividade para o desenvolvimento de seus integrantes nas dimenses pessoal, interpessoal e comunitria (MATHIAS, 1986; GROSSO, 2004; ANDRADE, 2003). Estes pesquisadores confirmam a hiptese de que a atividade coral uma trama rica de possibilidades for-madoras de humanizao e socializao.

    Por outro lado, verifica-se que os programas educativos da atualidade no tm dado a ateno devida para o potencial formativo da atividade coral (PENNA, 1999, 2001). Acredita-se que pesquisas que revelem os potenciais scio-educativos desta prtica possam colaborar para fortalecer o desenvolvi-mento de projetos e aes ligadas educao musical, cultural e social.

    Diante desta contextualizao propomos as seguintes questes: 1) Quais as principais contribuies das cincias sociais, da psicologia edu-cacional e da pedagogia musical para esclarecer o potencial de socializa-o da prtica coral? 2) Como os regentes corais encaram o potencial de socializao da prtica coral nas dimenses pessoais, interpessoais e co-munitria? 3) Seria possvel uma sistematizao das dimenses relativas s contribuies da prtica coral, com finalidade de se conscientizar sobre sua riqueza enquanto agente musicalizador e socializador?

    A partir destas questes concernentes ao objeto de estudo, propomos analisar os aspectos do processo de socializao no canto coral nas dimen-ses pessoais, interpessoais e comunitria. A hiptese de que a atividade de canto coral implica no desenvolvimento do humano enquanto ser social verificvel em funo de um referencial terico que tem por base a sociolo-gia (OLIVEIRA, 2001; NANNI, 2000), a psicologia educacional (VIGOTSKY, 1998) e a pedagogia musical (MATHIAS, 1986; SOUZA, 1996, 2004).

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    Nesse sentido, alm da busca pelo referencial terico, ainda foi realizado um estudo de campo por meio de entrevistas realizadas junto a regentes de cros institucionais de Goinia. Esta pesquisa de campo con-tribuiu para verificar dois aspectos importantes. Inicialmente, revelou o nvel de conscincia dos entrevistados sobre o potencial de socializao presente no canto coral e, posteriormente, mostrou que nossa hiptese confirmada por meio dos dados colhidos nas experincias profissionais e de vida dos entrevistados, aqui devidamente confrontados com o referen-cial terico em nossas anlises de cunho qualitativo.

    1. Sociologia e pedagogia musical no canto coral

    Acredita-se que a sociologia, a psicologia educacional e a pedago-gia musical possuam abordagens tericas comuns e complementares que podem clarear questes relacionadas ao desenvolvimento de competn-cias de socializao e sociabilizao presentes na atividade coral. Segundo Brunner e Zeltner (1994. p. 241), socializao o processo pelo qual um indivduo desenvolve suas formas especficas e socialmente relevantes de comportamento e de vivncia, convivendo ativamente com outras pesso-as. Fend (1969) distingue, neste processo, o fazer social e o tornar-se social. No caso do fazer social, trata-se de como as diversas instancias da socializao influem no comportamento e vida dos indivduos e os modi-ficam. O tornar-se social considera o processo da socializao do ponto de vista do indivduo: de que forma o indivduo experiencia as medidas de socializao e de que forma se realizam nesta ocasio as modificaes de vida e de comportamento. Neste contexto, se evidencia que o processo da influncia das instncias de socializao sobre o indivduo se d em forma de mtua interdependncia.

    nesse sentido que Brunner e Zeltner (1994) afirmam que sociali-zao e educao se situam lado a lado. O processo de socializao, assim como o de aprendizagem, algo que dura a vida toda. Oliveira (2001) es-clarece que as principais instncias de socializao so: a famlia, a esco-la, o grupo de companheiros, as instituies de formao profissional e o campo social do local de trabalho.

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    Assim, as cincias sociais se ocupam do estudo sistemtico do com-portamento social do ser humano. O objeto das cincias sociais, neste caso, o homem e suas relaes sociais. A cincia social preocupa-se em contri-buir para o melhor entendimento dos fatos e processos sociais. Est dividida em disciplinas, como a sociologia, economia, antropologia e poltica. Nesse sentido, alm das especificidades citadas, nos interessa o ponto que liga as cincias sociais aos processos de socializao e como se realizam estudos voltados para busca de dados e evidncias no mbito da sociologia.

    O mtodo cientfico em sociologia, segundo Oliveira (2001), vai alm do simples empirismo. Para ele, apesar de que, a atual fase a da tcnica, da preciso, do planejamento; o mtodo tem seus limites e no substitui o talento, a busca por grandes hipteses e a reflexo. Buscam-se evidncias nas relaes entre processos sociais e resultados individuais ou grupais e uma interpretao destas evidncias pelo vis reflexivo prece-dido pela busca seleo e coleta de dados por meio de observaes dos materiais concretos produzidos no mbito social.

    Fica evidente, deste modo, a necessidade de se partir de fatos constatveis em anlises sociolgicas. mile Durkheim (1973) explica que necessrio ter os fatos sociais como princpios e necessrio determinar quais so estes fatos. Segundo ele certos fatos apresentam caractersticas especiais, estas consistem em maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivduo e dotadas de poder coercitivo. Constituem, portanto, uma espcie de fatos que devem ser qualificados como fatos sociais.

