À ilha de maré
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Leitura do poema “À Ilha de Maré Termo Desta Cidade da Bahia – Silva”, de Manuel Botelho de Oliveira em cotejo com o texto de Antonio Candido “Literatura de dois gumes” (A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.).TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
ALINE DA SILVA AVELINO
JESSICA NUNES DUNCAN
Leitura do poema “À Ilha de Maré Termo Desta Cidade da Bahia –
Silva”, de Manuel Botelho de Oliveira.
SÃO GONÇALO
2015
Aline da Silva Avelino
Jessica Nunes Duncan
Leitura do poema “À Ilha de Maré Termo Desta Cidade da Bahia –
Silva”, de Manuel Botelho de Oliveira.
Trabalho desenvolvido durante a disciplina de Literatura Brasileira I, como parte da avaliação referente ao primeiro semestre de 2015. Professor(a): Dr. Fernando Monteiro de Barros
SÃO GONÇALO
2015
LEITURA DO POEMA “À ILHA DE MARÉ TERMO DESTA CIDADE DA BAHIA –
SILVA”, DE MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA.
Aline AVELINO e Jessica DUNCAN.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, RJ.
RESUMO: Reflexão sobre o poema “À Ilha de Maré”, de Manuel Botelho de Oliveira em
cotejo com os seguintes eixos temáticos, baseados no texto de Antonio Candido “Literatura de
dois gumes” (A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.): 1- imposição
e adaptação cultural e 2- transfiguração da realidade e senso do concreto. Além disso, será
exposto o modo como o 3- cultismo e o 4- conceptismo são trabalhados no poema.
Palavras-chave: barroco; poema; Manuel Botelho de Oliveira; Antonio Candido.
1 IMPOSIÇÃO E ADAPTAÇÃO CULTURAL
Segundo Antonio Candido (1989, p. 164), no texto “Literatura de dois gumes” (A
educação pela noite e outros ensaios), “em sua formação as nossas literaturas são
essencialmente europeias, na medida em que continuam a pesquisa da alma e da sociedade
definida na tradição das metrópoles.”. Por essa razão,
herdamos relativamente pouco do que havia de popular, mágico-religioso e
espontâneo na literatura da Idade Média; e muito, ao contrário, de uma literatura
erudita, cheia de exigências formais, aberta para uma visão realista e ao mesmo
tempo alegórica da vida.
Esta literatura que foi transposta ao Novo Mundo, mais especificamente ao Brasil,
deparou-se com um quadro de povos de cor, tradições e culturas diversificados, obrigando,
consequentemente, a literatura “a imprimir na expressão herdada certas inflexões que a
tornaram capaz de exprimir também a nova realidade natural e humana.” (1989, p. 165). Dito
com outras palavras, a literatura europeia, herdada, precisou modificar-se em alguns aspectos
para que pudesse expressar também a realidade nova com que se encontrou. A respeito desta
mudança, Candido aponta que “o que houve não foi fusão prévia para formar uma literatura,
mas modificação do universo de uma literatura já existente, importada com a conquista e
submetida ao processo geral de colonização e ajustamento ao Novo Mundo.”.
Tendo em vista que “os cronistas, historiadores, oradores e poetas dos primeiros
séculos eram quase todos sacerdotes, juristas, funcionários, militares, senhores de terras –
obviamente identificados aos valores sancionados da civilização metropolitana.” e que,
portanto, “Para eles as letras deviam exprimir a religião imposta aos primitivos e as normas
políticas encarnadas na Monarquia [...]”, Candido afirma que a literatura desempenhou um
papel importante no processo de imposição cultural, e que “do ângulo político pode ser
encarada como peça eficiente do processo colonizador”, demonstrado nas atividades culturais
promovidas pela Igreja e pelo Estado, que eram manifestações literárias, em que haviam
“jornadas de sermões ou representações teatrais, composição e recitação de poemas.” (p. 166).
Porém, os interesses das classes dominantes “começaram a certa altura a apresentar
divergências em relação aos da Metrópole, e elas também se puseram a exprimir as suas
novas posições e sentimentos através da literatura.” (p. 167). Estas novas posições, segundo
Candido, passaram a ser a valorização das figuras dos brasileiros natos e a exaltação de seus
feitos, de modo a acentuar os traços próprios do País, preparando as atitudes nacionalistas que
estavam por vir.
