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Por esta razão, a justiça humana requeri da por Deuse estabelecida em obediência - a justiça que segundo Amós5.24 jorraria como poderoso rio - tem necessariamentecaráter de vindicação de direito em favor do inocenteameaçado, do pobre oprimido, das viúvas, dos órfãos e dosestrangeiros. Por essa razão, nas relações e eventos na vida deseu povo, Deus sempre se coloca incondicional eapaixonadamente deste lado e deste lado apenas: contra ossoberbos e ao lado dos humildes; contra os que já gozamdo direito e do privilégio e -l10 lado dos que são excluidosdesses bens e renegados. Que significa tudo isso? Essascoisas não podem ser entendidas pelo estudo abstratoda tendência política e especialmente do caráter -forense doAntigo Testamento e da mensagem bíblica em geral.Não podemos ouvir essa mensagem nem crer nela sem osentimento de responsabilidade em relação àorientação indicada".Karl Barth

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Julio de Santa Ana

A Igreja dos Pobres

Produzido por umgrupo ecumênico de trabalhodo Conselho Mundial de Igrejas

1111mprens8 metodista

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© Copyright - Imprensa Metodista e Programa Ecumênico de Pós-Graduaçãoem Ciências da Religião - 1985

o Programa Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, agradeceao Setor de Publicações do Conselho Mundial de Igrejas, a ajuda financeira eautorização de publicação desta obra.

Tradu tor: Jaci Maraschin

Departamento Editorial da Imprensa Metodista:Editor: Laan Mendes de BarrosRevisão: Leonidas Tavares

Marilia Schüller Ferreira LeãoCapa: Criação coletiva do Setor de Arte

Imprensa MetodistaDepartamento Editorial

Av. Senador Vergueiro, 1301 - 09700Caixa Postal 536 - São Bernardo do Campo - SP

Programa Ecuménico de Pós-Graduaçãoem Ciências da Religião

R. do Sacramento, 230 - 0~720sao Bernardo do Campo - SP

"Por esta razão, a justiça humana requeri da por Deuse estabelecida em obediência - a justiça que segundo Amós5.24 jorraria como poderoso rio - tem necessariamentecaráter de vindicação de direito em favor do inocenteameaçado, do pobre oprimido, das viúvas, dos órfãos e dosestrangeiros. Por essa razão, nas relações e eventos na vida deseu povo, Deus sempre se coloca incondicional eapaixonadamente deste lado e deste lado apenas: contra ossoberbos e ao lado dos humildes; contra os que já gozamdo direito e do privilégio e -l10 lado dos que são excluidosdesses bens e renegados. Que significa tudo isso? Essascoisas não podem ser entendidas pelo estudo abstratoda tendência política e especialmente do caráter -forense doAntigo Testamento e da mensagem bíblica em geral.Não podemos ouvir essa mensagem nem crer nela sem osentimento de responsabilidade em relação àorientação indicada".

KARL BARTH, Church Dogmatics11/1, p. 386, Edimburgo,T. & T. Clark, 1957.

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Conteúdo

Prefácio a Ediçã'o Brasileira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 5.

Prefácio 7

Introdução .. 12. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ~. . . . . . . . . . . .. . .Primeira Parte: As igrejas e a condição dos pobres . . . . . . . . . . . . . . . . 23

I. Duas vozes mas um só clamor 2411. A situação dos pobres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44Ill. Acúmulo de riqueza - crescimento da pobreza 56N. A religião e a cultura popular em relação com a pobreza 70V. Os pobres na Igreja 87VI. A luta contra a pobreza 98VII. Objetivos da luta contra a pobreza 106

Segunda Parte: O desafio dos pobres e sua importância para a Igreja . . . . 117

VIII. Os pobres desafiam a Igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118IX. Teologia a partir dos oprimidos 135X. O papel da Igreja no processo da libertação . . . . . . . . . . . . . . 160

Terceira Parte: O caminho à frente: propostas para açao . . . . . . . . . . . . 179

Xl. Evangelízação, Bíblia e Liturgia na Igreja dos pobres 180XII. Das Estruturas Eclesiásticas 192XlII. Envolvimento social. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 198XlV. Esforço comum pela nova sociedade 208XV. Propostas às Igrejas 214

CARTA As IGREJAS 224

Apêndice: lista de participantes 230

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Prefácio à Edicão Brasileira,

Entre os fenômenos que marcam a vida da Igreja Cristã, nosdias atuais, com força indelével, percebe-se especialmente o daerupção dos pobres, que invadem os espaços de templos e comuni-dades. Não é apenas um fenômeno que acontece no "Terceiro Mun-do", também é percebido nos países mais industrializados. Atravésdeste processo as igrejas cristãs tornam a redes cobrir a dimensãoevangélica que constitui "a boa npva aos pobres", deixada de lado,em grande parte, enquanto as instituições eclesiásticas compartilha-vam o poder com "os fortes deste mundo".

Este processo, pleno de conteúdo neo-testamentário, está pro-duzindo uma extraordinária renovação nas igrejas. Estas que, pormuito tempo deram prioridade a uma pastoral à serviço dos setoresinfluentes da sociedade, estão experimentando, agora, como sãoevangelizadas pelos pobres. Surgem novas linhas de testemunho,novas formas de presença no mundo, novas manifestações da açãosocial dos cristãos em serviço aos indigentes e oprimidos, novasliturgias, novos cânticos, novas maneiras de celebrar a fé.

É a igreja dos pobres. Tomando consciência desta situação, oConselho Mundial de Igrejas, iniciou um processo de reflexãoecumênica sobre o mesmo em 1976, que se estendeu até 1980,quando foi apresentado ao Comitê Central do CMI um relatório,que foi aprovado com a recomendação de que as igrejas o estuda-riam com vistas a traduzí-lo através de formas apropriadas de ação.

Este volume recolhe a parte mais importante deste estudo,fruto de uma reunião que teve lugar em Chipre, em setembro det978. As conclusões da mesma continuam sendo atuais. E, alémdisso, são especialmente pertinentes para uma situação como a doBrasil, onde a força do Espírito de Deus está conduzindo as igrejasà essa tremenda renovação que se manifesta na opção pela vidaabundante para aqueles que sentem que sua vida lhes é roubadapelos poderes deste mundo. Esta opção é também a opção pelos

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pobres, aqueles que, de acordo com Jesus, serão felizes, pois dosmesmos é o Reino de Deus (Lucas 6.20).

É nossa esperança que a leitura e estudo das páginas que seseguem, seja de ajuda para impulsionar e afirmar cada vez mais aigreja dos pobres.

Julio de Santa Ana

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Prefácio

Desde o começo da experiência do Conselho Mundial de Igre-jas na Comissão sobre a Participação das Igrejas no Desenvolvi-mento (CCPD) tornou-se claro que são os segmentos pobres dasociedade que fornecem a dinâmica para o processo do desenvolvi-mento nacional. Daí a ênfase, nos programas dessa Comissão, naimportância da participação popular no desenvolvimento, na ne-cessidade de tecnologia apropriada para expressá-Ia, e na priori-dade dada às mudanças estruturais para enfrentar condições dedominação e dependência. São todos fatores destinados a tornarpossível o processo do crescimento econômico organicamente rela-cionado com a luta pela justiça social e com a busca da auto-de-terminação.

Este procedimento, com ênfase especial nos pobres e nas raí-zes visivelmente bíblicas e evangélicas, foi ratificado pela QuintaAssembléia do Conselho Mundial de Igrejas em Nairobi, 1975.Observou-se, então, que o desenvolvimento é fruto dos esforços dopovo oprimido em favor da libertação e da justiça. Ao ouvir sobre"justiça e desenvolvimento", pois, os membros da Assembléia pro-puseram que a tarefa prioritária da CCPD deveria consistir noauxílio aos pobres e oprimidos em suas lutas, e, ao mesmo tempo,em ajuda às igrejas na tarefa de manifestarem solidariedade paracom os pobres € de apoiarem seus esforços para a construção dasociedade mais justa e participatória.

Quando o grupo central da CCPD se reuniu em Bossey emmaio de 1976, tinha que definir a tarefa, com a clara opção emfavor dos setores populares, referindo-se mais precisamente 'aosprogramas da CCPD de participação no desenvolvimento. Ficouclaro, então, que existiam poucos exemplos de participação dasigrejas no desenvolvimento, na linha dessa opção. Mas daí paraa frente, as igrejas em várias partes do mundo, tanto nos países"desenvolvidos" como nos "em via de desenvolvimento", começa-ram a refletir cada vez mais esta linha de ação voltada para a so-

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lidariedade com os pobres e oprimidos. A CCPO considerou es-sencial, contudo, começar o processo de reflexão a partir da ex-periência prática existente nas comunidades cristãs. Com isso, asigrejas membros do Conselho Mundial de Igrejas capacitavam-separa discutir com profundidade a opção, para dar aos experimen-tos correntes compreensão mais aprimorada e iniciar outras expe-riências onde fosse necessário. Os programas de grupos relaciona-dos com a CCPO na Índia, Camarões e Indonésia, passaram, natu-ralmente, a ter muita importância, bem como novos experimentosapoiados pela mesma Comissão em certas igrejas da América La-tina,no campo dos programas de treinamento de lideranças ecumê-nicas para a participação no desenvolvimento humano, nos paísesda região.

No nível da reflexão teológica, iniciou-se o estudo sobre "aIgreja e os pobres". Os primeiros resultados desse trabalho forampublicados em Good news to the poot+, onde são examinados osproblemas das relações com os pobres nos primeiros séculos da eracristã e no fim da Idade Média. Este estágio inicial do estudo ser-viu para sublinhar a importância da idéia messiânica da justiçade Deus na qual os pobres e oprimidos ocupam lugar privilegiadoe são, muitas vezes, os próprios instrumentos dessa justiça. Essaidéia messiânica não é apenas dimensão fundamental da mensa-gem bíblica mas também tem sido fonte de escolhas decisivas pormuitas igrejas no decurso da história cristã.

Seguiu-se o segundo estágio com um estudo sobre as relaçõesentre os pobres e a Igreja no período crucial da expansão colonialdo Ocidente e da revolução industrial. Surgiu o livro Separationwithout hope? 2 preparado por diversos especialistas, demonstrandoque embora presentes na vida das. igrejas, os pobres tendem a serrelegados a posições menos importantes e mais opressivas. Nessaépoca, as igrejas falharam mais do que nunca na missão de sercampeãs dos pobres. Esse fato explica, em parte, a crescente indi-ferença dos segmentos mais baixos da sociedade em face da pro-clamação do Evangelho cristão no século passado. Ao perceberque suas lutas pela justiça não recebiam apoio das igrejas e quesuas expressões culturais não eram compreendidas por elas, dis-tanciaram-se das organizações eclesiásticas na mesma medida emque estas também não mostravam interesse por esses grupos sociais.

Em nosso tempo, graças a Deus, já existem sinais claros deque essa separação não vai durar para sempre. Tanto por meio doConselho Mundial de Igrejas como de corpos ecumênicos regionaise nacionais, o movimento ecumênico vai demonstrando sua solida-riedade prática para com os pobres, para com as pessoas privadas

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dos direitos humanos, e para coim o povo sofredor da injustiça eco-nômica e da opressão racista. Ern face do desafio que lhes apresen-tam os pobres, as igrejas começam a demonstrar nova sensibilidade,coisa que, por sua vez, inspira movos estilos de reflexão teológica,missionária, eclesiológica e sobre o desenvolvimento, partindo daperspectiva própria dos despriviilegiados com o abandono dos mo-dos de pensamento desenvolvidos no passado e ainda hoje, a partirde posições comprometidas com os centros do poder secular.

O terceiro estágio desta tarefa foi a reunião de estudo e re-flexão realizada no Centro Ecumêníco de Ayia Napa, em Chipre,em setembro de 1978. O principal propósito desse encontro foi re-fletir sobre as principais tendênc:ias visíveis hoje nas relações entreos pobres e as igrejas, e oferecer às igrejas propostas destinadas afortalecer seus programas seguncloas linhas da Assembléia de Nai-robi, incentivando a prosseguir nos esforços para o desenvolvimentodos povos aos quais pertencem e aos quais querem servir. Váriosgrupos relacionados com a CCPD e muitas igrejas foram convida-das a mandar representantes a esse encontro (ver a lista dos partici-pantes no final deste livro). Embors pequeno, o grupo representouplenamente o movimento ecumênico contemporâneo tanto do pontode vista confessional como cultural,

Foram produzidos dez ensaios em preparação do encontro (cadaum em inglês, francês e espanhol). Evidenciavam a maneira comoas diferentes igrejas e grupos cristãos trabalhavam em favor dospobres e expressavam solidariedade para com eles em diferentespartes do mundo. Os dez ensaios circularam entre muitos amigose instituições relacionadas com a CCPO, além de terem sido envia-dos também aos convidados à reunião de Chipre. Pediu-se que todosenviassem à CCPO suas reações e comentários. Tratou-se de etapaimportante de muita ajuda uma vez que foi na base desse mate-rial, ao lado dos relatórios preparados especialmente para o encon-tro sobre experiências de solidatiedade como membros de algumacomunidade cristã, que se tornou possível a preparação de umaagenda anotada destinada à discusão no encontro de Ayia Napa.

O encontro não durou mais do que duas semanas e foi divi-dido em três partes. Na primeira parte, que durou toda a primeirasemana, o grupo discutiu a agenda anotada. Ao final da discussãode cada capítulo proposto, fez-se um resumo do consenso até entãoalcançado pelo grupo. No começo da segunda semana, organizou-seum plano editorial para 19 capítulos baseado no consenso alcan-çado, cabendo um capítulo a cada membro do encontro.

Cada membro do grupo responsabilizou-se pela preparação departe do manuscrito. Já com mais ou menos 200 páginas, foi dis-

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cutido amplamente na terceira parte do encontro. As sugestões fo-ram anotadas para melhorar o trabalho com acréscimos e correções.

O autor deste prefácio recebeu a incumbência de editar o ma-nuscrito em sua forma final. Teve que preparar as referências biblio-gráficas e completar as notas de rodapé necessárias às principaisteses desenvolvidas. Quando esse trabalho ficou pronto foi enviadoa todos os participantes da reunião de Chipre e a cerca de cemoutras pessoas para que fizessem. comentários ao texto. As suges-tões recebidas, valiosas, em geral, foram levadas em consideração eassimiladas na revisão final do livro. Além disso, membros de sub-unidades do Conselho Mundial de Igrejas também participaram emreuniões de debates sobre o tema estudado e suas contribuições ecomentários muito nos ajudaram. Somos, portanto, gratos a todasessas pessoas.

Em fins de fevereiro de 1979, um grupo de seis pessoas designa-das pela conferência de Chipre, reuniu-se em Genebra para dar ostoques finais a esta versão do manuscrito que representou, afinal, olabor coletivo da CCPD e de representantes de grupos e igrejas aela relacionados. Gastou-se uma semana no estudo de todos os co-mentários recebidos e o texto deste livro foi revisado à luz do con-senso alcançado. Além disso, foi produzido um outro ensaio pararesumir o processo de mais de três anos de reflexão baseada naação; este ensaio foi submetido à CCPD para consideração e pro-vável discussão pela comissão central do Conselho Mundial deIgrejas.no verão de 1980.

Ao apresentar esta versão final às igrejas e aos seus membrospara reflexão, é importante deixar claro que este livro resultou detrabalho coletivo. Nosso constante ponto de referência ao longo dotrabalho foram os pobres e os oprimidos. Nossa preocupação prin-cipal foi manter a fé com eles mas também com as Igrejas a quemagora submetemos o livro. Esperamos que seja alimento para areflexão do povo de Deus inspirando-o a trabalhar mais efetiva-mente pelo desenvolvimento de uma sociedade mais justa e parti-cipatória. Oramos para que o movimento da renovação espiritualnas muitas comunidades cristãs que estão respondendo criativa-mente ao desafio dos pobres se espalhe por todo o povo de Deus,e que a obra alcança da pela CCPD e por tantos amigos possa con-tribuir para esse fim.

Sabemos que este volume não contém análise exaustiva da si-tuação. Nem era esse o nosso alvo. As notas de rodapé fazem refe-rência a material mais completo sobre os tópicos discutidos. Tam-pouco este livro quer ser guia adequado às peculiaridades regionaisdo fenômeno: marcas características da situação Africana em opo-

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sição à situação da Ásia, problemas específicos do mundo desenvol-vido em oposição à América Latina, ou diferenças dentro de qual-quer dessas áreas geográficas não são tratadas a fundo.

Este estudo pretende, isso sim, chamar as igrejas a se envol-verem com os pobres nessa luta de dimensões mundiais. As propos-tas às igrejas constituem, portanto, parte integral do texto. Estedocumento é um convite às igrejas para se envolverem mais profun-damente na reflexão relacionada com a ação junto aos pobres, paraexperimentar na dinâmica da história o pleno significado do querepresenta ser Igreja dos pobres. Enquanto fenômeno mundial, apobreza pode ser confrontada pela Igreja mundial, em responso aoSenhor que tornou sua a causa dos pobres.

Quero concluir com uma palavra final de agradecimento eapreciação a C. I. Itty, diretor da CCPD. Se a solidariedade comos pobres e oprimidos começa agora a ser expressa em diversosmodos em muitas igrejas e no Conselho Mundial de Igrejas em par-ticular, é por causa da profunda sensibilidade à importância da ma-téria, desse diretor, a quem somos tremendamente gratos e a quemmuito devemos, principalmente por ter instado com seus colabora-dores imediatos a explorar as consequências do tema para as igre-jas. Sem sua visão duvidamos que o programa tivesse se desenvol-vido ao ponto refletido nas páginas deste livro.

Julio de Santa Ana

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NOTAS1. Julio de Santa Ana, Genebra, WCC, 1977.2. Julio de Santa Ana (ed.), Genebra, WCC, 1978.

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Introducão>

Nas últimas duas décadas a comunidade mundial tem-se preo-cupado profundamente com a situação dos pobres. As Nações Uni-das e suas agências têm trabalhado para aumentar o rendimentoeconômico dos países subdesenvolvidos. Muitos governos dessespaíses estão adotando métodos e tomando medidas para acelerara taxa de crescimento, na esperança de que os pobres venham a, afi-nal, se beneficiar. Diversas agências voluntárias e a maioria dasigrejas cristãs têm aumentado substancialmente os esforços na áreado serviço e do desenvolvimento em relação aos mais pobres dospobres. Agora que a segunda década do desenvolvimento está ter-minando, muitas pessoas, agências voluntárias, governos e corposintergovernamentais avaliam o trabalho feito e planejam o futuro.Portanto, é justo e apropriado que as igrejas também se envolvamnesse balanço do passado e discirnam o papel a representar no fu-turo neste campo.

Os pobres de nosso tempo

Qual é o estado dos pobres no mundo contemporâneo compa-rado com o que era há duas décadas? Terão os esforços dos gover-nos, das agências intergovernamentais, das agências voluntárias edas igrejas nos últimos anos modificado essa situação?

As evidências indicam que a condição dos pobres se deteriorou,que seu sofrimento se tornou mais agudo do que antes e que seunúmero aumentou consideravelmente nas últimas décadas. Os po-bres de hoje não sofrem apenas do agravamento da pobreza. Sãosubmetidos também a enormes privações, exploração e marginali-zação. São também os oprimidos em nossas sociedades.

Quase todas as nações do mundo têm seus pobres e oprimidos.Nos países ricos da América do Norte e da Europa os que sofrempobreza material representam minoria, mas é grande o número dosdiscriminados e dos marginalizados. Mas a maioria dos pobres e

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dos oprimidos do mundo vivem nos países do Terceiro Mundo. Ador da opressão e da pobreza manifestam-se de maneira mais dra-mática em suas vidas. E são também a maioria dos habitantes doTerceiro Mundo, quase a metade da família humana.

Essa gente vive ainda em estado primitivo e subdesenvolvido.Sua pobreza é atribuída ao ritmo vagaroso do processo do desen-volvimento que ainda não os teria alcançado. De fato, a verdade éo contrário. A grande maioria dos pobres do Terceiro Mundo éformada de gente tomada pelo processo de desenvolvimento ou de"modernização", como se diz às vezes, e empobrecida pelo pro-cesso. B gente destituída de tudo o que tinha - bens materiais,capacidade e técnica, cultura e dignidade. O sistema econômicoprevalescente na maioria dos países do Terceiro Mundo cria a po-breza e depois aprisiona os pobres num estado de miséria deterio-rante. A introdução de tecnologia moderna e de novos modos deprodução tornaram obsoletos e redundantes os antigos métodosde produção e as técnicas tradicionais. A estrutura política e osprocessos em operação no Terceiro Mundo criam a marginalização.O impacto da cultura Ocidental dominante e de seus valores con-testam a cultura e os valores locais. Os pobres de hoje começam aperder tudo o que tinham, seu orgulho, sua identidade e sua dig-nidade.

Esse processo não começou agora. Sua origem remonta aoperíodo inicial da colonização do Terceiro Mundo. Quando se com-para a situação do povo antes do período colonial com a presentesituação tornam-se patentes os efeitos do processo de "moderniza-ção" à maioria pobre.

Durante o período pré-colonial, a maioria das sociedades doTerceiro Mundo caracterizava-se por unidades locais auto-subsis-tentes que se auto-perpetuavam - vilas e agrupamentos tribais.Em geral, os meios de produção, principalmente a terra, pertenciamao grupo social. A..;produção relacionava-se com as necessidades dopovo e era adequada, a não ser nas épocas de calamidade nacional.Distribuia-se com certa justiça o que era produzido entre os mem-bros da vila, da casta ou da tribo. Em geral, a economia nacionalproduzia lucro excedente que era apropriado por pessoas e gruposespeciais na base de aprovação social. Na medida em que usavamesse excedente para bens e serviços não produtivos, o sistema per-manecia basicamente não acumulativo. Certas sociedades manti-nham graus de desigualdade, principalmente social, embora tambémeconômico. Entretanto, a desigualdade econômica baseada na pro-priedade e na apropriação de excedentes não aumentava o processode produção.

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I,:

As empresas colonizadoras introduziram nessa situação mui-tas sementes de mudança. A exigência de bens para os centros me-tropolitanos requeria não apenas produção adicional de bens tra-dicionais mas também a produção de novos bens não necessáriosà sociedade. Inversamente, certos novos produtos e mercadoriasdos centros metropolitanos introduziam novas necessidades, emsubstituição às necessidades tradicionais. Assim, a economia tradi-cional baseada nas necessidades reais começou a ser transformada.A criação de novo mercado de trabalho não apenas desviou a forçade trabalho das economias tradicionais, mas também gradualmenteaumentou o desemprego. A tecnologia importada substituiu a tec-nologia e as habilidades tradicionais. Pior do que isso, como resul-tado da introdução do novo desejo de acúmulo de riqueza e daintrodução da lei do mercado, alguns que tinham poder sobre osrecursos não-humanos começaram a aumentá-lo pelo excedente po-tencial do sistema, começando dessa maneira o processo de acumu-lação de capital.

A tendência do sistema, sob as leis do mercado, ia na direçãode jogar não só a nova riqueza produzida,mas também os recursosdas massas, cada vez mais nas mãos dos que controlavam o novoprocesso de produção, o capital, a tecnologia, a distribuição do mer-cado e o poder político. A maior parte disso acabava nas mãos dasempresas estrangeiras, cabendo o resto aos empresários locais emer-gentes. Conseqüentemente, surgia a nova classe dos ricos, bem comoa dos pobres, sem terra, sem propriedades e sem tecnologia. Esseprocesso, começado e continuado durante o período colonial, foiacelerado nas últimas duas décadas e continua imbatível, recebendoapoio da ordem econômica internacional de nossos dias.

A feição mais clamorosa dessa estrutura econômica na maioriados países do Terceiro Mundo manifesta-se na má distribuição dosrecursos não-humanos dos meios de produção. Tomemos o caso daíndia. Em 1964 "a parte correspondente a 1% no topo da pirâmidesocial possuía 16% da terra, a seguinte fatia de 5% era proprietá-ria de 40%, ficando para os 10% seguintes, 56%, enquanto queos 50% já na camada mais baixa possuía apenas 4% e os restan-tes 20% absolutamente nada. .. Quanto à propriedade do capitalindustrial estimava-se que um décimo da faixa mais alta de 1%dessa mesma pirâmide, classificada segundo os dividendos rece-bidos, possuía mais da metade da riqueza pessoal em forma deações". 1

A maioria dos países pobres não tem feito nenhuma tentativapara mudar o sistema. Esforços orientados para o crescimento dodesenvolvimento ajudam a aumentar a riqueza nacional, mas a dis-

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tribuição dessa riqueza baseia-se em procedimentos injustos. Au-menta assim a riqueza dos ricos e os pobres ficam cada vez maispobres. As duas coisas resultam do mesmo processo. Um estudofeito na India compara a situação dos pobres em 1960 com amesma situação em 1968 e conclui da seguinte maneira: "Os lucrosdo desenvolvimento permanecem em geral confinados à classe mé-dia alta e com os segmentos mais ricos da sociedade que constituem40% da população. " O consumo per capita da classe média ebaixa que constituem 40% da população urbana caiu de 15 a 20%.Nas áreas rurais. .. o consumo dos 5% mais pobres caiu 1%." 12

Outro estudo realizado nas Filipinas mostrou que o trabalho habili-tado caiu em 76% e o não-habilitado em 63% de 1972 para1978".3 Conclusões semelhantes podem ser lidas em relatórios pro-cedentes de outros países do Terceiro Mundo. Assim, os processosde desenvolvimento orientados para o crescimento frustram as aspi-rações dos pobres.

Até mesmo as agências governamentais e as particulares desti-nadas a servir os pobres acabam servindo os ricos. É de tal maneiraa tendência do sistema social que mesmo os melhores esforços paraajudar os pobres transformam-se em auxílio para os ricos, contraeles.

A pobreza não é estática hoje em dia, mas se deteriora de ma-neira assustadora. Em parte, por causa da desmedida ambição dosricos. Os processos do acúmulo do excedente, do aumento da rique-za e da lei do mercado predominantes em muitos países criam esustentam a riqueza para os ricos e a pobreza para os pobres. Asraízes da pobreza de nossa época acham-se no sistema econômicovigente e nos valores que o apóiam.

O sofrimento dos pobres não se limita às necessidades mate-riais. Sua vida caracteriza-se, também, por dependência e opressão.Têm pouquíssimas oportunidades para decidir sobre as própriasvidas. Que comer e quando comer,_onde e quando trabalhar, quesalário receber e que pagar, onde e como viver, quantos filhos tere como educá-Ios, que dizer e como dizer, até mesmo quando rir echorar e como rir e chorar - tudo isso bem como outros aspectosda vida são determinados ou condicionados pelo sistema econômico,pelo poder político, e pelas sanções religiosas controladas pelosricos, pelos poderosos e pelas pessoas influentes. Os pobres vivemuma vida dominada por outros seres humanos na própria sociedadee até fora dela. O outro lado da moeda é o conluio entre os ricos,poderosos, influentes, e as autoridades religiosas. Assim, de comumacordo, esses grupos dominantes de diferentes tipos perpetuam avida dos pobres numa vida de opressão e de dependência.

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Outro aspecto do mesmo círculo vicioso é a crescente margi-nalização dos pobres na vida econômica, política, social e mesmoreligiosa de suas próprias sociedades. Eles não contam nos afazeresda vida. Não têm voz nos processos decisórios. São consideradosignorantes e indignos. São os sacrificados, os marginais.

A vida dos pobres torna-se insuportável por causa da experiên-cia da opressão, da dependência e da marginalização. Mas tais ex-periências não se confinam apenas aos materialmente pobres. Vastossegmentos da população de todas as sociedades de nosso mundotambém sofrem experiências semelhantes, embora nem sempre so-fram de igual pobreza material. As minorias raciais e culturais,os trabalhadores migrantes, a juventude dissidente, os desempre-gados, as mulheres e inúmeros outros grupos sofrem discriminaçãoe marginalização. Como parte do povo oprimido, solidarizam-secom os pobres. Nesse sentido, os pobres são mais do que os pobres.Os pobres e os oprimidos formam um mesmo grupo. É por issoque os dois termos, pobres e oprimidos, aparecem juntos em boaparte deste livro. O crescente poder dos governos, a moderna orga-nização das nações-estados, o aumento do militarismo, o desenvol-vimento dos monopólios, a urbanização, e assim por diante, tudo sedestina- a aumentar a opressão e até mesmo a repressão em nossassociedades.

A luta dos pobresComo sair dessa situação? Como mudá-Ia? Grande parte do

pensamento internacional e dos esforços mais recentes tentam per-suadir os ricos e os poderosos a aliviar os sofrimentos dos pobrese a realizar certas reformas nas atuais estruturas sócio-econômicas.Até agora tais esforços resultaram num impasse como tão bematesta a situação deteriorante dos pobres. O assim chamado proces-so do desenvolvimento chegou num beco sem saída. Por quê?

Como já vimos, a causa matriz da presente condição dos po-bres é sistêmica. Não bastam alguns ajustamentos e mudanças cos-méticas no sistema. Urge a transformação total da sociedade, in-cluindo mudanças drásticas nas estruturas políticas, econômicas esociais em nível nacional e internacional. Coisa que significaria adistribuição radical dos recursos e do poder. Trata-se de vão idealis-mo pedir que os ricos e os poderosos das atuais sociedades dispo-nham da maior parte de seus recursos e abdiquem de suas posiçõesde poder. São raros os exemplos históricos de ricos e poderososque se tenham disposto a abandonar o poder e mudar o sistema queprotege seus próprios interesses. Naturalmente, o que podem fazer,e até mesmo fazem, não passa de esforços para aquietar a própria

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consciência ou para pacificar os pobres impedindo, assim, reformasradicais. Ao mesmo tempo, deliberadamente ou não, fortalecem asestruturas vigentes e se unem contra qualquer levante eventual.

A maioria dos governos dos países do Terceiro Mundo age damesma maneira. Representam principalmente os interesses de podertanto nacional como internacional. Em poucos países, onde os go-vernantes se preocupam com a sorte dos pobres, tem faltado deci-são política para a implantação de medidas necessárias, por causade pressões e ameaças procedentes dos que manejam as rédeas dopoder e dos interesses econômicos.

Devemos admitir que há governos, corpos intergovernamentais,agências particulares e até mesmo igrejas, com o apoio de gentebem intencionada pertencente às camadas ricas e poderosas, quetudo têm feito em benefício dos pobres e oprimidos. Mas, em geral,tendem a ver os pobres como objetos de sua caridade e de seusbons esforços, meros recipientes passivos de sua boa vontade. Es-forçam-se pelos pobres mas quase nunca com eles. Por isso mos-tram-se inadequados. Não envolvem os pobres como agentes demudança. Mais importante do que-isso é que esses esforços nãolevam em consideração o fato de que os pobres querem apenasser tratados como sujeitos de sua própria história. Estão lutandoprecisamente para que sejam reconhecidos como gente cheia depotencial para mudar a própria situação e a sociedade como umtodo. As pessoas que lutam contra a marginalização na sociedadenão desejam ser marginalizados nas iniciativas feitas em seu própriobenefício.

Além disso, grupos e agências fora dos segmentos pobres eoprimidos da sociedade, tendem a ver a situação e os problemasa partir de perspectiva errada. Por exemplo, vêem a questão todacomo se fosse relacionada apenas com a pobreza e com a escassezde bens e serviços. A partir dessa perspectiva ou objetificação eisolação do problema, criam programas destinados a aumentar osuprimento de bens e serviços. Mas não respondem, com isso, àsexigências básicas e às aspirações do povo que são essencialmentea libertação da opressão e da dependência. Para eles a pobreza éapenas um aspecto da situação em que vivem. Da mesma forma,há outras agências que consideram principal a questão dos direitoshumanos. De novo, isola-se um aspecto da situação e com ele setrabalha sem a visão global da situação e sem a percepção dasprioridades do povo no seu contexto histórico.

Muitos consideram os pobres como sendo o problema, e pen-sam que os ricos e os poderosos podem dar a solução. Mas o con-trário é que é verdade. A presente situação foi criada e é sustentada

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pelos ricos e poderosos. Portanto, eles e o sistema que mantêmconstituem o problema. A situação de injustiça, de exploração ede opressão foi criada por eles. Como são parte do problema, nãosão capazes de dar soluções. Os pobres, vítimas da presente situa-ção, serão os únicos capacitados para encontrar saídas.

Não se trata de mero sonho? Quando se leva a história asério pode-se concluir que estamos diante de uma possibilidadeprática - talvez a única possibilidade. Sabe-se bem que na maioriados casos a transformação social histórica deu-se por meio de esfor-ços organizados das, vítimas do status quo. Portanto, não há razãopara duvidarmos de que o futuro seguirá os caminhos da história.

Mas não se acham os pobres de hoje de tal maneira sem podere sem ajuda que perdem a coragem e a força para iniciar e manterlutas assim tão difíceis e longas contra as forças organizadas dasociedade atual? É verdade que boa parte dos pobres vive resigna-damente. Foram, na maioria, ensinados a sentir e a crer que nadapodem fazer. Também aprenderam que as atuais estruturas depoder são invencíveis e que todos os esforços possíveis para derro-tá-Ias serão desmantelados.

Mas a mudança está no ar; os pobres começam a despertar.As sociedades pobres começam a fermentar. Muitos dentre elescomeçam a se dar conta do seu potencial e da sua força para aorganização da luta das massas. Entendem que não há poder maiordo que o do povo (além de Deus). Afirmam a subjetividade histó-rica do povo na transformação social.

Quais são as evidências deste novo despertamento entre ospobres? Estão em muitos países, desde as vilas da Ásia, das favelasda África, entre os nativos da América Latina, nas minorias daAmérica do Norte até os trabalhadores migrantes da Europa. Estãopresentes quando os posseiros nas favelas de Manila resistem a or-dens de despejo, quando habitantes de aldeias indianas se organi-zam para resistir a exploração dos usuários, quando o povo deSoweto protesta contra a discriminação racial, quando os índiosdo Brasil resistem perante os invasores de suas terras sob o comandode organizações transnacionais, e quando os aborígenes na Austrá-lia recusam a mineração em seu território. As evidências aparecemquando comunidades se organizam em sistemas de cooperativapara melhorar as condições de vida do povo, aumentar a produti-vidade bem como o poder aquisitivo e da busca de melhores preços.Aparecem, também, quando o povo inova e domina a tecnologiaadequada à situação em que vive, e não se deixa enganar pelatecnologia estrangeira dependente de especialistas de outros países.Estão aí na luta dos sindicatos pela maior participação dos traba-

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lhadores nos negócios das indústrias, quando os camponeses exi-gem terra para lavrar, quando as mulheres, clamam por saláriosjustos em relação aos salários dos homens, e quando grupos traba-lham pelos direitos humanos. Expressam-se, também, em movi-mentos políticos em favor de mudanças estruturais para a cons-trução de sociedades justas e participatórias. Estão no renascimentoda religião popular, da cultura do povo e da linguagem comum.Essas e muitas outras expressões deste novo despertar dos pobresdão testemunho do crescimento dos movimentos populares e daorganização dos pobres.

Obviamente, os objetivos imediatos procurados e as estraté-gias adotadas diferem segundo os contextos e o poder de suas orga-nizações. Mas a maior parte desses movimentos tem muita coisaem comum. Tudo fazem para resistir perante novas violações deseus direitos, responsabilidades e recursos. Querem conquistar maisespaço para seus esforços organizados e expandir as bases de poder.Dedicam-se com entusiasmo à realização de certos objetivos ime-diatos para provar o potencial que têm e manter a esperança dopovo. Estão comprometidos com a diminuição da pobreza e, sepossível, com a sua extinção, bem como com a eliminação daopressão e da injustiça. Querem fazer nascer a sociedade justa eparticipatória.