    Nesse sentido, acreditamos que h um processo de socializao no canto coral e, consequentemente, um desenvolvimento favorvel ao par-ticipante desta atividade. Este desenvolvimento acredita-se, propiciado pelas relaes travadas entre as pessoas, porm tendo como canal e vnculo entre elas aquilo que seria o elemento principal a msica, que traz novas formas de agir, pensar e sentir. Necessariamente, parte-se do pressuposto que esta arte essencialmente uma manifestao social e que, no canto coral, a msica contextualiza as relaes sociais influenciando o processo de formao dos participantes.

    Faz-se necessrio, desse modo, procurar neste contexto as relaes que se estabelecem entre corista/coristas, corista/regente, corista/comuni-dade e corista/msica. A conscincia sobre este universo de relaes im-portante, pois nele que se d o dia-a-dia de um coral e se constitui novas

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    possibilidades de construo de novos saberes e atitudes. Assim, interes-sa-nos compreender como se d neste contexto o processo de socializao (maneiras de agir, pensar e sentir; representaes e aes; fenmenos ps-quicos; fatos sociais). Mas, o que socializar?

    2. O processo de socializao

    Segundo Oliveira (2001), a sociologia clssica salienta a diferena entre socializao primria e secundria: a primeira inicia com o nasci-mento e pode-se dizer que se conclui depois de uma srie de passagens at o incio da vida adulta. A segunda compreende todo o aprendizado que o indivduo deve realizar no trabalho, no relacionamento com os colegas, em casa, na relao a dois, no tornar-se pai ou me at a terceira idade. Segundo Lev Vigotsky (1998) o processo de socializao o que o capacita psicolgica e culturalmente o homem em formao a ser um cidado de uma coletividade e de uma cultura.

    Nanni (2000), afirma que o processo de tornar-se membro de uma coletividade e a contnua adaptao que este ato requer, abarca fenmenos, que tradicionalmente, pertencem psicologia e sociologia. Segundo o autor este dito fenmeno socializao, no pode ser fechado dentro dos limites disciplinares. O primeiro evento que ocorre, no desenvolvimento do ser humano, referente ao processo de socializao a conscincia sobre a existncia de um EU (si mesmo) e posteriormente sobre o OUTRO (que no eu). Mas, o trabalho da formao do EU no pode amadurecer seno com a progressiva aquisio da linguagem. Com este recurso novos estra-tos, mediados por smbolos, apoiar-se-o para formar um indivduo.

    Nanni (2000, p. 113) aponta uma srie de fatores desenvolvidos no processo de socializao primria, que so discutidos pela psicologia educacional. importante salientarmos que estes eventos construdos na primeira infncia reorientam as relaes sociais, o processo de desenvol-vimento e o processo de aquisio de conhecimentos. Nanni (2000) chama de modelo geral de socializao os seguintes fatores: a) A linguagem; b) O saber natural ou senso comum; c) As regularidades sociais; d) A cons-cincia sobre papis e representaes; e) A construo da identidade; f) Valores. Porm, tambm nos interessa o conhecimento sobre os aspectos

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    relacionados forma de vida musical de terminado grupo ou de determi-nada pessoa.

    Acredita-se que este modelo geral relevante, porque o mesmo es-clarece, por exemplo, como e em que nveis acontecem as relaes sociais e os processos de internalizao de padres sociais. Os padres, presentes no mbito do canto coral, interessa-nos medida que possvel identificar aqueles que contribuem para o desenvolvimento dos seus participantes, ou seja, interessa-nos identificar o que contribui como contribui e para quem contribui.

    3. Um modelo de socializao musical

    De acordo com o modelo de socializao exposto acima, Nanni (2000) formula uma hiptese dedicada formao de conhecimentos re-lacionados ao que ele chama de uma forma de vida musical. Entre as infinitas informaes, que a partir do nascimento adquirimos, algumas dizem respeito, em modo mais ou menos direto msica, aos msicos, aos concertos, aos discos. Acredita-se que estes conhecimentos e todo de-senvolvimento que o canto coral propicia, tem sido subestimado. O autor complementa este nosso raciocnio:

    (...) neste caso, os conhecimentos que a pessoa absorve sem uma ins-truo explcita so muitos (freqentemente subvalorizados)... Com efeito, o modelo de competncia musical pode funcionar muito bem para descrever o que a pessoa sabe de msica, mas no tem conscin-cia. (Nanni, 2000, p. 124)

    O autor enfatiza, ento, o prprio processo de formao deste sa-ber, a troca constante entre sujeitos e cultura-ambiente e a criao de ex-pectativas e motivaes relativas msica. Este processo ocorre de maneira implcita, automtica e involuntria, onde a criana, por exemplo, comea a elaborar sua conscincia do mundo e, tambm, da msica.

    Mesmo na ausncia de uma interveno claramente didtica, como no caso, por exemplo, do canto coral de uma empresa, ou entidade cultural (que no seja educativa), as crianas, adolescentes ou adultos so levados a contatos episdicos com a msica e com os msicos. Estes participantes entram em um nvel de um saber musical possvel, como um conjunto

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    de expectativas e conhecimentos que todos os cidados da nossa sociedade podem ter acesso simplesmente vivendo, comunicando e observando.