Dentro desta perspectiva enquadra-se o poema À Ilha de Maré Termo Desta Cidade da
Bahia – Silva, de Manuel Botelho de Oliveira. O referido poema já é fruto da adaptação
literária e cultural da época, pois exalta os peixes, as plantas, as frutas, os legumes e a
arquitetura da Ilha de Maré, por vezes destacando, ou equiparando, essas belezas da Colônia
em face da Metrópole e de toda Europa, conforme os trechos destacados abaixo:
As laranjas da terra
Poucas azedas são, antes se encerra
Tal doce nestes pomos,
Que o tem clarificado nos seus gomos;
Mas as de Portugal entre alamedas
São primas dos limões, todas azedas.
Nas que chamam da China
Grande sabor se afina,
Mais que as da Europa doces, e melhores,
E têm sempre a vantagem de maiores,
E nesta maioria,
Como maiores são, têm mais valia.
(...)
As uvas moscatéis são tão gostosas,
Tão raras, tão mimosas;
Que se Lisboa as vira, imaginara
Que alguém dos seus pomares as furtara;
(...)
Os melões celebrados
Aqui tão docemente são gerados,
Que cada qual tanto sabor alenta,
Que são feitos de açúcar, e pimenta,
E como sabem bem com mil agrados,
Bem se pode dizer que são letrados;
Não falo em Valariça, nem Chamusca:
Porque todos ofusca
O gosto destes, que esta terra abona
Como próprias delícias de Pomona.
(...)
Os aipins se aparentam
Coa mandioca, e tal favor alentam,
Que tem qualquer, cozido, ou seja assado,
Das castanhas da Europa o mesmo agrado.
(...)
O arroz semeado
Fertilmente se vê multiplicado;
Cale-se de Valença por estranha
O que tributa a Espanha,
Cale-se do Oriente
O que come o gentio, e a lísia gente;
Que o do Brasil quando se vê cozido
Como tem mais substância, é mais crescido.
Tenho explicado as fruitas, e legumes,
Que dão a Portugal muitos ciúmes;
Tenho recopilado
O que o Brasil contém para invejado,
E para preferir a toda a terra,
Em si perfeitos quatro AA encerra.
(...)
2 TRANSFIGURAÇÃO DA REALIDADE E SENSO DO CONCRETO
Sergio Buarque de Holanda (1959), citado por Candido (1989, p.168), mostrou, em Visão do
Paraíso,
que a colonização do Brasil sofreu a influência (mesmo freada pelo realismo
português) duma série de imagens ideais a respeito da beleza, riqueza e propriedades
miraculosas do continente americano, imagens bem representadas pela famosa lenda
do El Dorado, que obsedou tanta gente.
Candido compara:
De maneira parecida, a imaginação literária transfigurou a realidade da terra e, ao
mesmo tempo, submeteu-a a uma descrição objetiva, como se o conhecimento
dependesse dessa via contraditória. O homem português da época dos
descobrimentos não via contradição nisto, pois era crédulo e crítico, sonhador e
prático. E de fato as dimensões do País incitavam o espírito a se atirar no devaneio,
mas ao mesmo tempo o puxavam para a terra, fazendo-o encarar as tarefas com
pragmatismo.
O próprio homem desta época era contraditório, pois as condições do ambiente
favoreciam esta contradição, já que era formado “de contrastes entre a inteligência do homem
culto e o primitivismo reinante, entre a grandeza das tarefas e a pequenez dos recursos, entre a
aparência e a realidade.” (p. 169).
Assim, para muitos dos escritores do século XVII e grande parte do XVIII “a
linguagem metafórica e os jogos de argúcia do espírito barroco eram maneiras normais de
comunicar a sua impressão a respeito do mundo e da alma.” (p.169). Essas comunicações de
impressões a respeito do mundo e da alma se davam através de um estilo literário carregado
de antíteses, hipérboles e outras distorções da forma e do conceito: o barroco.
