a importância da língua francesa no brasil

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  • 8/6/2019 A importncia da lngua francesa no Brasil

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    A importncia da lngua francesa no Brasil: marcas e marcos

    dos primeiros perodos de ensino

    Cristina Casadei Pietraria1

    1Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo [email protected]

    Abstract: The study of school subjects allows us to understand not only thebackground and the transformation of contents vehiculated by them, but alsotheir important role in the overall formation of students as school culture is acomplex mechanism connected to political, religious and cultural contexts of

    each epoch that promotes both the instruction and the moral education of the students. Taking this importance into consideration, we are interested in theteaching of one the school subjects that contributed greatly to the cultural

    formation of several generations of Brazilian students during most part of thetwentieth century: the French language. We present in this article someimportant landmarks of its teaching from 1837 to 1942.

    Key words: School subjects; school books; French; teaching

    Resumo: O estudo das disciplinas escolares permite-nos compreender noapenas a trajetria e a transformao dos contedos por elas veiculados,

    como tambm seu importante papel na formao geral dos alunos, pois acultura escolar um complexo mecanismo ligado aos contextos poltico,religioso e cultural de cada poca, promovendo tanto a instruo quanto aeducao moral dos aprendizes. Considerando essa importncia,interessamos-nos pelo ensino de uma de suas disciplinas que muito contribuiu

    para a formao cultural de vrias geraes de aprendizes brasileirosdurante grande parte do sculo XX: a lngua francesa. Nesse artigo seroapresentados alguns marcos importantes de seu ensino de 1837 a 1942.

    Palavras-chave. Disciplinas escolares; manuais; francs; ensino.

    1. Introduo

    O estudo das disciplinas escolares permite-nos compreender, segundo autorescomo Chervel (1990) e Julia (2001)1, no apenas a trajetria e a transformao doscontedos por elas veiculados, como tambm seu importante papel na formao geraldos alunos, pois a cultura escolar um complexo mecanismo ligado aos contextos

    poltico, religioso e cultural de cada poca, promovendo tanto a instruo (transmissode contedos programticos) quanto a educao moral dos aprendizes. SegundoBourdieu (1967), a cultura escolar dota os indivduos de um corpo comum de categorias

    de pensamento e cumpre por isso uma funo de integrao lgica, moral e social. Nesse importante sistema de formao que a escola, as disciplinas e osmanuais utilizados adquirem um papel fundamental. E esse papel que nos interessa

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    aqui observar e analisar a respeito de uma disciplina que muito contribuiu para aformao cultural de muitos aprendizes brasileiros durante grande parte do sculo XX: alngua francesa. Nosso estudo faz parte do Projeto Temtico FAPESP Livros e

    Memria, coordenado pela Profa. Dra. Circe Bittencourt (FE-USP), e a pesquisa dosmanuais aqui citados foi realizada junto ao acervo didtico da APFESP (Associao dosProfessores de Francs do Estado de SP), na Biblioteca do Livro Didtico e nas

    bibliotecas Paulo Bourroul e Macedo Soares, essas trs ltimas localizadas naFaculdade de Educao da USP. Contamos tambm com os dados coletados em

    pesquisa de iniciao cientfica realizada por Sahsha Kiyoko Watanabe Dellatorre(bolsa FAPESP IC) sob nossa orientao.