    Nanni (2000, p. 125) divide este saber musical possvel (SMP), em: 1) Saber de referncia: O que msica? Quem o msico? Quem se tornar um msico? Como se tornar msico? 2) Saber de orientao: O que uma pea musical? Que tipo de sentido posso esperar escutando uma pea mu-sical? O que um gnero, um estilo, uma forma? O que posso esperar de um gnero, estilo e forma musical? 3) Saber do objeto: O que me diz? Que efei-to exerce sobre mim? Que sentido ou significado tem esta pea musical?

    O autor defende que esta tipologia de conhecimento musical aberta porque tenta compreender tudo o que compe uma forma de vida musical, e porque tenta dar conta de certa variabilidade subjetiva. Nesse sentido, complementa:

    Grande parte destes conhecimentos so, na realidade, conhecimentos / expectativas e so absorvidos pelos indivduos por meio de trocas com a cultura-ambiente, atravs dos processos de assimilao e revelao de regularidade (...). (Nanni, 2000, p. 125)

    Desse modo, aparecem dois conceitos essenciais, o de REGULA-RIDADE (ou padres), e o de TROCA(s). Enfatizamos que os contextos re-ferentes a determinados ambientes culturais (modo de vida musical), por suas peculiaridades especficas, potencializaro trocas diferenciadas e re-gularidades diferentes tambm sero observveis.

    Nesse sentido, interessa-nos identificar quais regularidades pos-sveis esto presentes no contexto do canto coral e como a troca social destes padres de conhecimento e comportamento. Verifica-se ento, que h um processo educativo no formal presente no canto coral, que possui um contedo especfico (regularidades de informaes e comportamen-tos), uma didtica ou pedagogia prpria (troca social).

    4. Contribuies da sociologia para a educao musical

    Souza (1996, 2004), apresenta um balano das contribuies te-ricas e metodolgicas da perspectiva sociolgica para a educao musical. Explicita as vinculaes das investigaes em educao musical com os

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    contextos em que se desenvolvem as aes educativas, mostrando as pos-sibilidades de dilogo que a sociologia tem aberta educao musical.

    A pesquisadora afirma que, diante das significativas transformaes sociais por que passamos atualmente, as cincias da educao so insufi-cientes aos debates e as interrogaes que anteriormente vinham sendo co-locadas, fazendo emergir novas construes tericas que relacionam socio-logia e educao. Segundo Souza (1996, p. 11), uma das contribuies mais recentes dessa rea o paradigma que toma o ensino como prtica social.

    Admiti-se, desse modo, a relevncia das abordagens plurais do fenmeno educativo. Souza (1996) afirma que se faz necessria a contex-tualizao de todos os atos, seus mltiplos determinantes, a compreen-so de que a singularidade das situaes educativas necessita de perspec-tivas, histricas, sociolgicas e psicolgicas (BEIILLEROT apud SOUZA, 1996, p. 12).

    Segundo Souza (2004), o primeiro princpio saber que a msica um fato social e em segundo lugar necessria uma abertura s dimenses e funes que o conhecimento em msica pode abranger. Nesse sentido, Souza (1996), afirma que importante saber o que um socilogo faz. Para Berger (1991, apud SOUZA, 1996, p. 17), o socilogo uma pessoa que se ocupa de compreender a sociedade de uma maneira disciplinada. O seu in-teresse essencialmente terico, pois no necessita estar envolvido com a aplicabilidade e conseqncias prticas de suas concluses, mas sua curio-sidade diante do mundo o leva a questionar, procurando respostas no estu-do das instituies, da histria e das paixes humanas. Ele tenta descobrir o que est por trs e alm das fachadas das estruturas sociais procurando uma nova faceta ainda no percebida e nem entendida.

    Algumas perguntas orientam o questionamento sociolgico e sua relao com a educao pode ser complementar. Por exemplo, o que as pessoas esto fazendo umas com as outras aqui? Quais so as relaes en-tre elas? Como essas relaes se organizam em instituies? Quais so as idias coletivas que movem os homens e as instituies?

    Outra necessidade presente no ato sociolgico a busca pelo ou-vir as pessoas e instituies antes de apresentar suas prprias opinies, onde esta sensibilidade mais que uma qualidade. algo que tem impacto direto sobre a prpria percepo sociolgica. Ento, a sociologia torna-se importante para a pesquisa em educao musical. Em primeiro lugar, des-

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    taca-se que a sociologia est sintonizada com o carter da era moderna justamente por representar a conscincia de um mundo em que os valores tm sido radicalmente relativizados. Esta pluralidade cultural, de valores, de intenes, de buscas tende a solicitar sempre uma contextualizao ou re-contextualizao, quando se muda o local, as pessoas, as instituies. Ou seja, cada universo social possui uma peculiaridade prpria nas re-laes travadas e conseqentemente aes diferenciadas. Alm disso, na pesquisa social so importantes: a lgica-cognitiva, a tcnica comunica-cional e psicolgica que trazem segundo Souza (1996, p. 19) um abalo aos modelos tradicionais de pesquisa em educao musical.