As igrejas e os pobresAo longo da história, as igrejas~'sempre se mostraram profun-

damente preocupadas com os pobres e oprimidos. Nem poderia serde outra forma, pois a fé em Jesus Cristo mostra-o pregando asboas novas aos pobres e libertando os oprimidos. Mais recente-mente, as igrejas no âmbito da comunidade do Conselho Mundialde Igrejas têm sido tomadas por novo senso de urgência para fazero que podem para aliviar o sofrimento dos pobres e oprimidos.Inúmeras igrejas expandiram seus programas no campo do desen-volvimento e gàstaram mais dinheiro nesses programas. Outrastornaram-se campeãs na causa da justiça racial e na defesa dosdireitos humanos fundamentais. Não há dúvida de que tais esfor-ços repercutem positivamente em certas situações locais e servempara despertar a consciência do público em nível global. Entretan-to, como já mencionamos, a situação dos pobres está se deterio-rando; as forças da opressão e da injustiça fortalecem-se e se orga-nizam. Alguns cristãos tendem a abandonar os esforços já feitostomados de desespero e frustração. Outros começam a ficar cansa-dos em face dos repetidos apelos em favor dos pobres. Outros,ainda, começam a perder o senso de urgência que tinham há uma

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década. São muitos os que não sabem o que fazer para manifestarinteresse e preocupação pelos pobres.

Mas esse não é o quadro total. É cada vez maior o número decristãos, especialmente nos países do Terceiro Mundo, profunda-mente comprometidos com a luta dos pobres e oprimidos. Partede suas experiências e reflexões serviram de orientação e inspiraçãopara este volume. Pequena parcela disso tudo é mencionada aqui,não como sumário do que segue, mas como aperitivo para novasleituras.

O compromisso desses cristãos baseia-se na fé em Jesus Cristo,na compreensão bíblica dos pobres e dos oprimidos e na compreen-são dos pobres e da sua percepção da história. Acreditam que oDeus do Antigo Testamento é o Deus dos pobres e oprimidos, queouviu o clamor do povo escravizado de Israel, libertou-os do Egito,sustentou-os no êxodo e no exílio e continuou a agir na históriapara estabelecer a justiça e a retidão. É o Deus que estabeleceuleis de justiça, instituiu reis para administrar essa justiça e chamouprofetas para condenar a injustiça. O Deus do Novo Testamentoé o mesmo Deus, que enviou Jesus Cristo para nascer numa man-gedoura, para viver como carpinteiro, para pregar as boas novasaos pobres, para cuidar dos doentes e necessitados e confortar ostristes. Jesus se deixou vitimar pelos poderes religiosos e políticos,foi crucificado como um criminoso e morreu em agonia. Contudo,esse homem que era pobre, que nada possuía, vazio de todos osdesejos e ambições mundanas, foi glorificado por Deus na ressur-reição dentre os mortos. Vindicou, por esse meio, a oferenda deseu Reino aos pobres e oprimidos. E continua presente como oEspírito vivo no meio dos famintos, doentes e prisioneiros. E viráoutra vez para reunir seu povo em seu Reino e para julgar as na-ções segundo a maneira como trataram os menores dos irmãos.No centro do compromisso destes cristãos manifesta-se esta- fé noCristo que está do lado dos pobres e dos oprimidos.

Têm consciência clara dos profundos sofrimentos de milhõesde pobres e oprimidos. Ouvem seu clamor por Iibertação: escutamo chamado de Deus: "Deixem meu povo ir". O clamor dos pobrese o chamado de Deus unem-se num só incentivo ao mesmo com-promisso. Reconhecem nesse compromisso total entrega à liberta-ção de todas as pessoas. Os que oprimem, exploram e se enrique-cem às custas dos pobres são também povo de Deus. Mas essesricos e opressores só serão libertados quando forem libertados ospobres e os oprimidos.

Os cristãos engajados na luta dos pobres e oprimidos valem-sede análise científica e de interpretação de realidades históricas e doprocesso da transformação social.

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Manifestam esse compromisso participando na luta organizadados pobres e oprimidos. Os que não são pobres preferem nãoassumir posições de liderança. Consideram-se ajudadores na lutae comunicadores perante a sociedade em geral. Os intelectuaisajudam na organização com a compreensão que têm da história,na formulação de estratégias e de treinamento de pessoal. Depen-dendo do papel que representam na sociedade, tornam-se advoga-dos da causa dos pobres e oprimidos. Enquanto membros de igre-jas, procuram arregimentar cristãos para a luta tanto no país comono estrangeiro. Manifestam a solidariedade para com os pobres eoprimidos nas opções -políticas, na escolha do trabalho, na maneiracomo gastam o dinheiro, no uso dos recursos e no estilo de vidaque levam.

Sua participação na luta dos pobres e oprimidos não significacompromisso com ideologias absolutistas ou teorias fechadas dahistória. Estão comprometidos primeiramente com o povo e sualuta. Naturalmente, sua participação exige certo processo de açãoe reflexão. É na ação em favor da transformação da sociedadeque as idéias são testadas e aprovadas. É na reflexão que a açãopassa a ser revisada e reformulada. Mantém-se, assim, abertura ànovas idéias sem o enfraquecimento do compromisso com a lutarevolucionária.

Na qualidade de cristãos estão atentos às questões e desafiosque os pobres e oprimidos colocam às igrejas. Mas, por sua vez,refletem sobre a vida das igrejas a partir da perspectiva dos pobrese comunicam o resultado de seu pensamento às igrejas. Preocupam-se com as alianças das igrejas com os ricos e poderosos na sociedadecontemporânea. Questionam o cativeiro das teologias pelas ideo-logias das classes dominantes. Percebem nas igrejas Ç)S mesmasdesigualdades encontradas na sociedade. Acham que as estruturasdas igrejas são pesadas e pouco participantes. Sentem que elasalienam os pobres e marginalizam os oprimidos tanto quanto ofazem outras instituições seculares. Vêem as igrejas se comportan-do como os ricos e agindo como os poderosos. Preocupam-se como fato de os pobres não se sentirem em casa nem bem recebidosem muitas igrejas.

Esse compromisso com a luta dos pobres e oprimidos significanão apenas apoio mas também a contribuição cristã específica.Daí a necessidade de certa participação crítica, especialmentequando a direção da luta envolve certo comprometimento de con-vicções cristãs básicas. Mas ao se envolver com a luta e demonstrarsolidariedade para com os pobres e oprimidos, têm o direito e aoportunidade de testemunhar a fé cristã perante. estes que não a

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praticam. Além disso, a própria luta exige constante vigilância paranão se desvirtuar. A fé cristã, que considera o amor e a koinoniaobjetivos finais das relações humanas pode contribuir para a lutacom esses valores, impedindo que ela se contente com o mero esta-belecimento de estruturas sociais justas. Semelhantemente, a com-preensão cristã da pecaminosidade humana e da ambigüidade detodos os poderes pode ser constante advertência do caráter relativode todas as conquistas e estruturas humanas. As pessoas envolvidasna luta precisam se dar conta, acima de tudo, da necessidade dever todos os poderes e processos históricos sujeitos à orientaçãodo Senhor da história, e de relacionar todos os seres humanos aoDeus em Cristo, na experiência da verdadeira humanidade.

A experiência mais compensadora e notável dos cristãos en-volvidos com a luta dos pobres e oprimidos é a descoberta, nessecontexto, de novas comunidades eclesiais. Algumas vezes essascomunidades surgiram de encontros em que se buscou os recursosda fé para o sustento da luta. Outras vezes, de encontros de oração,intercessão e leitura da Bíblia. Não importando a maneira comocomeçaram, têm muito em comum. São formadas, em geral, depobres. Tentam relacionar a fé cristã com a vida diária e a lutapela justiça. Consideram o estudo da Bíblia em grupo grande fontede inspiração. Criam novas canções, novas liturgias e novas manei-ras de celebração que correspondem à sua linguagem, ao seu meioe às suas aspirações. As reuniões e a vida comunitária baseiam-sena plena participação dos membros com suas contribuições parti-culares.

Essas novas comunidades eclesiais estão aparecendo em grandenúmero nos diversos países do mundo. Indicam nova atividade doEspírito Santo em nosso tempo destinada a renovar a Igreja e atransformá-Ia no lar dos pobres e oprimidos, dos "cansados e sobre-carregados". Indicam a "Igreja dos pobres".

NOTAS1. O relatório da Comissão Mahalanobis sobre a distribuição da renda e

níveis de vida (1964), citado por C. T. Kurien, em Poverty, planningand social transjormation, Madras, Indian Council of Social ScienceResearch, 1978.

2. The study of poverty in lndia, por V. M. Dandekar e N. Rath, 1971,citado em Poverty, planning and social transformation, op. cit.

3. Circulou um memorandum entre os delegados da UNCTAD V, de quatrogrupos de igrejas das Filipinas: Conselho Nacional de Igrejas, Associa-ção de superiores de ordens religiosas masculinas e femininas, Secreta-riado Nacional para ação social e Comissão de Justiça e Paz da Confe-rência dos Bispos Católicos. Ecumenical Press Service, n. 12, 10 de maiode 1979.

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1.As Igrejas e acondição dos pobres

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I. Duas vozes mas um só clamor

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"Num deserto de destruição idólatra a tremenda voz de Deusainda clama por vida".

É clamoroso o escândalo da pobreza num mundo de abun-dância. Enquanto se sucedem inúmeras décadas de desenvolvimen-to, os pobres continuam a morrer. Morrem de fome, de muitasprivações, de opressão. Entretanto, a riqueza de alguns dependede sua vida e trabalho.

Num mundo de escassez, onde todos partilhassem as neces-sidades, a pobreza representaria desafio para todos, igualmente.Mas num mundo de abundância, onde os muitos pobres existemprecisamente para que poucos permaneçam ricos, a pobreza, -ou melhor, a riqueza - é infame. Quando os ricos se recusam aabandonar os privilégios que gozam e não querem compartilharcom todos a abundância de seus bens, devem ser acusados.

Mas o clamor deste escândalo não parece ser escutado. Osque detêm o poder para mudar não utilizam a autoridade para ajustiça, chegando muitas vezes até mesmo a usá-Ia para fortalecera injustiça. Nem mesmo Deus parece dar ouvidos à oração dopobre, como tão amargamente reclamava Jó em seu desespero(Jó 24.12).

A pobreza não é acidental. Trata-se de um fenômeno funda-mental e incisivo de nossa sociedade voltado para a destruição dahumanidade, que é criação de Deus. A pobreza só pode ser atacadapelas raízes. A raiz de todos os males, segundo Paulo em 1 Tm6.10, é o amor pelo dinheiro. Jesus o chama de Mamom, umídolo. 1 Promete riqueza, mas cria pobreza; sugere humanidade, eproduz separação; fala de liberdade, mas escraviza as pessoas. Émultinacional, difusa, e exige fidelidade dos corações humanos.Jesus disse, simplesmente, "Não podeis servir a Deus e ao di-nheiro"."

A tarefa de mudar esse estado de coisas nos parece demasia-damente pesada e a vontade para trabalhar nessa direção demasia-

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damente fraca. Mas, certamente, o Senhor [avé escutou a súpllcr:do pobre com o desejo de se libertar da escravidão. Coisa cxtruur-dinária, as vozes dos pobres e a voz de Deus confundiram-se nUIl1

enorme' grito, questionando os ricos: "Por que vocês são assimtão ricos? Onde estão vocês"? 3

Bem mais à frente de sua Igreja, criada para ser sua vanguar-da," o Filho de Deus dedica-se à renovação de nossa terra. E,voltando-se para trás, convoca a Igreja: "Por que você fica aí pa-rada? Vem e segue-me nesta peregrinação; somente em obediên-cia poderá me conhecer pois obediência é o único conhecimentode Deus". 5

É preciso dar-se um passo novo e de maior alcance nessa pere-grinação. Com todas as suas ambigüidades, setores de igrejas sempreajudaram os pobres de um jeito ou de outro. Até mesmo aprende-ram a estar com eles. Hoje em dia, porém, a situação em que vivemos pobres força-nos a redescobrir a antiga realidade da Igreja queera originalmente a Igreja dos próprios pobres. 6

Este livro pretende demonstrar quão urgente e necessário éeste esforço. Não nos basta ser uma- igreja para os pobres. Tampou-co, uma igreja com os pobres, muito embora estar com eles possaser importante. A situação dos pobres em nosso mundo nos ajudaa redescobrir a origem da Igreja do Novo Testamento como igrejados pobres; e nos convoca a ser novamente essa mesma igreja dospobres - ser a Igreja viva sob a graça de Jesus Cristo que pornossa causa se fez pobre, "para vos enriquecer com sua pobreza"(2 Co 8.9).

Sinais de esperança

Inúmeros grupos e movimentos espalhados pela terra já estãoescutando o clamor dos pobres. Muitos deles operam fora dasigrejas. Entretanto, é cada vez maior o número de movimentosdesse tipo encontrados também dentro das igrejas. Tornaram-sesensíveis à situâção do pobre com suas exigências e esperanças.Como se um vento começasse a soprar ao mesmo tempo em muitoslugares, iluminando os acontecimentos e ajudando as igrejas a per-ceber que não podem permanecer passivas depois de se dar contade tudo o que envolve a situação dos desprivilegiados de nossaépoca.

Algumas paróquias, grupos e comunidades eclesiais, tomandoconsciência das condições em que vivem os pobres hoje em dia,sabem que precisam decidir conscientemente em favor dos pobres,identificando-se com eles e vivendo em solidariedade com todosos que sofrem em conseqüência dos mecanismos responsáveis por

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tal situação. Entendem, como crentes em Jesus Cristo, que é o amorencarnado de Deus para trazer justiça e igualdade (2 Co 8.14),que são escandalosos os atuais modelos de pobreza. Entre os cris-tãos, e mais importante ainda, entre as igrejas, esta situação inde-fensável começa a estimular um movimento (ainda desorganizado,de certa forma espontâneo, mas crescente tanto nos países desen-volvidos como nos países em vias de desenvolvimento) que se colo-ca claramente em favor dos pobres. Não obstante o escândalo dasituação, reconhece-se que os pobres estão mais abertos à graçade Deus do que os ricos. Confirmando, aliás, o que afirma a Bíblia.Sem qualquer idealização da pobreza, naturalmente. 7 O própriofato de que esses movimentos procuram erradicar a pobreza ata-cando-a pelas raízes, demonstra até que ponto é realista a sua deci-são. A partir daí, realisticamente pois, percebem que os pobrescom suas esperanças e expectativas abrem-se mais para Deus doque os ricos.

Outro aspecto da vida das igrejas em nossa época é o envol-vimento cada vez maior de certos setores na luta em favor da liber-dade e contra a injustiça. Entende-se, então, que a condição preva-lescente dos pobres não pode ser resolvida apenas por meio deobras de caridade. É bastante provável que ainda tenhamos quemanter, em muitos casos de extrema penúria, certas atitudes cari-tativas, mas o caráter mesmo da pobreza estrutural exige que suasraízes sejam enfrentadas por métodos adequados ao nível estrutural.Em outras palavras, os fatores geradores de privação e os que im-pedem a satisfação das necessidades humanas básicas, devem serenfrentados no nível de suas causas e não no nível dos efeitos.

Como resultado da participação crescente de grupos eclesiaisna luta pela justiça, as comunidades cristãs acham-se hoje maisvisivelmente comprometidas com os movimentos de defesa dosdireitos humanos do que há uma década. Para os que participamnestes movimentos, os direitos dos pobres são com() "os direitosde Deus". Há mesmo setores de igrejas cristãs que decidiram setransformar em "representantes dos pobres". É verdade que os po-bres sempre estiveram presentes nas igrejas, embora nestes últimosséculos não se tenham envolvido muito de perto com a vida dascomunidades cristãs. 8 Uma coisa, porém, é a presença dos pobresnas celebrações e reuniões cristãs; outra, bem diferente, é a trans-formação dessas comunidades em igrejas dos pobres. Fazer daIgreja "a voz dos que não têm voz", tem sido, por exemplo, a tarefade Dom Helder Câmara, arcebispo brasileiro de Olinda e Recife,nos últimos quinze anos. 9 Assim, cresce o número de comunidadescristãs que ultimamente estão se envolvendo com a luta dos pobrese dos oprimidos em favor da justiça e da libertação.

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Que significa tudo isto para a vida da Igreja Universal? Basi-camente, essas experiências, escolhas e comprometimentos, devemser entendidos como "sinais de esperança". Vamos descrever naspáginas que seguem alguns desses sinais visíveis em diversas partesdo mundo. Chamamo-Ios de sinais, não de exemplos. Não são pro-jetos a desenvolver de uma hora para outra, mas sinais do novocompromisso e da nova compreensão da Igreja.

NARRATIVAS DA IGREJA DOS POBRES

Catedral de São Marcos, Bangalore, índia

Construída no princípio do século dezenove, a catedral aindamantém as marcas de sua origem. Mas, hoje em dia, o cleroindiano tem procurado superar as limitações que essa origemsignifica. Numa cidade onde 40% da população vive abaixo dalinha da pobreza, a congregação acha difícil entrar em contatodireto com os pobres. Mas na medida em que a congregaçãotoma consciência da situação dos pobres as pessoas começam aresponder ao desafio que isso+representa. O encontro com ospobres tem resultado em melhor compreensão da missão en-quanto compromisso e libertação. A solidariedade para com ospobres tem significado o encontro com Jesus no serviço. A pere-grinação, pois, já começou ... O povo percebe os sofrimentose as lutas dos pobres por meio das mais variadas formas decomunicação. Os jovens tomaram a iniciativa de relacionar oculto com dois tópicos específicos: os pobres e os pobres desem-pregados. Estabeleceram uma espécie de agência de empregosque logo serviu para levar a congregação a se encontrar com osdesesperadamente pobres; abriram-se, em conseqüência, novaspossibilidades de serviço e de solidariedade ajudando os mem-bros da Igreja a andarem para a frente. As novas tarefas profé-ticas e o trabalho nas favelas acabaram se transformando emluta pela justiça e na organização dos pobres. O movimento élento e muitas vezes frustrante, mas o esforço para se transfor-mar na Igreja dos pobres continua ... 10

A Igreja dos Aymaras na Bolívia

Ao suleste das margens do Lago Titicaca há inúmeras cidade-zinhas habitadas por comunidades aymaras. Seus antepassadosdominaram o império Kollasuyo, muito tempo antes do domíniodos conquistadores espanhóis nos Altos Andes, no século dezes-seis. Com a chegada desses invasores os aymaras (entre outrospovos indígenas) tiveram que enfrentar extensos períodos de

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provação, sofrimento e opressão: escravidão, trabalho forçado,separação de famílias e de comunidades. Os aymaras resistiramcomo puderam, mas não conseguiram vencer o poder dos con-quistadores, dos colonizadores e de todos os que vieram depoisda independência política. As mudanças políticas não modifica-ram, basicamente, suas vidas. As igrejas, nos melhores casos,demonstraram mera atitude paternalista para com eles. Por suavez, a Igreja Ihes parecia uma instituição de gringos, limitadaaos brancos. Os cristãos não trouxeram para os aymaras "boasnotícias", mas, pelo contrário, notícias muito ruíns.Ao final do século dezenove a Igreja Metodista começou o tra-balho de evangelização e serviço entre as comunidades aymarasda região do Lago Titicaca. Tanto os missionários estrangeiroscomo os pastores bolivianos (na maioria brancos) tentaram aju-dar os ayrnaras, mas o que faziam caracterizava-se por atitudespaternalistas. Não obstante, em número crescente, os aymarascomeçaram a se envolver cada vez mais na vida da igreja. Aca-baram sendo a maioria da comunidade metodista na Bolívia.A consciência da opressão sofrida por tantos séculos moveu osaymaras metodistas a representá-Ias de maneira construtiva. Elesmesmos planejaram e desenvolveram programas de seu interesse;entre essas atividades surgiram programas de saúde e, - naverdade mais importante ainda, - elegeram um bispo aymarapara dirigir a igreja. Destarte, a Igreja Metodista da Bolíviacomeçou a se transformar numa instituição dos indígenas dopaís, governada pelo que chamam de "concílio de amantas"("sábios", em sua língua). Os projetos considerados importan-tes não são os mais sofisticados. Dá-se prioridade ao treinamen-to da liderança indígena, ao trabalho com os camponeses e comos movimentos indígenas. O esforço para a criação dessa igrejados indígenas expressa muito bem a busca da igreja dos pobres.A mensagem do evangelho libertador de Jesus Cristo adquiriusignificado mais profundo para essas pessoas; não se trata maisda manifestação de paternalismo da parte da Igreja, mas daproclamação que Ihes ajuda a compreender melhor a maneirade reafirmar as convicções e valores próprios. O evangelho dei-xou de ser "coisa de gringos", mas algo que Ihes parece serdirigido ao seu próprio povo.Quem Ihes visita pode se surpreender ao vê-los numa vigília deoração pela noite a dentro, numa de suas capelas, ou organi-zando cooperativas, ou, quem sabe, reinterpretando a própriahistória (que deveriam esquecer, segundo os desejos dos domi-na dores brancos) à luz do evangelho, ou, mais, lutando por seus

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direitos, ou, ainda, unindo-se aos mineiros em sua luta por me-lhores dias. Trata-se, na verdade, de uma nova vida surgindoentre os aymaras da Bolívia. Sua igreja não é simplesmente umaigreja pobre, mas, acima de tudo, uma igreja dos pobres na qualo Espírito libertador de Deus está agindo.

Nas montanhas meridionais de Appalachia, USA

As pessoas que vivem nas montanhas meridionais de Appalachiaestão entre as mais pobres dos Estados Unidos. Dedicam-seduramente à indústria mineira de carvão, onde o trabalho orga-nizado enfrenta muitas dificuldades para a obtenção de seusobjetivos. As doenças, os acidentes e as mudanças de mercadoameaçam as oportunidades de emprego. Nesta região, o cristia-nismo evangélico está se tornando pentecostal em caráter. Asigrejas providenciam inúmeros serviços. Parecem ser, em geral,bastante terrenos, como a "lavagem dos pés". Entretanto, gran-demente necessários. As pessoas descobrem que a Igreja estácom elas. Sentem-se em casa na Igreja. Nas reuniões de oraçãorealizadas nas casas dos pobres, "ao se edificar a comunidade dafé, descobre-se algo relacionado com a promessa do ministériodos discípulos de Cristo. Os pobres começam a sentir que Jesuslhes está libertando de inúmeras formas de escravidão. São forta-lecidos para perseverar em sua luta. constante. Neste contexto,a Igreja mantém viva a esperança. 11 É a igreja dos pobres, nãodos poderosos. Essa escolha expressa-se no tipo de culto quecelebra. Trata-se da expressão da libertação humana por meiode formas litúrgicas populares. L'2

A participação das Igrejas no desenvolvimento da Indonésia

Dois terços dos pobres mais pobres do mundo vivem em quatropaíses da Ásia, e a Indonésia é um deles. A situação dos pobrestem desafiado a Igreja na Indonésia a responder de maneirapositiva e ativa. Ressaltando a necessidade de motivar os maispobres e destituídos de poder para falar em seu próprio nome,o Centro de Desenvolvimento do Conselho de Igrejas da Indo-nésia (DGI), por meio de seu programa de motivadores nasaldeias, procura despertar nova consciência entre os pobres,de sua própria condição, e os ajuda a lutar por uma vida melhorcom seus próprios esforços, por intermédio de programas dedesenvolvimento de formação comunitária, capazes de Ihes darsenso de dignidade, de realização e de esperança.

Esses motivadores, que trabalham em equipes de três pes-soas nas mais remotas aldeias da Indonésia, desejam, primeira-

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mente, estar com o povo participando de sua vida diária e tra-tando de lhes ganhar a confiança. Sua presença ajuda o povo arefletir sobre as situações em que vivem para analisar, fazerperguntas que ainda não tinham sido feitas, a fim de começaremjuntos um programa construtivo de desenvolvimento no qual oshabitantes da localidade são os principais protagonistas. Essesmotivadores tem que tratar muitas vezes com membros de tribosdonos de cultura completamente diferente da sua. Não é fácildescobrir maneiras de preservar a cultura local e ao mesmotempo ajudá-los a enfrentar os desafios da modernização. Osmotivadores são treinados para transmitir conhecimentos práti-cos referentes à tecnologia simples e a desenvolvimentos agrí-colas, a fim de oferecer às populações rurais a orientação básicaque lhes capacite a se desenvolver por conta própria.

Os motivadores pertencem a igrejas na Indonésia que res-ponderam ao desafio de estar com os pobres para serví-los. Demaneira bem prática, a Igreja vai para o meio dos pobres, paraestar com eles em sua difícil situação e para serví-los em sualuta por uma vida melhor. Em muitos aspectos, esses jovens mo-tivadores assemelham-se a uma ordem religiosa, com seu votode permanecer pobres nas aldeias para onde são enviados. Orga-nizam-se em forma de comunidade com a finalidade de reali-zar um ideal proposto pela Igreja Cristã.

No sul dos Estados Unidos

A Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, denominaçãorelativamente pequena, "nascida em cisma" durante a GuerraCivil, luta para enfrentar em estado de missão os desafios domundo presente. Numa consulta missionária realizada em 1978os delegados prestaram atenção às vozes do Terceiro Mundo (naverdade, um terço dos participantes vinham de outros países)e as interpretaram como se fossem a própria voz de Jesus Cristoa lhes chamar para maior fidelidade em face dos desafios denossos dias. O relatório classificou o capitalismo de sistema eco-nômico pecaminoso bem como qualquer cumplicidade com ele.Exortou os membros da Igreja a mudar seus estilos de vida, atrabalhar pela mudança do sistema e dos seus efeitos sobre asvidas humanas, e a centralizar os esforços missionários em lutaspela justiça econômica internacional tanto nos Estados Unidoscomo em outros países. O relatório colocou na agenda de estudoe ação da Igreja a questão da justiça para com os pobres, e cha-mou os seus membros, quase sempre bem situados na vida, aenfrentar a questão. Como se poderia esperar, muita gente re-

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siste contra essas decisões e inventa subterfúgios para não seenvolver com a triste realidade, mas as vozes dos pobres nãoconseguem ser abafadas quando ouvidas com clareza, e podemse levantar desafiadoras mesmo numa pequena igreja de classemédia. 13

A Igreja de Nampula, Moçambique

De 8 a 13 de setembro de 1977, a Igreja de Moçambique(anglicana) organizou na cidade de Beira uma assembléia nacio-nal para tratar de assuntos pastorais. A reunião resultou de in-tenso trabalho preparatório ao longo de dois anos. Queria ana-lisar a situação da Igreja no novo contexto político e social dasociedade moçambicana. A assembléia teve a participação de bis-pos, sacerdotes, membros de ordens religiosas e leigos. Cada dio-cese preparou um relatório representativo de intenso trabalhocoletivo desenvolvido nas bases e apresentado por delegadoseleitos nos concílios regionais. Apresentamos, a seguir, trechosdo relatório geral final, publicados em Libertar, boletim das co-munidades cristãs de base em Põrtugal, em janeiro de 1978.1.4

Comunidades

1. Quando falamos de comunidades em nossa Diocese, quere-mos significar grupos de pessoas que se encontram regular-mente para compartilhar a vida, para celebrar a Palavra deDeus e, sempre que possível, a eucaristia, e que, por sua vez,têm líderes comunitários. O número de pessoas que formamesses grupos varia grandemente: a média situa-se entre vintee quarenta.

2. Segundo esse critério, temos em nossa diocese cerca de 524comunidades. A distribuição geográfica é muito irregular.

3. Para se compreender melhor a prática na vida dessas comu-nidades, deve-se levar em consideração o seguinte:A experiência de mudança radical trazida pela independên-cia vivida como libertação é vivida em sua totalidade e al-cança todos os níveis em que o povo sofreu opressão. Emrelação à Igreja, esta libertação se concretizou da seguintemaneira:a) separação entre Igreja e Estado com a cessão dos privilé-

gios anteriormente concedidos à Igreja Católica Romana;b) nacionalização dos sistemas de educação e de saúde, ace-

lerando-se assim o fim das "missões";c) crítica aberta à Igreja enquanto aliada do colonialismo.

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Este processo foi, de certa maneira, doloroso e exigiu grandeabnegação para se descobrir, afinal, o que é essencial na vidada Igreja e na evangelização.Tudo isso repercutiu dentro da Igreja. Muitos missionáriosdeixaram Moçambique: inúmeros cristãos abandonaram aprática da religião; os antigos professores deixaram de serlíderes comunitários: as lideranças passaram para os qua-dros políticos.

4. Dentro deste processo de mudança, começa a emergir umanova consciência entre os cristãos. Estas deficiências devemser, agora, superadas: passividade e medo, clericalismo e sa-cramentalismo, falta de instrução ou de convicção, falta desenso de responsabilidade, e o temor de exercer diferentesministérios.

5. Para se superar essas deficiências, torna-se urgentemente ne-cessário, basear-se em nossos próprios recursos e encontrarnovas maneiras de:

estudo mais aprofundado da Palavra de Deus (solicita-mos aos bispos que providenciem Bíblias em Portuguêsimpressas em Moçambique);celebrar os sacramentos, particularmente o da reconcilia-ção e a eucaristia.

6. Estes são fatores capazes de nos trazer à plena maturidadealguns frutos que já começam a aparecer nas comunidades:

transcrição progressiva de ser-cristão-pela-força a ser-cris-tão-por-convicção;transição da fé infantil para a fé adulta.

Na Coréia do SulUma das experiências mais comoventes da recente história

do cristianismo asiático é testemunhar o nascimento de novascomunidades messiânicas. Comparadas com outras comunidadesda Ásia, o significado desses grupos coreanos está no fato deterem nascido num contexto historicamente contraditório delutas no país inteiro. Trata-se de uma luta política entre as mas-sas constituídas pelos pobres e os poucos ricos, entre os opri-midos e os opressores. As novas comunidades messiânicas surgi-ram no meio dessa luta, singular em sua intensidade intelectuale física.

O ponto de partida para todas essas novas congregações foi"o encontro de oração das quintas-feiras", iniciado em abril de1974. A razão dessa prática foi a onda de detenção de cristãos

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começada naquele ano. Ham, o "Gandhi coerano" que já haviasofrido tanto nas prisões da Coréia do Norte como nas da Coréiado Sul, descobriu que essas reuniões de oração acabavam sendovalioso instrumento de resistência. Assim, no meio dessas prisõese julgamentos, ele instituiu os "encontros de oração", na vésperadas sessões semanais de julgamento, ou seja, nas noites de quinta-feira.

A primeira reunião contou apenas com a presença dos fa-miliares dos detidos: mais ou menos 50 pessoas. Mais tardeesse número chegou às centenas. No começo vinham somenteos cristãos; depois, uniram-se a estes taoístas e budistas. "Nos-sas orações são em favor de todos os acusados e prisioneiros".Em 1975 oito homens foram sentenciados à morte e executados.Foram acusados de pertencer a um partido proibido. "Emboraseus pais e filhos sofressem execuções, embora fossem inocentes,e não obstante as lágrimas de pais, esposas, filhos, irmãos eirmãs, durante as orações, essas reuniões celebravam a vida e aesperança. Unimo-nos uns aos outros em confiança mútua eamor".

Todos os excluídos da vida pública, parentes e amigosdos detidos bem como os que sofriam nas prisões, uniam-senessas reuniões de oração às quintas-feiras. Durante os encon-tros mencionavam-se nomes e eram narradas as dolorosas situa-ções por que passava essa gente, lembrados, naturalmente por es-posas ou filhos. Os que oravam eram também perseguidos ouespionados. Eram professores demitidos ou estudantes impedi-dos de voltar às aulas, favelados e camponeses, pastores e tra-balhadores sociais: seres humanos sem propriedade, donos ape-nas de suas vidas nessa nova comunidade.

No final de 1975, algumas famílias que habitavam uma fave-la e que costumavam freqüentar as reuniões de oração, perderamseus barracos por causa da decisão governamental de "tornar acidade mais "bonita". Muitas famílias resistiram e construiramtendas para defender seus direitos. Uma pequena tenda abrigouuma reunião de oração. Nasceu, assim, uma nova comunidade:a Sala de Amor de Sarang-Dang. Em certa ocasião a comunidadetoda foi detida. Seis mulheres e dez homens receberam ordemde prisão, bem como o líder do grupo. Não obstante tudo isso,Sarang-Dang é uma comunidade viva no deserto, cheia de espe-rança, posto que seus membros não estão sós.

Há inúmeras outras comunidades surgidas que nem essa,com estórias também semelhantes: "Galilâa", "Yumin", "Mer-cado da Paz", "Casa da Aurora". Há comunidades não-localiza-

II

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das que se reúnem ao redor do "espírito do. dia primeiro demarço: Samil Chul", ou mulheres do "grupo dos 18", todas es-posas de sentenciados relacionados com os famosos julgamentosde "Myong Dong", e grupos de solidariedade aos jornalistas de"Dong A. Iebo", entre outros.

Essas novas comunidades vivem na confiança de que Deusestá presente e atuante nessas lutas. Por ocasião das celebraçõesdo ano novo de 1978, com a publicação do nome das vítimasde "Declaração de primeiro de março", os cristãos envolvidoscom essas comunidades disseram: "Nós estamos com os pobres.Estamos, portanto, prontos para ir para a prisão a qualquer mo-mento. Ser prisioneiro é mesmo uma nova manifestação de nossacomunidade." 15

A igreja dos pobres numa sociedade afluenteNa Ho1anda, que é uma sociedade afluente, há um sério

problema que já se arrasta por alguns anos. Milhares de pessoasestão a espera de habitação. São diversas as razões para estafalta de casas, sendo uma delas (e, talvez, a principal) a desti-nação de inúmeros conjuntos habitacionais para fins comer-ciais não-residenciais. As casas de moradia começam a ficar va-zias. Seus inquilinos são forçados a se mudar para que aí se ins-talem escritórios, lojas ou, simplesmente, para especulação imo-biliária. Nos centros urbanos a terra já vale até mesmo mais doque os edifícios. Há, porém, pessoas que não aceitam essa situa-ção. Especialmente os jovens, que estão na lista de espera já háalguns anos. Impacientes, invadem as residências vazias, e asrestauram, tornando-as de novo habitáveis sem o consentimentode seus proprietários. Quebram, assim, a lei que proteje a pro-priedade privada com mais eficiência do que as pessoas em ne-cessidade de habitação. A polícia tenta expulsá-Ios pela força.

Na antiga cidade de Amsterdam a maior residência "inva-dida" é o edifício Leeuwenburg. São 15 casas com alguns escri-tórios de grandes indústrias. O edifício tem mais de 200 anosmas ainda está em bom estado. Foi usado para vendas de metalpor atacado. Em 1969 esses escritórios foram fechados porqueo edifício seria demolido para dar lugar a um hotel. Em 1972o grande conjunto foi desabitado e os interiores das grandesmansões foram desmantelados para que ninguém pudesse per-manecer. Os vizinhos protestaram, lembrando à municipalidadeas promessas que fizera de estabelecer novas residências por ali.O conselho de igrejas da cidade também protestou mas nadaaconteceu. O edifício permaneceu vazio.