    2. A lngua francesa como instrumento

    Em um texto de grande relevncia para a histria dos estudos brasileiros O

    francs instrumento de desenvolvimento , Antnio Cndido de Mello e Souza (1977)distingue alguns traos que definem a grande influncia da cultura francesa nos pasesda Amrica Latina a partir de suas independncias. Segundo o autor, esta cultura e sualngua tiveram, primeiramente, um papel de mediao entre as jovens naes e asdemais culturas vigentes. Foi por intermdio das tradues francesas, por exemplo, queos brasileiros do sculo XIX leram autores clssicos da literatura mundial, comoGoethe, Byron, Schiller, absorvendo tanto as interpretaes feitas quanto as lacunasdeixadas. Tal mediao trouxe, como conseqncia, a paulatina substituio do estudodas culturas e lnguas clssicas pelo estudo do francs, lngua considerada universalno incio do sculo XIX, em que a Frana atingira seu apogeu de prestgio e de funocivilizadora. Foi, portanto, por meio do francs cujo ensino era obrigatrio queaprendemos a ver o mundo, que adquirimos o senso da Histria, que lemos os clssicosde todos os pases, inclusive gregos e romanos (Cndido, 1977:12). O contato com alngua e a cultura francesa tambm nos permitiu adquirir uma maior humanidade nasquestes sociais, uma vez que no apenas a elite dominadora delas se alimentava, mastambm as classes dominadas buscavam sua inspirao nos ideais revolucionriosfranceses. Socialistas e anarquistas liam e se inspiravam na literatura francesa,trocavam entre eles livros de Balzac e principalmente de Zola, considerado como umgrande escritor humanitrio; gostavam de evocar os filsofos do sculo XVIII (...),chegavam mesmo a dar aos filhos nomes como Germinal. (Cndido, 1977:14). O hinonacional francs, no incio do sculo XX, era executado em manifestaes polticas, em

    comcios, em reunies operrias. E, finalmente, graas flexibilidade e universalidadeda cultura francesa, esta respondeu, mais do que qualquer outra, a inmerasnecessidades da constituio de nosso pas.

    O ensino obrigatrio da lngua francesa na escola secundria brasileira teveincio no sculo XIX, em 1837, com a criao do Colgio Pedro II, instituio imperialdestinada formao secundria e cujos currculos, enciclopdicos, apresentavam-secom uma feio dominantemente literria. Em um de seus primeiros programas deensino (1856, in Vechia, 1998:28), o francs consta como uma das principaisdisciplinas, a ser ensinada j no primeiro dos sete anos do curso:

    No primeiro anno, o alumno, depois de algumas preleces de Grammatica

    geral, aperfeioa-se na Grammatica e Lngua Portugueza, e comea a estudarlatim, francez, e arithmetica. (Vechia, 1998:28)

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    Percebe-se, nessa citao, a importncia da lngua francesa na formao bsicado aluno e isso em dois eixos. Primeiramente em relao a sua proficincia lingstica,

    uma vez que, j a partir do segundo ano, os manuais de algumas disciplinas, comozoologia, botnica, fsica e qumica, eram franceses (p.ex.: Guerin-Varry: Elments dechimie, prcds de notions de physique). No livro Belle poque Tropical, Jeffrey

    Needell afirma sobre o ensino ministrado no Colgio Imperial:

    O ensino ministrado sob olhares to severos baseava-se em obras de clrigos (...) bem como em textos franceses, tais como o Atlas de Delamarche, aGrammatica Franceza de Svene, as Nouvelles narrations franaises deFilon, a Histria romana de De Rosoir e Dumont, o Cours de Littraturefranaise de Charles Andr, o Cours lmentaire de philosophie de Barbe e oManuel dtudes pour la prparation du baccalaurat em lettres: Histoire

    de temps modernes. (Needell, 1993:78)

    A proficincia lingstica capaz de dar conta de tantas leituras em diferentesdisciplinas era buscada por meio do ensino tradicional da lngua, metodologia tambmconhecida como gramtica-traduo, vigente at o incio do sculo XX e que consistiano estudo do vocabulrio, da gramtica e da prtica da traduo-verso. Herdeira doensino ministrado para o estudo do grego e do latim, tendo de um lado um livro degramtica normativa e de outro um dicionrio bilnge ou listas temticas de palavrascom os termos equivalentes na lngua materna, o aluno exercitava-se traduzindo textos

    de preferncia e sempre que possvel literrios da lngua estrangeira para a lnguamaterna e vice-versa. (Coste, 1978).

