a igreja, instituição dominante do feudalismo baschet

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A Igreja, instituição dominante do feudalismo, Jérôme Baschet – algumas considerações 1. O esquema das três ordens define uma clara hierarquia, no topo da qual se encontram os que oram, antes da própria aristocracia. Entretanto, mais do que ao clero como casta separada, deve-se prestar atenção à relação social que se estabelece entre os clérigos e os laicos. Seja exprimindo-se sob a forma de uma dualidade ou inscrevendo-se no esquema das três ordens, esta relação-oposição constitui uma estrutura essencial do mundo feudal, e os clérigos sempre precedem os laicos no cortejo social. 2. Na Idade Média, o termo “Igreja” designa a comunidade dos fiéis (em grego, eklesia: assembleia). Depois, a palavra “igreja” passa a designar também o edifício onde se reúnem os fiéis e onde se desenrola o culto. No século XII, os dois sentidos da palavra ganham mais autonomia e Alain de Lille indica que a igreja é “tanto um lugar material, como a reunião dos fiéis”. Tal materialização das realidades espirituais, que inscreve o sagrado nos lugares físicos, acompanha o reforço do poder dos clérigos e da instituição eclesiástica. 3. De resto, ao mesmo tempo, o termo “igreja” é carregado de um novo significado, designando a parte institucional da comunidade, quer dizer, o clero. A partir daí, associações e deslocamentos constantes entre os três sentidos da palavra “igreja” acabam constituindo um notável instrumento ideológico, por exemplo, quando se identifica a igreja material (edifício) com a igreja espiritual (ao mesmo tempo, comunidade terrestre e Jerusalém celeste). 4. Do mesmo modo, quando se joga com a ambiguidade entre a Igreja como comunidade e a Igreja como instituição, uma sinédoque (em que a parte vale pelo todo) concentra nos guias clericais as virtudes associadas à comunidade de todos os cristãos. 5. A partir dos séculos XI e XII, o termo “igreja” é cada vez mais identificado com seus membros eclesiásticos, enquanto, para designar o conjunto dos fiéis, se recorre à noção, já esboçada no século IX, de cristandade (christianitas ou populus christianus). Essa questão semântica faz, assim, pressentir a acentuação da separação entre clérigos e laicos e o reforço dos poderes da instituição eclesial. 6. Se o significado comunitário da Igreja tende a ser eclipsado, ele não pode desaparecer totalmente. A fim de que a legitimidade da instituição seja fundada sobre a substituição do todo por sua parte mais eminente, a palavra deve também significar a cristandade em seu conjunto. Assim, se a Igreja – identificada ao clero – ordena e dirige a sociedade, em seu sentido comunitário, ela é a própria sociedade. 7. É impossível, então, tratar a Igreja como se fosse um simples setor, dentre outros, da realidade medieval. Em relação ao medievo, não há nenhum sentido em recorrer à noção de religião tal como nós a entendemos hoje, enquanto crença pessoal livremente escolhida. 8. A fé medieval refere-se menos à crença íntima do que à fidelidade no sentido feudal do termo, quer dizer, uma fidelidade prática, manifestada por atos, palavras e gestos. Sobretudo, não seria questão de escolha pessoal: é-se cristão porque se nasce no cristianismo. É uma identidade herdada (pelo ritual do batismo), que não se discute.

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Page 1: A Igreja, Instituição Dominante Do Feudalismo Baschet

A Igreja, instituição dominante do feudalismo, Jérôme Baschet – algumas considerações

1. O esquema das três ordens define uma clara hierarquia, no topo da qual se encontram os

que oram, antes da própria aristocracia. Entretanto, mais do que ao clero como casta

separada, deve-se prestar atenção à relação social que se estabelece entre os clérigos e os

laicos. Seja exprimindo-se sob a forma de uma dualidade ou inscrevendo-se no esquema das

três ordens, esta relação-oposição constitui uma estrutura essencial do mundo feudal, e os

clérigos sempre precedem os laicos no cortejo social.

2. Na Idade Média, o termo “Igreja” designa a comunidade dos fiéis (em grego, eklesia:

assembleia). Depois, a palavra “igreja” passa a designar também o edifício onde se reúnem os

fiéis e onde se desenrola o culto. No século XII, os dois sentidos da palavra ganham mais

autonomia e Alain de Lille indica que a igreja é “tanto um lugar material, como a reunião dos

fiéis”. Tal materialização das realidades espirituais, que inscreve o sagrado nos lugares físicos,

acompanha o reforço do poder dos clérigos e da instituição eclesiástica.

3. De resto, ao mesmo tempo, o termo “igreja” é carregado de um novo significado,

designando a parte institucional da comunidade, quer dizer, o clero. A partir daí, associações e

deslocamentos constantes entre os três sentidos da palavra “igreja” acabam constituindo um

notável instrumento ideológico, por exemplo, quando se identifica a igreja material (edifício)

com a igreja espiritual (ao mesmo tempo, comunidade terrestre e Jerusalém celeste).

4. Do mesmo modo, quando se joga com a ambiguidade entre a Igreja como comunidade e a

Igreja como instituição, uma sinédoque (em que a parte vale pelo todo) concentra nos guias

clericais as virtudes associadas à comunidade de todos os cristãos.

5. A partir dos séculos XI e XII, o termo “igreja” é cada vez mais identificado com seus

membros eclesiásticos, enquanto, para designar o conjunto dos fiéis, se recorre à noção, já

esboçada no século IX, de cristandade (christianitas ou populus christianus). Essa questão

semântica faz, assim, pressentir a acentuação da separação entre clérigos e laicos e o reforço

dos poderes da instituição eclesial.

6. Se o significado comunitário da Igreja tende a ser eclipsado, ele não pode desaparecer

totalmente. A fim de que a legitimidade da instituição seja fundada sobre a substituição do

todo por sua parte mais eminente, a palavra deve também significar a cristandade em seu

conjunto. Assim, se a Igreja – identificada ao clero – ordena e dirige a sociedade, em seu

sentido comunitário, ela é a própria sociedade.

7. É impossível, então, tratar a Igreja como se fosse um simples setor, dentre outros, da

realidade medieval. Em relação ao medievo, não há nenhum sentido em recorrer à noção de

religião tal como nós a entendemos hoje, enquanto crença pessoal livremente escolhida.

8. A fé medieval refere-se menos à crença íntima do que à fidelidade no sentido feudal do

termo, quer dizer, uma fidelidade prática, manifestada por atos, palavras e gestos. Sobretudo,

não seria questão de escolha pessoal: é-se cristão porque se nasce no cristianismo. É uma

identidade herdada (pelo ritual do batismo), que não se discute.