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Os próximos "invasores", com o auxílio da vizinhança e demembros das igrejas, entraram nessas casas, restauraram-nas porconta própria, trabalhando juntos sem qualquer proteção externa.Agora, cerca de 100 pessoas estão morando em 60 apartamen-tos. Enquanto isso, a propriedade toda foi novamente vendida.Rendeu aproximadamente um milhão de guilders. Os novos ha-bitantes estão, de novo, ameaçados de expulsão. Ao lado dogrupo do Conselho de Igrejas de Amsterdam eles decidiram per-manecer onde estão e resistir à polícia.

Em 1978 um grupo de estudo do Conselho de Igrejas daHolanda preparou um relatório sobre esta e outras estórias pa-recidas, que se poderia traduzir em português por "posseiros naHolanda", em que rejeita uma nova lei sobre esses incidentesque o governo holandês estava preparando. Essa lei protegeos proprietários e permite nova especulação. O relatório foiaceito pelo Conselho de Igrejas da Holanda depois de longosdebates. As Igrejas, agora, fazem objeção a essa lei perante oGoverno. Pela primeira vez, a propriedade privada, consideradainviolável, começa a ser atacada pelas igrejas. A humanidadepassa a ser considerada mais importante do que as leis do mer-cado. Os "posseiros", até agora, não receberam nenhuma medidade segurança.

Dados bíblicos para uma igreja dos pobres

Essas estórias a respeito de igrejas procurando ser de novoigrejas dos pobres assemelham-se a estórias de outras igrejas escri-tas há muito tempo no Novo Testamento. As tradições do Antigoe do Novo Testamento demonstram um movimento profundo eradical contra o desenvolvimento que separa a humanidade emopressores e oprimidos, ricos e pobres, abastados e necessitados. 16

A Bíblia ataca os poderosos e lhes acusa de não utilizar esse poderem favor dos fracos, e, pior ainda, de acrescentar mais poder aosopressores. 17. A nova Igreja que surge mostra estilo radical de vidacomunitária onde a pobreza é erradicada (At 2.42-47; 4.32-35).Paulo demonstra em suas cartas a existência de uma Igreja baseadana eleição divina dos pobres. "O que é fraqueza no mundo, Deuso escolheu para confundir o que é forte; e o que no mundo é vile desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada oque é" (isto é, a ordem existente) (1 Co 1.27b e 28). Da mesmamaneira a carta de Tiago. A Bíblia gera a força contrária às estru-turas prevalescentes de poder neste mundo. 19 E o faz de muitas ma-neiras. Por meio dos profetas e dos legisladores da Torah procuraestabelecer regras que garantam a prática da justiça por meio da

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qual a terra de Deus e sua riqueza são honestamente distribuidasentre todos, e o povo, ameaçado de pobreza, pode reencontrar oseu lugar na sociedade.

A designação de povo de Deus tanto para Israel como para aIgreja evoca a solidariedade concreta capaz de ser praticada nanova irmandade. Baseiam-se fundamentalmente em profunda espi-ritualidade. Foi o próprio Espírito de Deus e de Jesus Cristo que-nos ensinou a não confiar em família, terra ou casas (Mt 19.29)mas no amor de Deus (Mt 6.25-34, Lc 12.22-32). Esse tipo deespiritualidade cria espaço para que o humilde e o necessitado en-contrem, afinal, a liberdade. Ao mesmo tempo torna possível aparticipação dos ricos.P" Na Bíblia os ricos nunca são completa-mente fechados em sua riqueza. São chamados a se libertarem daescravidão à propriedade, e são solicitados a tornar essa proprie-dade disponível à causa da justiça e, se necessário, a se livrar dela.Os ricos são convidados a se unirem na luta dos pobres, por meiode um processo de conscientização e de conversão. São chamadosa participa,r na nova comunidade, mas somente sob a condição daeleição divina dos pobres, que são os portadores do evangelho, nãoporque estejam mais perto de Deus, mas porque Deus está maisperto deles. A boa mensagem torna-se clara neles; eles são a baseda recriação de Deus. 1'.11

Os pobres fora da Igreja

Em primeiro lugar, para que a igreja venha a ser novamenteigreja dos pobres será necessário que se torne novamente humilde.Pretender que a Igreja seja o partido do povo será pura falácia,não apenas por causa das ambiguidades da Igreja, mas principal-mente porque a Igreja na maioria dos países não passa de umgrupo minoritário. i212 A tarefa da libertação não é uma empresaeclesiástica. Tampouco a opção por ser igreja dos pobres não setrata em primeiro lugar da elaboração de nova moda teológica.Seria utilizarmos os pobres para nossos propósitos. A "teologiados oprimidos" depende de ouvirmos atentamente suas vozes," que,ao lado da palavra de Deus, juntam-se numa só voz.

Nem precisamos nos apressar para "batizar" os pobres. Trans-formar-se em igreja dos pobres não significa um método para re-conquistar posições perdidas e muito menos uma estratégia parao crescimento da igreja. Trata-se de um desafio para sermos fiéisao testemunho de Jesus Cristo; é um ato de conversão.f"

O cativeiro das igrejas precisa ser quebrado. Nossas igrejasfechadas precisam ser abertas às instituições criativas envolvidas

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com movimentos de libertação, em todos os sentidos bíblicos dessapalavra, incluindo a libertação material.

Dentro desse processo popular, a Igreja, segundo o chamadode nosso Senhor, deveria ser o agente principal.?" Não pode haverigreja sem os pobres, uma vez que Cristo se torna presente neles.Qualquer igreja sem os pobres é um lugar obviamente abandonadopor Crísto.:" Portanto, a Igreja precisa escutar os clamores dospobres. Precisa carregar seu fardo e perguntar aos que não estãona igreja de que maneira ela poderá lhes ajudar em sua causa.

Como sinal de testemunho a Jesus Cristo, a Igreja deve per-manecer atenta aos pobres que se voltam para ela. Ao tentar res-ponder às necessidades dos pobres, a Igreja deve utilizar todas aspossibilidades que estão ao seu dispor para resolver seus problemas.Qualquer tipo de participação em ação social em benefício dos po-bres envolve responso ao sofrimento 'sócio-econômico. Basicamente,a pobreza estrutural só pode ser enfrentada a partir de perspectivapolítica, e a luta contra ela exige envolvimento político. 12'7

As estruturas de nossas igrejas serão renovadas quando nosencontrarmos diretamente com os pobres, não mais como objetos denossa caridade, mas como sujeitos de mudança. Testaremos, assim,tanto a credibilidade da Igreja como a do evangelho. Modificare-mos nossos conceitos teológicos, missiológicos e eclesiológicos, nadireção de novo entendimento do Senhor da Bíblia.?" As priorida-des da agenda das igrejas mudarão. É o que se verifica em diversaspartes do mundo onde a Igreja voltou a ser fiel ao testemunho deJesus Cristo, transformando-se em igreja dos pobres. 29

Os pobres dentro da Igreja

Parte da sociedade, a Igreja não está livre dos antagonismosdeste mundo. As contradições existentes no relacionamento entreas igrejas ricas dos países desenvolvidos e as pobres dos países emvias de desenvolvimento criam severos problemas. Mas tambémdentro das comunidades locais há, muitas vezes, enorme distânciaentre o salário, o valor das propriedades e a riqueza dos membrosda Igreja, que, naturalmente se chamam igualmente de irmãos eirmãs em Cristo." Em geral, os pobres são domesticados. Não par-ticipam nos processos decisórios. São aceitos sob as condições dosgrupos mais fortes. Vê-se dentro da Igreja certa mentalidade vol-tada para o crescimento, para o prestígio e para o lucro pessoal queafeta a comunidade e separa as pessoas. A Lei do Mercado exercena comunidade da igreja o mesmo fascínio que tem sobre a socie-dade como um todo,Sl

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A necessidade de transformar os corpos institucionais eclesiás-ticos em verdadeiras comunidades em Cristo é urgente, embora essatarefa não possa se dissociar da transformação da sociedade. Àsmargens das igrejas oficiais vão surgindo novas comunidades ondenovos valores são experimentados. A Igreja deveria aceitar essedesafio. Ao ser modelo do novo Reino de Deus deveria também sercomunidade curadora também em questões sociais e econômicas.O povo de Deus opta basicamente pela solidariedade. Era a razãode ser de Israel e sua própria identidade. Quando Israel perdeuessa solidariedade foi destruído e levado cativo.r" "Assim, haveráigualdade", nos diz 2 Co 8. 14. A primeira igreja em Jerusalém pra-ticava esta igualdade como sinal de sua liberdade e ressurreição."

O círculo vicioso da cobiça pode ser quebrado dentro destanova comunidade. A propriedade privada não pertence à ordem dacriação. Novos experimentos em participação de ganhos poderiamser arranjados de tal modo que algumas instituições e organizaçõespoderiam andar na frente da sociedade ao redor. 3-4 Não se tratariade nova lei mas de sinal de liberdade e de exemplo da nova ordemcriada por Jesus Cristo.

Os pobres em nós

O ser humano tornou-se produto do comércio político porcausa de interesses particulares. Os sistemas de comunicação demassa, a publicidade, as leis do mercado, criam falsas necessidadese falsos desejos. Evoca-se um sentimento permanente e vago deculpa para forçar as pessoas ao consumo, distraindo-as assim dasduras realidades da vida.

A maioria dos sistemas educacionais baseiam-se no progresso:e no sucesso, oprimindo, dessa maneira, as nossas partes mais dadasao fracasso." A Igreja tende, muitas vezes, a fortalecer tais sen-timentos de culpa ao restringir a libertação de Deus a certo mora-lismo às custas do esquecimento da abundância do próprio Deus,substituindo-se a plenitude da vida por determinado enfado maso-quista. Dá-se demasiada ênfase às nossas falhas, às coisas que noscausam medo, enfim, às nossas dificuldades todas. Não ousamosperceber o pobre que está dentro de nós da mesma maneira comofugimos dos pobres que estão fora de nós. Sentimos medo dessespobres e não queremos lembrar que talvez pertençamos também aesse mesmo mundo do qual tanto queremos escapar. Sentimo-nosforçados a subir a escada do sucesso. Nossa dependência do podere da propriedade é tão grande porque nossa fé em Deus e em nósmesmos é demasiadamente fraca. Em outras palavras, oprimimose marginalizamos os pobres em nós, da mesma maneira como eles

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são marginalizados e oprimidos nos níveis social, econômico epolítico da sociedade. O processo é o mesmo.

Entretanto, Deus é nosso libertador. Em vez de vagos senti-mentos de culpa Ele confronta os ricos com a realidade de seupecado, e os capacita a abandonar esse pecado e a encontrar a re-denção. Ele conforta os pobres. Ao abençoá-los, assegura-lhes deque são filhos preciosos de Deus, capacitando-os a se tornaremauto-confiantes e seguros de si mesmos. Jesus se considera mansoe humilde de coração, qualidades dos pobres (Mt 11.29). Sua po-breza vicária - sendo o Servo do Senhor, que se fez nada, assu-mindo a natureza do escravo (Fp 2.7) - não idealiza a pobrezanem a torna sacrossanta, mas abre um novo caminho pelo qual opovo pode se libertar a si mesmo do desespero e da auto-destruição.Faz com que a escada fique circular.

Esta nova espiritualidade une os pobres em nós com os pobresfora de nós, e assim a separação entre dominante e dominado setransforma. Os pobres de espírito (Mt 5.3) e os pobres material-mente (Lc 6.20) são basicamente os mesmos. A opressão dos ma-terialmente pobres é a opressão dos pobres em nós. A Igreja, noseu trabalho pastoral, no seu culto-e na tarefa evangelizadora, pre-cisa criar um lugar de liberdade onde se possa viver (koinonia),servir (diakonia), e comunicar (evangelizar) a salvação do Cristolibertador.

NOTAS1. Cf Mt 6.24; Lc 16.13. Cf. Iacques Ellul, L'argent. Neuchâtel and Paris,

Delachaux et Niestlé, 1960.2. Thomas Cullinan, OSB, o demonstra muito bem em The Roots 01 Social

Injustice: "Quando idolatramos a riqueza, criamos a pobreza; ao ido-latrarmos o sucesso, criamos o fracasso; se idolatramos o poder, criamosa fraqueza. São processos inevitáveis." Londres, Catholic Housing AidSociety, 1973, p. 4.

3. Mesmo entre os ricos há vozes que levantam questões desse tipo. Eo que assinala [ohan Galtung quando diz que "existe a idéia do limitede desigualdade. Quando alguns países ou pessoas, e particularmente,quando algumas pessoas em alguns países têm muito mais do que ou-tros, possuem recursos que podem se converter em poder. Por exemplo,quando a elite de um país tem acesso a melhores serviços de saúde doque o povo (ou acesso mais fácil aos mesmos serviços, que acaba nomesmo) suas probabilidades de vida aumentam. Em conseqüência,podem se tornar mais eficientes e viver mais tempo; viver mais tempo,por sua vez, significa maior acúmulo de experiência que também podese converter em mais poder sobre os outros. Assim, acredita-se na exís-tência de um limite de desigualdade que tanto o mundo como os paísesindividualmente poderiam suportar sem se transformarem numa carica-tura do que deveria ser a sociedade com um mínimo de justiça social".ln Marc Nerfin (ed.), Another development: approaches and strategies,p. 107. Cf. o capítulo de Paul Singer e Bolivar Lamounier, "Brazil:

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grouth through inequality", Uppsala, Dag HammarskjOld Foundation1977. Por essa razão os que se preocupam com justiça social nos paísesricos estão buscando "um novo estilo de vida". CL CCPD Dossiers ns.10 e 11: In seard« ot the new. I-H. Genebra. CCPC/WCC, 1976-77.

4. CL Tiago 1.18, "Por vontade própria ele nos gerou pela Palavra daverdade, a fim de sermos como que as primícias: dentre as suas cria-turas".

5. CL [osé Miguez Bonino, Christians and marxists, the mutual challengefor revolution, p. 40: "A obediência não é conseqüência de nosso conhe-cimento de Deus nem tampouco sua pré-condição; a obediência inclui-seem nosso conhecimento de Deus. Ou, para dizê-lo mais fortemente: aobediência é o nosso conhecimento de Deus. Não existe, em nossa rela-ção com Deus, um momento noético separado. Há uma fé imperfeita,mas não pode haver, na natureza do caso, uma desobediência crente_ a não ser aquela "fé morta" de que fala Tiago e que não serve para"nada". E o que significa a ênfase na exigência intrínseca de que a fécristã se torne histórica, que seja "a verdade nos fatos". Não conhece-mos Deus no abstrato para deduzir de sua essência algumas conse-qüencias. Conhecemos Deus no ato sintético da resposta às suas exi-gências:" Londres, Hodder & Stoughton, 1976.

6. At 2.42-47; 4. 32-37. Também Julio de Santa Ana, Good news to thepoor, capo 4, Genebra, WCC, 1977.

7. CL Hugo Echagaray, Derechos dei pobre, derechos de Dios, in Paginas,vol. Il l , número especial, 11-12, p. 12-17, Lima, CEP, 1977, e in CEIBíblia hoje, agosto de 1978.

8. CL Julio de Santa Ana (ed.), Separation without hope? Genebra, WCC,1978.

9. Cf. Dom Helder Câmara, Les conversions d'un evêque, Paris, Ed. duSeuil, 1977.

10. CL Alex Devasundaram, "The experience of St Mark's Cathedral, Ban-galore", CCPD Dossier n. 12, Good news to the poor. Geneva, WCC,1978.

11. CL a carta pastoral dos bispos católicos de Appalachia, Powerlessnessin Appalachia, p. 12-13:"A ação em favor da justiçae a participação na transformação do mundovem a nós plenamentecomo a dimensão constitutivada pregação do Evangelhoou, em outras palavras,da missão da igrejapela redenção da raça humanae sua libertação de todas as situaçõesde opressão.Assim,não pode haver dúvida,de que nós, que devemos falar a mensagemdaquele que convocou Moisése que abriu a sua bocaem Jesus de Nazaré,e que mantém o Espírito vivopor causa da justiçapor tantos séculos

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não podemos fazer outra coisasenão nos tornarmos advogados dos pobres.Não se trata de ser simplistae ver todas as coisas em preto e branco,ignorando a economiae a contribuição das outras ciênciashumanas,mas, num sentido profundoas escolhas são simplese fortes:- morte ou vida;- injustiça ou justiça;- idolatria ou o Deus Vivo.Devemos escolher a vida.Devemos escolher a justiça.Devemos escolher o Deus Vivo.Prestonburg, Kentucky, Catholic Committee of Appalachia, 1978.

12. Cf. o trabalho preparatório para o seminário da CCPD sobre "TheChurch and the poor", Ayia Napa, Chipre, setembro de 1978, por[ames Somerville, My involvement in the struggle.

13. CL o relatório da consulta de 1978 da Igreja Presbiteriana nos EstadosUnidos, One mission under God, ed. Office of the Stated Clerk, Atlanta,Georgia, 1978. CL também Presbyterian survey: a Third World lookat the mission consultation, setembro de 1978, p. 41-42.

14. Idoc international: new series, Boletim 2-3, Roma, IDOC, fevereiro/março 1978, p. 15.

15. Este é um resumo do capítulo do livro Der lange Marscb zuriick, deWolfgang Schmidt, publicado em 1980 por Christian-Kaiser-Verlag,Munique.

16. Cf. Julio de Santa Ana, Good news to the poor. E Coen Boerma, Richman, poor man and the Bible. Londres, SCM Press, 1979.

17. CL Salmo 72.1-4, 12-4, e diversos lugares em Isaías, [erernias, Miquéiase Amós.

18. CL To break the chains of oppression, Genebra, CCPD/WCC, 1975,p. 36-44, especialmente p. 40. CL também Raul Vidales, "People'schurch and christian ministry". International Review of Mission, voI.LXVI, n. 261 sobre "Ministry with the poor", janeiro de 1977, p. 39,"De nossa parte, estamos convencidos de que este é o 'momento' his-tórico inescapável (Mt 16.1- 16.1-4ss; Lc 19.41-44) em que nós, cristãos,devemos fazer uma escolha clara e efetiva: viver o evangelho de JesusCristo, como a luta em favor da libertação de todos os pobres, enquantoexpressão concreta de nossa fé, e compromisso permanente com a men-sagem. O preço desta escolha sempre foi e continua a ser a acusaçãoinferida na expressão 'realizar um ato de culto a Deus' 00 16.2, 'Viráa hora em que aquele que vos matar julgará realizar um ato de cultoa Deus)".

19. CL o relatório da Sessão VI da Quinta Assembléia Geral do ConselhoMundial de Igrejas realizada em Nairobi, em 1975, sobre "Desenvolvi-mento humano: ambigüidade de poder, tecnologia e qualidade de vida",in David M. Paton (ed.), Breaking barriers: Nairobi 1975, p. 130. GrandRapids, Mich., Wm. B. Eerdmans, & London, SPCK, 1976.

20. Ver Julio de Santa Ana, Good news to the poor, capo 3, p. 33ss.21. Cf. William R. Coats, God ín public: polítical theology beyond Niebuhr,

p. 133, " ... no Novo Testamento os pobres são relacionados, não com

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o mundo e os sistemas humanos, mas com o Reino de Deus. A cruel-dade e a cegueira do homem só pode ser exposta e julgada a partirdesta perspectiva. Os pobres possuem o segredo do Reino, pois são eleso julgamento da presente época... existem como sinais de promessa.No Novo Testamento, Deus age precisamente por meio dos que nadatêm a esperar do mundo, e para os quais a estrutura e a vida do mundose tornaram inimigos. Deus age por meio dos rejeitados, dos despre-zados, dos que não têm possibilidades, dos sem futuro, por meio dosque nada possuindo na terra são portadores da promessa da nova eraem que todos possuirão todas as coisas igualmente". Grand Rapids,Mich., Wm. B. Eerdmans, 1974.

22. Aplica-se não apenas em países da Ásia, África, Extremo Oriente ePacífico, onde os cristãos são minoritários. Aplica-se, também, na Euro-pa, América do Norte e do Sul e no Caribe, onde as práticas religiosasdemonstram que os participantes nas atividades das igrejas com certaregularidade não são mais do que pequena parcela da sociedade, e, emgeral, não muito interessados nos movimentos populares organizados.

23. CL Gustavo Gutierrez, Teologia desde el reverso de Ia história, p. 3l.O movimento popular (apesar da repressão a que é submetido) continuaa se afirmar nas- bases. A consciência política das massas desprivile-giadas está se tornando mais profunda e amadureci da, ganhando emorganização independente e aprendendo novas maneiras de trabalho. Asconquistas e os fracassos são experiências instrutivas. O sangue dosque se levantaram contra a antiga injustiça (quer figurem ou não nasmanchetes dos jornais) tem dado mais títulos de propriedade de terraa muitos, mas ao mesmo tempo fortalece a reivindicação daqueles quea Bíblia chama do "pobre povo da terra". O movimento popular expe-rimenta assim retrocessos e incertezas, típicas de qualquer processohistórico, mas também experimenta a firmeza, a esperança, o realismopolítico e uma capacidade de resistência que os defensores da ordemestabelecida acham difícil de entender e até mesmo frustram as elitesrevolucionárias que têm assumido 'certas ações - com sérios retrocessos- recentemente na América Latina. Foi nesse contexto que surgiu. eamadurece a Teologia da Libertação. Não poderia ter começado a existirantes de certos desenvolvimentos do movimento popular nem antes damaturação de sua práxis histórica de libertação. Essas lutas são o cená-rio da nova maneira de ser homem e mulher na América Latina e, con-seqüentemente, a nova maneira de se viver a fé e o encontro com oPai e com os irmãos. A experiência espiritual (no sentido paulino de"viver segundo o Espírito") no âmago do conflito social e em solida-riedade com os ausentes da História, é a fonte desta tarefa teológica".Lima, CEP, 1977.

24. CL José Miguez Bonina, Revolutionary theology comes of age, p. 159,"O cristão comprometido com a libertação envolve-se, portanto, na lutapela reforma da Igreja, ou para expressar-se mais drasticamente, pelareconstituição de um cristianismo no qual todas as formas de organiza-ção e de expressão venham a ser humanizadas e libertadas"'. Londres,SPCK, 1975.

25. Cf. Iürgen MoItmann, The church in the power of theSpirit, p. 225-226, "A comunidade messiânica pertence 'ao Messias e à palavra mes-siânica: e esta comunidade, com os poderes que tem, já realiza aspossibilidades da era messiânica, que traz o evangelho do Reino aospobres, que proclama a elevação dos oprimidos aos humildes, e prin-cipia a glorificação do Deus vindouro por meio de atos de esperança

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na comunidade dos pobres, dos tristes e de todos os condenados aosilêncio, de tal modo que possa servir a todos os homens". Londres,SCM Press, 1977.

26. Benoit Dumas, Los dos rostros alienados de Ia Iglesia una, p. 20, " ... aIgreja não coincide completamente com a Igreja - enquanto os po-bres que esperam pela sua libertação não conhecerem o nome de JesusCristo e não reconhecê-lo no seu corpo visível comprometido com eles;enquanto os que esperam em Cristo e conhecem seu nome não souberemencontrá-lo, nomeá-Ia, e esperar por ele na libertação dos pobres".Buenos Aires, Latinoamerica Libras, 1971. Cf. Mt. 25.31-46.

27. CL o capítulo XIII deste livro.28. CL o artigo de Jorge Pantelis, "Implications of the Theologies of Li-

beration for the Theological Training of the Pastoral Ministry in LatinAmerica". International Review of Mission, voI. LXVI, n. 261, janeirode 1977, p. 14-21.

29. Cf. o capítulo XI deste livro.30. CL o capítulo V deste livro.31. David E. [enkins, The contradiction 01 christianity, p. 49. Londres,

SCMPress, 1976.32. Ez. 22.29-30. Ver também o capítulo X deste livro.33. No Novo Testamento a exigência de solidariedade é dada à Igreja por

meio da imagem de que ela é o corpo de Cristo: cf. 1 Co. 12; Rm.12.3-13. Sobre a prática da solidariedade na Igreja Primitiva, cf. Juliode Santa Ana, Good news to the poor, capo 4, e Coen Boerma, op. cito

34. Algumas experiências deste tipo foram indicadas por Ian M. Frazer,The [ire runs, p. 3-41. Londres, SCM Press, 1975. Também, do mesmoautor, "Room to answers back: salvation and the struggles of the poor",Study encounter, vol. IX, n. 1, 1973, p. 1-15.

35. CL Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido.

11Il

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11. A situação dos pobres

"Nós só comemos uma vez por dia, um bolinho de milho comalguns pedacinhos de carne temperada", resmunga o homem pre-maturamente envelhecido, de cócoras no calçamento molhado dacidade, onde acaba de chegar de sua aldeia natal para tentar, cheiode esperança, uma vida melhor. "Depois de andar por aí com osmeus nove filhos, o menorzinho ficou com a mulher", acrescenta,dando uma olhada para a esposa macilenta, tentando dar de mamara um pequenino corpo humano, enrugado e mal nutrido. As crian-ças estão por ali semi-embrulhadas em jornais velhos como se fos-sem camas, mal disfarçando a triste nudez. Alimentados por dietatão escassa - a família toda, incluindo os filhos - trabalha damanhã à noite. Mais pros lados da esquina observa-lhes o troncudoagiota que lhes empresta dinheiro a juros altíssimos quando pre-cisam como, por exemplo, quando o pobre homem adoeceu recen-

. temente, ou quando a filha se casou ou para fazer alguns concertosno barraco da favela construído de destroços de caixas que a famíliainsiste em chamar de lar. O agiota leva quase sempre a maior parteda renda familiar numa espécie de círculo vicioso no qual ele é oque sempre sai ganhando. Passam, assim, a vida, numa canseiradesesperada.

Um outro homem sai de seu abrigo de uma só peça na favelaonde vive com sua numerosa família, e se lembra com saudades dotempo em que ainda havia pequenas empresas na comunidade epodia trabalhar por conta própria como se fosse dono do pró-prio destino - até a chegada das grandes companhias. "Elas nosenguliram, - diz ele. "Agora trabalhamos sem parar e não ganha-mos o suficiente. A gente trabalha para que outros sejam ricos, en-quanto nós perecemos pela vida a fora na sujeira e na lama. Pode-remos ainda ter alguma esperança?"

"Por que vocês ficam defecando por aí? Vocês não sabem queisso não é bom para a saúde'?"

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"Olha, você faria o mesmo se tivesse que esperar numa longafila de 500 pessoas para entrar no único lavatório existente!"

Numa reunião onde se discutia planejamento familiar, numaaldeia pobre, disse uma mulher, "Vocês me dizem que a gente develimitar a família. Mas eu preciso de mais filhos, vocês entendem?São eles que me ajudam a ganhar a vida. Além disso, se eu quiserque pelo menos três filhos consigam viver, preciso produzir nomínimo dez." Era isso mesmo. Ela falava a partir de sua experiên-cia, pois já perdera muitos. Seus filhos começam a trabalhar com5 anos de idade. Alguns acondicionam essas pequenas varinhas deincenso ou folhas de tabaco enquanto outros se dedicam a serviçosmais pesados como, por exemplo, derramar pixe fervendo para con-sertar estradas sob o sol abrasador. Essas crianças não sabem o queé infância. A família vive diariamente sob a constante angústia denão saber onde poderá viver ou o que comerá no dia seguinte ..."Faz tempo que não tomo banho", reclama o trabalhador ao rece-ber o miserável salário. "Trabalho o dia inteiro no sol e preciso deágua para me lavar. Antigamente ainda tínhamos água nesta favela,mas agora o proprietário comercializou a pouca água existente.Quem pode se dar ao luxo de um banho quando cada balde deágua custa uma fortuna?"

Aquela mulher, depois de trabalhar durante toda a vida nasplantações de chá, morreu e foi enterrada ali mesmo, num caixãofeito de caixas usadas para o transporte de chá. Sobre o seu túmulocrescem novos arbustos da planta cujas folhas serão vendidas paraa delícia de tanta gente. .. Pessoas como ela jamais poderão es-perar a identidade própria aos seres humanos, nem na vida nemna morte.

Trata-se de gente que nem nós. São milhões e milhões emnosso meio, representando o amargo espetáculo da pobreza mas-sificada de nossos dias. .

Lê-se no relatório de 1978 de um importante banco mundial:"Os últimos vinte e cinco anos foram um período de mudança eprogresso sem precedentes nos países em vias de desenvolvimento.Contudo, não obstante tal progresso impressionante, cerca de 800milhões de pessoas continuam ainda a viver nas condições conhe-cidas como de pobreza absoluta: subnutrição, analfabetismo,doença, ambiente poluído, alta taxa de mortalidade infantil e baixosíndices de duração de vida, abaixo de qualquer definição aceitávelde decência humana". 1

A humanidade, como nunca antes na História, confronta-sehoje com a terrível realidade da mais completa pobreza no meioda abundância, com um quarto da população usufruindo de rique-zas não imaginadas antes, enquanto o resto permanece na pobreza.

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Dessa parte, é impressionante o número dos que vivem em misériaabsoluta. 2 A dolorosa consciência de que seu número aumenta dia-riamente, e de que a sua situação piora a um nível perigoso à pró-pria sobrevivência, chama a atenção das pessoas interessadas." Poroutro lado, a riqueza e os padrões de vida da minoria rica aumen-tam também sem parar, crescendo assim a distância entre os ricose os pobres. -f Ironicamente, apesar do tremendo avanço da ciênciae da tecnologia aplicada, e do reconhecimento de que a humanida-de tem o direito de dominar a natureza e prover o necessário paratodos, não obstante os esforços de planejamento em nível global, onúmero dos pobres tem aumentado, enquanto as exigências cadavez maiores da minoria rica em relação aos recursos naturais,ameaça o ambiente e até mesmo o futuro da humanidade." Omundo, tornando-se aceleradamente uma aldeia global com aumentoconsiderável de riqueza, projeta para escala também global o an-tigo problema dos pobres e dos ricos, ressaltando o processo deempobrecimento em relação às nações ricas e os efeitos que pro-duzem nas outras, menos favorecidas.

Os números estatísticos, desencarnados, nem sempre dão àimaginação a dimensão do sofrimento humano desses milhões quevivem "às margens da existência" - na Ásia, África, Oriente Mé-dio e América Latina - com alimentação inadequada, falta deabrigo, carência de educação e de cuidados de saúde. 6 Nesses luga-res as massas são cada vez mais desprovidas dos bens materiaisdestinados às necessidades básicas da existência humana. Dois ter-ços da pobreza absoluta do mundo concentram-se em quatro gran-des países da Ásia, Bangladesh, índia, lndonésia e Paquistão. En-contram-se, aí, famílias que passam dias sem comer ou que 'sócomem uma vez por dia. Vivem em condições habitacionais desu-manas, nas ruas ou em barracos miseráveis, lutando contra as doen-ças causadas pela subnutrição e pela falta de higiene. A vida cotí-diana transforma-se, dessa maneira, numa luta crítica pela sobre-vivência no que se refere à alimentação, higiene, água potável ehabitação. 7

Na índia, a porcentagem dos que vivem abaixo do nível dapobreza já se eleva a 62% numa população de mais de 600 milhõesde habitantes;' sabe-se que 25 milhões de pessoas ficam cegasanualmente por causa da subnutrição e da falta de vitamina A.Apesar dos esforços para melhorar o nível educacional, 73% dapopulação é de analfabetos. Em certas regiões desse país existe ape-nas um médico para cada 20.000 pessoas. Dos 7 milhões de habi-tantes de Bombaim mais de 40% vivem ao ar livre, nas ruas, ouem barracos miseráveis em favelas. Aí a ironia torna-se muito acen-tuada, pois a Índia produz grande variedade de bens de consumo,

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desde rádios, aparelhos de televisão e aviões, até energia nuclear -chegando até mesmo a colocar em órbita um satélite. Somente aminoria privilegiada se beneficia desses avanços. As condições nãosão muito diferentes em outros países pobres. Na África e na Amé-rica Latina o número dos que vivem abaixo do nível da pobrezaestá sempre aumentando. Quase 70% dos 1 milhão e 600 mil ha-bitantes da Libéria são pobres, sobrevivendo com salários de 70dólares por ano. 80% de sua população não sabe ler. Na Amé-rica Latina 40% da população vive abaixo da linha da pobreza.Todos os esforços em favor do desenvolvimento, nesses lugares,beneficiam apenas a pequena minoria que está em. cima, jamaisalcançando a maioria para os quais originalmente se destinam. A$estruturas sociais estão de tal modo organizadas nesses países quetanto o trabalho como os recursos existentes só beneficiam a pe-quena elite, que, ao se apossar indevidamente de todo o poder eco-nômico, faz com que as instituições sociais, políticas, religiosas eculturais dentro do sistema funcionem em seu próprio benefício. 9

Em que pese a penúria das condições de trabalho, o resultado dolabor dos pobres serve para o enriquecimento dos poucos que es-tão em cima, enquanto a maioria não tem nem mesmo os meiosmateriais de vida. 10 Os pobres, assim, são deixados para trás pelocrescimento econômico em muitos países; suas ligações com a eco-nomia organizada de mercado são parcas: quase não têm instru-mentos de produção; são menos educados e a saúde é frágil. A po-breza parece ser, então, a consequência de um processo só existentedentro de um sistema operacional onde algumas pessoas economi-camente poderosas controlam as instituições para o seu lucro par-ticular. Essa verdade, aplicada à nações separadamente aplica-setambém em escala global ao sistema comum de exploração. Os re-cursos e o crescimento econômico do mundo parecem ser explo-rados por um sistema global no qual os poucos setores da sociedadeeconomicamente poderosos buscam o próprio lucro e causam, nesseprocesso, o empobrecimento de milhões de pessoas que vivem nospaíses pobres. O processo político do colonialismo e do imperia-lismo resultou desse amor pelo ganho econômico e pelo lucro,levando nações poderosas a se armar com terríveis arsenais deguerra e com sofisticada tecnologia para subjugar outras naçõese povos, ricos em outros recursos e cultura. Essa fase da Históriajá passou, mas o mesmo processo continua a operar hoje em dia;isto é, o amor desenfreado pelo ganho econômico expressa-se pormeio de certos poderes políticos que oprimem as nações mais fra-cas e permitem a existência de regimes totalitários em alguns luga-res com a única intenção de preservar e perpetuar esse sistema quefunciona para o exclusivo benefício de poucos. 11

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A mesma procura do lucro econômico nos tempos modernosestruturou-se, em escala mundial, no capitalismo emergente, naforma de neo-colonialismo, e funciona agora por meio de pode-rosas corporações transnacionais. Essas empresas acumulam enormepoder ao redor do planeta; crescem explorando os recursos domundo, com o apoio das elites nacionais de todos os países, empre-gando mão de obra barata, sem qualquer consideração para com oempobrecimento do meio ambiente natural, nem pela distribuiçãoequitativa dos benefícios adquiridos entre as nações exploradas. 1.2

O relatório das Nações Unidas de 1973 demonstra o aumento semprecedentes de sua riqueza econômica. Mostra que 650 dessas em-presas venderam em 1971 o equivalente a um terço da produçãomundial. 13

Não são medidos esforços tanto pelas elites nacionais comopelas forças opressoras internacionais para manter o sistema fun-cionando em seu benefício, e deixar, assim, os pobres onde estão.A instalação e a queda de regimes opressores ditatoriais e autori-tários na Ásia, América Latina e África tendem a institucionalizara violação dos direitos humanos como medida necessária para amanutenção dos modelos prevalescentes de dominação tanto emcasa como em outros lugares. 14

Os armamentos produzidos pelas nações ricas são vendidos àsnações pobres por meio de influência política subordinada a pres-sões de poder econômico. Assim, as nações pobres sentiram-se enco-rajadas a lutar entre si, desperdiçando enormes quantidades de vio-lência destrutiva. Trata-se de um escândalo contemporâneo essesgastos das nações pobres, em que grande parte de seus já escassosorçamentos é destinada à compra de armas, enquanto a maioria deseus habitantes é forçada a viver sem poder suprir as necessidadesbásicas."