    Christian Puren, em seu livroHistoire des mthodologies de lenseignement deslangues(1988), comenta um aspecto bastante interessante dessa metodologia. Para esseautor, a metodologia tradicional implantada na escola, ao herdar os pressupostos doensino do latim, herdou tambm uma coerncia fornecida do exterior pelo sistemaeducativo que permitiu uma economia em termos metodolgicos. Na realidade, sua

    principal caracterstica tcnica no a articulao entre a aprendizagem das regras e suaaplicao em exerccios, mas sim seu fraqussimo nvel de integrao didtica. Issoexplica a justaposio de diferentes atividades, propostas em uma ordem aleatria,durante uma mesma aula: os alunos podiam recitar uma lista de palavras e algumasregras de gramtica, como tambm fazer o ditado de um poema, corrigir uma traduo

    ou ainda comear uma verso oral sem que houvesse, entre os diversos materiaisapresentados, uma coeso temtica ou gramatical. E Puren conclui:

    Este fraco nvel de integrao didtica explica porque na MT [metodologiatradicional] escolar no se sente a necessidade do manual [grifo do autor] comoo generalizar a metodologia direta (...) At os anos 1870, em efeito, as grandeseditoras escolares s propem dicionrios, gramticas (simplificadas, semexerccios, ou cursos, com exerccios), obras e trechos escolhidos de autoresclssicos. (Puren, 1988 :60)

    Efetivamente, entre os livros indicados pelo Colgio Pedro II para o primeiro

    ano (programa de 1856), consta, no que diz respeito ao ensino do francs, aGrammatica franceza, de Emilio Sevne. A edio por ns localizada, tomo 1

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    Theoria, sem data, indica tratar-se de um novssima edio, corrigida e augmentada por um habilssimo professor de lingua franceza2 e estrutura-se em torno de tpicosgramaticais a partir do nome at as quatro figuras da syntaxe.

    Ao lado dessa gramtica, o programa indicava ainda duas outras obras Tlmaque eFables choisies, de Fnelon que, a nosso ver, indicam o segundo eixode formao: o eixo moral. Les aventures de Tlmaque, romance didtico de Fnelon,

    publicado em 1699 e dedicado educao do Duque de Borgonha, herdeiro presumidode Luis XIV. Dessa forma, essa obra faz parte do gnero literrio Espelhos dos

    prncipes, que compreende as obras destinadas educao principesca na Europa dossculos XVII e XVIII, mas que se tornaram exemplares da educao como um todo eserviam de modelo e de referncia para o pblico culto da poca. Nesse livro, Fnelonretrata as peregrinaes de Telmaco em busca de seu pai Ulisses, durante as quais amparado por Mentor, responsvel por sua educao na ausncia paterna.

    Nas atas do colquio Les Aventures de Tlmaque: trois sicles denseignement

    du franais, organizado em Bolonha em 2003 pela Sociedade Internacional para aHistria do Francs Lngua Estrangeira ou Segunda (SIHFLES), os autores dos diversosartigos so unnimes em afirmar a importncia no apenas moral e poltica da obra, mastambm seu interesse educacional, uma vez que entre as figuras de Telmaco e Mentorestabelece-se uma verdadeira relao pedaggica e, nesta relao, Fnelon muda ocentro de interesse do projeto pedaggico do objeto a ser ensinado para o sujeito, oeu do aluno.

    Era grande a preocupao com a formao dos jovens da poca, pois a escolaformava a elite brasileira. Svene que nos fala de seu pblico no Aviso aos Editoresda gramtica j citada:

    Indispensavel a muitos, a lingua franceza de summa utilidade para todos. Aconsiderao de que ella goza no Brazil, onde occupa distincto lugar a par daeducao, prova bastante da utilidade da obra cuja nova edio, hojeapresentamos ao Publico, e offerecemos em particular mocidade que frequentaos collegios, e aos mancebos que se preparo para depois nas Academias e nasFaculdades, entregarem-se a estudos mais elevados. (Svene, s/d)

    Efetivamente, no Segundo Reinado (1840-1889) e na Repblica Velha (1889-1930), como afirma Needell (1993: 74, 75) apenas as famlias abastadas tinham acesso educao secundria. Na infncia, essa elite, composta pelos filhos de fazendeiros ricos,

    grandes comerciantes e homens de negcios, bem como filhos de altos burocratas e de profissionais bem-sucedidos, era educada por preceptores e tutores para depoiscontinuar seus estudos nos colgios, em geral nas capitais dos estados e das provncias,onde tinham acesso a uma formao humanista, conservadora e catlica, voltada parafuturos lderes. Estes, alm de aprender a conjugar verbos, tambm aprendiam nas aulasde francs orientaes de boa conduta, de honestidade, de civismo, como aquelas quecompem os 180 exerccios do segundo volume de uma outra famosa gramtica,Grammatica Theorica e Pratica da Lngua Franceza, de FranciscoHalbout (LivrariaFrancisco Alves, 1921 para a 33 edio):