    6. Pressupostos psicolgicos e pedaggicos

    Acredita-se que o objeto desta pesquisa deva ser analisado por meio de abordagens tericas que possam esclarecer como se d o desen-volvimento dos participantes do canto coral. Lev Vigotsky (1991, 1998) e as premissas do mtodo dialtico relacionam as mudanas qualitativas do comportamento que ocorrem ao longo do desenvolvimento humano com o contexto social. Procuram esclarecer a importncia das reflexes sobre a questo da educao e de seu papel no desenvolvimento humano. Dedican-do-se ao estudo da aprendizagem e desenvolvimento, integrando aspectos biolgicos, psicolgicos e antropolgicos. Segundo Cole & Scribner (1992, p. 7), Vigotsky foi o primeiro psiclogo moderno a sugerir os mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte da natureza de cada pessoa.

    Vigotsky (1998) aborda o desenvolvimento dos mecanismos psico-lgicos desenvolvidos socialmente, que so os mais sofisticados as cha-madas funes psquicas superiores tpicas da espcie humana: o controle consciente do comportamento, ateno e lembrana voluntria, memoriza-o ativa, pensamento abstrato, capacidade de planejamento. Esta uma das suas hipteses principais que aqui importante para compreendermos que a aprendizagem musical se d no nvel social.

    Nesse sentido, suas idias so aqui vinculadas hiptese de que o canto coral desenvolva, a partir de sua dimenso social e musical, poten-cialidades nos sujeitos atores de seu cenrio social especfico. Desse modo, acredita-se que a msica e o fazer musical, seja compondo, arranjando,

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    tocando ou cantando, ouvindo e apreciando, possua esta capacidade. De desenvolver nos indivduos e nos grupos sociais todas as caractersticas do processo de aquisio de conceitos e comportamentos mais elaborados, mais complexos e abstratos, enquanto processo para esse desenvolvimento e enquanto reflexo do desenvolvimento de um dado contexto social. Todo desenvolvimento musical e cultural passa pelas relaes sociais contextu-alizadas.

    Segundo Bock (2001), a psicologia scio-histrica de Lev Vigotsky realiza crticas s posies reducionistas e incentiva a produo de uma psicologia dialtica. Carregando consigo a abertura e possibilidade de cr-tica. A teoria scio-histrica e a psicologia scio-histrica concebe o ho-mem como ativo, social e histrico (BOCK, 2001, p. 17). Para esta teoria, falar de fenmeno psicolgico obrigatoriamente falar da sociedade. Pois a compreenso do mundo interno exige a compreenso do mundo exter-no. Ento, o fenmeno psicolgico deve ser entendido como construo no nvel individual do mundo simblico que social (BOCK, 2001).

    Bourdieu (1989) prope, tambm, que o entendimento de como as disposies adquiridas (habitus) no processo de socializao vo se transformando em aes e comportamentos observveis (explcitos) dos sujeitos. Segundo Vasconcellos (2002, p. 79) essa matriz determinada pela posio social do indivduo encaminha julgamentos estticos e morais que explicam, embora parcialmente, o gosto manifesto e os juzos de valor emitidos pelas pessoas quanto s prticas musicais. O conceito de habitus ajuda a entender a relao sujeito/sociedade (subjetividade/objetividade) na viso de que no h uma absoluta autonomia, e sim uma independn-cia do indivduo na apropriao e expresso dos bens culturais uma vez que pelos habitus incorporados acontece a interiorizao da exterioridade expressa nas vises de mundo que informam o senso comum.

    Compreendendo esta complexidade das relaes sociais como es-senciais para o desenvolvimento humano, Vigotsky (1998) afirma que to-das as funes psicolgicas superiores, necessitam ser aprendidas ao longo das interaes da pessoa com o ambiente cultural no qual ela se encontra e que essas funes, invariavelmente, seguem uma orientao no sentido fora-dentro, ou seja, descrevem uma trajetria desde o exterior (plano in-termental) at o interior do sujeito (plano intramental). Tais funes tm necessariamente que ocorrer antes entre pessoas, no nvel interpsicolgico

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    ou social, para s ento passarem a existir no plano intrapsicolgico, indi-vidual e subjetivo.

    Nesse sentido, todo processo de ensino/aprendizagem ou contato social/cultural implica em uma relao dialtica, onde ambiente e socie-dade contribuem para construo dos aspectos cognitivos superiores no sujeito. No qual, necessariamente, o pensamento conceitual, valores, nor-mas e o conhecimento so desenvolvidos via processo de internalizao mediada pelos signos culturais.

    7. Dimenses pessoal, interpessoal e comunitria no canto coral

    Mathias (1986, p. 16) demonstra que h trs nveis de interveno da prtica da msica coral no indivduo. Explicita estas dimenses em cinco partes principais: pessoal, grupal, comunitria, social e poltica. No entanto, consideramos mais conveniente tratar neste estudo apenas as di-menses: pessoal, interpessoal e comunitria.

    O autor afirma que a msica se trata de uma fora nica, vinda de uma ao comum, capaz de comunicar o concreto do mundo dos sons, o abstrato da beleza da harmonia e a plenitude transcendental. Esta comum ao do som nos dada pela unidade que o princpio de todas as coisas que se vem na natureza (MATHIAS, 1986, p. 15). A msica atravessa as estruturas de nossas identidades, harmonizando-nos com o nosso eu inte-rior (dimenso pessoal), com o outro social (interpessoal) e com a socieda-de em que vivemos.