Trabalhando dentro da estrutura social de exploração, os pou-cos dominadores empregam elementos institucionais - políticos,econômicos, sociais, culturais e religiosos - com a finalidade demanter perpetuamente em suas malhas os pobres. A religião legi-tima o domínio dos poucos e salvaguarda a operação do sistema.As igrejas têm santificado ou legitimado o domínio das elites coma finalidade de manter as próprias posições. Ficaram do lado dosopressores. Assim, ensinaram os pobres a aceitar a condição em quevivem como dada por Deus, e transferiram a esperança de umavida melhor para o mundo depois da morte. 16

Os sistemas educacionais, com a tarefa de socializar as pes-soas, perpetuaram os valores que mantêm o sistema em andamento.Ensinam conformismo com o status quo. Por outro lado, somenteos ricos têm acesso pleno ao processo educacional, e assim perpe-

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ruam-se no poder. A maioria dos pobres já descobriu que o sistemaeducacional apenas lhes ajuda a cerrar fileiras com os desempre-Rados.17

As estruturas familiares preparam os membros da família alevar adiante o processo de dominação. Em muitos países verdadei-ros impérios familiares resultaram de feudos onde poucos indiví-duos controlam seu destino e exercem enorme poder e riqueza. Oseconomicamente ricos controlam o poder político em todos os paí-scs. 18 As instituições políticas, por sua vez, respondem aos poucosdominadores com a manutenção da estrutura social em seu favor.Os partidos políticos ganham ou perdem dependendo da posturaque assumem em face desse domínio nacional e internacional dospoucos. As instituições políticas legitimam e colocam em movi-mento as aspirações econômicas da elite. O processo de empobre-cimento das massas continua; os ricos colhem os frutos.

As formas das estruturas sociais com suas sanções sócio-cultu-rais e religiosas contribuem para perpetuar a pobreza. As pessoassão exploradas na base de status de nascimento, de religião, da côrda pele ou do sexo. Os vinte e seis milhões de intocáveis no sis-tema de castas da 1ndia sofrem este empobrecimento em termosmateriais e na própria auto-imagem coletiva de povo. Apesar dalegislação existente, a maior parte deles continua a levar uma exis-tência desumanizada. Realizam trabalhos secundários segundo ostatus que lhes foi fixado no nascimento (embora essa situação es-teja se transformando rapidamente); mas continuam a ser oprimi-dos pelas classes mais altas."

A dominação econômica expressa em estruturas sociais resultouna perpetuação da pobreza baseada na raça." Muitos indígenas enegros da América, aborígenes da Austrália, maoris da Nova Ze-lândia sabem que os termos "inferior", "discriminação", "desigual-dade", "segregação", "privação" e "desumanização" não são meraspalavras de dicionário, mas descrevem modos de vida bastantereais para eles._A discriminação racial é legitimada por arranjosexpressos em sistemas educacionais onde se afirma que todos sãoiguais, muito embora separados, com banheiros separados por ra-ças, e igrejas para brancos e para negros, também separadas. Amaioria dessas pessoas não enfrenta apenas a pobreza física, ex-pressa em casas miseráveis, desemprego, falta de assistência médica,e mortalidade infantil, mas também a pobreza de mente e de es-pírito, que é a mais debilitante de todas. Por causa da raça, foramcriadas estruturas que negam a alguns a oportunidade de levaruma vida decente e igual a qualquer outro.

O racismo aparece em qualquer parte do mundo, mas emalguns países torna-se mais óbvio por ser legal. O racismo é tam-

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bém fator de inúmeras violações dos direitos humanos e das liber-dades fundamentais nesses países. As igrejas cristãs que se deixaminfestar pelo racismo em muitos lugares do mundo deveriam seenvergonhar. O racismo afeta, direta ou indiretamente, atitudes erelações no culto, nos encontros, na partilha de recursos e nas prio-ridades programáticas.

A prática do racismo opressor em nossos dias repousa emestruturas institucionais destinadas a se perpetuar, geralmente paraa grande vantagem de alguns e a enorme desvantagem da maioria.Para perpetuar a discriminação racial criam-se deliberadamente atémesmo padrões e preferências de transações comerciais.

Os regimes racistas são ajudados por sofisticados armamentosoriundos de potências militares e de outros países industrializados.Sem levar em consideração os sistemas sociais, os países mais ricosapoiam, muitas vezes, a repressão racial, com o pretexto da de-fesa de seus interesses nacionais legalmente justificados. Convémobservar que as estruturas racistas ao redor da terra apoiam-se entresi internacionalmente: por meio de empresas transnacionais comsuas políticas de auto-preservação; pelo suprimento de armas oude mercenários a elites locais; e pela manipulação de redes mun-diais de comunicação com a finalidade de reforçar atitudes e açõesracistas.

O flagelo do racismo mantém-se vivo hoje em dia por meio desua infiltração institucional, revitalizado pelos fortes poderes eco-nômicos e políticos e por um temor da perda de privilégio, espa-lhado pelo mundo afluente.

Pobreza espiritual

A conhecida Madre Teresa, falando certa vez a um grupo naInglaterra, observou: "Existe aqui uma pobreza bem maior do quea pobreza material. Esta pobreza do espírito é mais mortal doque a pobreza material". Nas sociedades desenvolvidas o progressomaterial tende a anular os valores humanos; observa-se esse empo-brecimento sistemático a que se referia a Madre Teresa. Nas socie-dades onde se valoriza certo tipo de extremo individualismo egoísta- onde o dinheiro compra qualquer coisa e tudo se mede em ter-mos monetários, gerando a desenfreada competição - surge novotipo de pobreza, que é a pobreza do espírito, com sua falta depropósito, seu vazio e as conseqüentes formas de destruição irres-ponsável. Aumentam os índices de suicídio e de crime e no meioda abundância material desaparece o calor humano e minguam asrelações verdadeiramente amorosas. Os hospitais se enchem dedoentes mentais e de pessoas que se comportam irracionalmente.

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Jovens de ambos os sexos desses países desenvolvidos viajam parapaíses exóticos em busca de significado espiritual e de propósitopara suas vidas.

A pobreza se consolida na natureza das classes que tomam asnossas estruturas sociais, garantindo a transferência da riquezacriada pelos pobres e pelas massas obreiras para os poucos privi-legiados lá em cima. ,~1 A mão de obra barata para as plantações,as minas, as fábricas e as manufaturas estão contidas nessa posi-ção pela estrutura social por meio de restrições e legislação espe-cial. A repressão política impede que os pobres reclamem seus di-reitos, e os obstáculos colocados no caminho da mobilidade socialpara cima fazem com que eles permaneçam indefinidamente ondeestão, isto é, na mesma pobreza e desgraça. 22

Os valores da classe dominante expressam-se também na formade sexismo. Numa sociedade dominada exclusivamente pelos ho-mens; as mulheres são consideradas seres inferiores, impedidas dedesenvolver suas potencialidades e de se libertarem da pobreza. Emmuitos países pobres, e também em algumas nações ricas, a tra-dição condenou as mulheres à contíição de escravas ou de proprie-dade do homem, destinadas a serví-lo, a ter seus filhos e a traba-lhar para melhorar a renda familiar. Inúmeros obstáculos são cuida-dosamente tecidos na estrutura social para frustrar as legítimasaspirações da mulher a posições de poder, à participação em pro-cessos decisórios ou na administração daquelas coisas que afetamsuas vidas e destino. ~3

A dominação econômica acabou em deterioração cultural ealienação nos países pobres. Destruiu-se grande parte do que erapeculiar às suas sociedades, à sua maneira de viver e à sua visão demundo. Em lugar disso, vieram inúmeros elementos culturais da na-ção dominante ou das sucessivas nações dominantes, deixandoesses países pobres numa posição subordinada e subserviente. Aperda de valiosos elementos da religião e da cultura popular re-sultou em sério«problema de identidade. As nações dominantes ten-taram refazer os pobres à sua própria imagem, e instilaram aí asuperioridade espúria de sua própria cultura como a legítima aspi-ração dos pobres.?" Juntamente com a afluência econômica, essesvalores culturais estrangeiros exerceram forte atração entre os jo-vens e os educados nessas sociedades subjugadas, resultando emempobrecimento de sua própria cultura e desesperança de recons-trução dos valores próprios. Muitos intelectuais migraram para ospaíses ricos empobrecendo ainda mais a terra de origem. Médicos,cientistas e artistas, que poderiam ter sido de grande valor em suaprópria terra, levam suas especialidades, adquiridas às custas de

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seu próprio povo, e vão viver em países afluentes para servir osricos com salários bem mais baixos do que os nacionais.

Concomitante a esta pobreza espiritual, existe ainda um outrotipo de pobreza produzida pelos valores presentes nos sistemas emfuncionamento nas sociedades desenvolvidas. As famílias nuclearesformadas na base de tendências aquisitivas egoístas não têm tempopara cuidar dos velhos e dos doentes. Apesar de provisões institu-cionais de previdência, muitos velhos são abandonados e vivemexistências tristes e solitárias. A pobreza de suas vidas, no finalda existência, no meio de uma ..sociedade abundante, ameaça tre-mendamente a qualidade da vida humana.

Os meios de comunicação de massa, desenvolvidos à perfei-ção, facilitam a invasão cultural explorando comercialmente qual-quer coisa que os países pobres ainda possuem.:" Conta-se que na1ndia se pode encontrar Coca-Cola mesmo nas mais remotas aldeiasonde nem mesmo se encontra água potável instalada. As modasespalham-se por meio de propaganda de alta pressão e criam dese-jos desnecessários de consumo, obscurecendo as prioridades dareconstrução nacional nos países pobres, ajudando o mercado po-tencial das corpo rações transnacionais que lhes suga o própriosangue.

Os pobres caem, assim, na armadilha do sistema mundialopressor, que opera em todos os níveis, com o auxílio de enormepoder policial e militar sob influência política, desmantelando qual-quer tentativa de organização e luta contra a injustiça e pela erra-dicação da pobreza. O sistema, utilizando livremente os meios decomunicação de massa e as instituições sociais, frustra os frágeis es-forços dos pobres em favor de sua libertação. O sistema de valoresfunciona como isca. Assimila qualquer coisa que se oponha aoseu funcionamento. Divide os pobres a fim de que lutem entre sie, finalmente, faz com que seus esforços pareçam fúteis e semesperança.

A situação dos pobres hoje em dia é conseqüência do processocontínuo de exploração e opressão. Trata-se de uma estrutura queopera de. maneira interligada em níveis local, nacional e interna-cional, por meio de mecanismos de dominação baseados em consi-derações econômicas e reforçados pelo poder político.

Qualquer tentativa para enfrentar o problema da pobreza pre-cisa levar a sério essa realidade estrutural. Para se mudar a situa-ção será preciso levar em conta esses mecanismos de dominação.Sem isso apenas se aumenta o seu poder e não se chega a nada.

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NOTAS

1. World Development Report, p. 11. Washington, De, World Bank, agostode 1978.

2. lbid., p. 33 e 34: "Dados os obstáculos enfrentados, a eliminação dapobreza absoluta nos países de baixa renda parece impossível até ofinal deste século. Alvo mais realista seria a redução da proporção desuas populações pobres a cerca de 15 a 20% por volta do ano 2000,deixando ainda perto de 400 milhões em pobreza absoluta. Para sechegar a esse alvo seriam necessários enormes esforços para a eleva-ção da produtividade e da renda dos pobres ... Na mesma medida emque seria possível reduzir os índices de pobreza nos países de rendamédia, ao final deste século, ela continuaria como praga nos países derenda baixa." Cf. também C. T. Kurien: Poverty and Development,p. 14. Madras, Christian Literature Society, 1974. Outra perspectiva,convergente com a do Banco Mundial, acha-se no livro de CharlesElliott, e Françoise de Morsier, Patterns of poverty in the Third World.New York, Washington, London: Praeger Publishers, 1975.

3. Cf. a declaração do comitê central do Conselho Mundial de Igrejas,Threats to survival, Berlim, 1974. Study encounter, vol. X, n. 4, 1974.Também, Rudolff H. Strahm, Pays industrialisés - pays sous-développés,p. 17: "Um terço da população do mundo, vivendo nos países indus-trializados, controla sete oitavos da renda mundial, enquanto dois ter-ços da população do mundo nas países subdesenvolvidos da Ásia,América Latina e África, precisam se satisfazer com apenas um oitavoda renda mundial (números de 1968). Essa proporção, naturalmente,não indica a distribuição da renda dentro de cada país". Neuchâtel,Suíça, ed. Baconniêre, 1974.

4. Cf. Anticipation, n. 19: "Science and technology for human develop-ment: the ambiguous future and the christian hope". Relatório da con-ferência de Igreja e Sociedade de 1974, em Bucareste, România. Cf.também Richard D. N. Dickinson, To set at liberty the oppressed, p.10-12. Genebra, CMI, 1975.

5. Banco Mundial, op. cit., p. 1.6. A situação é pior para as mulheres do que para os homens. Cf. Lisa

Leghorn e Mary Roodkowsky, Who really starves? Women irt worldhunger, p. 21. New York, Friendship Press, 1977.

7. Sobre a insuficiência das políticas para enfrentar a pobreza na índia,cf. C. T. Kurien, op. cit., p. 91-102.

8. To break tl1f! ehains of oppression, p. 26-35. Genebra, CCPD/WCC,1975.

9. Charles Elliot, Do lhe poor subsidize lhe rieh? p. 10: "Por meio de im-postos indiretos os pobres contribuem de algum modo para financiaro consumo social. Pela queàa (provável) de ganhos informais e pelodeclínio do comércio rural (talvez), recursos passam dos pobres paraos não-tão-pobres. Não sabemos precisamente quão substancial seriaessa transferência: nem conhecemos até que ponto os pobres pagam paraque os não-tão-pobres gozem de certos serviços. Mas é cada vez maisclaro que os pobres não só deixam de se beneficiar de serviços queseriam supostamente de caráter distributivo, como, por exemplo, osserviços de saúde e de educação, como também contribuem para custearbenefícios dos quais são excluídos." Study encounter. vol. IX, n. 4.1973. Genebra, WCC, 1973.

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10. To break the chains 01 oppression, op. cit., p. 13 e 14: "Naturalmente,os benefícios do sistema (seria mais apropriado chamá-Ios de privilégiosde alguns e exploração de outros) são, sem dúvida alguma, bem maiorespara os que possuem ou administram os sistemas de produção. Em al-guns casos são indivíduos, em outros, companhias, e, às vezes, países.Embora sejam escassos os recursos naturais próprios, suas antigas em-presas coloniais permitiram-Ihes o acúmulo de enormes riquezas, conhe-cimento e poder, de tal modo que hoje se encontram em melhor situa-ção financeira do que outros que, não obstante a riqueza potencial,vastos territórios e recursos humanos, foram sujeitos à dominação."

11. F. Frõbel, J. Heinricks, O. Krege e O. Sunkel, The internationalizationoi capital and labor, p. 14-55. Publicação do grupo de pesquisa "Development and underdevelopment", do Max Planck Institut zur Erfor-schung der Lebensbediungungen der wissenschaftlich-technischen Welt,Sternberg, República Federal da Alemanha, 1973.

12. Nações Unidas, Multinational corporations in world development. De-clara-se, também, na página 13 que "o enorme tamanho e a importânciado constante crescimento das corpo rações multinacionais revelam-secom mais clareza quando vistos no contexto das atividades econômicasmundiais. Embora a comparação comum das vendas anuais brutas des-sas empresas com o produto nacional bruto dos países exagere a im-portância relativa das atividades das multinacionais, permanece aindaválida a conclusão geral de que muitas dessas empresas são maioresdo que a economia de grande número de países. Assim, o valor ganhopor cada uma das dez maiores multinacionais em 1971 excedia em 3bilhões de dólares, ou mais, o produto nacional de mais de 80 países.Somando-se o ganho de todas as multinacionais em 1971, num total deaproximadamente 500 bilhões de dólares, concluiu-se que representavaum quinto do produto nacional bruto de todo o mundo, não incluindoas economias com planificação centralizada ''. New York, UN, 1973.

13. Lê-se no relatório da quinta sessão da quinta assembléia geral do Con-selho Mundial de Igrejas sobre "Structures of Injustice and Strugglesfor Liberation": "As causas básicas dessas violações estão na ordemsocial injusta, no abuso do poder, na falta de desenvolvimento econô-mico e no desenvolvimento desigual. Violam-se, assim, as leis injustase os pobres se rebelam, provocando a reação das forças militares epolíticas da "lei e da ordem" com seus métodos de repressão cruel".David M. Paton (ed.), Breaking barriers, Nairobi 1975, p. 106. GrandRapids, Mich., Wm. B. Eerdmans, and London, SPCK, 1976.

14. Cf. Ruth Leger .. Livard, World military and social expenditures 1976.Leesburg, Virginia, WMSE Publications, 1976. Também os relatórios deconsultas do Conselho Mundial de; Igrejas sobre militarismo (1977) e.desarmamento (1976). Genebra, CCIA/WCC, 1978.

15. Relatório da quinta sessão da quinta assembléia geral do ConselhoMundial de Igrejas. David Paton (ed.), op. cit., p. 106: "Em algunscasos, as próprias igrejas apoiaram os opressores ou até mesmo se en-volveram em atos de opressão, por causa de convicções mal orientadasou apenas para salvaguardar os próprios privilégios"'.

16. Charles Elliott e Françoise de Morsier, op. cit., p. 228-262.17. Cf. comentários de Samuel L. Parmar, em "Jesus in the development

debate", in Richard N. Dickinson, op. cit., p. 182.18. Max Weber, W irtschaft und Gesellschait, grundriss der verstehenden

Soziologie. Tübingen, Verlag J. C. B. Mohr, 1922.

54

19. Heuràn Santa Cruz (narrador especial), Racial discrimination, p. 57.New York, UN, 1971.

20. Charles Elliott e Françoise de Morsier, op. cit., p. 5-14.21. A conferência de Igreja e Sociedade sobre "Ciência e Tecnologia para

o desenvolvimento humano: futuro ambíguo e esperança cristã", realí-zada em Bucareste, em 1974, declarou: "A dependência econômica,tecnológica e social envolve também dependência política e militar. Ospaíses da América Latina que na última década estavam prontos paramudanças sociais nada puderam fazer em face de intervenções mili-tares. A assistência militar estrangeira facilitou o desencadeamento deinúmeros golpes militares na região e consolidou a dependência polí-tica. Esses grupos militares tudo fazem para tornar viáveis os investimen-tos estrangeiros na América Latina. Se o povo pudesse se expressar con-tra esse tipo de negociata esses grupos estrangeiros não teriam vindo.Portanto, esses regimes autoritários aumentaram nos últimos dez anoscom a conseqüente injustiça. O desemprego aumenta tanto nas zonasrurais como urbanas; a distribuição do produto nacional bruto, favoreceapenas os grupos privilegiados. .. Os que se envolvem com a luta pelamudança sofrem, em geral, perseguição, prisão, tortura, exílio e atémesmo morte. Os direitos humanos são violados em todos os níveis."Cf. Anticipation, n. 19, p. 27, Genebra, WCC, novembro de 1974.

22. Cf. Lisa Leghorn e Mary Roodkowsky, op. cito Também, Sexism in the1970s: discrimination against women, relatório de uma consulta doConselho Mundial de Igrejas, em Berlim Ocidental, em 1974, p. 45-55e 113-115. Genebra, WCC, 1975.

23. Cf. Andrew Gunder Frank, Capitalisme et sous-développement en Amé-rique Latine, p. )20-139. Paris, Maspero, 1968.

24. Tissa Balasuriya, The development of the poor through the civilizing oflhe rich, p. 13. Colombo, Centre for Society and Religion, 1973.

25. Cf. Cees Hamelink, The corporate vil/age, p. 134. Roma, IDOC, 1977.

-e

1960 1965

AJUDA ECOHOMlcAMUNDIAl,

55

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IH. Acúmulo de riqueza -crescimento da pobreza(Mecanismos de injustiça)

1,,1

Nos capítulos anteriores apresentamos um quadro bastantedesolador da situação dos pobres no mundo contemporâneo. A po-breza é sentida pelos pobres como privação de vida, e não satis-fação das necessidades humanas básicas. São-lhes negados, de certaforma, o direito a uma vida melhor, ao trabalho, à proteção, à edu-cação, à habitação decente, e à participação nas decisões que afe-tam seu destino. Urge, pois, examinarmos o problema da crescentepobreza mundial com mais profundidade para entendermos as cau-sas do fenômeno, não obstante o crescimento da riqueza.

Sempre tivemos os pobres conosco. Sabe-se deles em todos osperíodos da História. Trata-se de um problema basicamente sistê-mico. Apesar dos esforços em prol do desenvolvimento através dosséculos, a pobreza sempre cresceu. Cabe a nós, pois, examinar oprocesso ou mecanismo que fez com que as coisas acontecessemdessa maneira.

Além disso, a pobreza é gerada pela apropriação dos frutosdo trabalho dos pobres pelos poucos donos do capital. Preocupa-mo-nos, pois, com os que trabalham e cada vez ficam mais pobres.Precisamos, então, examinar esse sistema em que o trabalho damaioria é explorado para que poucos privilegiados se tornem cadavez mais ricos.

Ao final da Segunda Década de Desenvolvimento deve-se con-fessar que muito pouco se alcançou na luta contra a pobreza: "Nosúltimos anos houve muitos esforços conscientes para se chegar acerta clareza conceitual até então 'inexistente, mas as relações entreos conceitos e a realidade acabaram mais difusas e evasivas do queantes. As incertezas e ambigüidades resultantes dessa situação tor-nam-se mais evidentes por causa das poucas certezas que nãopodem ser ignoradas: que depois de duas décadas de esforços paraacabar com a pobreza e reduzir a desigualdade há hoje em diamuito mais gente pobre e a distância entre os ricos e os pobres

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aumentou; que num mundo dotado de tão tremendas possibilida-des tecnológicas, ainda persiste a ameaça da fome ... " 1

Se realmente desejamos erradicar a pobreza, precisamos atacá-Ia nas raízes. Necessitamos saber os fatores que a causam,bem comosua dimensão estrutural em nosso mundo. O caráter estrutural dapobreza relaciona-se com o funcionamento de mecanismos preva-lescentes na aplicação do poder em nossas sociedades, i2 produtoresde dominação e/ou opressão. Precisamos deixar claro de que tipode dominação e opressão estamos falando.

A presente situação dos pobres no mundo relaciona-se com oprocesso da modernização do mundo desde o século dezoito."Nessa evolução, certas estruturas foram impostas pelos poderesdominantes sobre sociedades inteiras. No âmbito dessas estruturassócio-econômicas surgiram novos relacionamentos entre as pessoas,bem como entre a humanidade e a natureza, buscando a apropria-ção do excedente econômico e a acumulação de riquezas pelos quemantinham e controlavam os mecanismos de poder, em detrimentodos outros. É o que tem sido chamado de "capitalismo". 4

Essa estrutura surgiu em nome da liberdade; entretanto, nãose tratava da liberdade humana, mas da liberdade de comércio.Essa forma de liberdade, talvez mais do que nunca, continua hojea determinar a ideologia da dominação. Liberdade de preços, liber-dade do dólar, liberdade de comércio, liberdade de empresa: preçoslivres, dólares livres, comércio livre, empresa livre. A liberdadehumana passou a ser considerada sob a ótica desta liberdade domercado. 5

Quanto mais progredia o mercado, tanto mais as leis do mer-cado vieram a ser consideradas as verdadeiras leis da liberdade.O reino da liberdade torna-se o reino do mercado livre e as leisdesse mercado são quase divinizadas. Com o desenvolvimento domercado livre, o conceito da lei natural da propriedade privada,considerada lei divina dada pelo próprio Criador, apareceu pelaprimeira vez nâ história do cristianismo. 6

Vem: também a metafísica das leis do mercado: as virtudesdo mercado e os pecados contra o mercado, correções de compor-tamento por referência às leis do mercado e milagres econômicoscomo recompensas dadas pela própria natureza. As leis do mer-cado, juntamente com as relações comerciais, tornaram-se o fun-damento da burguesia cristã imposta progressivamente como averdadeira interpretação da vida da fé. 7 Assim, o amor de Deuse o respeito pelas leis do mercado livre identificaram-se - osedifícios das bolsas de valores foram construídos na forma deigrejas, e os bancos como templos gregos. O amor pelo dinheiro

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expressou-se concretamente no amor por Mamom, capaz de ditaras leis do mercado livre e de gravá-Ias na própria natureza. Ocomportamento humano passou a ser guiado pela busca do lucromáximo. As estruturas resultantes cobriram toda a humanidadee, em seguida, o mundo inteiro. A submissão às estruturas domercado foi pregada em nome da virtude cristã básica da humil-dade. 8 Entretanto, na medida em que o mercado livre abrangiao mundo inteiro, não afetava a todos da mesma maneira. Quandotodos se submetem a essas estruturas, alguns acabam vencendo eoutros perdendo: desaparece a igualdade." Mas mesmo os vence-dores tinham que se submeter a essas estruturas. Os diretores deempresas julgaram-se servos humildes da livre empresa. Promo-viam e defendiam sua estrutura, embora outros sofressem em con-seqüência, e aí se originassem a opressão e o condicionamentoestrutural da pobreza. A opressão se tornou anônima e· impessoal:não havia relações pessoais entre opressores e oprimidos.10 Aestrutura do mercado livre parecia ser, portanto, a regra da leinatural que ditava os próprios preceitos. Alguns se justificavam,outros, não. A realidade seria o verdadeiro juiz: a história mun-dial, o juízo final. Thomas Hobbes foi um dos primeiros a enten-der o surgimento desta nova estrutura de dominação. Chamou-ade Leviathan - a Besta. 11

A lei do mercado era promovida pelos que auferiam os maio-res benefícios da operação livre das relações mercantis. Tinham ascondições econômicas necessárias para saírem vitoriosos das lutasdo mercado livre. As leis do mercado, portanto, capacitavam-nosa manter o domínio.1,"2 Politicamente, pretendiam utilizar-se dopoder para aumentar ao máximo possível a liberdade do mercado.Quanto mais êxito alcançassem, com mais firmeza se estabeleciaa dependência de outros nesse seu poder hegemônico. Essa depen-dência tem sido desde então um fenômeno estrutural. 13 Desen-volveu-se dentro de uma estrutura internacional governada porleis de mercado que permitiam o surgimento de classes sociais eregiões do mundo acima de outras, umas dominando as outras. 14

Em seu .aspecto regional, a dependência não deve ser confun-dida com o colonialismo, O colonialismo foi apenas um dos meiospelos quais a lei do mercado se impôs e certas regiões se tornaramdependentes. A dependência de classe não deve ser confundidacom a relação de dependência existente entre o trabalho assala-riado e o capital. O pior tipo de dependência de classe resultantedo mercado livre é a escravidão. É certo que a escravidão já exis-tia nos tempos antigos, mas o comércio de escravos só alcançouo máximo desenvolvimento com a evolução do mercado livre,pelo menos nos séculos dezessete, dezoito e dezenove. Não se

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deve esquecer que foi este "liberalismo" o responsável pela cons-trução do maior império de escravos da história humana. 15

As diferentes etapas percorridas para a criação deste sistemade dominação foram momentos na evolução de um sistema real-mente internacional. Há dois momentos principais: da revoluçãoindustrial à guerra de 1914-1918; e do término dessa guerra atéos dias atuais.

Da revolução industrial à guerra de 1914-1918

Enquanto se desenvolviam rapidamente as forças de produ-ção na Inglaterra, primeiramente, e, depois, na Europa ocidental,nos Estados Unidos e no Japão, essas mesmas forças eram destruí-das no resto do mundo. A India é o caso mais gritante. No inícioda revolução industrial, a Indía era o maior produtor e exportadorde tecidos do mundo. A colonização e a liberação dos preços domercado reduziram-na, em pouco tempo, a mero produtor de ma-téria-prima destinada a alimentar a indústria têxtil britânica. 16 Adestruição das forças tradicionais de produção pelo mundo a foranada mais foi do que corolário do -desenvolvimento das forças deprodução dos países dominadores. Estava de acordo com a políticasistemática de impedir a industrialização de certos países.

A rápida expansão de intercâmbio resultou do aumento daprodutividade física de lugares onde o modo capitalista de produçãohavia penetrado. Os novos produtos, oriundos de mudanças na for-ma de produção, eram usados como instrumentos para abrir novaslinhas de comércio. Do contato entre culturas orientadas para ainovação e a expansão, e outras orientadas para o respeito pelatradição, surgiu a poderosa relação de dominação de uns sobre osoutros, procurando os dominadores impor seus modos de consumosobre os dominados. Pode-se explicar este processo de diversasmaneiras, mas, não importando a adotada, não se deve esquecerque as culturas baseadas primeiramente no modo capitalista deprodução dependiam de um processo de acúmulo, que significavainter alia que poderiam impor-se pela força ou pela troca de pro-dutos. Em outras palavras: a formação de um sistema de divisãointernacional do trabalho não dependeu apenas do surgimento denovas linhas de comércio, mas principalmente, da imposição de pa-drões culturais, que conseqüentemente condicionaria, em primeirolugar, o processo de acumulação e, depois, de industrialização nes-

0- 17sas regloes. . .Como se vê nessa citação de Celso Furtado, dois métodos

foram empregados: de um lado, destruição direta das forças nativasde produção por meio da colonização; de outro lado, o estabeleci-

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mento do mercado livre nos países politicamente soberanos.18 Foio que aconteceu principalmente na China e na América Latina:qualquer recusa desse mercado livre nessa época era razão sufi-ciente para que os países hegemônicos declarassem guerra. Nemmesmo a diplomacia conseguiu os resultados desejados: veio aguerra. Basta recordarmos as Guerras do Ópio na China (1839-1842), e da "Tríplice Aliança" (Brasil, Argentina e Uruguai, apoia-dos por potências européias, principalmente a Inglaterra) contra oParaguai (1865-1870). Nas relações coloniais ou de submissão aoscentros hegemônicos, assegurava-se a liberdade de comércio entreos poderosos e os fracos, ou os menos poderosos. Se, não obstanteessa liberdade de comércio, certas indústrias competitivas viessema surgir nas colônias, eram imediatamente destruídas.19

A destruição da indústria tradicional pelo mundo a fora e oimpedimento direto ou indireto do desenvolvimento de indústriasmodernas nos países dependentes transformou-os em apenas supri-dores de matérias-primas para as indústrias dos países ricos. Esseprocedimento trouxe enorme empobrecimento nesses países e acorrespondente disposição de aceitar qualquer tipo de atividadedeterminada pelo sistema de mercado livre. 20

Com a conversão do mundo dependente em produtor de ma-téria-prima, amplos setores da população, em lugares densamentehabitados, tornaram-se supérfluos. Essa gente trabalhava anterior-mente em indústrias tradicionais, agora destruídas. Pequena pro-porção desses antigos trabalhadores veio a ser aproveitada naprodução da matéria-prima que substituía a atividade industrial.São os novos pobres das sociedades dependentes.

Ao mesmo tempo, nos países dependentes com baixa densi-dade populacional, as oportunidades surgidas para o desenvolvi-mento de matérias-primas, não puderam ser exploradas convenien-temente com força de trabalho tão baixa. Foi por causa disso quea escravidão desenvolveu-se enormemente nas Américas e no Cari-be. Muito embora os impérios baseados na escravidão já existissemnas Américas logo depois da conquista, a escravidão atingiu o pontomáximo entre o fim da revolução industrial e meados do séculoXIX.21 Os atuais modelos de pobreza nas Américas e no Caribeforam fortemente determinados pela escravidão.

Ao mesmo tempo em que se empobreciam os povos dos paísesdependentes e das regiões colonizadas do mundo, importantes seto-res da população dos países hegemônicos também começavam aficar pobres. Embora os padrões de produção nesses países tives-sem subido rapidamente logo após a revolução industrial, os pa-drões de vida dos pobres caíam consideravelmente em relação aoque haviam sido antes do começo do processo de industrialização

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pela metade do século dezoito. ~12 Somente no fim do século deze-nove começou a melhorar a situação dos trabalhadores nos centroshegemônicos, resultando em maior consumo com a conseqüentemelhoria do crescimento econômico nos países industrializados.Mas os países dependentes continuaram na pobreza. Não há dúvidade que a pobreza absoluta continua a existir no mundo inteiro.Trata-se de fenômeno que apenas afeta a minoria nos centros eco-nômicos, enquanto que na África, Ásia e América Latina continuaa ser a condição de vida da maioria das populações. Apenas asminorias governamentais e os grupos a elas relacionados nos paísesdependentes beneficiam-se com as mudanças econômicas em queparticipam.

Da guerra de 1914-1918 ao presente

Nessa época ocorreu importante mudança no sistema de domi-nação. Por meio da assim chamada revolução industrial, o mono-pólio dos países industrializados, onde se concentrava o poder,desenvolveu-se visivelmente. Elementos do progresso alcançado de-pois de quase dois séculos acumularam-se em suas indústrias. As-sim, os que não passaram pelo mesmo processo não conseguiamutilizar tais tecnologias independentemente, talo grau de perfeiçãoatingido. 125 Os países dependentes não podem se industrializar semo conhecimento técnico dos países industrializados nem sem suamaquinária, tecnologia, e assistência de seus técnicos, uma vez quesuas indústrias tradicionais foram destruídas e seu desenvolvimentoindustrial obstruído e atrasado. 26 Além disso, não há mercado ondetais tecnologias possam ser compradas. Trata-se de situação dife-rente em relação à venda de mercadorias no estágio anterior. Umavez que os países industrializados possuem o monopólio da tecno-logia, só se pode chegar a ela mediante uma única condição: queo seu próprio capital seja o agente da transferência dessa tecno-logia. Temos, como resultado, a crescente integração das economiasnacionais num" único espaço econômico unificado, significando aexistência de "um processo de crescente integração dos sistemaseconômicos nacionais". 127

Importante mudança também ocorreu nas relações internacio-nais. A "diplomacia do mercado livre" do século dezenove, con-centrou-se na política do livre comércio, entrando mesmo em guer-ra contra os países que não a aceitavam. A diplomacia do "mercadolivre" em nosso século centraliza-se no movimento livre de capitale também ameaça os países que não a aceitam.

O capital transnacional moderno tornou-se possível graças àligação da venda de tecnologia com a liberdade de capital, impos-

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1:1

sível sem o monopólio tecnológico dos países industrializados. :28

Assim, o crescimento econômico dos povos dependentes pode ser,agora, controlado ao se tornar obrigatória a aceitação do agencia-mento do capital trasnacional como condição dessa transferência.:"O capital estrangeiro opera segundo leis relacionadas com a "leido mercado", que se resumem na obtenção do máximo lucro pos-sível.