    Lhomme instruit parle peu et bien; lignorant parle beaucoup et mal. Lhomme

    ami du bien public est estimable. La crainte de Dieu est le commencement de lasagesse.

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    Assim, entre lies de civismo e moral, os alunos eram conduzidos aos textosliterrios franceses, uma vez que ter acesso a esses textos era essencial num mundo emque a Frana era um referencial literrio e cultural. E isso no poderia ser diferente.

    Iniciando um de seus artigos com a frase Tantos caminhos levam a Paris, GilbertoPinheiro Passos (2006:61) coloca de imediato a pergunta at que ponto uma literaturanova, como a nossa, em pleno sculo XIX, escaparia fora da circulao artstica, cujocentro emissor seria a velha Europa?.

    O objetivo, portanto, do ensino da lngua francesa era levar o aluno a ter,sobretudo, uma proficincia de compreenso escrita nessa lngua, e tambm como jfoi dito - ler os grandes autores franceses, como indica o programa dos exames doColgio Pedro II em 1850:

    1 ano : Gramtica (formao do plural dos substantivos e dos adjetivos,formao do feminino dos adjetivos, adjetivos e pronomes possessivos, verbos)

    2 ano : Buffon, Morceaux Choisis3 ano: Fnelon, Morceaux Choisis4 ano: Massillon, Petit Garme5 ano: Montesquieu: Selecta de Blair6 ano: Racine, Athalia7 ano: Bossuet, oraes fnebres

    A nfase em um ensino centrado nos textos literrios, de carter moralizante,cristo e educador manteve-se at o incio do sculo XX, quando ento o francs j eraensinado em muitas outras instituies de todo o pas e um nmero maior de manuaisentra em cena. Alm dos manuais importados da Frana, como Le livre unique de

    franais, de L. Dumas (Paris, Hachette, 1928), tambm eram utilizados manuaisfranceses impressos no Brasil em edies fac-similadas, como a Grammaire Cours

    Moyen de Claude Auge (s/d, Paris, Larousse, Porto Alegre, Livraria do Globo) ou aindatotalmente editados e impressos no Brasil, como Nouvelle Anthologie dAuteursFranais, de Henri de Lanteuil (Biblioteca Didtica Brasileira, n1, Rio de Janeiro,1934), publicada conforme os programas oficiais. Henri de Lanteuil, alis, fez parte detoda uma gerao de professores catedrticos de francs no Brasil que eram tambmescritores.

    Nessas obras, a explorao dos textos era ainda feita pelo mtodo gramtica-traduo, e grande era a funo educadora das mesmas, como se pode observar na capa

    do livro de Claude Auge e tambm na primeira lio do Le livre unique de franais:lecture, grammaire, vocabulaire, orthographe, composition franaise , de L. Dumas,publicado pela Hachette em 1928 para os cours moyen e suprieur ouvrage adoptpour les coles primaires de la Ville de Paris. Partindo do mundo do aluno, o manualtrazia pouco a pouco outras aberturas e novos textos, cada vez mais literrios. Assim,textos de autores como Balzac, Daudet, Anatole France, Pierre Loti, Guy de Maupassanteram lidos, estudados, repetidos, decorados.