    Acredita-se que o canto coral seja uma prtica engendrada de pos-sibilidades relativas a essas dimenses, porque propicia relaes com a msica de forma direta, relaes subjetivas nas quais podemos nos comu-nicar conosco mesmos em uma esfera de relao harmonizadora. Temos, tambm, neste contexto, contato com pessoas com propsitos comuns a alegria de cantar e de se expressar por meio dos sons da voz. Juntos po-dem transmitir mensagens, ideologias e atitudes para a comunidade. Estes valores so internalizados por um processo de interveno da msica. Ou seja, a dimenso (sonora) abre caminhos para a troca e a internalizao de conceitos e comportamentos em muitos casos mais harmonizados com a humanizao nas relaes.

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    8. Entrevistas junto a regentes de cros institucionais de goinia

    Com o objetivo de ter um referencial de dados advindos da prtica cotidiana do canto-coral realizamos entrevistas junto a regentes de cros institucionais de Goinia. Estas entrevistas semi-estruturadas permitiram verificar os aspectos importantes desenvolvidos por meio da prtica do canto coral na viso dos quatro regentes entrevistados e, tambm, como estes profissionais encaram as dimenses: pessoal, interpessoal e comuni-tria, presentes na prtica coral.

    Expomos em seguida as perguntas feitas aos regentes. Estas en-trevistas foram inicialmente gravadas e posteriormente transcritas e ana-lisadas: 1) Voc acredita que o canto coral importante? Por qu? 2) Quais so os aspectos mais importantes desenvolvidos por meio da pr-tica do canto coral? 3) Quais so as habilidades desenvolvidas por meio da prtica do canto coral, alm das competncias musicais? 4) Qual a importncia do canto coral para a sociedade? 5) Voc acredita que o can-to coral desenvolve a sociabilidade? 6) O corista desenvolve a relao interpessoal? Como? 7) E, intrapessoal; nas relaes internas do prprio indivduo? 8) Voc acredita que o canto coral uma oportunidade de aproximar as pessoas; como se d, ento, essa aproximao? 9) Qual se-ria o papel do regente enquanto viabilizador dessas relaes; do grupo, um com o outro, e do coral com a sociedade? 10) Voc acredita que as competncias de socializao desenvolvidas na prtica do canto coral podem ser re-utilizadas em outros contextos sociais? De que forma seria essa re-aplicao? 11) Pra finalizar eu queria que voc falasse um pouco sobre sua experincia como regente de cros nas dimenses trabalhadas: pessoal, grupal e comunitria como tem sido a sua experincia como regente?

    Utilizamos quadros para explicitar as categorias de anlises das informaes coletadas, de acordo com as dimenses P (pessoal), I (inter-pessoal) e C (comunitria) que foram teis para organizar o processo analtico e tornar mais clara as evidncias das intervenes do canto coral nestes nveis de relaes especficos. Os regentes entrevistados tiveram suas identidades conservadas no anonimato e aqui so identificados por R1, R2, R3 e R4.

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    8. A dimenso pessoal no canto coral

    Na dimenso pessoal, inicialmente, podemos perceber que a ques-to da identidade pessoal ressaltada pelos regentes. Segundo Nanni (2000, p. 113) o trabalho de formao do EU no pode amadurecer seno com a progressiva aquisio do instrumento humano mais importante: a lingua-gem. Deste modo, compreendemos que esta linguagem, da qual fala Nan-ni, ampla e pode, na verdade, abarcar o todo de regularidades presentes nas falas sociais, ou seja, nos comportamentos acordados pelo grupo. No objetivo de trabalhar diretamente com um grupo coral, com ideais comuns, verifica-se que o sujeito desenvolve, por meio desta troca, uma conscin-cia maior de seu prprio EU, tendo a msica como ferramenta de abertura para esta possibilidade.

    O regente R1, respondendo a primeira questo, afirma que:

    (...) por ser uma atividade prtica, as pessoas tm mais possibilidades de exercitar isso, pelo fato de que quando a pessoa canta, ela est mos-trando quem ela . Eu acho que a pessoa melhora muito como pessoa participando de uma atividade de canto coral.

    J o regente R2 explica que:

    (...) o canto coral um elemento socializador, eles [os coristas] vo l [no coral] porque bom, legal; eles conhecem amigos, eles vo can-tar e colocar as neuras pra fora.

    O regente R4 quem expe melhor esta questo. Ele afirma que verifica que:

    (...) o interessante eles estarem de frente ao pblico. Ele [o corista] mostra que ele capaz de troca com os outros, ao se posicionar em frente a uma platia, de se expressar vocalmente, de lanar a voz. A voz a coisa mais difcil de ser lanada. Quando voc treina isso, quando voc joga a voz pra fora voc se estabelece como pessoa, voc ganha segurana para voc mesmo. uma forma de ganhar firmeza.