As empresas multinacionais procuram hoje em dia seus lucrosem escala internacional. Os países dependentes, por sua vez, com-petem entre si para atrair capitais estrangeiros. Para isso, precisamcriar condições adequadas: baixos salários, desempregos e governosfortes (em geral, militares) capazes de suprimir quaisquer tentati-vas dos povos dominados de fazer valer suas reivindicações econô-micas e sociais. 30

No momento, o capital transnacional não transfere, em geral,capital ou excedentes de maneira contínua dos países industriali-zados aos dependentes. O capital transnacional nos países depen-dentes resulta dos próprios recursos locais apropriados medianteempréstimos ou reinvestimento de lucros. Uma vez que o capitaltransnacional possui o monopólio da tecnologia, também tem acessoaos canais financeiros dos países dependentes, e assim constróemseus impérios através do mundo dependente. 3:1

A industrialização dos países dependentes, confiada ao capitaltransnacional, exige que a transferência da tecnologia seja deter-minada pelo máximo lucro. Temos, como resultado desta política,uma industrialização orientada para as exigências dos economica-mente mais poderosos, que marginaliza a produção de bens neces-sários às necessidades básicas da população. Na medida em queavança a industrialização, aumenta a distância entre os grupos debaixa e alta renda. Para sanar o problema seria preciso reformu-lação da distribuição da renda em benefício dos pobres. o'lI2 Ao ladodo rápido aumento da disparidade da renda, aparece um fenômenoainda mais destrutivo. Dado o monopólio tecnológico dos paísesjá industrializados, limita-se bastante o aparecimento de novas in-dústrias, e sua administração passa a ser progressivamente trans-nacionalizada também. 33 Por fim, a capacidade de importação dospaíses dependentes determina sua capacidade para se industriali-zar. E, quanto mais dependente do capital se torna a modernatecnologia, menor será o número de empregos. M

Mesmo nos países desenvolvidos onde o processo de industria-lização é mais dinâmico, o desenvolvimento industrial começa aestagnar nas últimas décadas. Em muitos países diminui conside-ravelmente a mão-de-obra empregada na indústria. É o caso doBrasil:" e do México . se E não se criaram trabalhos não-industriais

62

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PREÇOS PARA

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617

1970

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para compensar a perda. Enquanto isso, as pequenas indústrias,com seus métodos tradicionais de produção, encontram enormesdificuldades de sobrevivência. A eficiência da indústria modernavai aniquilando-as aos poucos, sem, no entanto, absorver a mão-de-obra não mais aproveitada. E assim, temos como resultado, o de-semprego galopante, como já observamos. 37

Para concluir, os atuais modelos de industrialização nos paísesdependentes, onde as economias funcionam segundo as "leis domercado", em nada ajudam para mudar a situação de empobreci-mento herdada do século dezenove. Em muitos casos, a agravam.Enquanto perdurar a situação, não se pode ter grandes esperançaspara o futuro; esse processo ignora simplesmente a existência dasmassas carentes do mundo dependente. Dentro dessas estruturas,como as conhecemos, não há lugar para qualquer ação. Para fun-cionar, elas precisam dos pobres, mantendo-os em sua desesperadasituação. Os pobres estão, pois, condenados a perecer na pobreza,ou a se levantar, aceitando o desafio da situação, e lutar por umavida melhor.

NOTAS

1. David M. Paton (ed.), Breaking barriers: Nairobi 1975, p. 122. GrandRapids, Mich., Wm. B. Eerdmans, & London, SPCK, 1976.

2. Como se lê em Prefácio à nova economia política, do conhecido eco-nomista brasileiro, Celso Furtado: "Conseqüentemente ª composição doexcedente (econômico) é em grande parte reflexo do sistema da domi-nação social, significando que a não ser que conheçamos a estruturade poder não poderemos progredir no estudo do desenvolvimento dasforças produtivas"'. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1976.

3. Sismonde de Sismondi, observando a maneira como este processo co-meçou a ser consolidado no começo do século dezenove, escreveu emseu livro, Nouveaux principes d'économie politique, p. 188: " ... umabismo separa o trabalhador diário de qualquer empreendimento demanufatura, comercial ou de arrendamento de fazendas, e a classe maisbaixa perdeu a esperança que a sustentava no período precedente ...quase não consegue preservar o sentimento da dignidade humana, ouo amor pela liberdade".

4. Celso Furtado, seguindo a análise de Fernand Brandel, Werner Sombarte Max Weber, diz na op. cit., p. 36 e 37: " ... se observarmos maisatentamente qualquer forma de organização social, podemos provar semdificuldades que no capitalismo há forças ocultas cooperantes destina-das a cumprir papel fundamental, porque o uso do excedente para aprodução de novos excedentes ou para a sua transformação em capital,pressupõe a imposição de dadas relações sociais. Assim, o capitalismodeve ser entendido como uma organização sócio-política, isto é, comouma estrutura de poder que impõe certo tipo de relacionamento socialem que o excedente mais facilmente se transforma em capital."

5. Cf. Lionel Robbins, The theory of economic policy in English classicalpolitical economy, p. 19: "O sistema da liberdade econômica nunca

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significou qualquer vaga recomendação de não-interferência: foi, issosim, a urgente exigência de se remover qualquer impedimento conside-rado anti-social, e a liberação do imenso potencial da livre iniciativaindividual e pioneira. E, naturalmente, foi nesse espírito que, na prática,os seus proponentes lutaram decididamente contra as principais formasdesses impedimentos: contra os privilégios das .cornpanhias e corpora-ções regulamentadas, contra a lei do aprendizado, contra as restriçõesem andamento, e contra as restrições sobre importações. O sentimentode cruzada que apareceu' no movimento do livre mercado, deve muitode sua força e outras influências externas. Mas, até certo ponto, tudoisso é típico da atmosfera do movimento geral em favor da liberaçãode empresas e energias espontâneas das quais, sem dúvida, os econo-mistas clássicos foram a vanguarda intelectual." Londres, Macmillan,segunda edição, 1978.

6. Cf. Thomas Hobbes, Leviathan, p. 151 e seguintes, Londres, Everyman'sLibrary, 1924. Adam Smith, baseado nas idéias de Hobbes, levou esteconceito adiante.

7. CL in Julio de Santa Ana (ed.), Separation without hope, o capítulode Mario Miegge. Genebra, WCC, 1978. Celso Furtado, na op. cit., p.39, diz: "Os economistas contentaram-se em examinar apenas o ladoexterior desse processo, como se fora apenas a multiplicação da econo-mia de mercado, quando na verdade o importante era a evolução aonível das estruturas de poder que controlam a apropriação do exce-dente". -

8. Franz Hinkelammert, Las armas ideolgicas de Ia muerte, p. 33: "Deriva-se daí não só uma teoria de valores, mas também da interiorização dosvalores. Além do dinheiro coloca-se a infinidade que ele promete alcan-çar. Daí se podem derivar os valores que devem ser alcançados parase chegar ao alvo. Mas, sendo o alvo de valor infinito, a ilusão religiosapermite sacralizá-lo convertendo-o em objeto de piedade. A busca dodinheiro transforma-se num objeto de piedade, ad maiorem Dei glo-riam". S. José, Educa, 1977 e Salamanca, Sígueme, 1978.

9. J. J. Rousseau, Discours sur les sciences et les arts, 1750: "Qual é afonte desses abusos se não a desigualdade fatal entre os homens esta-belecida pela honra prestada aos talentos e a depreciação das virtu-des. .. Temos médicos, geômetras, químicos, astrônomos, poetas, músi-cos. pintores; só não temos mais cidadãos".

10. Os economistas representam importante papel nesse processo. Comodiz Celso Furtado na op. cit., p. 30: "A grande conquista ideológicada ciência econômica, ao ter facilitado o desenvolvimento de forçasprodutivas no:' interior do capitalismo, vem do fato de que a ciênciaeconômica muito contribuiu para ocultar o elemento de poder semprepresente nas decisões econômicas, considerando-o 'autornatísmo' ou 'me-canismo' cujas leis deveriam ser descobertas e cuidadosamente respei-tadas. .. A evolução das empresas anônimas, principais instituições daeconomia capitalista, nos deixaram ver com clareza o mascaramentodesse elemento de poder".

11. S. Radakrishnan, grande pensador indiano de nosso século, descreveuessa situação muito bem, mas de um outro lado, em Religion andsociety, p. 16: "Com a maquinária centralizada do estado, com osmodernos instrumentos do progresso técnico e da propaganda de mas-sa, veio a mobilização total das pessoas, afetando seus corpos; mentese almas. O estado absoluto e a comunidade totalitária tornaram-seidênticas. " Parece que estam os sob o poder de forças demoníacas que

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degradam a humanidade à semelhança dos animais inferiores. O deus-homem transforma-se no animal da manada. O credo do grande Levia-than compele-nos a levar vida de produção, porém vazias, sem coração,vulgares, triviais e grosseiras no espírito. Nossa humanidade é destruídapela arregimentação". Londres, George & Unwin Ltd., 1947.

12. Cf. Celso Furtado, op. cit., p. 43: "Não foi a evolução das forças pro-dutivas que expulsou as populações dos campos e desmontou as corpo-rações de ofício, e sim a ascensão da burguesia na estrutura de poder ...O controle do sistema de produção passava das mãos da classe dosproprietários, que se instalavam na posição de simples rentistas, paraas mãos da burguesia mercantil. As garantias que a tradição e os cos-tumes asseguravam à massa trabalhadora desapreceram em face do novosistema de poder que pretendia derivar das "leis do mercado" sua legi-timidade:"

13. Cf. Richard D. N. Dickinson, To set at liberty the oppressed, p. 64 eseguintes. Também, To break the chains of oppression, p. 16-18. Gene-bra, WCC, 1975.

14. Cf. Celso Furtado, op. cit., p. 43: "Em síntese: o modo capitalista deprodução - ou seja, a forma mercantil de apropriação do excedenteaplicada ao controle direto das atividades produtivas - resultou serum sistema de poder muito mais eficaz do que as formas autoritáriasde apropriação do excedente que até então haviam prevalecido emtodas as formações sociais."

15. Cf. Eric Williams, From Columbus to Castro: 1492-1969, p. 136-155.Londres, André Deutsch, 1970.

16. Cf. Vera Anstey, The economic development oi lndia, p. 5: "Até oséculo dezoito as condições econômicas da índia eram relativamenteboas; seus métodos de produção, as ..organizações industriais e de co-mércio, podiam muito bem resistir qualquer comparação com as queexistiam em outras partes do mundo na mesma época... Esse país,que tanto manufaturou e exportou artigos de luxo e ricos tecidos deseda numa época em que os ingleses ainda viviam de modo bastanteprimitivo, não conseguiu participar na revolução econômica, começa daprecisamente pelos descendentes dos mesmos antigos bárbaros". Lon-dres, Longmans Green, quarta edição, 1952. Paul Baran assinala quenada disso foi acidental: resultou da terrível exploração exercida pelosempresários britânicos desde o princípio da dominação da 1ndia pelosingleses. Cf. Economie po/itique de Ia croissance, p. 188. Paris, Maspe-ro, 1967. CL também Romesh Dutt, The economic history of lndia,p. vii e seguintes. Londres, Kegan Paul, 1950, sétima edição.

17. Celso Furtado, op. cit., p. 54 e 55.18. CL Cesar Espiritu, "Economic dependence and independence: as seen

from Southeast Asia", in Denis Munby (ed.), Economic growth in worldperspective, p. 196 e 197. New York e Londres, WCC, AssociationPress e SCM Press, 1966.

19. O caso da índia, já mencionado na nota 16, exemplifica novamenteesta afirmação: até mesmo na última década do século dezenove, aemergente indústria têxtil desse país foi arrazada com o apoio dos mi-litares.

20. No Chile, tomando consciência da influência e da ameaça dos interes-ses externos, o Ministro Luis Aldunate escreveu em 1894 que o capitalestrangeiro "longe de nos ser útil e rentável, nos esgota, nos enfra-quece, nos leva à ruína sem nos trazer nem nos fazer aprender qual-

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quer coisa que seja ... " Citado por H. Ramírez Necochea, Historia deiimperialismo en Chile, p. 254. Santiago de Chile, Ed. Austral, 1960.

21. CL Eric Williams, op. cit., p. 255-25~. Cf. também pelo mesmo autor,Capitalism and slavery. Londres, Putnam, 1966.

22. Celso Furtado, na op. cit., p. 48, diz algo que explica a situação: "Umainovação técnica pode colocar um produtor em posição privilegiada, damesma forma que a construção de uma estrada pode favorecer certaregião. Contudo, o sistema de preços reduz progressivamente as discre-pâncias que vão surgindo, pois a acumulação tende a reduzir-se nasatividades que se tornam ocasionalmente menos rentáveis."

23. lbid., p. 60: "Nas economias em que _o modo capitalista de produçãopenetrou no quadro da dependência externa, o fenômeno da insegu-rança social apresenta-se sobremaneira agravado. Este problema temsido amplamente estudado sob os títulos de sub-emprego, desempregodisfarçado e margina/idade social, e é geral o consenso de que se tratade uma característica estrutural das chamadas economias subdesen-volvidas. Se a essa insegurança se adicionam crescentes desigualdadessociais, compreende-se a necessidade de sistemas de repressão cada vezmais custosos e os riscos de eclosão revolucionária.'

24. lbid., p. 135: "Quanto mais desenvolvida uma economia, mais impor-tante faz-se para ela ter acesso à inovação técnica. Se o país não pro-duz essa inovação (e nenhum país produz atualmente mais do que umaparcela do fluxo de inovação técnica que domina a economia mundial)terá necessariamente que importá-Ia. Essa a razão pela qual a aceleraçãodo desenvolvimento ocorrido no último quarto de século nos paísesmais industrializados assumiu a forma de intensificação na interdepen-dência entre eles. Também não é outra a explicação do fato de que aseconomias socialistas busquem crescente cooperação internacional, quan-do alcançam níveis mais altos de desenvolvimento. O problema funda-mental que se coloca é saber quem controla essa técnica, quem exerceo poder que em nosso sistema de civilização ela gera, e quem pagapara ter acesso a essa técnica com recursos que geram menos poder,particularmente com essa moeda depreciada que constitui a mão-de-obrabarata dos povos do Terceiro Mundo."

25. lbid., p. 92 e 93: "Como a industrialização de um país, qualquer queseja a época em que se realize, molda-se pelo grau de acumulação al-cançado nos países que lideram o progresso técnico, o esforço requeridopara dar os primeiros passos tende a crescer com o tempo. Compreen-de-se, portanto, que, a partir de certo ponto, a possibilidade de optarpor um projeto de sistema" econômico nacional se haja tornado pratica-mente nula. É a partir desse momento que cabe falar de uma diferençaqualitativa enjre capitalismo central e capitalismo periférico... Trata-se, portanto, menos de um problema de nível de desenvolvimento doque de diferença qualitativa no processo de desenvolvimento."

26. Em Scanning our [uture, relatório do Forum sobre a ordem econômicamundial (NGO) organizado em apoio da sétima sessão especial da as-sembléia geral das Nações Unidas sobre desenvolvimento e cooperaçãoeconômica "internacional, Marcelo Alonso declarou: "Os planos de de-senvolvimento dos países em vias de desenvolvimento dependem dofluxo de tecnologia dos países desenvolvidos. Não é menos importantea capacidade dos países importadores para-corretamente identificar assuas necessidades tecnológicas. Os países importadores que não tiveremessa capacidade vão apenas multiplicar seus problemas desenvolvimen-tistas". New York, Carnegíe Endowment for International Peace,1976.

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27. Celso Furtado, op. cit., p. 77.28. Ibid., p. 58: "Tudo indica que a transnacionalização da produção tende

a transformar-se em fator decisivo na luta pela preservação dos sistemasde dominação social fundados no modo capitalista de produção, parti-cularmente nos países que mais avançaram no processo de acumu-Iação."

29. Jacques Attali, La parole et l'outil, p. 40 e 41: "Percebe-se muito bemque o sistema dominante desenvolve, ramirica, assume a estrutura,torna-se mais complexo com a finalidade do aumento abstrato e anô-nimo do capital. ... Em base puramente teórica pode-se dizer que nãoexiste limite concebível ao crescimento econômico do sistema vigente,capaz de tudo controlar dentro de um século. As fases no crescimentode um produto e da inevitável extensão do controle do sistema preva-lescente sobre os processos explosivos são o investimento, o mercado,a exportação, e a disseminação mundial de sua produção. .. Nos últi-.mos anos já aparecem em certos setores quase-rnonopóhos mundiais deprodução e de tecnologia. Estão, pois, na posição de determinar a qua-lidade e de impor preços extorsivos da mesma maneira como certosprodutores de matérias-primas ou de certos arrendadores. Determinam,ainda, segundo sua vontade, a duração da vida dos produtos. O sistemaprevalescente é, acima de tudo, um sistema financeiro, e se concentramais particularmente em certos ramos da indústria". Paris, PUF, 1975.

30. Existe vasta literatura sobre as empresas multinacionais e suas relaçõescom países dependentes. Chamamos a atenção para a seguinte lista:WCC report o] a consultation on a proposed actionlreilection pro-gramme on transnational corporations, Genebra, junho de 1977. PaulGregorios (ed.), Burning issues. Kottayam, Sophia Centre Publications,1978. Multinational corporations in world development, New York, UN,1973. The impact of multinational corporations on development and oninternational relations. New York, UN, 1974. Dimitri Germidis (ed.),Transjer of technology by multinational corporation, 2 vols., Paris. Ed.OCDE, 1977. [on P. Gunemann (ed.), The nation-state and transnationalcorporations in conflito New York, Praeger Publishers, 1975. Richard J.Barnet e Ronald E. Mueller, The global rich, New York, Simon & Schus-ter, 1974. CEDAL, MultinationaZes et travailleurs au Brésil. Paris, Ed.Maspero, 1977. Xavier Gorostiaga, Los banqueros deZ imperio. San José,Costa Rica, Ed. Educa, 1978.

31. ECLA, Report 01 the Cartagena conierence. Santiago de Chile, 1968.32. Hans Singer, em Scanning our [uture, op. cit., p. 96: "Quando se começa

com desigual distribuição salarial, o 'mecanismo do livre mercado' inevi-tavelmente tenderá a apoiar, perpetuar e até mesmo acentuar essa dis-tribuição desigual. Quando os mais ricos (que são apenas 20%) possuem75% do PNB, enquanto os mais pobres (20%) só tocam em 5% dessemesmo PNB, o poder aquisitivo dos ricos aumenta numa proporção,digamos, de 10%, pesando 15% mais do que o aumento proporcionalde 10%, no salário dos 20% pobres. Do ponto de vista do desenvolvi-mento e do bem estar social deveria ser o contrário. Elevar esses 20%mais pobres acima da linha da pobreza, ou pelo menos deixã-los aí porperto, é objetivo mais importante do que aumentar ainda mais o bemestar dos que já vivem acima dessa linha."

33. Celso Furtado, op. cit., p. 95: " ... as atividades industriais dos paísesde capitalismo periférico tendem a ser controladas por grandes empresasde ação transnacional. A escassez interna de recursos serviu em muitospaíses de justificativa para oferecer vantagens adicionais a essas empresas,as quais tenderam a ocupar os setores em que o controle da tecnologia

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proporciona maiores vantagens. Instaladas em posições estratégicas, elastendem a apropriar-se de parcela crescente do excedente em expansão aque fizemos referência. Explica-se, assim, que a mutação no processo deindustrialização tenha em geral sido acompanhada por outra mutaçãono sistema de controle da atividade industrial, com rápida substituição daclasse capitalista local por agentes de grandes empresas de ação trans-nacional."

34. R. Barnet e R. Mueller, op. cit., p. 166 e 167: "A tecnologia global carac-teriza-se por essa devastadora conseqüência nos países pobres que é adestruição dos empregos ... A expansão das empresas globais, com suatecnologia, contribui para a expansão do desemprego no mundo".

35. Marc Nerfin (ed.), Another development: approaches and stragegies, cf.o capítulo de Paul Singer e Bolivar Lamounier: "Brazíl: Growth throughinequality", p. 125-151. Uppsala, Dag Hammarskjold Foundation, 1977.

36. Ibid., cf. o capítulo de Cynthia Hewett de Alcântara, "México: acommentary o nthe satisfaction of basic needs", p. 152-207.

37. ECLA, Report of the Guatemala conference 1976. Mexico, 1976. Asestimativas desse relatório indicam que 38% da mão-de-obra ativa naAmérica Latina estava desempregada em 1976.

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IV. A religião e a cultura popularem relação com a pobreza

Se quisermos fazer uma interpretação mais global das situaçõesde extrema pobreza e opressão suportadas por milhões de sereshumanos nos dias atuais, precisamos entender que as formas dedominação estão presentes em todas as esferas da vida humana,além da econômica.

Embora se possa dizer que o crescimento e a manutenção dapobreza se deva principalmente à maneira como se organizam asrelações econômicas, há outras forças em ação, como os mecanismosculturais e ideológicos prontos a exercer influência e a dominar aspessoas. É importante reconhecermos esses fatos quando vamosdiscutir cultura popular e religiosidade. Embora os sistemas popu-lares de valores, com suas expressões artísticas e organizações so-ciais se deixem influenciar e moldar por eficientes mecanismoseconômicos e ideológicos, é também verdade que a cultura popularresiste, sobrevive e, em alguns casos, até mesmo se fortalece, apesarde todo esse instrumental dominador. A sobrevivência da culturapopular demonstra que a sabedoria e a filosofia do povo cria notá-veis formas de resistência à manipulação e à destruição. Os gruposdominantes nem sempre conseguem perceber ou controlar tais me-canismos de resistência e de sobrevivência.

Se quisermos entender a luta dos pobres e, conscientemente,decidir por eles, devemos superar a análise meramente econômicae apreender o significado mais profundo de suas expressões, suamaneira de pensar e seus pontos de vista para interpretarmos cor-retamente o que fazem. Por certo, não vamos examinar os pobresa partir do ponto de vista dos dominadores, mas da perspectivadeles mesmos. Precisaremos da capacidade de ler sua linguagem esímbolos nos seus próprios termos, e do esforço para compreendera sua maneira de raciocinar e a dinâmica de suas organizaçõessociais.

Não se trata, pois, de tarefa fácil. É, na verdade, quase impos-sível para os grupos dominadores. Em geral, a cultura popular é

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desqualificada mediante atitudes simplistas ou tendenciosas e inter-pretações ideologicamente comprometidas, jogando-a a posições in-feriores de modo a justificar e a legitimizar os instrumentos ideoló-gicos dos dominadores utilizados para manipular e alienar a culturapopular em favor de seus próprios interesses. Esses mecanismosacham-se presentes em diferentes esferas da vida, como os meiosde comunicação de massa e os incentivos às atitudes em favor doconsumo.

São inúmeros os modos de expressão da cultura popular. Refe-rem-se a todos os aspectos da vida dos pobres. Podem ser encon-trados nos lugares de trabalho, na arte, nas festas, na vida familiar,nas casas, na alimentação, na educação das crianças, no vestuário,nos ornamentos e especialmente em suas expressões religiosas. Porcausa do interesse principal deste livro, vamos nos limitar ao examede alguns elementos necessários para a interpretação da religiosi-dade popular. Embora as forças criadoras e sustentadoras da injus-tiça sejam muito fortes, a História nos ensina que a mudança socialé possível e que a justiça social tem sido alcançada progressiva-mente em muitas partes do mundç nos últimos dois séculos. Ostrabalhadores de indústria e os camponeses vivem muito melhorhoje do que no século passado, no mundo ocidental. Da mesmaforma, pode-se dizer que em alguns países da Ásia, África, e doCaribe, o povo lutou e continua a lutar para vencer a pobreza. Emoutras palavras, buscam maior justiça e liberdade em condiçõesde luta que lhes seriam impossíveis há algumas décadas.

A cultura dos pobres indica a situação de privação de vidae a condição de subordinação social em que vivem. Tudo isso sereflete em seus hábitos e costumes, nas tradições e valores, nossentimentos sociais, e em suas expressões sociais, econômicas eideológicas. O mesmo acontece com a religião do povo: 1 não escapadas estruturas sociais e econômicas que caracterizam a existênciada pobreza. Deve-se levar em consideração a relação entre as con-dições materiais de vida e sua expressão ideológica. Tanto a culturacomo a religião ~videnciam a submissão e a resistência dos pobres,ao mesmo tempo, a situação em que vivem e os elementos que acausam. Porisso, examinaremos a realidade da religião popular e dacultura do povo, não da perspectiva da dominação mas do esforçopersistente dos pobres por eqüidade e libertação. Reage-se atual-mente contra o difundido sentimento que se volta para esses fenô-menos apenas em seu aspecto folclórico ou para lhes admirar as ca-racterísticas estéticas. 2 Com o resultado de observações mais acura-da dessas expressões da vida do povo, aspectos mais significativose mais profundos tornaram-se visíveis, demonstrando, assim, como.eram sem base e superficiais as conclusões da maioria dos estudos

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mais antigos sobre o assunto. A Igreja, também, tão seriamenteconfrontada por problemas desse tipo, especialmente nos paísesdo terceiro mundo, precisa superar essa atitude demasiadamentesimplificada, guiada por premissas elitistas de uma ideologia dedominação que condena essas expressões do povo, classificando-asde manifestações de grupos inferiores e atrasados.

Sem adotarmos atitude ingênua ou idealista, convém indicarsumariamente alguns aspectos da cultura e da religiosidade popu-lares que, em geral, ocorrem.

Vale a pena observar que estamos conscientes da precariedade,e do risco duplo que se corre, ao entrarmos em generalizações ouao chegarmos a conclusões sobre fenômenos sociais, presentes naspróprias raizes da vida dos povos com diferentes histórias e siste-mas, tendo suas bases e significado em conjuntos culturais que nãoentendemos completamente e nos quais não participamos.

Alguns elementos positivos das religiões populares

1. Na busca de respostas significativas aos vários níveis denecessidades na prática social, as pessoas erigiram sistemas coeren-tes de símbolos e de práticas concretas capazes de lhes dar signifi-cado profundo à vida de sofrimento e de conquistas. Esses sistemasexpressam com muita profundidade momentos de luta e de liber-tação. Prendem-se à visão de mundo existente, inerente ao cursohistórico seguido por sua formação. Essas formas de força e orga-nização populares não podem ser simplesmente desprezadas oumudadas, como por um ato de magia, por outras concepções de vida.Os valores do povo são importantes componentes de sua própriavida. Destruí-Ias significa violência e morte. O senso comum dopovo faz parte de sua visão de mundo e está presente em suasformas religiosas. 3

2. Uma importante característica da sensibilidade religiosapopular, muito comum, por exemplo, na África e na América La-tina, é a sua íntima conexão com os aspectos dinâmicos da vida. Nãose trata apenas de uma preocupação pela vida individual mas portodos os elementos dinâmicos do processo natural e social em quea vida se envolve. Na religiosidade africana e em boa parte dareligiosidade da América Latina, os elementos religiosos ligam-sea práticas comunitárias bastante concretas, como a colheita, a pesca,a caça, a guerra, a escolha dos chefes, e assim por diante." Nãose cultuam algumas relíquias separadas dos aspectos materiais davida, mas, bem ao contrário, têm força e sentido essas práticasporque estão no centro de interesses vitais da existência da co-munidade."

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Gramsci afirma que, talvez, sejam essas as característicasprincipais da religião do povo; é materialista e concreta, muitodiferente, pois, das especulações idealistas e abstratas de algunspensadores religiosos. u

3. Sendo assim, as expressões do culto religioso exigem intensaparticipação prática. Não há espectadores meramente passivos. Acomunidade inteira faz parte da expressão religiosa porque lhesé claramente significativa. Não se trata de opções individuais, masde algo construído em comum. Este aspecto, o rico sentido decomunidade, deixa, em geral, perplexos os defensores do indivi-dualismo religioso que não podem entender quão profundamentesocial é a criação dessas práticas religiosas.

4. Naturalmente, essas expressões exigem- meios bem con-cretos de representação. O pensamento do povo manifesta-se pormeio de exemplos concretos ligados à sua própria vida. Alimento,roupas. bebidas, animais, ornamentos, o sol, a lua, são todos ele-mentos presentes em seu culto; são oferecidos a Deus ou repre-sentam a divindade. A religião não se separa da vida; é impor-tante componente do processo social, não estranha à ele. Noscultos de Umbanda, que tanto cresceram nos últimos anos no Bra-sil, as entidades religiosas descem à terra, encarnarn-se nos cren-tes, que se deixam concretamente possuir por elas, de tal maneiraque assumem suas atitudes e feitos, nos seus próprios corpos. sTrata-se de uma religião onde o senso da encarnação não se re-duziu a mera expressão ideal mas se acredita que o Deus verda-deiro vem e fica com os adoradores.

5. Alguns dos estudos mais sérios de sensibilidade religiosapopular têm destacado recentemente importante elemento: o sensodinâmico de processo. Essa religiosidade não é estática nem secompleta e exaure no presente. Seu íntimo contacto com os fatosconcretos da vida não suprime o senso de processo. Até poderiaser comparado scorn o conceito bíblico de "peregrinação"." Nemse pode reduzi-lo a mero culto do passado ou a manifestaçõesculturais nostálgicas. Sua maneira de ver as coisas Ieva em contaimportantes elementos presentes na vida dos pobres que não po-dem ser justificados simplesmente por fatos observados no mo-mento. A religiosidade popular constrói a ponte necessária paraligar o povo com o passado por meio de seus heróis, seus mortose sua gente. Reconstrói sua história com elementos diferentes dosempregados pelo pensamento ocidental. No entanto, a conexãonão é apenas com o passado mas também com o futuro. E essefuturo apare1ce em imagens muito materiais - lugares com ali-mentação, água, casas e brinquedos; não haverá aí guerra nem

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luta, e todos os povos habitarão felizes sem quaisquer sofri-mentes."

6. O senso de solidariedade e da importância dos elementoscomunais no sentimento e nos cultos populares acabam num con-ceito de salvação e de liberdade muito difícil para a compreensãoe interpretação de certos setores da teologia cristã. Os sacrifícios,a liturgia, as oferendas, em resumo, todas as manifestações da re-ligião relacionam-se com preocupações coletivas e comunitárias.Busca-se a libertação da nação, da tribo, e do povo. Dificilmentese pensa em libertação individual. O senso de salvação é coletivo.Deus salva e protege seu povo. Deus abençoa a colheita, a pesca,a caça, as batalhas, coisas do interesse de todos. Não cuida nemprotege indivíduos isoladamente.

7. Outra perspectiva positiva na religião popular é o conceitode totalidade que envolve. 11 Não se separam artificialmente oselementos essenciais - há íntima relação entre Deus, natureza ehumanidade.

Bosques, água, mar, estrelas, animais, crianças, idosos, tra-balho, festividades etc., são partes integrantes de um único uni-verso. Não são elementos antagônicos entre si, mas complemen-tares; fazem parte da mesma realidade, sintetizada pela visãoreligiosa.

Alguns usos negativos das religiões populares1. As organizações sociais nas quais os elementos das reli-

giões populares adquiriram forma não foram imunes ao processode industrialização, à tecnologia, à modernização social e às novasformas de estruturação social.

As estruturas de poder têm usado os elementos da religião po-pular para preservar seus privilégios bem como os mecanismos queos mantêm. Impedem que o povo entenda que, nas presentes cir-cunstâncias, suas lutas requerem instrumentos diferentes e que ostermos explanatórios usados em relação aos atuais problemas di-ficilmente se encontram na religião. Desse modo, utilizam-se im-portantes elementos da cultura e da religião com a finalidade dese manter situações de privilégio (as castas no Nepal e na India Jj2),

sugerindo-se explicações religiosas para problemas econômicos esociais (pobreza, doença, mortes 13), apoiando os que estão no po-der (gente chamada por Deus), transformando-se a religião popu-lar em poderoso fator de alienação, com a perda de sua forçade resistência e de unidade." Os meios modernos de publicidadee de comunicação social são eficientes armas para a manipulaçãodos valores populares.

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.••....

2. O controle dos meios de socialização pelos grupos domi-nantes conseguiu introduzir na cultura popular os elementos ideoló-gicos de sua classe. Muitas instituições sociais têm servido comoaparelhos para propagar a ideologia dominante como, por exemplo,a escola, a família e as igrejas." O poder de interiorização que pos-suem esses instrumentos não deveriam ser ou subestimados ou exa-gerados. É sempre bom estarmos conscientes de que o povo tem emantém a sua própria sabedoria e que pode muito bem escaparde pontos de vista que não fazem parte de sua experiência.

Não se pode, contudo, pensar hoje em dia em religião popu-lar pura, isenta de qualquer presença de ideologia de classe, comose a religião fosse imune a esse tipo de infiltração. Vale a penarecordarmos o que disse Henri Mottu em seu artigo, "Crítica teo-lógica da religião popular", baseado nas proposições de Gramsci:

Recentes pesquisas sobre pentecostalismo, metodismo, movi-mentos carismáticos de reavivamento, entre outros, mostram quenão há, por assim dizer, ligação mecânica ou "afinidade eletiva"entre esses movimentos e as classes mais baixas da sociedade. Pelocontrário, a "religião popular" só é- popular na aparência ou, pelomenos, em seu primeiro estágio histórico. Não existe em estadopuro. Tão logo comece a existir, percebe-se logo que é o tipo reli-gioso ideal, não das classes mais baixas, mas das classes interme-diárias, principalmente das que vieram da petite bourgeoisie (clas-se média), ameaçadas de proletarização, jogadas de lado, tradicio-nais política e socialmente, nesse estado de ainda não possuir nemde ter já perdido as oportunidades de melhoramento sócio-pro-físsíonal."

3. Com a infiltração e a dominação do sistema capitalista,principalmente pelo mundo ocidental em relação aos países sub-desenvolvidos, todos os elementos da sociedade passaram a servistos como objetos de consumo e lucro. A "lei do mercado" tam-bém afetou as expressões do sentimento religioso popular que veioa ser comercializado e explorado. Tudo aí se tornou objeto de ex-ploração: os valores do povo, os atos religiosos, a adoração, as fes-tividades, e até mesmo os seus sofrimentos. Na América Latina,líderes religiosos ficaram ricos por meio da "indústria" da curadivina. Criaram-se empresas rendosas para fabricar e vender obje-tos de piedade popular e se organizaram peregrinações, festivaise cerimônias religiosas destinadas aos turistas com propósitos eco-nômícos." Muitas organizações religiosas tradicionais usaram essesvalores populares para a obtenção de vantagens econômicas e,assim, alienar o pOVO.18

4. Recentemente, especialmente em países africanos, as na-

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ções colonizadoras ou seus representantes têm usado com freqüên-cia os valores da cultura popular para semear divisão no meio dopovo. Desse modo, falsificam-se os valores nacionais e o naciona-lismo é exacerbado para criar disputas entre diferentes tribos edividir as forças da libertação. Os sinais do poder da cultura po-pular com seu potencial libertador são manipulados para possibi-litar a continuação da dominação e da injustiça. Essa estratégiabem conhecida baseia-se no aproveitamento dos sentimentos maisprofundos do povo em favor da injustiça."

A apropriação e a perversão dos valores e das expressões po-pulares, religiosas ou não, pelas estruturas do poder ou pelos se-tores mais privilegiados da sociedade não se restringem ao Ter-ceiro Mundo, mas podem ser também encontradas na Europa ena América do Norte. São inúmeros os exemplos desse tipo demanipulação dos valores culturais, não escapando dessa trama nemmesmo as igrejas cristãs.

Além desse uso e da distorção de elementos populares ex-pressivos de outras religiões, as festas cristãs, tão valorizadas porsetores afluentes da sociedade, são instrumentalizadas para a pro-moção do consumo de produtos comerciais. Estão em jogo, aí,naturalmente, interesses de poderosos grupos econômicos, com suasmensagens alienadoras.

Outro exemplo é o uso que fazem os setores dominantes dasociedade norte-americana das canções de libertação dos negros,como se fossem meras expressões artísticas de cunho sentimental eindividualista, sem qualquer referência ao sentido original. Oblite-ra-se, dessa maneira, o significado que tinham, de manifestaçõesde luta popular coletiva. .

o cristianismo e a religião popular

Além do cristianismo, outros movimentos religiosos prestaram-se também à manipulação ideológica e à desvalorização da culturae da religião popular. Entretanto, por causa do caráter específicodeste livro, não podemos nos demorar no exame desses outros cultos.