    Aline Gohard-Radenkovi (1999) lembra bem que os tipos de discursoencontrados nesses manuais, assim como a escolha do nvel de lngua utilizado, sorepresentativos de uma concepo do ensino da lngua e da civilizao francesascaracterstica do sculo XIX e vigente at metade do sculo XX. Essa concepo

    humanista, baseada no ensino das lnguas clssicas e com nfase aos textos literrios oumoralizadores, coincidia, na verdade, com o papel da prpria lngua francesa no imprio

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    colonial francs nascente. Valorizar as qualidades morais, a famlia, a casa, o pas,levava o aprendiz a sair de um crculo mais imediato para alcanar um espao maisvasto, indo do concreto e do conhecido para o abstrato e o desconhecido, E, em um

    sistema de incluses encadeadas, eram-lhe inculcados valores moralizadores epatriticos que, aos poucos, podiam ser transpostos do solo natal para o novo pas e anova cultura que se descortinava.

    3. A metodologia direta

    Em 1931, a Repblica impe, com a reforma Francisco de Campos, uma novametodologia de ensino de lnguas, destinada a fazer falar os alunos que, at ento, s

    praticavam a compreenso e a expresso escrita, a traduo e a verso. SegundoChagas:

    No que tange orientao propriamente didtica, o regime de 1931 constituiu a primeira tentativa realmente sria j empreendida entre ns para atualizar oestudo dos idiomas modernos. Outros fins foram visados e novos processos deensino se recomendaram para adoo do que se chamou o mtodo diretointuitivo (Chagas, 1957:110).

    A metodologia direta j havia sido implantada na Frana em 1901 e rompendo completamente com a metodologia tradicional, qual criticava o fracodesempenho de comunicao dos aprendizes tinha como principais orientaes 1. oensino das palavras estrangeiras sem passar pelo intermedirio de seus equivalentes nalngua materna do aluno; 2. o ensino da lngua oral sem passar pelo intermedirio de suaforma escrita; 3. o ensino da gramtica sem passar pelo intermdio de sua regraexplcita (Puren, 1988).

    A implantao de uma metodologia que privilegiava o oral era resultantetambm de uma demanda social de maior praticidade no aprendizado de uma lnguaestrangeira e da necessidade francesa de conquista de novos espaos. Pode-se ler nasInstrues Oficiais francesas de 1901 (apud Puren, 1988:99) : O conhecimento prticodas lnguas vivas tornou-se uma necessidade tanto para o comerciante e o industrialquanto para o sbio e o letrado.

    As aulas se baseavam em situaes concretas do prprio ambiente escolar, sendo

    o professor o responsvel pela descrio das mesmas e pela introduo de todos oselementos necessrios sua compreenso: o professor nomeava objetos, descreviagestos, atitudes e movimentos rotineiros de sua prtica, tais como abrir a porta, fechar a

    janela, apontar algo ou algum. Depois de realizadas, essas situaes suscitavamdilogos de tipo pedaggico, em sentido nico e na forma interrogativa (pergunta do

    professor, resposta do aluno). Essa prtica da denominao e da descrio do real,seguida das constantes repeties orais, obrigava assim o aluno a se impregnar dosentido e a ele aceder diretamente, uma vez que a traduo interlingual estavacompletamente banida do curso.

    Se no mtodo gramtica-traduo o ponto de partida eram os textos, no mtododireto este era o lxico e as estruturas bsicas da lngua (interrogao, negao,

    afirmao). Assim, por exemplo, no mtodo de Marc Valette, La mthode directe

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    (Londres: Hachette & Cia, 1914), a primeira lio se inicia pela aprendizagem de umasrie de palavras e construes consideradas bsicas para o desenrolar de uma aula:

    Le bras, le doigt, le pied. Est-ce le bras? Est-ce le doigt? Est-ce le pied? Oui,cest le bras. Non, ce nest pas le bras, cest le doigt (Valette, 1914:3)

    Procurando oferecer ao aluno uma lngua mais cotidiana, que pudesse serutilizada em seu dia-a-dia, a metodologia direta abusava de textos fabricados, artificiaise destinados sobretudo aquisio lexical, prioridade da que se traduzia namemorizao, por parte do aluno, de listas inteiras de palavras. Um exemplo desse tipode texto e do trabalho lexical proposto pode ser visto na dcima-quarta lio do mtodoLe Franais par la mthode directe II (Robin, Bergeaud, Paris: Librairie Hachette1951):

    Le cerveau se trouve dans le crne. La circulation du sang se fait par le coeur, lesartres (une artre) et les veines (une veine). (...) Le gant est un homme trsgrand qui a souvent plus de deux mtres de hauteur (*la hauteur). Un nain (unenaine) est un homme qui reste tout petit. (p.33)

    Mais uma vez, alm dos processos ditos intuitivos, tais como gestos emmicas, e dos recursos como a demonstrao de objetos, de imagens e exemplos, nose sabe bem ao certo como o aluno construa o sentido das palavras e do prprio texto,que nada mais era do que um conjunto de frases sem qualquer coeso ou caractersticarealmente textual.