No Brasil, sobretudo naqueles séculos, esse estilo equivalia a uma visão - graças à
qual foi possível ampliar o domínio do espírito sobre a realidade, atribuindo sentido
alegórico à flora, magia à fauna, grandeza sobre-humana aos atos. Poderoso fator
ideológico, ele compensa de certo modo a pobreza dos recursos e das realizações; e
ao dar transcendência às coisas, fatos e pessoas, transpõe a realidade local à escala
do sonho. (p.169).
(...)
“A esta atitude de espírito se prende a velha predileção da nossa poesia pela
prosopopeia, isto é, a humanização da natureza, que fala ao homem.” (p. 170).
Manuel Botelho, que foi um autor barroco, utiliza bastante em “À Ilha de Maré” a
prosopopeia, primeiro transformando a ilha em um corpo de mulher, que está cercado por
Netuno, que seria, por metonímia, o mar. Neste último, além da metonímia, está presente
também o maravilhoso alegórico, pois emprega o fantástico ligado às figuras de estilo, a
saber: prosopopeia e metonímia. Em um outro momento, Botelho personifica os outeiros da
ilha que seriam soberbos e querem ser “príncipes subidos” e os vales, também prosopopeicos,
seriam seus súditos. No decorrer do poema outras prosopopeias são utilizadas, conforme
alguns exemplos abaixo:
Jaz oblíqua forma, e prolongada
A terra de Maré toda cercada
De Netuno, que tendo o amor constante,
Lhe dá muitos abraços por amante,
E botando-lhe os braços dentro dela
A pretende gozar, por ser mui bela.
(...)
Erguem-se nela outeiros
Com soberbas de montes altaneiros,
Que os vales por humildes desprezando,
As presunções do Mundo estão mostrando,
E querendo ser príncipes subidos,
Ficam os vales a seus pés rendidos.
(...)
As cidras amarelas
Caindo estão de belas,
E como são inchadas, presumidas,
É bem que estejam pelo chão caídas:
(...)
Vereis os ananases,
Que para rei das fruitas são capazes;
Vestem-se de escarlata
Com majestade grata,
Que para ter do Império a gravidade
Logram da croa verde a majestade;
Mas quando têm a croa levantada
De picantes espinhos adornada,
Nos mostram que entre Reis, entre Rainhas
Não há croa no Mundo sem espinhas.
(...)
Os carás, que de roxo estão vestidos,
São lóios dos legumes parecidos,
Dentro são alvos, cuja cor honesta
Se quis cobrir de roxo por modesta.
(...)
E parece que a terra de amorosa
Se abraça com seu fruto deleitosa;
Dela se faz com tanta atividade
A farinha, que em fácil brevidade
No mesmo dia sem trabalho muito
Se arranca, se desfaz, se coze o fruito;
Dela se faz também com mais cuidado
Segundo Candido, estas maneiras de ver elaboram o sentimento nacional por meio de
uma exaltação da sua realidade física (p. 170). Por outro lado, coexiste com esse método
transfigurador a representação direta da realidade, que pode ser embalada na hipérbole,
mesmo sem sair do concreto, dando às coisas um brilho e um relevo de epopeia ou lenda (p.
171).
Neste aspecto, alguns trechos de “À Ilha de Maré” podem ser destacados:
(...)
Por um, e outro lado
Vários lenhos se vêem no mar salgado;
Uns vão buscando da Cidade a via,
Outros dela se vão com alegria;
E na desigual ordem
Consiste a fermosura na desordem.
(...)
Aqui se cria o peixe regalado
Com tal sustância, e gosto preparado,
Que sem tempero algum para apetite
Faz gostoso convite,
E se pode dizer em graça rara
Que a mesma natureza os temperara.
(...)
As plantas sempre nela reverdecem,
E nas folhas parecem,
Desterrando do Inverno os desfavores,
Esmeraldas de Abril em seus verdores,
E delas por adorno apetecido
Faz a divina Flora seu vestido.
As fruitas se produzem copiosas,
E são tão deleitosas,
Que como junto ao mar o sítio é posto,
Lhes dá salgado o mar o sal do gosto
(...)