A chegada do cristianismo na África, nas Américas e na Ásiaesteve sempre relacionada com a expansão do sistema colonial. Por-tanto, não se tratava da mera introdução de novas expressões defé ou de idéias religiosas.

Conscientemente ou não, introduzia-se nova visão de mundoe novo estilo de vida. Não foi por acaso que a chegada do cris-tianismo se fez acompanhar pela fundação de inúmeras escolas ede outras formas de penetração ideológica." Esse processo transfor-mou não só concepções religiosas, consideradas pagãs e atrasadas,mas também costumes e organização social. Como se o modelo a

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ser seguido deveria ser da sociedade de onde se tinham originadoos representantes do cristianismo. Em conseqüência, os valores po-pulares foram, certamente, desprezados. A música do povo, as tra-dições e os cultos populares, foram considerados inferiores, en-quanto produtos de tradições que não conheciam "o verdadeirosentido da vida". Em muitos casos, eram considerados expressõesdo pecado e até mesmo manifestações do diabo." Em muitos paíseshouve confrontações violentas em que aspectos da cultura popularacabaram sendo destruídos" A música do povo foi substituída porhinos ocidentais, o vestuário local era tido como inadequado, e atémesmo as línguas nacionais tiveram que ser substituídas por lín-guas ocidentais." O antigo culto, musical, colorido, alegre, parti-cipante, foi substituido por liturgias assépticas, demasiadamenteexigentes, racionais, extremamente organizadas e verticais. A pala-vra, na forma do sermão, tornou-se o centro da liturgia, e a partici-pação da congregação perdeu o dinamismo da tradição popular.Formaram-se elites nacionais que receberam certos privilégios ao seassociarem mais de perto aos missionários, adquirindo prestígio edistanciando-se pouco a pouco do resto do povo. Seus filhos eramenviados para estudar no exterior. Muitos desses vieram a ser ins-trumentos efetivos de dominação posto que a linguagem dos colo-nizadores quase sempre dominava sobre as outras. Em alguns casosé necessário qualificar tais declarações. Nem sempre a ideologia dadominação com todos os seus efeitos era muito clara para certosindivíduos ou grupos sociais de destaque. Muitos destes, tomadospelo sincero desejo de praticar o bem (como o concebiam), não per-cebiam a natureza do processo do qual eram parte. Muitos atémesmo sacrificaram as vidas, devotando-se à melhoria individualdos pobres, e deram provas de renúncia. Não conseguiram entendero pleno significado de sua missão e o fato de estarem a serviçode uma política agressiva de colonização com propósitos puramenteeconômicos e políticos."

Outro importante elemento foi a substituição dos conceitos re-ligiosos populares por conceitos até então desconhecidos. Como jávimos, a religião popular tem feições bem marcadas de materiali-dade, solidariedade comunitária, participação prática, uso de sensocomum, conceito efetivo de encarnação, e conceito integral da vidaque inclui Deus, natureza e seres humanos. A maioria das organi-zações missionários substituiram esse modelo por uma religião éticae abstrata; ressaltaram o indivíduo (salvação como opção pessoal),acentuaram a vida depois da morte, deram grande importância àalma (seu slogan: "ganhar almas para Cristo"), separaram a ma-téria do espírito, promoveram a racionalidade e a ordem segundoseus próprios modelos, consideraram as alegrias das festas popu-

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lares como manifestações do "mundo e da carne", separaram aigreja da sociedade, retiraram os crentes de suas verdadeiras co-munidades e, por fim, afastaram os membros da igreja das lutasde seu pOVO?5 Houve, porém, outros grupos cristãos que não che-garam a rejeitar completamente os valores populares e permitiramque se expressassem em seu próprio mundo, de tal modo que aca-baram servindo ao seu projeto religioso."

Hoje em dia essas atitudes estão sendo criticadas e até mesmoreconsideradas. Alguns setores da igreja percebem a natureza equi-vocada da mera rejeição dos valores e da cultura populares. Oconfronto e a destruição dessa religião e cultura não parecem neces-sários, nem representam ponto de vista verdadeiramente cristão."Os estragos perpetrados contra populações da América Latina, bemcomo os esforços para substituir valores e práticas religiosas entreas populações da África e da Ásia, são vistos hoje como desviosdo espírito missionário presente no Evangelho. Não é possível iden-tificar Deus ou classificar suas manifestações segundo nossos pró-prios critérios. O Espírito Santo possui a mais completa liberdadeprincipalmente em face das mistificações dos grupos dominantes."Deus não pode ser aprisionado em nossos modelos nem nos pará-metros da cultura ocidental. A atitude que considera os valores dopovo inferiores tem afastado os pobres de certas igrejas cristãs, com-prometendo-as com. interesses e valores dos grupos dominantes.

Sente-se que hoje em dia, na formação teológica e sociológicade pastores e líderes de igrejas, não há compreensão do valor, daforça e das características da religião e da cultura do povo. Emgeral, não são estudados. Pior ainda, quando estudados, são exami-nados a partir da perspectiva dos setores dominantes da sociedade.Esses pastores acham difícil perceber na cultura do povo sinaismanifestos de libertação e resistência. Não entendem que o Espíritode Deus e sua mensagem de libertação estejam também presentesnessas práticas religiosas." Não se trata de perceber "a má cons-ciência" nem de buscar recompensas em face dos séculos de ex-ploração e domínio de nossa parte. Quando percebemos que nossaformação religiosa está impregnada de ideologia e que nossa leiturado Evangelho se deixa influenciar por nossa posição na vida e pelaclasse social ou estrato ao qual pertencemos, somos levados a con-fessar nossos pecados e a nos revestir de humildade.

Nos assim chamados países desenvolvidos, nota-se certa hosti-lidade à religião popular. A História ocidental dá inúmeros exem-plos. Basta lembrarmos as Cruzadas, a Inquisição e a discrimina-ção racial nos Estados Unidos. É um problema que nos desafia atodos."

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Mencionaremos apenas um outro aspecto dessa questão. Tra-ta-se do complexo fenômeno do assim chamado sincretismo reli-gioso e do desafio que representa à fé cristã."

O perigo da idealização da religião popular

Observamos, neste capítulo, que não é possível ver no fenômenoreligioso apenas manifestações puras e ideais, de elementos unica-mente libertadores. Seria uma visão demasiadamente simplista, in-gênua e irresponsável.

Os valores da religião popular aparecem em certos momentoshistóricos, de forma concreta, como frutos de certos tipos de rela-cionamento social. Ajudam a legitimar organizações sociais espe-cíficas e são aceitos e interiorizados como significativos para essesmomentos históricos. Sendo produtos sociais participados e cons-truídos por todo o povo como instrumentos significativos e liberta-dores, são também fortes e importantes.

Ao mesmo tempo, precisamos entender que há vasta distânciahistórica entre suas origens e o momento presente. Esses valorese essas práticas sociais tiveram seüs altos e baixos e enfrentarampoderosos movimentos de dominação até hoje.

Esses valores culturais foram também influenciados por outrasestruturas sociais, algumas completamente autoritárias e opressivas,que modificaram em parte sua força libertadora original." Assim,não devemos adotar um ponto de vista idealista sobre a religiãopopular e afirmar que tudo o que o povo diz é bom, que a religiãopopular simboliza sempre a libertação, ou que a cultura do povoestá livre das tendências à dominação. Em lugar disso, precisamosde uma atitude mais histórica, mais política e mais realista.

O potencial político da religião popular

A Igreja e os cientistas sociais admiram-se com a capacidadedemonstrada pelq religião popular para sobreviver e até mesmo paracrescer. Apesar de sofrer ataques, apesar do avanço da tecnologiae dos meios de comunicação de massa, ela persiste e revive, mesmoem condições desfavoráveis. Em que consiste a força desses movi-mentos dos fracos e dos pobres?

Existe aí, sem dúvida, reservas significativas de resistência ede esperança que não podem ser destruidas pelo domínio colonia-lista, pelo processo de secularização das elites iluminadas nem pelacultura de consumo do capitalismo. Vê-se aí o inestimável valorda presença evangélica dos pobres."

A religião popular constitui importante expressão ideológicada visão de mundo dos pobres; é um modo de resistência diante da

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lógica da "lei do mercado". Expressa a "sabedoria" desenvolvidapelos próprios povos e possui incalculável força oriunda do povo,baseada em valores de grande significado na luta pela sobrevivência.

Desprezar essas formas de organização popular, consideran-do-as expressões de inferioridade, ou utilizá-Ias para a manutençãodo poder, denota tanto a falha em compreender sua importânciae a mentalidade elitista decadente e imperialista.

Comparação entre os recursos de saúde e educação existentesnos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, 1974

mmrrm Números nacionais mais altosc=1 Média nos países desenvolvidos_ Média nos países em vias de desenvolvimento

D"p,,~,111111111111111111111111111111: 111111111111111111111111111111111111 D 486

com educaçao ')')0

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crianças em I '>7

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Adultosalfabetizados ~ •••••••••• :;~ ----J

(percentagens) • 49

11111 1II1IIIfillllllllfllllllllifilifllilllllllllllllllillllll i 1111111111111410~astos, C?m 1'"1111111111111111111111;"11111111111111111111111111111111111111111111111

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Médicos (por 111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111 28populaçoes . I 10de 10.000) t-------------..I

Expectativa I'" "" 111"""" '111"""""" 111'111"111'" 111""'" 111" "111:'" ,de Vida 70

ao nascer(em anos) 56

• Entre cinco e dezeríove anos de idade.

80

Participação relativa de recursos e gastos dos paísesdesenvolvidos e dos países em vias de desenvolvimento(percentagens)A distêncte entre os países desenvolvidos e os em via de desenvolvi-mento permanece substancial no que diz respeito aos recursos humanose de capítal. Os países em vias de desenvolvimento _ com cerca de72% da população do mundo - possuem apenas 20% do PN8, 27% dosganhos de exportação mundiet, e 7% dos gastos mundiais com a saúdepública. Em contraste, os países desenvolvidos - com um quarto da po-pulação mundial - gastam 87% com saúde pública, do total mundial, erecebem 80% da renda mundial.

Países em vias de desenvolvimento1 1

População(1976)

Ganhos comexportação

(1976)

Reservasinternacionais

(dezembrode 1977)

Despesasmilitares

(1976)

Gastos comeducação

pública (1974)

Gastos comsaúde

pública (1974)

Países desenvolvidosL I

72:% I 28% I20!J6 I - 8a% I21% 1 73% I

III I I43% 57%

23% I 77% I'"

13% I 87% I7~1 93% J

PNB(1976)

NOTAS: População mundial, 4 bilhões; PNB mundial. $6.7 trilhões; ganhos mundiais comexportação. $1.014.1 bilhões; reservas internacionais mundiais. $316.2 bilhões; gastos mili-tares mundiais. 5398.9 bilhões; gastos mundiais com educação, 5271.0 bilhões: com saúde.5156.5 bilhões .

81

Page 43: A Igreja Dos Pobres - Julio de Santa Ana

ftI I':: I . ~Distribuição da renda em alguns países em vias der-- o r l~a> •.. desenvolvimento e outros desenvolvidos (percentagens).•.. c:

Ó aio I/) EftI o <ti ._a> C! 'S; .:: Participação na renda nacional.•.. .- E ~ti .. li> de grupos populacionaiso ai c: oo C- ai '"

o-o r-, Mais pobres"'C I/) I/) ~ 'S;m (» Mais ricos 2.° 3.° 4.°

ai ai ai -> •.. 1/)-0 Õ 20% 20% 20% 20% 20%O Õ 'iã ai > Países em viasE a..-o c:> ai de desenvolvimentoc I/)Q) ai aiUI

-e -o Argentina (1961) 52.0 17.6 13.1 10.3 7.0Q) ." I/) '" Equador (1970) 73.5 14.5 5.6 3.9 2.5"'C 'ü .•. ai m '"C ~ I/) (»

UI 'ai - Egito (1964-65) 47.0 23.5 15.5 9.8 4.2O <ti'::l e,

lndia (1963-64)Q) C' 52.0 19.0 13.0 11.0 5.0~O LI- Quênia (1969) 68.0 13.5 8.5 6.2 3.8.•..

c Coréia, Rep. da (1970) 45.0 22.0 15.0 11.0 7.0Q)

E m o México (1969) 64.0 16.0 9.5 6.5 4.0se'S; '" o '" ~ '"(»

'" cv - - Sri Lanca (1969-70) 46.0 20.5 16.5 11.0 6.0O Tanzânia (1967) 57.0 17.0 12.0 9.0 5.0>cQ)UIQ) Países desenvolvidos"'C

Q) Austrália (1967-68) 38.7 23.4 17.8 13.5 6.6"'C

UI França (1962) 53.7 22.8 14.0 7.6 1.9CII Alemanha Oriental (1970) 30.7 23.3 19.8 15.8 10.4'S;E Alemanha Ocidental (1970) 45.6 22.5 15.6 10.4 5.9

'" Hungria (1967) 33.5 23.5 19.0 15.5 8.5Q)..,o

UI.,; '"., r-, Japão (1968) 43.8 23.4· 16.8 11.3 4.6

Q)

.{\ l§UI Suécia (1970) 42.5 24.6 17.6 9.9 5.4'jijc.. Reino Unido (1968) 39.2 23.8 18.2 12.8 6.0UI Estados Unidos (1970) 38.8 24.1 17.4 13.0 6.7O <ti .-.- >Q) >-o,.. E >.•..c ai c:

11)Q) I/) I/)

"\I ~NOTAS: Os dados de distribuição de renda são incompletos e deficientes, exigindo certa

UI ai ai cautela nas comparações entre países. Qualquer distribuição equítatlva da renda nacionalCII .!!! -o deveria mostrar para cada grupo o equivalente a 20% da renda do país.

<ti "CJ a..-o ~C FONTE: Montek S. Ahluwalia, "Inequalttv, Poverty and Development", Journal of Develop-(CII.•.. - ment Economics 3 (1976).UI ..

"'C aie, '\ ;wUI

I IOs quatro gráficos aqui reproduzidos foram tirados de The United StatesCII

"'CI/) and World Developrnent: Agenda 1979, por Martin McLaughlin e o pessoal

UI aiCII I/) do Overseas Developrnent Council, New York , Praeger Publishers, 1979.:2 'Cija.."'C

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Page 44: A Igreja Dos Pobres - Julio de Santa Ana

NOTAS1. Entendemos religião no sentido de P. Bourdien: "Um meio simbólico,

ao mesmo tempo estruturado e estruturante, na medida em que con-diciona a possibilidade de concordância sobre o significado dos signose o significado do mundo". "Genêse et structure du champ religieux",Revue [rançaise de sociologie, XlI, 1971, p. 295 e 296. François Houtart,comentando essa definição em Religion and ldeology in Sri Lanka,p. 7, acha que é necessário "acrescentar mais um elemento afirmandoque a religião é um meio simbólico que se refere a forças sobrenaturais,personificadas ou não": St. Peter's Seminary, Bangalore, TPI, 1974.

2. O ponto de partida do atual interesse pela religião popular relaciona-secom o ponto de vista de Max Weber de que a religião contribui simul-taneamente para a legitimação do poder dos grupos privilegiados e aomesmo tempo à subserviência dos pobres, prometendo-Ihes melhorescondições depois da morte como recompensa pela presente vida. CL Thesociology of religion, p. 80-118. Boston, Beacon Préss, 1963. O fato deque os desprivilegiados aceitam as idéias religiosas oficiais, por umlado, enquanto, por outro, corrigem essas idéias segundo seus própriosinteresses, tem desafiado sociólogos e teólogos a aperfeiçoar suas pes-quisas n? campo da religião popular.

3. Henri Mottu sublinhou a importância do senso comum entre as carac-terísticas essenciais da religião popular. CL "Theologische Kritik derReligion und Religion des Volkes", em Ein Bonhoeiier-Simposium, ed.Hans Pfeifer, p. 75-78. Munich, Chr. Kaiser, 1976. Este conceito é desen-volvido a contento nos Quaderni del Carcere, 11, de Gramsci p. 1045,1396 e 1397, 1401, 1410 etc., Torino, Einaudi, 1975.

4. John Mbiti, lntroduction to alrican religion, p. 19-30. New York, Praeger,1975. Cf. também E. Belaji Iderni, African traditional religion, p. 165-173. Londres, SCM Press Ltd., 1973.

S. A comunidade tem raízes no passado. O papel da memória dos ances-trais é particularmente importante para a coesão da comunidade. Comodiz E. Belaji Iderni, op. cit., p. 185: "Os ancestrais são fator de coesãona sociedade africana. Este fato é bem ilustrado pelos instrumentossagrados que são os antigos símbolos dos Ashanti, especialmente oTrono Dourado... Fazem parte do caráter da nação dando-lhe umsenso de coesão".

6. Cf. Henri Mottu, op. cit., p. 74 e 75.7. G. van der Leeuw observa em La religion dans son essence et ses mani-

[estations, p. 187: "Em relação ao poder, a vida humana não é pri-meiramente individual, mas comunitária. .. É a vida simplificada e re-duzida a suas feições essenciais, vida vivida por todos ... " Paris, Payot,1955.

8. CL Alfred Métraux, Vodei. Buenos Aires, Ed. Sur, 1963. Cf. tambémCândido Procópio de Camargo, Aspectos sociológicos dei espiritismoen São Paulo. Friburgo e Bogotá, Ed. Feres, 1961, Roger Bastide, Les reli-gions airicaines au Brésil, p. 412-414. Paris, Ed. PUF, 1960. Van derLeeuw, em outro contexto, fala da possessão de modo semelhante emop. cit., p. 282 e 283.

9. Marcelo Pinto Carvalheira, bispo de Paraíba, Brasil "A caminhada dopovo de Deus na América Latina •.•, Revista Eclesiástica Brasileira. vol.38, fasc. 150, 1978, p. 300-309.

10. G. van der Leeuw,.op. cit., p. 313 e 314, e especialmente 320 e 312.

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11. H. H. Presler, Primitive religions in ndia, p. 301: "A religião primitivn(popular) é a religião da natureza. Ieriva sua verdade dos fatos da nll.

tureza biológica; sua certeza confirm-se pelo mistério da natureza; suaabsolvição se realiza no seu envolvÍlento com a natureza". Bangalorc,Christian Literature Society, 1971.

12. Christoph von Fürer-Haimendorf, Ceie and Kin in Nepal, lndia andCeylon, p. 22 e 23. Bombaim, Asia Pblishing House, 1966. Cf. tambémsobre Sri Lanca, François Houtart, ip. cit., p. 197-200; 320-328; 347-351 etc.

13. Iohn Mbiti, op. cit., p. 110-125.14. François Houtart, op. cit., p. 487: "is necessidades funcionais experi-

mentadas na vida social, particularmnte a de justificar o poder, exer-cerá igualmente influência na rnanein como os ritos religiosos são or-ganizados e realizados",

15. Cf. o que Paulo Freíre diz sobre "ranipulação" e "invasão cultural"em Pedagogia do Oprimido.

16. Henri Mottu, op. cito17. Alfred Métraux, em op, cit., p. 11 e 1~reconhece como o Vodu é usado

com propósitos comerciais. O mesmc acontece em outros cultos afro-brasileiros.

18. O caso melhor conhecido na AméricaLatina é "Pátria, Familia y Pro-priedad". Cf. Jaime Rojas e Fraríz Vandeschueren, Chiesa e GolpeCileno. Torino, Claudiana, 1975.

19. François Houtart, op. cit., p. 475: "Erender a casta como fato naturaltalvez a legitime mas não a explica. , aí que o sistema religioso sim-bólico entra em ação. Ao tornar cOlpreensível a origem natural daposição social (função social da lei di Karma no sistema budista), ex-plica a ordem social. Além disso, a transformar simbolicamente aescala social em escala moral, permance como garantia do poder. Esserecurso à religião, isto é, a um refernte sobrenatural que supre umasanção ipso facto, parece ser condiçã necessária para a transferênciado social para o natural. O objeto dest transferência pode ser a origemda localização social de um grupo ou Ia posição de poder de um indi-víduo. Em qualquer dos casos, essa iecessidade será sentida sempreque a institucionalização tiver levadoos atores sociais a se esquecerde que suas estruturas sociais foram feas pelos homens."

20. Cf. em Julio de Santa Ana (ed.), Separtion without hope?, os capítulosescritos por C. I. Itty, "The Church nd the Poor in Asian History",p. 137-154; e por Samuel Kobia, "TheChristian Mission and the Afri-can Peoples in the 19th Century", p. 55-170. Genebra, WCC, 1978.

21. Por exemplo, Victor E. W. Hayward,relatando sobre a consulta doConselho Mundial de Igrejas realízad, em Mindolo, em setembro de1962, sobre movimentos eclesiásticos irlependentes na Africa, escreveuem relação ao problema da monogarm na Africa: "Os membros daconsulta tinham certeza de que a moogamia era o ideal cristão ...Concordavam em geral que a insistêr:ia dos primeiros missionáriosde que os homens casados segundo os jincípios da poligamia deveriam,agora, abandonar todas as esposas e fice com apenas uma, não demons-trara uma atitude verdadeiramente criã para com as mulheres aban-donadas nem para com os filhos dela A preocupação fundamental-mente deveria ter sido, e ainda dever. ser, pelos valores pessoais deuma vida familiar cristã estável, baseaa em amor e respeito mútuos.As igrejas independentes têm repetidarente (e com razão) acusado as

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igrejas mais antigas de hipocrisia neste assunto... O cristianismo temsido, assim, pregado na África, mas também em outros lugares, maisem termos de Lei do que de Evangelho; como um fardo a ser carre-gado e não como um poder libertador e doador de vida". Ajricanlndependent Church Movements, p. 10 e 11. Londres, Edinburgh House,1963.

22. Frei Bartolomé de Ias Casas, bispo espanhol no começo do processo decolonização na América Central e no Peru opôs-se a essa tentativa. CLAndré Castaldo, "Les questions péruviennes de Bartolomé de Ias Casas(1564)"', Foi et Vie, 77.° ano, n. 1-2, janeiro-abril 1978, p. 65-124. Tam-bém Enrique Dussel, História de ia lglesia en América Latina, p. 92-99.Barcelona, Nova Terra, 1974.

23. Guinea-Bissau, reinventing education, p. 19. Genebra, Institut d'Actionculturelle, 1977.

24. C. 1. Itty na op, cit., p. 141, observa corretamente que alguns missio-nários viam a luta pela independência dos índios como dever cristão:"Em geral, os missionários não entendiam dessa maneira. Continuavama ser fiéis defensores do governo britânico e críticos do movimento deindependência" .

25. CL P. D. Devanandan, The gospei and renascent hinduism, p. 23 e 24,que reage fortemente contra esse dualismo. Londres, SCM Press Ltd.,1959.

26. Ver D. T. Niles, Upon lhe earth, p. 139 e seguintes. Londres, Lutter-worth Press, 1962.

27. Felizmente, graças aos estudos da sub-unidade do Conselho Mundialde Igrejas sobre diálogo com povos de outras crenças e ideologias,começa a se desenvolver nova atitude. Cf. Stanley J. Samartha (ed.),Towards world community. Genebra, WCC, 1975.

28. CL [ürgen Moltmann, The church iri the power 01 lhe Spirit, p. 239.Londres, SCM Press Ltd., 1977.

29. Gustavo Gutierrez, La [uerza historica de ios pobres. Lima, Ed. CEP,1978.

30. Foi esta a causa da perseguição, nos últimos tempos da Idade Médiana Europa, dos valdenses, dos pobres da Lombardia, e dos hussitas.CL Amédée Mohiar e Iean Gomet, Les vaudois ao Moyen Age, 2 vols..Torino, Claudiana, 1974.

31. Cf. David M. Paton (ed.), Breaking barriers: Nairobi 1975, p. 75: "Quetipo de comunidade deverão buscar os cristãos? ... a comunidade comgente de outras crenças e convicções, e, num sentido mais amplo, acomunidade de toda a humanidade. Alguns sentem que esse tipo deexperiência deveria se chamar de "ecumenismo mais amplo"... Porenquanto, o termo "ecumênico" deveria talvez ser restringido ao diálogoentre os cristãos, enquanto o diálogo. mais amplo poderia ser chamadode "inter-religioso". "Grand Rapids, Mich., Wm. B. Eerdmans, e Lon-dres, SPCK, 1976. Ver também M. M. Thomas, Towards a theoiogy 01contemporary ecumenism, p. 225-237. Madras e Genebra, Christian Lite-rature Society e WCC, 1978.

32. Foi o que aconteceu com a instituição da monarquia na história deIsrael. Seu papel libertador (cf. Salmo 72) foi abandonado muitas vezes.[erernias criticou Joaquim precisamente por causa desta distorção (cf.[er 22.13-17). Coisas desse tipo voltou a acontecer freqüentementena história das religiões. Embora, de maneira alguma, se justifiquem.

33. Marcelo Pinto Carvalheira, op. cit., p. 309.

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V. Os pobres na igreja

A história da Igreja nos ajuda a entender, além de qualquerdúvida, que sempre os cristãos se preocuparam com os pobres. Nãose precisa provar que grupos particulares de cristãos, crentes indi-viduais e instituições eclesiásticas sempre procuraram dar assistên-cia aos menos favorecidos.' O problema não tem sido a assistência,mas a maneira como essa ajuda se faz, com o paternalismo que,em geral, a acompanha," Tanto os, trabalhadores industriais maispobres durante o século dezenove, os camponeses pobres na maiorparte das sociedades cristãs, como os verdadeiros pobres da África,Ásia, Américas, Oriente Médio e Pacífico, não encontraram jamaisnos círculos cristãos o seu lar espiritual.

Não queremos dizer com isso que não haja pobres nas igrejas.Eles comparecem às celebrações cristãs, e alguns até mesmo par-ticipam na liturgia das igrejas. Há até mesmo os que compartilhamas preocupações religiosas com comunidades cristãs. Entretanto, oproblema para eles não se circunscreve li estar ou não na Igreja,mas em saber se as igrejas representam os pobres, ou, pelo menos,se as igrejas podem se tornar representantes de sua classe, colocan-do-se ao lado da realização de suas aspirações e esperanças.

Naturalmente, não se deve generalizar a respeito dos pobres.Contudo, pode-se dizer, seguindo a mesma linha de pensamentoaté agora desenvolvida, que "os pobres, antes de serem uma classesocial para a Igreja, cujos interesses se opõem aos das outras clas-ses, são principalmente os que não podem se defender e os quesofrem injustiça porque não conseguem alcançar a realização deseus válidos direitos. Isso porque as leis são controladas pelos queestão no poder e as exercem de acordo com seus próprios interesses.Assim, os pobres são "subjugados, rebaixados e humilhados"(anawim) pelos poderosos de modo injusto:'! Pergunta-se, então seas igrejas representam esse tipo de pessoas ou não.

Semelhantemente, faz-se' necessário dizer que nenhuma insti-tuição eclesiástica pode ser analisada como se fora um bloco mono-

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lítico. As igrejas fazem parte da sociedade dividida em classes so-ciais diferentes, arranjadas em diferentes camadas, sacudidas porconflitos e crises, e com diferentes ideologias. Assim, as contradi-ções e tensões da sociedade aparecem também dentro da comuni-dade cristã. Consequentemente, pode-se falar de setores e segmentosdas igrejas possuidoras de pontos de vista particulares, capazes deagir de maneira dominadora nos processos decisórios e influenciarna definição das estruturas da Igreja. Ao mesmo tempo, há outrossetores sociais e segmentos nas organizações eclesiásticas que repre-sentam papéis mais passivos e marginalizados na vida da Igreja."

Questões desafiadoras têm sido colocadas hoje em dia às igre-jas históricas, colocando-as em posições nas quais não é mais pos-sível ignorar os problemas enfrentados. Por exemplo, por que amaior parte dos trabalhadores, da classe proletária, e os pobres,em geral, não aparecem mais nas igrejas? Será, talvez, porque nãoencontram lugar nas estruturas decisórias das congregações cristãslocais? Teria a mensagem cristã perdido o sentido para as vítimasda injustiça e da exploração? Será que os problemas urgentes doescândalo da pobreza e da indigência não conseguiram produzir su-ficiente impacto entre os cristãos e as estruturas eclesiásticas demodo que viessem a se comprometer seriamente com a luta contraas causas dessa escandalosa situação?" 5

Obviamente, essas questões pedem respostas que não podemser dadas em termos simples e que requerem atitudes e decisõesprofundamente radicais. Contudo, o simples fato de que tais ques-tões estão surgindo e a insistência com que aparecem no movi-mento ecumênico, nas igrejas nacionais e até mesmo nas congre-gações locais, são sinais de que as atuais posições e situação daIgreja estão sendo questionadas, e que, portanto, ela deveria seabrir à renovação e ao compromisso de maior fidelidade à açãode Jesus Cristo e ao Espírito de Deus."

A insuficiência das presentes estruturas

Podemos dizer que muitas formas estruturais de instituiçõeseclesiásticas representam, ou tendem a reproduzir, o tipo de estru-tura das sociedades a que pertencem. Algumas foram transplanta-das de centros metropolitanos a regiões colonizadas, e aí impostas.Algumas delas ainda refletem modelos hierárquicos e autoritários.Outras abrem-se apenas a grupos que têm prestígio; espelham avisão de um mundo pequeno burguês, com valores e padrões éticosdas camadas médias da sociedade. Ao mesmo tempo, e em princí-pio, precisam se abrir à participação do povo, como em algumasigrejas da África," Entretanto, em muitos casos sua orientação e

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funcionamento dependem de uma estrutura de poder que se legi-tima na posição econômica e social de seus membros." Explica-se,assim, porque em certas situações as formas litúrgicas e a mensa-gem refletem a postura social das pessoas da classe mais alta, entreos membros da comunidade, correspondendo as questões e aos in-teresses desse setor da sociedade.

Não se trata de afirmação gratuita nem de descrição arbitrá-ria. Basta visitar igrejas estabeleci das , especialmente na Ásia e naAmérica Latina, detectar as camadas sociais de onde vêm seus mem-bros, e procurar entender de que maneira se estruturam e segundoque critérios escolhem as pessoas que ocupam seus órgãos dirigen-tes, para nos darmos conta de que a atual composição de seu go-verno, em geral, não permite a participação ativa e numerosa dospobres que gostariam de emprestar aí a sua contribuição.

Os organismos eclesiásticos especializam-se em produzir essaconhecida respeitabilidade de "classe média". B, assim, justificadaa fama que têm de propagar as tradições, os valores, os pontosde vista e as idéias dos grupos sociais detentores do poder. De quemaneira, pois, participariam efetivamente os pobres em comunida-des cristãs (paróquias e outras) que nada tem a ver com seus pro-blemas? Quando os pobres começam a freqüentar congregaçõeslocais e até mesmo se tornam recipientes de sua caridade, são logoincentivados a adotar os valores da "classe média" dos líderes, eacabam engolidos por sua estrutura dominadora. Na perspectivaindividualista, podem até mesmo adquirir certa mobilidade socialcom o abandono dos interesses e expectativas de outros membrosdo mesmo grupo social a que pertencem."

O escândalo da pobreza no mundo de hoje desafia a Igreja eexige respostas além das simples declarações de princípios e dasreafirmações da fé. Se a causa dos pobres não fôr o centro de aten-ção da Igreja no domínio social, e se a luta pela justiça não lhepreocupar nem afetar profundamente, de que maneira a congrega-ção local poderá" esperar a presença e a participação dos pobresem sua vida? Os grupos cristãos só poderão avançar no envolvi-mento social se se comprometerem concretamente com os pobres.Para isso, precisam ficar claramente do lado da justiça social, comtodas as suas conseqüências de ordem política, social e econômica.

Busca de novas opções

Felizmente, há sinais bastante positivos nas igrejas pelo mundoa fora, de preocupação genuina em favor dos pobres. Esses sinaisse multiplicam e as animadoras novas experiências demonstramque as instituições eclesiásticas - como se viu às vezes no passa-

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Li

do - começam a se tornar a voz dos que elevam seus clamoressentidos até Deus."

Há uma questão que precisa ficar clara: não é por causa dosricos que a igreja dos pobres não existe. A igreja dos pobres étambém obra do Espírito Santo por meio de um processo em queo próprio povo participa ativamente. Os pobres, que têm sido víti-mas, nas organizações eclesiásticas, do mesmo processo de margi-nalização a que lhes tem submetido a sociedade, começam a perceberque as igrejas não lhes são estranhas (ou, talvez, não deveriam ser).Eles é que podem transformar as instituições eclesiásticas com suapresença e participação, com seus problemas e lutas. O povo deDeus, nesse caso, sabe que a Igreja lhe pertence. Esse tipo de si-tuação, que é a peregrinação do povo de Deus na história, abrenovos caminhos de liberdade para a humanidade toda." Bomexemplo disso é a luta na qual alguns setores do povo de Deus seengajam em favor dos direitos da mulher (que, em muitos casos,são as pessoas mais oprimidas dentre os pobres)."

A Igreja se renova quando o povo participa decisivamente emseu processo de transformação: as instituições eclesiásticas não ten-dem a fazer mudanças nas estruturas da Igreja a não ser quandoforçadas pelo povo de Deus. Em muitos lugares, porém, por causade suas posições sociais, os líderes das instituições eclesiásticas nãoconseguem entender a plena dimensão do sofrimento e dos proble-mas dos pobres. Ninguém duvida de sua boa vontade e de suasboas intenções. Poderão até mesmo vir a apoiar movimentos detransformação da sociedade (que sempre envolvem processos derenovação nas igrejas), mas os principais agentes dessas transfor-mações serão os próprios pobres." Os que não são pobres precisamde muita humildade para entender essa difícil verdade. Precisamsuperar o sentimento de superioridade e orgulho existente entre osmembros do establishment cristão, transcendendo o atual estado decompreensão da realidade, para escapar do cativeiro do sistemade poder, que não percebe o potencial dos pobres. O elemento real-mente dinâmico da transformação, procurado pelos que lutam emfavor da justiça e da libertação é a presença de Cristo e do Espí-rito Santo, especial e preferencialmente, nos pobres e oprimidos."Somente por meio da renovação que eles podem trazer, poderá acomunidade cristã (em cada lugar) libertar-se dos inúmeros cati-veiros que a afligem."

O fato de que essa libertação (posto que as instituições ecle-siásticas podem também se tornar prisioneiras das estruturas dedominação deste mundo) só vem mediante a disposição da comu-nidade cristã de servir os pobres e a justiça, tem profundo signifi-cado evangélico para a Igreja." Neste sentido, de novo, convém

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relembrar que Cristo se fêz pobre deixando de lado a sua glóriapara que Deus lhe elevasse à posição de Senhor e libertador (Fp2.5 - 11).

Em momentos decisivos da história a aliança entre líderesda Igreja e autoridades políticas afastou as instituições eclesiásti-cas de um dos principais alvos da missão evangelizadora: "Pregaras boas novas aos pobres" (Lc 7.22 e 23; Mt 11.4-6). Foi o queprovocou o enérgico protesto de Bartolomé de Ias Casas no começoda evangelização das Américas." Quando os grupos eclesiásticos,governados por pessoas comprometidas com a ideologia dos ricose poderosos, dialogam com estes, seus valores se confundem parapreservar tradições similares e expressar os mesmos interesses."Somente a igreja dos pobres, que Iêz a opção pelos pobres, podelealmente falar com os pobres"."