    Na medida em que vo se esgotando as situaes passveis de umademonstrao na prpria sala de aula, recorre-se a imagens que ilustram, por exemplo,um dia de inverno, uma casa, a fazenda. Aos poucos tambm a leitura, a escrita e oestudo da gramtica vo sendo integrados ao mtodo, mas percebe-se que a questo dotrabalho com textos mais longos e a compreenso da escrita um problema de difcilsoluo.

    No manual Lecture explique Le Franais par plaisir - Dois ltimos anos docurso ginasial, de J. de Matos Ibiapina (Porto Alegre Edio da Livraria doGlobo,1941), o autor aponta no prefcio as dificuldades de trabalho com a metodologiadireta:

    (...) O mtodo direto exige que o professor argua todos os alunos, todos os diasde aula, fazendo a cada um tantas perguntas quantas forem necessrias assimilao perfeita do vocabulrio de cada lio. Isso no possvel em turmasde mais de quinze alunos. Nos ginsios e escolas normais do Brasil, as turmasso, na sua generalidade, de mais de trinta alunos, o que torna dificlima aaplicao eficiente do mtodo direto.

    Para dar conta dessa situao, Ibiapina prope o fim do uso das seletas ecoletneas e apresenta em seu mtodo leituras agradveis e de temas apropriados quedivirtam o aluno e arrastem-no a compreenso do texto, levado menos pela obrigao datarefa a executar do que pelo prazer de chegar ao fim da histria, da anedota, do

    calembour etc..

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    As dificuldades metodolgicas encontradas geram novas publicaes menosradicais, como o Cours de franais mthode semidirecte lusage des colessuprieures, lyces et collges. 1re anne, de Suzanne Burtin-Vinholes (Porto Alegre:

    Edio da Livraria do Globo - Barcellos, Bertaso & Cia,1934). Neste mtodo, a autora francesa afirma que no possvel trabalhar com o mtodo direto na escola, tal comoela o faz em suas aulas particulares:

    Aps alguns meses de ensino na Escola Normal desta cidade onde o nmero dealunos muito elevado chegamos concluso que era necessrio empregar omeio trmo, isto , das lies prticas e tericas (...).

    Sendo assim, embora o mtodo direto se mostrasse eficaz em suas aulasparticulares, a autora admite que este encontrava problemas quando se tratava de umaclasse numerosa, propondo ento um mtodo semidireto, com exerccios de

    gramtica, fontica e conversao. O manual traz ainda lies de dificuldade gradativa,propondo a leitura e o comentrio de trechos escolhidos de grandes autores. Alm dadescrio do prprio manual, a autora tambm sublinha que seguiu escrupulosamenteos programas do Colgio Pedro II e o programa da Escola Normal do Rio de Janeiro.

    Outro aspecto bastante importante desse prefcio refere-se importnciaatribuda aos laos que ligam a Frana ao Brasil como um meio de facilitar aaprendizagem da lngua:

    Procurando facilitar aos jovens brasileiros o estudo de nossa lngua, pensamosestreitar os laos de solidariedade e simpatia que ligam a nossa ptria risonhaterra brasileira.

    Isso pode ser percebido principalmente no final do livro, onde apresentadauma srie de textos sobre o Brasil, suas cidades e belezas naturais.