    Deste modo, verifica-se que os regentes tm se deparado com o desenvolvimento deste potencial intrapessoal. Isto confirma os dizeres de Nanni de que a construo da identidade um processo de elaborao que tenta extrair ordem de uma multiplicidade de percepes, fatos, e estado

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    de coisas. A linguagem e o papel social so importantes neste processo de identificao e ordenao da auto-percepo e esta construo de identi-dade no diz respeito somente s crianas e adolescentes, seres humanos notadamente em desenvolvimento, mas, tambm, a qualquer sujeito social que mantm contato cultural ininterruptamente, por meio do qual tem seu EU modificado por essas internalizaes.

    Respondendo dcima questo o regente R1 diz:

    (...) Eu acredito que so re-aproveitadas porque no coral voc trabalha diretamente no indivduo. Ento, todas as qualidades que ele adquirir por meio do canto coral, que vo mold-lo como pessoa podem ser re-aplicadas em outras situaes sociais.

    Ou seja, h um aprendizado sobre si mesmo e uma tomada de conscincia de sua prpria pessoal por parte do corista por parte daquele que se abre para se relacionar socialmente e tem por alvo, o objetivo de um grupo, que fazer msica. Assim, tornar-se social implica em modificaes de vida e de comportamento; implica em ter aspiraes e valores re-signi-ficados. Neste caso, a msica trabalha indiretamente no aspecto profundo das aspiraes de cada participante. O sublime, a arte, e o belo tornam-se valores significativos para os sujeitos que tm a oportunidade de realizar um trabalho prazeroso em conjunto e tm a apresentao final como um resultado deste processo e deste trabalho em grupo. Mesmo tendo o tra-balho musical como foco, as pessoas participam do coral e tm suas vidas transformadas porque neste contexto possvel haver significativas trocas sociais. Segundo Nanni (2000, p. 125) grande parte destes conhecimentos so, na realidade, conhecimentos/expectativas absorvidos pelos indivdu-os por meio de trocas com a cultura-ambiente, por meio dos processos de assimilao e revelao de regularidades.

    Estas regularidades e esses habitus pertencentes a esse espao so-cial modificam o cotidiano, aqui entendido por domnio das aes indi-viduais, rotineiras e no organizadas (SOUZA, 2000, p. 36), como espao de reconhecimentos, de relaes e de uma trama em que o sujeito se move, ancora sentidos de recepes e mediaes. O regente R1, respondendo dcima primeira questo, expe um exemplo muito interessante que de-monstra como o cotidiano pessoal transformado pelos novos habitus ad-quiridos por meio do contanto social via canto coral. Ele testemunha:

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    Tem um amigo que eu nunca esqueci, porque convivi com ele duran-te alguns anos, e depois de alguns anos sem v-lo ele me procurou chorando e agradecendo por participar do canto coral, e ele disse que depois de ter participado do coral que ele se sentiu um ser humano melhor. Ele me disse que ele era uma pessoa muito agressiva, que ele no conseguia se relacionar com as pessoas, ele era muito impaciente; disse que re-aprendeu tudo isso na convivncia com o coral, alm do conhecimento musical e cultural que ele adquiriu.

    A relevncia do canto coral na vida em sociedade sem dvida algo material e concreto. Isto deve ser ressaltado pelos cursos e os regentes no podem ficar alheios a essa complexidade, na qual, esto inseridos se-res sociais e singulares.

    9. A dimenso interpessoal no canto coral

    Acredita-se que as relaes interpessoais so desenvolvidas no contexto do canto coral. H neste contexto a necessidade de ceder, de se abrir para o outro, de seguir normas, regras, de obedecer hierarquias e de se posicionar em uma funo simblica e social especfica. Tudo isso tra-balha no indivduo padres e formas de compreender melhor as relaes sociais interpessoais. De acordo com Fend (1969) o fazer social como as diversas instancias influencia o comportamento e vida dos indivduos e os modificam. As regularidades e os conceitos sociais ou sensu comum, presentes no contexto do canto coral engendra no indivduo formas de ser e estar na relao com o outro.

    O regente R1, respondendo a primeira questo, afirma que o canto coral ajuda na formao do indivduo por ser uma atividade em grupo. Essa atividade em grupo trabalha nos nveis individuais primeiramente, como j vimos. E em segundo lugar, este individual trabalhado ter possi-bilidades de se harmonizar com o social. H um desenvolvimento da socia-lidade. O regente R1, respondendo quinta questo, diz que por meio do canto coral a pessoa vai desenvolver o aspecto social, o aspecto pessoal e o aspecto cultural de maneira geral. Posteriormente, respondendo oitava questo, o regente R1 afirma que:

    (...) quando voc participa daquele trabalho ali, interagindo, voc vai conhecendo as pessoas como elas so problemas, por exemplo di-

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    ficuldades que outras pessoas tm e que voc vai ver que voc tam-bm tem. Voc vai poder se identificar com as dificuldades de outras pessoas; e, isso vai criar certa proximidade tambm. (...) E, s vezes, at certa proximidade que as pessoas no tm oportunidade de ter at dentro da prpria famlia.