O povo de Deus é um povo peregrino. Está andando. Vai numadireção. Mas, naturalmente, tem uma orientação: vai na direção doamor e da justiça. Alimenta-se da esperança no reino de Deus.Nessa caminhada, o clamor dos pobres e dos infelizes deste mundovai se elevando parecendo ameaçador aos ouvidos dos ricos e po-derosos. Esse clamor também desafia as igrejas: elas não podemmais tapar os ouvidos.

Sinais de renovação da Igreja em nossos dias

Mas não devemos ser pessimistas. Não há razão para isso.Nessa peregrinação do povo de Deus, na última década, pode-sereconhecer a ação da presença e da força do Espírito de Deus. Nomeio das desafiadoras contradições históricas enfrentadas pela so-ciedade, o Espírito saberá como guiar a comunidade cristã em fide-lidade a Jesus Cristo e ao Evangelho. Esses sinais já são evidentesem igrejas que se abriram aos pobres e, acima de tudo, nas quetomaram a decisão radical no combate às causas da miséria e dainjustiça.

-e

1. Crescimento de movimentos pentecostais

Não vamos discutir a doutrina ou a interpretação de textosbíblicos que formam a base do fenômeno pentecostal. Queremosapenas observar que em quase todas as partes do mundo a maioriados membros das igrejas pentecostais é pobre e que suas estruturastornam possível a participação do povo. 19 A música popular, comseus instrumentos comuns, infunde alegria nos ofícios religiosos.O discurso não é monopolizado pelos que se consideram os melho-res intérpretes da verdade. Todos podem contar suas experiênciase expor à comunidade os problemas concretos que enfrentam. A

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Bíblia é interpretada livremente e embora alguns textos, é certo,não sejam bem entendidos, pode-se dizer que ela ocupa lugar cen-tral na vida dos crentes. A Igreja .esforça-se para resolver todosos problemas vitais dos pobres, tais como doença, desemprego,falta de recursos, habitação, viagem etc. Mas também é verdadeque esse tipo de igreja pode se tornar uma das causas da alienaçãodo povo. 20 Não se pode negar, por outro lado, que os pobres têmo seu lugar nessas igrejas e que suas estruturas são suficientementeflexíveis para que venham e participem ativamente. Os líderesvêm da própria congregação e pertencem à mesma classe social dosoutros membros. Em alguns países da África e da América Latinaas congregações pentecostais estão desafiando e questionando asigrejas tradicionais e já formam a maioria dos evangélicos em mui-tos países. :21

É certo que perigos já mencionados, como a alienação, quepodem resultar da prática da religiosidade popular, são tambémencontrados nos movimentos pentecostais. Desafiam as igrejas his-tóricas, mas nem sempre representam os pobres.

2. Comunidades eclesiais de base

Começa a nascer e a crescer uma nova igreja do meio do povoem diversos países da América Latina, nas Filipinas, na Itália, eem outros lugares. :2'2 Pequenos grupos reúnem-se para tratar deproblemas comuns - bem concretos, ligados à vida diária do povo;lêem a Bíblia e refletem sobre essa leitura, celebram e cantamnovos hinos, e participam em todos os esforços da comunidade.São essencialmente grupos de gente pobre, localizados em zonasrurais e em bairros marginais das cidades. Discutem problemas davizinhança e do trabalho, tomam decisões coletivamente, organi-zam-se para lutar por seus direitos, enfrentando juntos as dificul-dades, adotam atitudes de solidariedade, e criam estruturas maisdemocráticas e participatórias do que as existentes. Todos podemfalar, as decisões são tomadas em conjunto e os parâmetros paraa ação definem-se em termos dos problemas dos pobres. No Brasilapenas há mais de 50.000 dessas comunidades constituindo, semdúvida, a principal expressão da vitalidade da Igreja no país. asTrata-se da igreja dos pobres a emergir como evidente sinal daação do Espírito Santo. Por meio dos pobres começa a se purificara Igreja que por séculos esteve principalmente a serviço dos ricose poderosos. Perturba, na verdade, os esquemas da eclesiologiaclássica; está transformando completamente as formas tradicionaisda liturgia; cria os próprios cânticos e acaba com a dicotomia tra-dicional entre fé e vida.f" É também uma experiência realmente

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ecumênica, uma vez que se abre aos problemas da comunidade ebusca, com todos, soluções para problemas comuns. Entretanto,por se tratar de experiência recente, não se pode ainda chegar aconclusões definitivas sobre o que está acontecendo. Pelo menosse pode dizer que os pobres mais uma vez encontram um lugar etêm voz numa estrutura eclesiástica oficial e sentem que a Igrejaos representa.

3. Outras formas de solidariedade com os pobres e oprimidos

O conhecido movimento de solidariedade com os negros e comas minorias étnicas nos Estados Unidos tem grande importância esignificado. A luta contra a opressão racial não terminou com omovimento pelos direitos civis da população negra. Expressa-seagora nas lutas dos índios americanos pelo direito à terra, pelo seureconhecimento como nação com todos os seus valores, tradiçõese instituições. Inúmeros contingentes sociais de origem latino-ame-ricana estão comprometidos com esse movimento de solidariedadecomo, por exemplo, os mexicanos, os portorriquenhos, os domini-canos e outros. Certos setores das igrejas têm tomado importanteparte nesses movimentos, provendo-Ihes local para a coordenaçãode suas atividades, tornando as conexões mais fáceis entre os gru-pos bem como melhorando os esforços em favor da criação de laçosde solidariedade com a maioria branca da população da América doNorte. Esta expressão de solidariedade não se limita aos EstadosUnidos e Canadá, mas também se encontra em outros países desen-volvidos onde setores ativos da comunidade cristã tentam conscien-tizar as pessoas em favor da luta pela justiça internacional. É nessecontexto que se deve entender a participação das igrejas em pro-gramas de educação para o desenvolvimento. ~E

É também impressionante o testemunho de solidariedade ex-presso pelas igrejas para com os refugiados palestinos no OrienteMédio. No Líbano, por exemplo, onde há cristãos comprometidoscom a opressão e-com a injustiça, há também comunidades cristãsque se tornaram lugares de solidariedade e de compreensão, abertosaos mais perseguidos e sofredores setores da população como essesmesmos refugiados palestinos. Aí a Igreja decidiu ser a igreja dospobres, lugar de refúgio e libertação para os oprimidos.>"

4. A redescoberta da força Iibertadora da Bíblia

Este é um importante sinal de renovação da Igreja. O aumen-to do número de pessoas e de grupos que começam "a ler o Evan-gelho na Bíblia" a partir da perspectiva dos pobres é feição carac-terística da igreja dos pobres.:" A Bíblia e a vida reúnem-se na

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compreensão do povo. Quando os pobres abrem a Bíblia queremencontrar aí as coisas da vida e na vida buscam as coisas da Bíblia.Ao entender que a Bíblia reflete criticamente a realidade, ela des-perta no povo o senso do questionamento. Estuda-se a Bíblia coma finalidade de se conhecer. melhor a realidade presente de umaperspectiva que não seja a dos dominadores. Também para se es-cutar o chamado de Deus à participação na mudança dessa mesmarealidade. O propósito final do uso da Bíblia não é tanto interpre-tá-Ia, como interpretar a vida do próprio povo. Não há dúvida deque tal atitude acaba numa leitura bem menos acadêmica do queestamos acostumados. Mas o acadêmico não é tão importante assim.Importa, antes, a mensagem libertadora de Cristo com a sua claraopção pelos pobres. Importa que o povo a entenda, que a percebana Bíblia e faça dessa leitura valioso instrumento na luta em favorda justiça e da liberdade humana.

5. Redefinição de conceitos básicos da fé cristã

A experiência vivida das igrejas que optaram pelos pobresleva-nos a repensar as implicações de certos conceitos básicos dafé cristã para os dias atuais. Estamos vivendo numa nova situaçãoe enfrentando novos desafios. Conceitos tais como evangelização,salvação, reconciliação, igreja, entre outros, precisam ser redefini-dos em termos da perspectiva dos pobres e dos oprimidos. :208 É umatarefa que não pode ser feita em confortáveis salas de estudo ou embibliotecas. Exige do teólogo uma prática libertadora, a partir daperspectiva dos pobres e em seus próprios termos. Dessa maneiraos cristãos começam a entender a nova teologia e a construir anova linguagem baseada em elementos significativos da vida dopovo em cujas expectativas e lutas participam. Esses sinais come-çam a se tornar visíveis e a presença do Espírito Santo transparecenessa igreja do povo que começa a ser posto em liberdade.

NOTAS1. Cf. Julio de Santa Ana, Good news to the poor, capítulos 4 a 7, Ge-

nebra, WCC, 1977. Também, de Julio de Santa Ana (ed.), Separationwithout hope? Genebra. WCC, 1978, especialmente os capítulos escri-tos por André Biéler, Ronald White [r., metropolita George Khodor,e Nicolai Zabolotski. No contexto da Igreja Ortodoxa, cf. DemetriusJ. Constantenelos, Byzantine philantropy tmd social welfare. NewBrunswick NJ, Rutgers University Press, 1968.

2. Cf. [ohn Kent, "The Church and the Trade Union Movement in Britainin the 19th Century", in Julio de Santa Ana (ed.) , Separation withouthope?, p. 36 e 37.

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3. Marcelo Pinto Carvalheira, "A Caminhada do Povo de Deus na Amé-rica Latina", Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 38, fascículo 150, 1978,p.303.

4. No relatório da secretaria geral da Quinta Assembléia do ConselhoMundial de Igrejas, do dr. Philip Potter disse: "Pode ser que apesar dasigrejas professarem a convicção de que são todo o povo de Deus, mui-tas delas não aprenderam ainda o que isso significa em sua vida etestemunho. As mesmas estruturas hierárquicas e não-participatórias dasociedade refletem-se nas estruturas e nos estilos de vida das igrejas -na pregação, no ensino, nos processos decisórios, na autoridade." EmDavid M. Paton (ed.), Breaking barriers: Nairobi 1975, p. 252. GrandRapids, Mich., Wm B. Eerdmans, e Londres, SPCK, 1976.

5. Nicolas Berdyaev, já no final dos anos 20, levantava questões seme-lhantes. Cf. Christianity and class war, p. 117 e 118: "A pregação co-mum das virtudes cristãs, amor, humildade e misericórdia, é estérile sem efeito; muita gente pensa que se trata de retórica convencional,hipocrisia, e tentativa camuflada de enfraquecer e desarmar o inimi-go. " É grave a responsabilidade que recai sobre nós, cristãos. Nossaépoca pede palavras novas, vigorosas e cheias de energia criadora -mas não as temos encontrado, ainda; a costumeira exortação à humil-dade soa falsa nesta atmosfera de desatinos sociais. A alma do traba-lhador está contaminada pelo veneno que lhe dão o capitalismo e aluta de classe, tornando extremamente difícil a tarefa de fazê-lo enten-der a verdade cristã. Para obtermos algum êxito seria preciso que ocristianismo se associasse na mente do trabalhador com a verdade social,e não com a falsidade. Em outras palavras, os cristãos precisam ficardo lado do trabalho e dos trabalhadores." Londres, Sheed & Ward,1933.

7. Cf. Diagenda-Kuntima, "The essence of kimbanguist theology", p. 22.WCC Exchange, n. 4, julho de 1948.

8. Asian ecumenical consultation on development priorities and guidelines,p. 59 e 60, e especialmente a 69: "Alguma resolução precisa ser toma-da para que as igrejas mudem suas estruturas, uma vez que muitasdelas representam um microcosmo das estruturas de poder-da sociedadesecular". Singapura, Christian Conference of Asia, 1974. De modo maisclaro, N. J. Demerath Il l, em Social class in american protestantism,p. 4, diz: "A religião americana, especialmente o protestantismo, temsido considerada, em geral, como atividade das classes média e alta".O argumento baseia-se em três indicadores de envolvimento: os mem-bros da igreja..;:o tipo de gente que freqüenta os cultos, e a participaçãonas atividades religiosas formais. As pessoas que participam nessas ati-vidades pertencem, em geral, às classes mais alta". Chicago, Rand.McNally & Company, 1965. Roger Mehl, falando sobre a composição"sócio-profissional" das igrejas, admite que é, no Ocidente, principal-mente burguesa ou de caráter rural (o grifo é meu). The sociology oiprotestantismo Londres, SCM Press, 1970.

9. Cf. o estudo de Christian Lalive d'Epinay sobre o pentecostalismo noChile, O refúgio das massas, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970.

10. CCPD Dossier Good news to the poor. Genebra, CCPD/WCC, 1978.Também Bobbi Wells Hargleroad (ed.), Struggle to be human, storiesoi urban industrial mission. Genebra, CWME/WCC, 1973. Este volumeinclui uma série de estrias de igrejas que fizeram a opção pelos pobrese trabalham com eles.

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11.12.

Marcelo Pinto-Carvalheira, op. cit., especialmente p. 317.Cf. Sexism in the 1970s: discrimination against women, relatório daconsulta do Conselho Mundial de Igrejas realizada em Berlim Ocidental,em 1974. Genebra, WCC, 1975.Essa posição aparece claramente no relatório do programa sobre "jus-tiça e serviço" do Conselho Mundial de Igrejas apresentado à QuintaAssembléia. Cf. a terceira parte desse relatório sobre "justiça e desen-volvimento".

13.

CL Iürgen Moltmann, The church in the power oi the Spirit, p. 356:"A igreja pobre deverá ser, portanto, entendida como a igreja dos po-bres - como a comunidade em que os pobres alcançam liberdade ese tornam os sustentadores do Reino. A pobreza cristã significa, pois,a comunhão dos pobres e a comunhão com os pobres - porém, dentroda missão cristã e na esperança do Reino. Neste sentido, a pobrezacristã [e aqui Moltmann cita Gutierrez] é "uma expressão de amor esolidariedade com os pobres e um protesto contra a pobreza." Londres,SCP Press, 1977.

15. Faith and Order Paper n. 85: Church and state, p. 158-160~ sobre ocativeiro da Igreja. "A' resistência torna-se parte da missão da Igrejasempre que ela tiver de enfrentar poderes ou situações que oprimem opovo, ou pelo menos alguns grupos e indivíduos. Os alvos, as perspec-tivas e os meios desses poderes e situações opressoras são incompatíveiscom os imperativos do Evangelho". Genebra, WCC, 1978. As igrejasdificilmente resistirão se o movimento de resistência não partir do povo.

16. J. L. Segundo, Libertação da teologia, p. 221: "Se a experiência dascomunidades de- base prova algo, é que, uma vez que se tornaram cons-cientes da função libertadora da Igreja, longe de promoverem-se a simesmas em formas esquisitas de liturgia e renovação intra-eclesial, elasse convertem nos mais sofridos e eficazes opositores dos compromissosque uma Igreja, que se aproveita das massas, está obrigada a fazer, emdetrimento da libertação dessas mesmas massas." São Paulo, EdiçõesLoyola, 1978.

17. André Castaldo, "Les questions péruviennes de Bartolomé de Ias Casas(1564)''', Foi et vie, 70.0 ano, n. 1-2, janeiro-abril 1978. Também GustavoGutierrez, Teologia desde el reverso de ia historia, p. 35-39. Lima,CEP, 1977.

18. Cf. A. Counin, no prefácio do livro de José Maria Gonzalez Ruiz, Po-breza evangélica e promoção humana, p. 14. Rio de Janeiro, Vozes,Petrópolis, 1970.

19. Christian Lalive d'Epinay, op. cit., p. 45 e seguintes. Cf. também WalterHollenweger, The pentecostals, especialmente p. 457 e seguinte. Londres,SCM Press Ltd., 1972.

14.

20. Christian Lalive D'Epinay, op. cit., p. 128 e seguintes.21. Walter Hollenweger, op. cit., p. 75-175.22. CL [ether Pereira Ramalho, "Basic christian communitities in Brazil",

The Ecumenical Review, vol. 29, n. 4, 1977, p. 394 e seguintes. Tam-bém Marcelo Pinto Carvalheira, op. cito

23. Esses números apareceram no terceiro encontro nacional de Comunida-des Eclesiais de Base, realizado em João Pessoa, julho de 1978.

24. Bom exemplo da transformação da Igreja pelo Espírito Santo por meioda ação do povo vê-se nas Filipinas. Cf. Makibaka! [oin us in struggle!

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25.

A documentation of five years of resistance to martial law in the Phi-lippines, p. 129 e seguintes. Londres, Blakrose Press, 1978.Laurens Hogebrink dá bom exemplo desse tipo de ação em "On Com-municating the Gospel Today". CCPD Dossier n. 6, lustice, rolling likea river. Genebra, CCPD/WCC, 1975.Cf. Makram Kazah, Le Prado das les événements du Liban, estudo pre-paratório para a consulta da CCPD em Ayia Napa, Chipre, sobre "AIgreja e os pobres", setembro de 1978.Cf. Gustavo Gutierrez, op cit., p. 41-50. Cf. o livro de Ronald J. Sider,Cristãos ricos em tempos de fome, São Leopoldo, Editora Sino daI, 1984,que assume de alguma maneira a perspectiva dos pobres nos estudosbíblicos a partir de um contexto afluente.Sobre essa "nova hermenêutica", cf. a bela exposição de Robert McAfeeBrown, em Theology in a new key, p. 85-100. Philadelphia, WestminsterPress, 1978.

26.

27.

28.

97

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VI. A luta contra a pobreza

Estamos definindo a pobreza como a incapacidade de realiza-ção das necessidades humanas básicas exigidas para manter ade-quadamente a vida livre de doenças, miséria, fome, dor, sofrimento,desespero e medo, de um lado, e a incapacidade de defesa em faceda injustiça estrutural, de outro. Em qualquer dos casos essas con-dições podem ser resumidas como opressão. ~ A luta contra a po-breza consiste, pois, em atividades em que se envolvem os oprimi-dos e os que lutam em seu favor na busca de uma "vida melhor".Não se procura apenas a satisfação das necessidades básicas, mastambém a existência vivida com dignidade, baseada no exercícioda justiça, da participação e da liberdade."

Na maioria das sociedades humanas, indivíduos, grupos, gover-nos, igrejas e outras instituições têm-se dedicado incessantementepara aliviar ou mesmo eliminar a pobreza. Em geral, tais esforçosfracassam porque se concentram em obras "a favor" e não "com"os pobres, ignorando as causas opressoras do empobrecimento. 3

"Dando um peixe ao faminto apenas o alimentamos uma vez;se o ensinarmos a pescar, ele terá comida para sempre". A tese éa seguinte: para se alcançar a plena libertação é preciso que a lutaseja levada a efeito pelos pobres e oprimidos. O elemento catalisa-dor no movimento de libertação não precisa pertencer aos oprimi-dos, mas precisa ser identificado com a luta dos pobres e com elacomprometido. O desejo das igrejas de se envolver com a libertaçãodos oprimidos só será sério quando se identificarem clara e ousada-mente com essa luta em favor da eliminação da opressão ondequer que exista. Não há outro caminho.

O ser humano não foi criado para ser um organismo opri-mido; coloquemos, pois, a opressão em perspectiva histórica.

Segundo a Bíblia, a opressão surgiu do encontro de culturaspoderosas com culturas sem poder. Assim, os mais fortes domina-ram os mais fracos (Gn 12.10-15). Portanto, a opressão surgiu

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provavelmente com o desenvolvimento das culturas civilizadas ondeo comércio e a barganha se tornaram lugares comuns. Descobria-sea possibilidade do aumento da produtividade com o aperfeiçoa-mento de instrumentos e de tecnologia (melhoramentos e invenções :nas mãos dos poderosos) destinados à exploração de outros sereshumanos.

Segundo Celso Furtado: "Duas formas básicas de apropriaçãodo excedente parecem haver coexistido desde o início dos temposhistóricos. De um lado está o que poderíamos chamar a formaautoritária, que consiste na extração de um excedente mediante acoação. De outro lado apresenta-se a forma mercantil, ou seja, acaptação do excedente no quadro de operações de troca ou inter-câmbio.

Formações sociais tão diversas como a do Egito faraônico, ada China imperial e a do Império incáico tinham um importantetraço comum: a apropriação do excedente era rigorosamente disci-plinada por um poder central que monopolizava o uso da coação.

Os processos de feudalizaçãq parecem ligar-se à desorganiza-ção de formações sócio-políticas imperiais. A apropriação autori-tária do excedente passa às mãos de grupos locais e a utilizaçãodeste mesmo excedente tende a efetuar-se na própria região ondeele é captado. Esse processo de desconcentração da apropriação eutilização do excedente vai acompanhado de declínio da urbaniza-ção e do intercâmbio. Isto não impede que este último continuea desempenhar um papel, ainda que reduzido, na transformação doexcedente e mesmo no fornecimento de produtos indispensáveisà reprodução da população.

À predominância de cada uma das duas formas básicas decaptação do excedente corresponde, historicamente, um tipo deformação sócio-política: a imperial e a urbano-mercantil.

O estado-nação da Europa moderna será bem mais do que umcompromisso entre dois sistemas de dominação. Em sua base existeuma efetiva integração de dois sistemas de cultura." s

Embora o uso da força possa ter tido alguma importância,tudo indica que a exploração baseou-se primeiramente em persua-são psicológica por meio da qual as pessoas envolvidas em "fazerboas obras" não se davam conta do fenômeno. Essa forma teriaevoluído para o emprego de opressão por meio de exigências, deforça e, finalmente, da lei.

A História, no entanto, nos mostra a inconformidade dos sereshumanos em face da opressão: frontalmente, passivamente, indire-tamente ou por meio de resistência ativa. Foi assim que os "fracos"e "desafortunados" tornaram-se os oprimidos, e os "fortes" e "afor-

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..,I

tunados", os opressores. Há, pois, um processo condicionador antesda transformação da opressão em lei. Às vezes, imposto pela força,esse processo pode ser descrito sociologicamente como "práticas"que mais tarde se transformam em "hábitos". Esses evoluem emcostumes sociais, tradições, costumes, e finalmente leis. O sistemaresultante acaba recebendo a confiança dos "fortes" e dos "fracos"porque garante a ordem, muito embora sustente a dominação dosfortes às custas da mera sobrevivência dos fracos. Como afirmaCharles Elliott: "A principal característica dessa situação é queum grupo relativamente pequeno... controla a maior parte daprodução e toda a redistribuição fiscal de modo que seus interessese padrão de vida não sejam seriamente ameaçados. São suficiente-mente sofisticados para entender que há conflitos entre curto-prazoe longo-prazo: os custos a curto-prazo serão pagos pela estabilidadeadquirida a longo-prazo. Cometem erros ao julgar esses custos bemcomo a respeito dos benefícios futuros que lhes poderiam trazer.Enquanto grupo, talvez desconheçam tais benefícios. Enquanto mi-noria significativa (ou mesmo maioria) talvez acreditem, ou quei-ram acreditar, que não podem mudar o sistema e assim alterar adistribuição dos benefícios. Além disso, não se pode descartarcompletamente que tenham interesses altruístas e humanitáriospara com os pobres, particularmente quando são visíveis e nãorepresentam ameaças. Não obstante, as elites mantêm um sistemano qual a função, hierarquicamente ordenada por elas, é recom-pensada em diferentes graus. Apesar da enorme evidência de queos incentivos de ascensão nessa hierarquia sejam grandemente exa-gerados ou, para se falar em termos neo-clássicos, corram na dire-ção contrária. .. o sistema se mantém." 6

Tanto o opressor como o oprimido aceitam todas as fases doprocesso condicionador para que a opressão venha a ser possível.O opressor precisa acreditar que a opressão está "certa" enquantoo oprimido a vê como um "modo de vida". 7 A História nos mostraainda que foram criadas todas as táticas concebíveis para a acei-tação da opressão; a Bíblia e a Igreja não são exceções. 8

Por outro lado, a História revela que nem todos os opressorese oprimidos aceitaram a opressão assim tão facilmente; não obs-tante, ela continuou a existir por causa de sua aceitação pela maio-ria. Os negros americanos, por exemplo, resistiram por muito tempoà segregação e à escravidão. Alguns nunca aceitaram essas formasde opressão. Milhares escolheram a morte para si e para seus filhosem lugar de se submeteretn à vergonha da escravidão. Infelizmente,a opressão não é eliminada facilmente. A esperança de libertação,no entanto, está presente na ação social e política dos oprimidos.Felizmente, nem todos aceitam a ordem vigente; alguns estão pre-

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parados para lutar contra as injustiças e as opressões, sendo suamilitância a principal força na luta pela libertação.

A libertação e o processo libertador precisam de estratégiasplanejadas oriundas dos pobres; a organização é o processo me-diante o qual a comunidade pobre se une para implementar a ação,"Portanto, o conceito de organização como instrumento de luta con-tra os fatores que geram a pobreza deve ser agora discutido.

Há três estratégias organizacionais importantes na luta contraa opressão e a injustiça. São estas: (1) organização para a liberta-ção e para a justiça; (2) organização para a libertação e para aaceitação; e (3) organização para a libertação e para a participação.Talvez não possam ser aplicadas universalmente, nem talvez existamnuma ordem particular, mas foram empregadas com êxito pelosnegros americanos em sua luta pela mudança social. Embora outrasestratégias alternativas possam ser necessárias em outras situações,estas podem ser vistas como meios viáveis à busca da justiça e dalibertação. 10

1. Organização para a libertação e para a justiçaO principal objetivo da orgãnização para a libertação e para

a justiça é a anulação de leis que regulamentam a opressão. Depen-dendo do status do oprimido, esta estratégia pode ter três momen-tos: (a) consciência, (b) preparo e planejamento, e (c) ação.

a) ConsciênciaQuando a opressão passa a ser aceita como modo de vida, ela

se auto-promove. Assim, depois de diversas gerações de pobreza, opobre deixa de considerar a pobreza com seus males concomitantescomo problema; acreditam que a pobreza vem da vontade de Deuse que não se deve esperar coisas diferentes. 11

Eis um exemplo: Por volta de 1965, certo batalhador pelosdireitos civis na América falava a um grupo de negros residentesnuma típica cidade camponesa no suleste do Alabama. Pelos pa-drões conhecidos, a cidade era pobre e os negros sofriam violentaopressão. Enquanto os brancos ganhavam cerca de 4.000 dólarespor ano, seus salários não chegavam a 1.400. Não havia ruas pavi-mentadas nos bairros negros; tampouco havia água corrente nembanheiros nas casas e, muitas vezes, nem mesmo eletricidade (estahavia sido cortada por falta de pagamento). A comunidade brancanão só gozava de todas as comodidades modernas como tinha suasavenidas refeitas, a rede de esgoto ampliada, e melhoradas as con-dições de trabalho.

Ao final do discurso do ativista que condenava todas essas ini-quidades, ouviu-se o amargo protesto de um líder negro da locali-

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dade. Exclamava: "Nós não temos problemas aqui. Os negros con-vivem muito bem com os brancos. Você está querendo nos envolverem dificuldades falando desse jeito".

Depois dessa declaração seguiu-se um debate de aproximada-mente duas horas entre os velhos e os jovens, revelando claramenteque os mais velhos aceitavam a pobreza como modo de vida, en-quanto que os jovens exigiam mudanças. Três meses depois desteseventos, inúmeros batalhadores pelos direitos civis foram presose a igreja que servira para aquele primeiro encontro acabou sendoincendiada.

b) Preparo e planejamento

Os pobres precisam entender e aceitar a necessidade de cuida-doso planejamento estratégico. Este processo é crucial porque qual-quer falha em seu desenvolvimento poderá resultar em perdas irre-paráveis. 12 As questões fundamentais a serem resolvidas no pro-cesso de preparo e planejamento são estas:

1. Qual é o plano de ação mais efetivo nas condições exis-tentes?

2. A resistência a ser usada deverá ser passiva ou ativa?- Se passiva, que envolverá?~ Se ativa, que envolverá?3. Que se espera da atitude escolhida?4. Que alternativas são possíveis?Após responder a estas questões o grupo oprimido está prepa-

rado para agir.

c) Ação

Esta fase envolve a implementação de planos cuidadosamentetraçados. A história recente nos ensina que a libertação para a jus-tiça pode ser alcança da tanto por resistência ativa como passiva.Da perspectiva cristã, a resistência passiva talvez seja o melhormétodo. Gandhi e Martin Luther King utilizaram-na com êxito. Alibertação para a justiça só é alcançada quando se revogam as leisque apóiam a opressão; entretanto, a opressão não termina aí. Paraque a Iibertação seja possível é preciso a ocorrência de mudançasradicais nos relacionamentos, no status social e na identidade pes-soal entre opressores e oprimidos.

2. Organização para a libertação e para a aceitaçãoMudanças radicais de natureza social e política nem sempre

acabam com a opressão. Às vezes apenas inverte-se o processo. Osoprimidos assumem o papel dos opressores e as antigas leis são

102

substituídas por outras igualmente opressivas.?" Para se evitar umtal estado de coisas faz-se necessária a organização para a aceitação.Esta estratégia procura conscientemente incentivar o oprimido a sevaler das oportunidades que lhe oferecem as novas leis. Por exem-plo: depois da aprovação da lei dos direitos civis nos EstadosUnidos, negros e brancos que apoiavam sua caúsa organizaram-see partiram pata o suleste a fim de se integrarem fisicamente noslugares ~anteri"rmente segregados. Queriam dessa maneira demons-trar visivelmente a realidade da nova lei. Embora tivessem queenfrentar inicialmente a forte resistência dos mais ferrenhos racis-tas, a repetição de tais atos acabou levando tanto os oprimidoscomo os opressores à aceitação da lei dos direitos civis.

A libertação não é alcança da simplesmente por meio da justiçalegal que a força; portanto, a luta deve prosseguir à estratégia finalda organização para a participação.

3. Organização para a libertação e para a participação

A organização para a libertação e para a participação envolveos oprimidos em todos os aspectos da nova sociedade - cultural,social, política e economicamente. Trata-se de uma luta extrema-mente difícil, especialmente se o antigo opressor continua a seronipotente. É o que se vê nas lutas dos negros americanos e dasclasses operárias na Europa ocidental. Nessas sociedades, com suasrecentes experiências de opressão, os antigos oprimidos ainda per-manecem fora das esferas de participação. Portanto, a luta devecontinuar. A situação é a mesma em muitos países da África, Ásia,América Latina, Oriente Médio e Pacífico.

As ideologias e os movimentos políticos são particularmenteimportantes na organização do povo. De um lado, as ideologias -em que pesem suas limitações, simplificações e esquematizações -ajudam o povo a identificar com facilidade os alvos da luta pelalibertação. Neste sentido, as ideologias cumprem função esclare-cedora. Por outro lado, os partidos políticos fornecem ao povo amoldura para a ação em nível organizacional. É enorme a contri-buição que as ideologias progressistas e os partidos políticos popu-lares têm dado no combate à opressão e na promoção da libertação.No entanto, deve se notar que esses instrumentos nem sempre têmsido utilizados a serviço dos pobres. Quando os alvos ideológicossão definidos sem consulta direta e ampla às bases, e quando ospartidos políticos não tomam decisões a partir da participação dopovo, podem trair, ou não dar prioridade, à luta pela justiça e pelalibertação.

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NOTAS

1. Docet, Série 6, n. 8, p. 3-24. Lima, CELADEC, junho de 1973. ThomasHanks desenvolve aí o tópico, "Opressão e pobreza na Bíblia", mostran-do por meio de análise lingüística e de exegese bíblica que para asEscrituras a condição da. pobreza é criada basicamente pela opressão.Por exemplo, a maneira como o Antigo Testamento fala a respeito deopressão (ashaq = a injustiça da opressão; yanah = opressão escravi-zante; nagas = opressão desumanizadora; lahats = a dor dos oprimi-dos; ratsats = a brutalidade da opressão; daka = as conseqüênciasesmagadoras da opressão; anah = a humilhação dos oprimidos; tok = atirania do opressor etc.) relaciona-se sempre com a situação do pobre.No Novo Testamento, além dos textos explícitos de Tiago e Lucas-Atos,a análise demonstra que "segundo a' teologia bíblica, a opressão é acausa principal da pobreza", p. 22.

2. De maneira semelhante, o relatório da VI Seção da Quinta Assembléiado Conselho Mundial de Igrejas sobre "Desenvolvimento humano: am-bigüidades do poder, tecnologia e qualidade de vida", declara no pará-grafo 11: " ... a pobreza, percebemos, é causada em primeiro lugarpelas estruturas injustas que deixam os recursos e o poder de decidirsobre a utilização desses recursos nas mãos de uns poucos dentro dasnações e entre as nações. .. As estruturas injustas resultam quase sem-pre de objetivos e valores errados ou mal orientados". Cf. David Paton(ed.), Breaking barriers: Nairobi 1975, p. 123, Grand Rapids, Michigan,e Wm B Eerdrnans, and London, SPCK, 1976.

3. ~ o que aconteceu na América Latina com o programa "Aliança parao progresso". Algo parecido se deu nos Estados Unidos nos anos 60com programas destinados ao bem estar social. O programa do presi-dente Marcos (das Filipinas) também falhou, e é bem provável que omesmo acontecerá com os atuais esforços do Banco Mundial, a não serque se dê mais atenção as mudanças estruturais do que ao crescimentoquantitativo.

4. Cf. To break the chains of oppression, p. 52: "A luta pela justiça éessencialmente a própria luta do povo. Pergunta-se, no entanto, se é opovo que realmente inicia a luta ou se ela é precipitada por algumagente catalisador de mudança. A questão talvez seja irrelevante emúltima análise. Na perspectiva histórica, pode-se dizer que os movi-mentos populares mais significativos não resultaram de ações espontâ-neas mas de processos precipitados, em geral, por "agentes de mudan-ça" . .. Não se trata de saber quem estimula o processo, mas quem odesencadeia. Da mesma forma, não importa saber a que classe socialpertence o agente ou agentes de mudança, mas qual é seu comprometi-mento". Genebra, CCPD/WCC, 1975.

5. Celso Furtado, Prefácio a nova economia política, p. 32-36, Rio de Ja-neiro, Paz e Terra, 1976.

6. Charles Elliott e Françoise de Morsier, Patterns of poverty in the ThirdWorld, p. 13 e 14. New York, Washington, London: Praeger Publishers,1975.

7. Cf. A. Memmi, The colonizer and the colonized, Boston, Beacon Press,1967.

8. Cf. especialmente a recomendação de Paulo aos escravos em Cl 3.22.O que ele diz aos senhores não se compara com o que exige dos es-cravos.

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9. Cf. o capítulo de Julio de Santa Ana no livro, Pueblo oprimido, seitorde Ia historia, sobre "Teoria revolucionária, reflexão a nível estratégico,tático e reflexão sobre a fé como práxis de libertação", p. 229-232, Mon-tevidéu, Tieera Nueva, 1972.

10. Outras estratégias organizacionais, não muito diferentes das que des-crevemos, podem ser encontradas no livro de Bobbi Wells Hargleroad(ed.), Struggle to be human, stories of urban industrial mission, Gene-bra, CWMEjWCC, 1973.

l l . Paulo Freire analisou com maestria esses mecanismos de internalizaçãoda opressão. Cf. Pedagogia do oprimido, e Ação cultural para a liber-dade.

12. CL Hiber Conteris, Julio Barreiro, Julio de Santa Ana, Ricardo Cetenloet al., Conciencia y revolucián, Montevidéu, Tieera Nueva, 1969.

13. Mais sobre este tópico pode ser encontrado no relatório sobre "violên-cia, não-violência e a luta em favor da justiça social", apresentado àcomissão central do Conselho Mundial de Igrejas reunido em Genebraem agosto de 1973. Cf. também The Ecumenical Review, volume 30,n. 4, outubro de 1978.