    Trazer para o aluno brasileiro elementos de seu ambiente tambm um dosrecursos utilizados por Edgard Liger Belair, no mtodo Francez pelo methodo direto(Rio de Janeiro: Livraria Educadora Eugenio Braga da Silva, 1932), adotado no ColegioPedro II. Professor catedrtico de Francs no apenas desta instituio (para a qualescreveu uma tese de ingresso na ctedra de francs Prmio Faguet, 1953 Comment La Fontaine est devenu fabuliste), mas tambm do Externato Frei deGuadalupe, da Faculdade de Humanidades Pedro II e da Faculdade de Filosofia Souza

    Marques do Rio de Janeiro, Belair faz parte do grupo dos grandes mestres de francs denossa histria: escreveu prosa, poesia, livros infantis, fbulas, canes, teatro, filmeseducativos, fez tradues e verses. Em suas Fables de mon Brsil (Rio de Janeiro:Livraria Educadora Eugenio Braga da Silva, 1938),, encontramos histrias com vriasanimais brasileiros como Lonce et le chat, Le caracara et le busard, Le tamanoiret le tatou, Lara et le jaboti, Le jeune singe et les combucas, Le coati, le matre etle valet.

    Percebe-se, dessa forma, que o valor moral dos textos presentes nos mtodospermanece, mas com temas mais prximos ao aluno, no caso, brasileiro. Isso condizcom a prpria gradao dos temas no mtodo direto, que parte dos universos ereferncias mais prximos do jovem aprendiz para, aos poucos, lev-lo literatura

    francesa que continuava a fazer parte do programa nos nveis mais avanados (3 e 4anos do Ginsio) e trabalhados segundo a metodologia gramtica-traduo, uma vez que

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    no se descobriu um modo de fazer o aluno compreender diretamente um texto escritoem lngua estrangeira....

    4. Concluso

    O que podemos observar no espao de tempo aqui analisado que vai daimplantao do francs na escola secundria at as vsperas da Reforma Capanema, em1942 a grande preocupao em, pelo ensino do idioma francs, trazer umaformao literria e humanstica ao aluno brasileiro, focalizando, claro, a importnciacultural francesa na poca, mas buscando um dilogo com esse aluno, tanto por meiodos contedos veiculados quanto por meio da metodologia utilizada.

    O manual de francs contribuiu, dessa forma, para a construo da cultura queimperava no incio e meados do sculo XX, cultura que, segundo Jrme Bruner (1986), um fenmeno simblico, produzido pelo homem, que legitima a realidade de certos

    produtos do esprito em detrimento de outros e, o mais importante a nosso ver, construda:

    A cultura construda.() E embora seja transmitida de gerao em gerao,ela deve ser, a cada vez, reatualizada e relegitimada pela nova gerao. O que da uma cultura sua continuidade intergeracional so as obras que ela cria eque transmite de uma gerao prxima: sua cincia, suas artes, suas leis, seusdispositivos institucionais, sua mitologia (Bruner, 1986:7)

    Os manuais aqui apresentados so as obras que nos permitem, hoje, melhorcompreender a escola e a educao brasileira no contato que estabeleceram com outrasculturas.

    Notas:

    1 Manual escolar: um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar econdutas a inculcar, e um conjunto de prticas que permitem a transmisso dessesconhecimentos e a incorporao desses comportamentos; normas e prticas coordenadasa finalidades que podem variar segundo as pocas (finalidades religiosas, sociopolticasou simplesmente de socializao) (JULIA, 2001:10).

    2 So Paulo, Casa Garraux, Fischer Fernandes & Cia, Successores. 40, rua daImperatriz, 40. Paris, 15, rua dHauteville, 15. Typografia A. Parent, 52, Rua Madameet rua Corneille, 3. A edio que nos serve de referncia, sabe-se pelo Aviso aoseditores, data de 40 anos aps a primeira edio e dedicada, em particular, mocidade que frequenta os collegios, e aos mancebos que se preparo para depois nasAcademias e nas Faculdades, entregarem-se a estudos mais elevados

    Referncias

    BOURDIEU, Pierre. Systmes denseignement et systmes de pense, RevueInternationale des Sciences Sociales, Paris: Unesco, vol. 3, pp. 367-409, 1967.

    ESTUDOS LING STICOS, So Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008 15

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    BRUNER Jrme. Culture et modes de pense: Lesprit humain dans ses oeuvres, Paris,Retz, 1986.

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