    Ou seja, o canto coral, na viso dos regentes, verdadeiramente aproxima as pessoas. Esta aproximao se d por meio do contato dirio ou semanal e permitir que o sujeito desenvolva competncias relativas socialidade. Nesse sentido, uma nova rede de valores passa a ser acordada e as atitudes de cada membro do grupo sero conduzidas para respeitar tais valores. Pois, de acordo com Nanni (2000) os valores sociais e individuais so diferenciados; o primeiro influencia o segundo e ambos so necessaria-mente absorvidos do ambiente e da experincia social.

    Estes valores so internalizados e as relaes sociais se tornam densas e significativas para os membros do grupo. A fala do regente R1, respondendo a nona questo esclarece, por exemplo, que o regente ami-go, conselheiro, confidente, pai, pai e me; , s vezes, uma pessoa em quem eles [os coristas] se espelham em relao aos seus objetivos pessoais que eles querem atingir.

    O regente R2 concorda com o primeiro e afirma que num nvel subjetivo, quando voc d um acorde e cinqenta pessoas cantam juntas uma comunicao inexplicvel!. Ou seja, h um despertar para o ou-tro. Na viso deste mesmo regente o regente atua como incentivador mo-derador e tradutor. Ele comanda, e os coristas so conduzidos pela sua liderana. H certamente uma abertura para que estas relaes permane-am em harmonia e, conseqentemente, h um aprendizado, mesmo que indiretamente, sobre comportamento hierrquico; sendo que, a figura de um msico o regente passa a ser um referencial para os participantes.

    No dizer de Nanni (2000, p. 125) h um saber de referncia musi-cal: o que msica? Quem o msico? Quem se tornar um msico? Como se tornar msico?

    Esta gama de conhecimentos conduz o indivduo a se sentir apren-diz. No importa se ele igual ou diferente, economicamente, socialmente e intelectualmente ao outro corista, pois todos neste momento se encon-tram em uma mesma condio. O regente R2 esclarece este ponto afirman-do que:

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    (...) realmente em qualquer idade e em qualquer nvel de instruo, qualquer nvel intelectual, das pessoas mais simples at as mais estu-dadas as mais letradas, no adianta; se todo mundo for leigo ou no, de diferentes nveis e origens; voc pe todas as pessoas numa sala e todo mundo vira o mesmo cantor, o mesmo corista com as mesmas dificuldades, objetivos, alegrias. Ento, muito democrtico esse as-pecto do canto coral.

    Ou seja, este carter democrtico do coral desenvolve tambm o conceito de cidadania no indivduo. Todos so iguais, no importando sua condio social ou pessoal. H um espao para que todos possam colaborar e participar de forma igual.

    Esta conscincia sobre o OUTRO, alm do EU, desenvolvida no trabalho do canto coral. Os regentes R3 e R4, respondendo respectivamen-te s questes sexta e stima, afirmam que: nesse trabalho em conjunto; cada cantor um universo diferente, e est ali com outras pessoas, est aprendendo a conviver, est respeitando o ponto de vista, est escutando o outro enquanto ele canta; e que ali ele vivencia a capacidade de respeitar o outro, a capacidade de interagir com o outro, esperar o tempo do outro, e o outro ter que esperar o seu tempo.

    Ao responder a nona e dcima questo, o regente R4 afirma que tudo isso contribui para que, (...) esteja no nvel social, mediando e equi-librando as diferenas que surgem nos grupos, abrindo possibilidades para que as pessoas adquiram confiana nelas mesmas e possam se expressar por meio da voz. Pois, por meio da interao, quando voc canta com o outro, quando voc aprende a esperar, quando voc aprende a respeitar, isso pode se refletir de outras formas, em outras relaes.

    Segundo os regentes, ento, h certamente um aprendizado e um desenvolvimento das relaes interpessoais no contexto do trabalho do canto coral. Novos habitus conduzem a novos procedimentos cotidianos possveis de serem re-aplicados, segundo os entrevistados, em outras situ-aes sociais.

    10. A dimenso comunitria no canto coral

    Certamente um coral uma instituio social importante, por reunir pessoas diferentes com ideais e propsitos comuns. Todo o trabalho desen-

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    volvido tem por objetivo a sua relao com a comunidade, com os concertos ou apresentaes. Este trabalho direcionado tende, certamente, a ampliar a conscincia de seus participantes para a relevncia desta relao institucio-nal. Ou seja, o canto coral propicia o desenvolvimento da sociabilidade.

    Assim, o saber natural ou senso comum, nos dizeres de Nanni (2000), considerado como aquele saber construdo em sociedade, inter-nalizado no sentido de levar seus participantes a se conscientizarem da relevncia de seu lugar na cultura ou na transmisso de um saber cultu-ral valorado historicamente. Ou mesmo um saber e fazer cultural/musical contido de significados ampliados pelas estruturas que abarcam a com-posio musical, o arranjo, o texto e as facetas subjetivas do grupo que se expe socialmente. Este conhecimento ou esta tomada de conscincia um dos possveis desenvolvimentos que esta prtica pode propiciar. Se-gundo o regente R1, na resposta quarta questo, em primeiro lugar a pessoa vai estar se ocupando com uma atividade que vai impedi-la de estar participando de outras coisas que no fazem bem para ela como cidado. Mais do que isso, a prtica do canto coral segundo o regente R2 um dos exerccios de cidadania que tem mais sucesso na nossa sociedade (respos-ta segunda questo). Na viso deste maestro, no contato com o pblico os coristas desenvolvem uma relao de comunicao que se d de forma subjetiva. Ele afirma que (...) a msica coral, ou qualquer msica capaz de mover os espritos, tomar as almas e isso j bem dito; ento, a msica coral tem esse poder, principalmente por causa do texto (respondendo terceira questo). Para ele essa interao com a sociedade muito impor-tante (respondendo quarta questo).