Os melões celebrados
Aqui tão docemente são gerados,
Que cada qual tanto sabor alenta,
Que são feitos de açúcar, e pimenta,
E como sabem bem com mil agrados,
Bem se pode dizer que são letrados;
Não falo em Valariça, nem Chamusca:
Porque todos ofusca
O gosto destes, que esta terra abona
Como próprias delícias de Pomona.
(...)
A pimenta elegante
É tanta, tão diversa, e tão picante,
Para todo o tempero acomodada,
Que é muito avantajada
Por fresca, e por sadia
À que na Ásia se gera, Europa cria
(...)
Aqui se fabricaram três capelas
Ditosamente belas,
Uma se esmera em fortaleza tanta,
Que de abóbada forte se levanta;
(...)
A presença de elementos greco-latinos pode ser explicada por esse trecho de A literatura de
dois gumes (p. 177):
a convenção greco-latina era fator de universalidade, uma espécie de idioma comum
a toda a civilização do Ocidente; por conseguinte, na medida em que a utilizaram, os
escritores do Brasil integraram nesta civilização as manifestações espirituais da sua
terra, dentro, é claro e como ficou dito, do propósito colonizador de dominação,
inclusive através da literatura.
O estilo clássico se prestava bem para exprimir um mundo novo, enorme e
desconhecido. O uso da alegoria e do mito facilitaram a descoberta e a classificação estética
da natureza, enquanto o uso de recursos mais particulares como a perífrase, o hipérbato, a
elipse, a hipérbole permitiam ajustar a linguagem à realidade insólita ou desconhecida (p.
178). Desse modo, ao fazer analogia entre os aspectos dimensionais da colônia com aspectos
greco-latinos, os autores possibilitavam que os homens cultos da época pudessem
compreender tais características desconhecidas até então por eles, já que a cultura greco-latina
era fator de universalidade. Nas palavras de Candido (p. 178),
através dessa convenção livresca manifestaram implicitamente, de maneira original, o
contraste entre a civilização da Europa, que os fascinava e na qual se haviam formado
intelectualmente, e a rusticidade da terra onde viviam, que amavam e desejavam
exprimir.
3 CULTISMO
O cultismo é trabalhado no poema de forma constante, através do uso de metáforas,
hipérbatos, antíteses, dentre outras figuras de linguagem. Exemplos:
(...)
E por gosto das prendas amorosas
Fica maré de rosas,
E vivendo nas ânsias sucessivas,
São do amor marés vivas;
E se nas mortas menos a conhece,
Maré de saudades lhe parece.
(...)
No trecho acima, são relatados os diferentes movimentos do mar, metaforizando a
inconstância do amor.
Vista por fora é pouco apetecida,
Porque aos olhos por feia é parecida;
Porém dentro habitada
É muito bela, muito desejada,
É como a concha tosca, e deslustrosa,
Que dentro cria a pérola fermosa.
(...)
Nesta estrofe identificam-se as antíteses fora X dentro, pouco apetecida X muito
desejada e feia X bela. Nos dois últimos versos há litotes, afirmando o positivo (criação de
pérolas formosas) pelo negativo (concha tosca e deslustrosa).
4 CONCEPTISMO
No referido poema, o conceptismo é trabalhado na escolha de palavras, que são combinadas para produzir o efeito de jogo conceitual. Está evidente, também, na agudeza da visão de frutos da natureza observados de maneira isolada, ao invés de conjunto. A agudeza se concretiza igualmente na mistura de objetos insensíveis e inanimados (ilha, mar) com objetos sensíveis (mulher, Netuno). Exemplos:
(...)
Nesta assistência tanto a senhoreia,
E tanto a galanteia,
Que do mar de Maré tem o apelido,
Como quem preza o amor de seu querido:
No verso destacado há conceptismo no que tange ao sentido da palavra Maré,
oriundo de mar, que, no poema, é o próprio deus Netuno. Como se a ilha-mulher amasse tanto
seu amante mar-Netuno que seu apelido, Maré, seria um reconhecimento do amor de seu
querido.
(...)
De várias cores são os cajus belos,
Uns são vermelhos, outros amarelos,
E como vários são nas várias cores,
Também se mostram vários nos sabores;
O conceptismo está presente no raciocínio: várias cores = vários sabores.