    Deste modo, desenvolve-se, segundo Nanni (2000), uma conscin-cia sobre papis e representaes. Nesse sentido, se d um crescimento do conhecimento social no aprendizado relativo a papis sociais (uma profis-so, por exemplo), formas de reciprocidade (funo social o que ele faz), e, representaes sociais (comportamento valorado).

    O corista passa a desenvolver um olhar para a sociedade e comu-nidade como instancia contida de estruturas. O coral enquanto uma estru-tura cultural passa a ser identificado enquanto tendo o papel ou funo social de transmisso cultural. Esta transmisso musical/cultural est con-tida de valores histricos, estticos e ticos. Tais valores so comunicados por meio dos conceitos, msicas, gestos, sons e vozes.

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    O regente R4, respondendo quarta questo, afirma que muito importante porque trazer a msica para as pessoas cantarem uma forma de resguardar a memria musical (...) o canto coral responsvel por man-ter vivo esse repertrio. Certamente o corista passa a tomar conscincia desta responsabilidade social. Passa na viso de Mathias (1986) a se preo-cupar, tambm, com os outros.

    H deste modo, uma rede de interferncias institucionais, cultu-rais e sociais na prtica do canto coral. necessrio que o msico, o re-gente de cro, e a sociedade como um todo, tenha uma maior conscincia sobre as dimenses de interferncias, pessoais, interpessoais e sociais que um coral pode abarcar.

    Concluses

    Acredita-se que reas de conhecimento, como a sociologia e psico-logia scio-histrica, so caminhos em aberto que podem contribuir para as pesquisas que relacionem msica e sociedade, msica e culturas e msica e educao musical. Como verificamos em nossas anlises, foi possvel ob-servar que os regentes possuem conscincia sobre vrias dimenses relacio-nadas socialidade e sociabilidade presentes no trabalho do canto coral.

    Os regentes afirmam que os participantes do canto coral desenvol-vem uma maior conscincia de sua identidade enquanto pessoa, enquanto indivduo e tem sua auto-estima trabalhada por ser um componente com funo institucional definida e que contribui para o grupo enquanto estru-tura cultural.

    Da mesma forma, os regentes concordam que os coristas desenvol-vem a socialidade, ou seja, cresce as relaes sociais entre os participan-tes. Neste contexto eles desenvolvem potencialidades que inclusive so re-aplicadas em outras situaes sociais. O canto coral aproxima as pessoas e esta aproximao permite que os mesmos estabeleam relaes de amiza-de, hierarquia, valores humanos e papis sociais interdependentes. Estas relaes interpessoais levam o participante a se tornar mais consciente de seu papel no respeito ao outro.

    Com relao sociabilidade, relao entre o corista e a sociedade, h tambm certo desenvolvimento ou tomada de conscincia sobre seu pa-

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    pel enquanto agente participante de uma instituio que possui um papel social cultural. Este contato com a sociedade se d por meio desta consci-ncia, no momento dos concertos e nas relaes estabelecidas diretamente com instituies.

    Verifica-se que o canto coral tem sido um agente propiciador da ampliao de relaes sociais; desenvolvendo a relao do indivduo co-rista, consigo mesmo, com o outro e com a comunidade scio-cultural na qual est inserido. A prtica musical vocal em grupo, alm de desenvolver a musicalidade, autocontrole, auto-estima e tantas outras potencialidades, um propiciador de relaes sociais harmonizadoras em vrios nveis. Sendo o desenvolvimento social importante para o ser humano, como afir-ma Vigotsky, o coral, por ser um local que propicia muitos contatos so-ciais, permite os sujeitos a se colocarem em situaes que os conduzem ao aprendizado e desenvolvimento de relaes com a msica, com os outros e com a comunidade.

    Acredita-se que a continuidade no desenvolvimento de pesquisas que ressaltam as dimenses lucrativas do canto coral venha contribuir para a conscientizao sobre os verdadeiros potenciais desta prtica e, quem sabe, contribuir para o desenvolvimento de projetos e aes ligadas valo-rizao da educao musical.

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    liton Pereira Mestre em Educao Musical pela Escola de Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois (EMAC-UFG). Licenciado em msica atua na rede estadual de ensino bsico. Profes-sor substituto no curso de licenciatura em msica da EMAC-UFG. Bolsista do curso de licenciatura em Teatro na modalidade distncia da EMAC-UFG. Pesquisa educao musical, novas tecnologias, interdisciplinaridade e EaD. Aluno especial do programa de doutorado em educao da UFG. Miri Faria Cavalcante Vasconcelos Regente de cro e educadora musical. Licenciada em msica e Especialista em educao musical e artes integradas pela Escola de Msica e Artes Cnicas da Uni-versidade Federal de Gois (EMAC/UFG).