14. O conceito de "reconciliação" expresso por São Paulo em 2 Co 5.14-21não se aplica a seres que mantêm o mesmo tipo de relacionamento quetinham antes. Trata-se de um ato que leva em consideração a cruz,significando o julgamento radical dos oponentes (v. 14) de Deus. Nestesentido, a reconciliação não se opõe à libertação, mas a complementa.

J

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VII. Objetivos da lutacontra a pobreza

A primeira intenção da luta contra a destituição e a miséria éerra dica r a fome, o analfabetismo, as doenças desnecessárias, asmás condições de habitação e satisfazer as necessidades humanasbásicas. 1 Entretanto, o objetivo final da luta contra a pobreza é aeliminação de todas as formas de opressão: racial, social, econô-mica, política, sexista entre outras. Embora pareça utópico é esseo objetivo de todos os que lutam em favor de uma sociedade justa,participatória e sustentável."

Do ponto de vista cristão, o processo de libertação dura a vidatoda. O objetivo último da luta contra a pobreza é criar a socie-dade humana sem opressores nem oprimidos, onde todos se esfor-çam para ser verdadeiramente humanos.

Superação da lei do mercado: socialização dos meios de produção

A raiz da pobreza manifesta-se no mundo moderno na inca-pacidade do assim chamado "livre mercado" de oferecer trabalhoe participação nos processos decisórios à maioria da populaçãomundial. Quase um bilhão de seres humanos não acham empregoregular e não podem, por isso, contar com um mínimo de saláriopara suprir as necessidades básicas. Este fato desafia as igrejas eos cristãos a se comprometerem em movimentos que favorecema mudança.

A opressão tem aumentado no mundo neste último século coma expansão do capitalismo e com o desenvolvimento do sistema delivre empresa. Este sistema da propriedade privada das terras, dosrecursos provenientes dessas terras, dos meios de produção e datecnologia oferece a alguns o poder necessário para possuir e con-trolar até mesmo as vidas de muitos seres humanos; resulta emtodos os tipos concebíveis de opressão e desumanização (escravidão,racismo, exploração econômica etc.); a tem até mesmo dado a cer-tas nações o direito de ultrapassar os próprios limites geográficos

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para, em nome da "civilização", impor o colonialismo e o controlegovernamental sobre outros povos ao mesmo tempo em que explo-ram seus recursos humanos e naturais." Quase todos os sistemaspolíticos, sociais e econômicos do mundo, e outras instituiçõesincluindo a igreja têm sido influenciados por procedimentos dessetipo. O assim chamado sistema da livre empresa tem concedido apoucas pessoas direitos quase ilimitados não só para controlar mastambém para dominar as vidas de muitos, ,5

Este capítulo pretende discutir meios alternativos de proprie-dade e de produção capazes de superar boa parte dos problemashumanos resultantes de sistemas dominados, influenciados ou con-dicionados pelas "leis do mercado". Daremos, então, atenção acertas linhas de ação .e, de pensamento necessárias para melhorara condição do povo e superar a pobreza e a opressão, tendo emvista a transformação do atual sistema de livre mercado e de livrecomércio.

Para se evitar a marginalização econômica dos pobres há trêstipos de decisões que o sistema sócio-econômico precisa controlar.

Em primeiro lugar, emprego de toda a força de trabalho, seja naindústria ou em meios tradicionais de produção mais simples. Umadas mais sérias fantasias do sistema da livre empresa consiste empensar que se pode subir dos mais baixos níveis à mais plena rique-za. A verdade é que os sistemas capazes de criar os ricos maistiranos cria também os pobres mais desprezíveis. O objetivo, por-tanto, da propriedade coletiva da terra e dos meios de produção éa criação de um sistema por meio do qual a comunidade popularpassa a ser dona da terra, dos meios de produção e distribui, assim,os bens e os serviços. Com isso, controla-se a aplicação da tecno-logia moderna para se evitar a destruição dos grupos de produçãomais tradicionais e mais simples. Como provam exemplos históricoscontemporâneos, é possível o decréscimo substancial do desempre-go, e mesmo o alcance de índices satisfatórios de emprego em curtoprazo, quando .os meios de produção passam a ser socializados,controla-se a tecnologia consistentemente, e o alvo do processodeixa de ser o crescimento econômico a qualquer preço, dandolugar à auto-confiança. ~

Em segundo lugar, o controle da distribuição da receita coma finalidade de garantir a satisfação das mais profundas expecta-tivas e necessidades de todos. Leva-se em consideração, para essefim, a limitação correspondente das disparidades a nível de receita,"

Em terceiro lugar, a essencial e inevitável integração na divi-são internacional do trabalho deve ser reconhecida de tal maneiraque o desenvolvimento econômico satisfaça as duas condições já

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mencionadas, isto é, pleno emprego (com participação no processodecisório) da força de trabalho, ao lado do controle da tecnologiae da organização da distribuição de modo que satisfaça as maisprofundas expectativas e necessidades básicas dos seres humanos.É provável que se tenha de rejeitar o capital estrangeiro e transna-cional como elemento mediador para se obter essa divisão interna-cional do trabalho. 8

Somente quando a liberdade dos países dependentes em taisdecisões é assegurada podem as leis do mercado ser consideradassob adequado controle. Sem essa liberdade não se pode imaginara libertação dos pobres. As decisões desse tipo pressupõem a rees-truturação do sistema sócio-econômico responsável pela institucio-nalização da pobreza estrutural. Para isso é necessário que as deci-sões comerciais se submetam a adequados sistemas de planeja-mento, e que haja, por outro lado, a correspondente socializaçãodos meios de produção. 9 O planejamento e a socialização dos meiosde produção tornam-se essenciais para que os países possam tomartais decisões básicas, embora o grau de centralização do planeja-mento e o nível da socialização dos meios de produção dependamda situação real de cada país.

Os três tipos mencionados de decisões são os que hoje em diapodem garantir êxito na luta dos pobres contra a pobreza. A con-clusão é inevitável. Deixa claro o compromisso com os pobres,dando-lhes o mais alto valor nos relacionamentos sociais. 10

Esta convicção decorre de reflexão em dois níveis: compromis-so com a causa dos pobres, baseado na Bíblia, que nos vem deseus textos e intenções. O outro nível, entretanto, é analítico e en-volve reflexão sobre as implicações políticas da opção pelos pobres.Baseia-se em estudos de experiências sociais e dos resultados decertas teorias. 11

As condições prevalescentes que criam o desemprego, impe-dem a participação e consolidam a pobreza, não são efeitos decausas naturais nem da tecnologia. Resultam do sistema social eeconômico que as cria e que se mantém na medida em que delasse alimenta.P As características fundamentais desse sistema são adominação e a opressão. Depende delas para existir. Nesse contex-to, a libertação humana, especialmente a libertação social do pobre,opõe-se à livre empresa que manipula o livre movimento dos pre-ços e do capital segundo a lei do mercado. Não se trata de inten-ções boas ou más, nem tampouco da assim chamada responsabili-dade social da propriedade privada. A marginalização dos pobresdecorre da própria maneira como funcionam as leis da "economiado livre mercado", que libera os preços e oprime os seres humanos.

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A libertação dos pobres não é compatível com a libertação dos pre-ços. 1,3 Tanto a propriedade privada dos meios de produção comoo controle do mecanismo dos preços segundo as premissas da leido mercado, resultam na opressão dos pobres e na consolidação dapobreza estrutural.

A decisão em favor da libertação dos pobres leva-nos ao con-fronto com as estruturas vigentes do sistema sócio-econômico. Nabase deste confronto está o problema econômico da satisfação dasnecessidades básicas de todos igualmente. Entretanto, esta exigên-cia econômica só pode ser enfrentada na prática mediante a mu-dança das estruturas sócio-econômicas, por meio de ação políticaa ser alcança da juntamente com a mudança de valores. As mudan-ças de valores, segundo a opinião de especialistas, originam mu-danças nos sistemas políticos que, por sua vez, ajudam a transfor-mar sistemas econômicos. H

A alternativa à atual situação não pode ser a simples aboliçãodas leis do mercado por meio da mera supressão do próprio mer-cado. Não seria realista imaginar a economia atual funcionandosem o emprego de relações comerciais, de mecanismos de mercadoe de recursos financeiros. Contudo, seria uma alternativa adequadao estabelecimento de um sistema sócio-econômico capaz de superareficazmente a atual pobreza do mundo: um tal sistema controlariaas leis do mercado e não apenas remediaria seus efeitos. As decisõeseconômicas fundamentais não podem, pois, ficar ao arbítrio das leisdo mercado.

Orientações

Os pobres e os que trabalham em seu benefício não devemesmorecer na tarefa de criar alternativas de auto-desenvolvimento.Tais esforços precisam ser exercitados em pelo menos três níveis:no dos valores, das instituições e dós sistemas. Certas orientaçõescomeçam a aparecer do meio das atuais lutas populares ..•.

Em primeiro lugar, no nível dos valores, a necessidade de su-perar os modelos vigentes de economia e sociedade, resultantes daaplicação da lei do mercado, implica na escolha de alvos coletivosem lugar dos individualistas. A busca de comunidade, para o cam-partilhar, para o reconhecimento dos fardos dos outros, especial-mente dos mais fracos, precisa ser prioritária. Certamente, vai comisso a afirmação da responsabilidade social e da subjacente coleti-vidade, em oposição aos antigos modelos baseados no egoísmo tãoevidente nos setores mais ricos da sociedade. O caminho fica abertoa experiências de novos estilos de vida, baseados em responsabili-dade social e na busca da verdadeira comunidade. Pressupõe-se,

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11,"':

destarte, radicais mudanças dos antigos modelos utilitários que têmmoldado os atuais sistemas de valores nas sociedades fundamenta-das no "livre mercado". 15

Em segundo lugar, ao nível das instituições, nota-se o desejocrescente por estruturas participatórias nos processos decisóriosem todos os níveis. Quando essas estruturas passam a existir, tor-nando possível a existência de condições de solidariedade entre osque têm e os que não têm, pode-se esperar certos desenvolvimentosde sentimentos de identificação entre os privilegiados e os maispobres. Como percebeu o antigo Ministro do Desenvolvimento daHolanda, [an Pronk: "A identificação só é possível quando nospaíses ricos os abastados se identificam com as necessidades dospobres nesses próprios países. Na verdade, a desigualdade dentrodos países ricos decorre do mesmo processo econômico capitalistaresponsável pelo mesmo tipo de situação entre estados e no interiordos países em via de desenvolvimento. Além disso, somente pormeio dessa identificação poderão as massas dos países ricos se iden-tificar com os pobres do Terceiro Mundo. Este raciocínio nos levaa conseqüências de grande alcance. Significa que a política voltadapara a igualdade no interior dos países ricos e industrializadostorna-se pré-condição para qualquer política destinada a promovera igualdade internacional. Minha proposta, pois, consiste em darprioridade à busca da igualdade econômica e social dentro dosassim chamados países ricos. .. Entendo que tal propósito só po-derá ser levado a efeito no âmbito de um sistema socialista". 16 Asinstituições participatórias, ao se constituírem, conduzem-nos a cor-reções fundamentais dos mecanismos de dominação impostos pelaaplicação da lei do mercado.

Em terceiro lugar, os resultados dos novos valores e das novasinstituições são novos sistemas, nos quais a lei não precisa ser ado jogo do mercado, mas o imperativo da auto-confiança: sistemasnovos onde a opressão não precisará ser necessariamente o destinodos pobres, mas nos quais os seres humanos conhecerão existenciale estruturalmente o que significa libertação. Essas idéias poderãoser consideradas utópicas. Mas sem tais objetivos, táis motivações,será impossível imaginarmos a possibilidade de mudanças sociais,políticas e econômicas. Estes sistemas, embora baseados em idéias,não resultarão primeiramente de teorias, mas da ação popular. Va-mos citar [an Pronk de novo: "A auto-confiança significa que osobjetivos e instrumentos das políticas de desenvolvimento precisamser adaptados à situação específica desses países bem como às futu-ras estruturas sociais, políticas e econômicas por eles desejadas.Essas estruturas poderão diferir inteiramente do capitalismo, dosocialismo ou do comunismo, nada tendo a ver com os atuais siste-

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mas conhecidos no Oriente e no Ocidente. A auto-confiança tam-bém quer dizer que a escolha dos objetivos e dos instrumentosdeve ser livre, sem a influência dos interesses da economia estran-geira nem dos poderes políticos e militares. Neste momento, porém,as empresas multinacionais e as nações ricas e poderosas ainda in-fluenciam e dominam boa parte das decisões e escolhas feitas pelospovos do Terceiro Mundo, de tal modo que devemos admitir queem 1974 a auto-confiança ainda significa 'libertação'." 17 O que ospobres desejam é precisamente um mundo libertado da opressãoe da injustiça.

Os pobres e os que com eles trabalham são responsáveis, por-tanto, pelo uso constante de pressão em favor de mudanças. Ospobres em quase todas as sociedades onde ocorre opressão consti-tuem a maioria. Queremos dizer que os pobres por meio de açãoconjunta e massiva têm meios suficientes para se engajar nessa luta.Reconhecendo, então, esse potencial, os pobres e os que trabalhamcom eles deveriam continuar a planejar e a aperfeiçoar estratégiaspara:a) apropriação coletiva dos meios tíe produção, de tecnologia e de

conhecimento;b) criação de estruturas participatórias a nível de controle demo-

crático da política envolvida com o processo decisório relacio-nado também com a produção, com o consumo e com a apro-priação dos excedentes; para esse fim torna-se necessária a com-binação do planejamento com a auto-gestão das empresas obrei-ras; como resultado final teríamos aumento em auto-confiança;

c) desenvolvimento do poder do povo, necessário para equilibrara tendência de dominação oriunda de aparatos que exercem in-fluência, como as burocracias;

d) mudança e abandono de impostos e outras leis destinadas espe-cificamente a tornar os ricos mais ricos e os pobres mais po-bres; por exemplo, as empresas transnacionais em muitos paísesgozam de vàntagens fiscais e de concessões que transferem opeso dos impostos necessários à manutenção de governos ambi-ciosos dos ricos para os pobres; dessa maneira, os pobres nãotêm outra alternativa a não ser exigir vantagens fiscais em fa-vor da equidade; reformas fiscais são, pois, necessárias para aerradicação da pobreza e de suas causas;

e) limitação da quantidade de terra e de riqueza como posse deuma só pessoa (física ou jurídica); na maior parte dos paísesocidentais a simples observação das leis já existentes sobreimpostos seria suficiente para acabar com tais abusos; nos Es-tados Unidos, por exemplo, as pessoas pagam imposto em pro-

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porção à renda familiar; entretanto, são inúmeras as possibili-dades de exceção para burlar essa lei;

i) redistribuição da terra e da riqueza em base mais justa; paramuitos seria uma idéia absurda; entretanto, para o cristão "aterra é do Senhor, e é dele a sua plenitude"; se a Igreja aindaacreditasse nessas coisas, advogaria, por exemplo, a celebraçãode um "ano do jubileu" segundo a descrição do capítulo 25 deLevítico;

g) estabelecimento de novos valores, não mais baseados na pro-priedade da riqueza material privada, mas na riqueza e digni-dade humana coletivas.

Dois exemplos

Temos este exemplo dos países ricos: no suleste dos EstadosUnidos começam a surgir cooperativas para o desenvolvimento.Baseiam-se no princípio do controle do povo sobre a propriedadeda terra, os meios de produção, e a distribuição de bens e serviços.Pratica-se o princípio do voto popular.

Vamos examinar uma dessas cooperativas conhecida pela si-gla SEASHA (South East Alabama Selj-Help Association) que, emnossa língua, significaria, Associação de auto-ajuda do suleste deAlabama. Ela se relaciona com uma rede de cooperativas de pes-soas pobres ao longo do suleste dessa região - abrangendo cercade 14 estados - criando um processo por meio do qual os pobresprocuram se libertar da pobreza.

SEASHA, segundo os princípios cooperativos, alcança vastaárea nessa parte do Alabama. Cada uma das 12 regiões envolvidastem 2 representantes na diretoria da entidade. Essa diretoria esta-belece a política da associação, seus objetivos, e planos para im-plementá-los. Responsabiliza-se pela contratação de um presidentee o assiste na formação de seus auxiliares. O presidente e seugrupo de trabalho implementam no dia a dia as decisões da dire-toria. O principal objetivo da associação consiste em "eliminar oparadoxo da pobreza no meio da riqueza de lugares como Barbour,Bullock, Coosa, Grenshaw, Elmore, Lee, Lowndes, Macon, Mont-gomery, Pike, Russell, e Tallapoosa, reunindo-se a outras áreas doAlabama e da nação num esforço concentrado para eliminar apobreza ao oferecer a todos oportunidades de trabalho e de umavida decente e íntegra."

A associação do Alabama cria, então, certo número de proje-tos econômicos que se auto-perpetuam, capazes de gerar rendanecessária para a própria manutenção ao mesmo tempo em que

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fomenta capital excedente destinado a novo crescimento r di .111volvimento.

Nessa linha, SEASHA opera cinco principais projetos:1. A cooperativa agrícola destinada a prover assistência ti produ

ção, marketing, gado de corte, serviços financeiros e de C 1'('

dito para seus membros nas doze regiões onde atua;2. Lares, oferecendo habitação decente para seus membros.3. Carteira de empréstimos destinada a suprir necessidades pes-

soais.4. Desenvolvimento de negócios para ajudar na melhoria, no pla-

nejamento e no desenvolvimento de novos componentes paraas empresas da cooperativa.

5. Serviços comunitários com o objetivo de organizar os pobresnaquilo que lhes interessa. Ajuda-os na manutenção de serviçospúblicos já existentes e a estabelecer melhoramentos em casase instituições que lhes pertencem. Estão nesta linha os serviçosde saúde, de auxílio à infância, e outros projetos comunitá-rios." -O outro exemplo nos vem da União Soviética. Trata-se do

processo de coletivização levado a efeito em regiões rurais dessegrande país. A forma de cooperação produtiva mais rentável parao camponês tem sido a fazenda coletiva (kolkhoz), onde os traba-lhadores de renda baixa e média são admitidos na mesma base ese socializam os meios de produção: terra, parte do gado e dosimplementos. Predomina o elemento coletivo, passando a papelsubsidiário o indivíduo. A distribuição da renda obedece a crité-rios de quantidade e qualidade de trabalho aí realizado.

Essas cooperativas estabeleceram-se com facilidade em regiõesde culturas destinadas ao mercado industrial, como, por exemplo,as de algodão, que acabavam sendo negociadas pelo estado. O pro-cesso não foi ~o facilmente assimilado em áreas de tipo nômadeou semi-nômade, onde ainda predominava certo tipo de economiade subsistência. Por meio de irrigação e de novo equipamento téc-nico de agricutura, as cooperativas de camponeses conseguiramtransformar as regiões rurais e erradicar a pobreza."

NOTAS1. Cf. Employment, growth and basic needs, Genebra, International La-

bour Office, 1976. Documento preparado em conexão com a ILO Con-ference on Employment, Genebra, 1976.

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cr, o relatório da Comissão Consultiva da Comissão Central do Conse-lho Mundial de Igrejas sobre "A sociedade justa, participatória e sus-tentável", preparado para a reunião da mesma comissão que ,se reuniuem Iamaica, Kingston, em janeiro de 1979, especialmente o capítulosobre justiça como principal objetivo.

3. Cf. os capítulos I e 11 deste livro.4. Cf. o que diz Tissa Balasuriya em The development of the poor through

the civilizing of the rich, p. 25: "As causas do subdesenvolvimento dospovos colonizados da Ásia, África e América Latina devem ser enten-didas historicamente. Esse subdesenvolvimento coincide com o surgi-mento dos atuais centros de poder no mundo. A presente ordem mun-dial injusta veio da expansão dos povos europeus durante os últimosquatro e cinco séculos. Do ponto de vista do homem ocidental foramépocas de grande expansão, triunfo e crescimento. Para os outros foramséculos de derrota, colonização, roubo e exploração. O homem ocidentalsistematicamente devastou as nossas terras, subjugou nossos povos, atémesmo exterminando alguns, colonizou outros e marginalizou a todos.Nossas economias desenvolveram-se para servir a suas necessidades,coisa que ainda persiste entre os que ainda se abrem a ele." Colombo,Center for Society and Religion, 1973.

5. É o que se lê no relatório da Seção VI sobre "Desenvolvimento humano:ambigüidades do poder, da tecnologia e da qualidade de vida", da VAssembléia do Conselho Mundial de Igrejas, parágrafos 41 e 42: "Odesejo de controlar os recursos mundiais sempre foi e ainda é a razãobásica do exercício do poder econômico e do estabelecimento de estru-turas exploradoras de dominação e dependência. O colonialismo foi aforma clássica dessa atitude. Hoje em dia o colonialismo apresenta-sede forma mais sutil, conhecido como néo-colonialisrno, e age mediantea exploração levada a efeito pelas nações ricas em detrimento das po-bres. Entre as formas que assume acham-se as empresas transnacionaise estatais. Concentram poder econômico e tecnológico nas mãos depoucos. .. Essas empresas (assim chamadas transnacionais) alegam tra-zer capital e tecnologia aos países onde operam criando assim novasrendas e empregos. Mas, essencialmente, aproveitam a mão-de-obrabarata, lucrando com isso, e controlando os preços e os mercados mun-diais. .. As empresas transnacionais são exemplos típicos da maneiracomo as forças capitalistas nas esferas nacionais e internacionais seunem para oprimir os pobres e mantê-los subjugados. Discute-se hojeem dia o emprego de medidas para avaliar essas atividades, mas porcausa do imenso controle que exercem sobre os canais da economia de"livre mercado" internacional, é bem difícil esperar resultados quelevem à erradicação de seus modelos inerentemente exploradores:" VerDavid M. Paton (ed.), Breaking barriers: Nairobi 1975, p. 130 e 131,Grand Rapids, Michigan; WmB Eerdmans, and London, SPCK, 1976.

6. CL o relatório de Dag Hammarskjold, de 1975: What now, p. 58 e 59:"Os habitantes da Tanzânia não afirmam já ter alcançado o desenvolvi-mento participatório, auto-confiante, e socialista, mas ter começado alonga transição para esse estágio. Não dizem que o centro uiamaa davila já alcançou o pleno desenvolvimento rural, mas que começa aemergir. A natureza participatória da transição não nos permite falara respeito de modelos pormenorizados para o ano 2000 em oposição aseqüências e programas que evoluem dentro de quadros estratégicos.Os resultados obtidos entre 1967 e 1975 abrem-se para novos desenvol-vimentos. As necessidades básicas - alimentação, habitação, água, edu-

114

cação de massa, saúde, e utilização de excedentes para aumentar aprovisão de bens essenciais - são centrais à estratégia econômica. Aquestão da auto-confiança orienta os principais programas para as ci-dades, regiões, nação e relações internacionais. A desigualdade de rendae o acesso aos serviços básicos têm sido reduzidos rapidamente tantopela redistribuição como pelo aumento da produção. A participação ea descentralização distanciaram-se do ponto de partida colonial, autori-tário, e burocrático, com o aumento de um partido socialista de massaque controla os assuntos relacionados com a estratégia e com a políticabásica." (O itálico é do editor). Uppsala, Dag Hammarskjold Founda-tion, 1975. Sobre semelhante processo em Cuba, examinar o relatórioda CCPD, Unidade II, do Conselho Mundial de Igrejas, da visita feitaa Cuba de 20 de fevereiro a 5 de março de 1978 apresentado à reuniãoda mesma entidade realizada em Sofia, em junho do mesmo ano.

7. CL a declaração de Samuel Parmar em "Ecumenical Consultation on.Ecumenical Assistance to Development Projects" (26 a 31 de janeirode 1970, Montreux): " ... as altas taxas de crescimento que levam àauto-confiança dependem de justiça distributiva. Hoje, em todas aspartes do mundo, não apenas nos países subdesenvolvidos, levanta-se arevolta dos deserdados. A não ser que a sociedade lhes atenda, o pro-cesso produtivo haverá, de se deteriorar constantemente. A busca deprogramas baseados na justiça social é o único caminho para a supera-ção do descontentamento das massas capaz de conseguir o seu apoiopara os programas de desenvolvimento." Pamela Gruber (ed.), Fettersof iniustice, p. 51, Genebra, WCC, 1970.

8. CL o relatório do Colóquio sobre "Auto-confiança e justiça internacio-nal", realizado no Instituto Ecumênico de Bossey, em abril de 1976.Genebra, WCC, 1976.

9. CL To break the chains oi oppression, p. 79, Genebra, CCPDjWCC, 1976.10. CL Reginald Herbold Green: "Accumulation, Distribution, Efficicency,

Equity and Basic Human Needs Strategies: Some Political EconomicImplications and Conditions.' Estudo apresentado no encontro da As-sociação Internacional de Economistas com a Associação Internacionalde Economistas Políticos, em junho de 1978, p. 41 e 42, e especialmente46: "Porque as necessidades humanas básicas são parte de uma estra-tégia revolucionária baseada numa visão igualitária e comunitária dasociedade, dificilmente virão a ser adotadas sem, luta ... Seu sucessodepende, pois, da existência no atual contexto histórico, político, econô-mico e intelectual, da possibilidade de mobilização em apoio dessas ne-cessidades humanas básicas entre número substancial de políticos".•..

11. Dag Hammarskjold Foundation, op cit, p. 13 e 14.12. CL Celso Furtado, Prefácio a nova economia política, p. 44-51, sobre as

medidas do produto social e do sistema de preços. Examinar, tambéma afirmação de Constantine Vaitsos: "A tecnologia desenvolvida e em-pregada pelas empresas transnacionais em operações mundiais decorrede atividades de pesquisa e desenvolvimento no mundo industrializadoconcentradas principalmente nos países onde essas empresas estão sedia-das. (Por exemplo, em 1966, as transnacionais baseadas nos Estados Uni-dos desenvolveram 97 % de suas atividades de pesquisa e desenvolvi-mento no próprio solo americano). O desenvolvimento tecnológico diri-ge-se a processos de produção tendenciosos como resultado de níveisabsolutamente elevados de lucro, acúmulo de capital, custos relativa-mente altos da mão de obra, e produção de bens e serviços em larga

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escala. A aplicação desses processos em geral sem qualquer adaptaçãopor firmas nacionais ou subsidiadas por capital estrangeiro nos paísessubdesenvolvidos, resulta quase sempre não só numa utilização relati-vamente inadequada mas também a diretos deslocamentos da mão deobra. Tais deslocamentos se dão até mesmo sob condições de expansãoda produção. Assim, a orientação tecnológica resultante acentua os pro-blemas existentes da distribuição desigual da renda - tanto no inte-rior do país como internacionalmente - e impede que se desenvolvamoportunidades de emprego no Terceiro Mundo", Guy F. Erb e ValerianaKallab (eds), Beyond dependency, p. 87. Washington, Overseas Deve-lopment Council, 1975.

13. Celso Furtado, op. cit., p. 48:"A medição do produto do trabalho em um subsetor determinado, sejaeste complexo como uma usina de automóveis ou simples como umabarbearia, somente pode ser feita a partir de um sistema de preços.Como a remuneração do trabalhador se comporta como fator exógeno,produto das forças que determinam o custo de reprodução da população,cabe ao sistema de preços desempenhar a função de regulador da re-partição do excedente (excluída a parte apropriada por meios institu-cionais) em função da acumulação previamente realizada nas unidadesprodutivas (perequação da taxa de lucro)".

14. Cf. Reginald Herbold Green, op. cit., p. 30: "As necessidades humanasbásicas não têm, por certo, o mesmo conteúdo específico do cresci-mento ou da tecnologia nem mesmo dos sub-modos de produção esco-lhidos pela maioria das pessoas em cargos decisórios, Essa questãorefere-se, no entanto, à plausibilidade de se ver o crescimento em termosdesagregadores e mais como meio do que fim, e não tanto às condiçõesde sua facticidade política."

15. Discute-se aqui o tema dos "novos estilos de vida". Sobre o assuntoveja-se os dossiês números 10 e 11 da CCPD, In search of the new, I-lI,Genebra, WCC/CCPD, 1976 e 1977.

16. Cf. Jan Pronk, "Development in the 70"s: Seven Proposals", The Ecume-nical Review, Volume XXVII, n. 1, janeiro de 1975, p. 22.

17. Ibid., p. 17.18. Cf. o Prospecto da Associação.19. Yuri Ivanov, The road of progress, p. 30-33, Moscou, Novostny Press

Agency, 1977.

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2.o desafio dos pobres e suaimportância para a Igreja

-e

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VIII. Os pobres desafiam a igreja Ele me escolheu para anunciar as Boas Notícias aos puhl'l~1Ie me mandou anunciar a liberdade aos presos,dar vista aos cegos,pôr em liberdade os que estão sendo maltratados,e anunciar o ano em que o Senhor vai salvar o seu povo."(Lc 4. 18 e 19).

Quem é esse pobre? "São os oprimidos, os marginalizados dasociedade, os membros do proletariado na luta por seus direitosbásicos; é a classe social explorada e roubada, o país em buscade libertação."! Esse pobre pode ser encontrado tanto dentro comofora da igreja.

O desafio é o seguinte: Irá a Igreja se identificar com estacomunidade dos pobres em sua luta pela libertação, ou escolheráo caminho da neutralidade? A escolha há de ser inevitável. O ladoque escolher dependerá da maneira como entende o Jesus históricoe o Cristo da fé em seu envolvimento com a história humana,não apenas em favor da redenção de Israel mas de todo o mundo.A Igreja pode optar pelos pobres ou pelas forças sociais que criama opressão, a desumanização e à pobreza.

A Igreja não pode ficar neutra na sociedade. Está de um ladoou de outro. Quando ela silencia em face dos problemas vitais dapobreza e da angústia humana é porque está do lado do sistemaopressor que empobrece mais de três quartas partes da populaçãodo mundo. O silêncio é aquiescência. Aceitação é colaboração.

A Igreja tem tentado, muitas vezes, manter-se acima dos pro-blemas, ao adotar políticas de neutralidade, ou ao se aliar com ospoderosos para tratar dos problemas dos pobres," Mas a Igrejacomeça a ser desafiada pelos pobres para se identificar com elesa fim de se transformar num agente viável e vibrante nas mãosde Deus para a libertação humana. A Igreja está sendo desafiadaa participar no sofrimento da comunidade dos pobres, dos deser-dados, dos vitimados, dos marginalizados e dos amargurados. Elaestá sendo desafiada a se unir em solidariedade na luta pela jus-tiça com todos os que vivem na miséria, com fome, e sem saída;esses que são considerados cidadãos de segunda classe, escravose desgraçados,"

"Para que a proclamação do Evangelho tenha sentido emnossos dias, é preciso que se relacione com as lutas em favorda justiça, porque é esse o lugar onde o povo se encontra. Emoutras palavras, o Evangelho deve ser proclamado a homens emulheres, não isoladamente, mas no contexto da solidariedadesocíal.?'

Um seminarista que se dedicava ao aconselhamentô pastoralfoi ajudar um pastor numa igreja rural. Certa manhã viu que umacega era conduzi da por seu marido na direção de seu escritório.Pensou: "Até que enfim vou colocar em prática a minha teoriado aconselhamento pastoral." Quando o casal chegou e se acomo-dou em frente à sua mesa, prontos para explicar ao jovem pastoro que buscavam, ele começou a falar. Falou o que sempre tevevontade de falar, sem parar, durante um bom tempo até que amulher não agüentou mais. Disse ela: "Espere um pouco, quemé você?" O seminarista respondeu: "Eu sou o auxiliar ... ", e foiinterrompido antes de explicar que era o assistente do pastor. Asenhora reclamou: "Olhe, rapaz, eu não tenho tempo para brin-cadeiras. Não quero conversar com nenhum auxiliar ou assistente,eu quero conversar com o pastor que pode me ajudar em minhasnecessidades. Eu vim aqui porque estou perturbada, triste. Vimporque acho que a igreja pode me auxiliar a resolver os problemasque tenho. Não tenho tempo para perder com brincadeiras; mos-tre-me logo o pastor de verdade que pode me ouvir."

Chamado à igreja apáticaf: nesses mesmos termos que os pobres dentro e fora da igreja

institucional a ela se referem - com essas mesmas palavras dedesafio. Querem que a igreja volte a definir seus objetivos origi-nais em relação ao compromisso que tem com Jesus Cristo. Ospobres estão desafiando as igrejas a repensar a missão e a reorde-nar as prioridades à luz do papel redentor na história humana pro-clamado no evangelho. Eles desafiam a igreja a respeito de suaidentidade verdadeira no mundo. Como a igreja se vê a si mesmaao ser chamada para pregar a mensagem das boas novas aos po-bres? Será que a igreja escolheu mesmo ser a serva daquele quedisse:

"O Espírito do Senhor está sobre mim.

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A outra dimensão desse desafio, dizem os pobres, é a insen-sibilidade da Igreja perante seus problemas e necessidades. Elatem falhado em se identificar com eles ou em lhes mostrar solida-riedade. Não só tem empregado retóricas vazias, de sabor teoló-gico e eclesiástico sobre participação e envolvimento, mas só sete mouvido a si mesma, fazendo muito pouco em termos sociais.Está dedicando pouco tempo ao auto-exame crítico e ao verdadeiroencontro dialético com os pobres, feridos e maltratados pelas socie-dades opressivas.

Os pobres estão dizendo: "Não temos tempo para brincar.Não queremos comunicados das igrejas: queremos comunicação.Se a Igreja não se mostrar aberta para o diálogo vamos procuraroutros canais de comunicação em outras organizações ou institui-ções desejosas de nos prestar ajuda. Vamos entrar para institui-ções que se dirigem concretamente ao problema existencial visívelem nossa pobreza e degradação".

Está a Igreja preparada para responder?

Poderá a Igreja ser este lugar de diálogo com os pobres? Es-tará a Igreja desejosa e preparada para responder às exigênciasdesse desafio dos pobres ou deveriam os pobres buscar ajuda forada Igreja institucional em sua luta pela libertação? A Igreja pre-cisa, mais do que nunca, de reflexão objetiva e crítica sobre o nívelde seu envolvimento e participação na luta dos pobres em seufavor. Esta reflexão será melhor realizada a partir da perspectivados pobres."

Historicamente a Igreja se tem identificado, com frequência,com os sistemas opressores da sociedade, sejam eles sociais, polí-ticos, econômicos ou raciais. :É evidente que em muitas ocasiões(sem invalidar, é certo, outras contribuições que já fêz) ela legiti-mou estruturas opressoras e grupos no poder. Acomodou-se a essasestruturas e até mesmo tentou tirar proveito próprio com vistas aseu crescimento e sobrevivência.

José Miguez Bonino ajuda-nos a entender a questão, quandocomenta o trabalho de Benoit Dumas, um dominicano francês. Re-ferindo-se à sua obra, The two alienated faces o] the one Church,Bonino sugere: "A tese básica de Dumas é de que os pobres per-tencem à compreensão do mistério da Igreja, ou se quisermosutilizar outra linguagem, que eles pertencem à própria natureza daIgreja. Ele afirma que se a identidade da Igreja se acha em JesusCristo, ubi Christus ibi ecclesia, então devemos prestar atenção aodito de Jesus de que estaria presente quando suas palavras fossemlembradas e sua refeição recebida por todos, e que estaria também

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presente nos pobres e oprimidos. O padre Dumas usa, naturalmente,Mateus 25 como texto básico. Não vou me empenhar aqui numainterpretação sacramental porque não me parece que seu pontode vista dependa da interpretação desse texto. Podemos encontrarem apoio inúmeros outros textos bíblicos. Seu ponto de vista éválido de qualquer modo. Ele nos diz que na presente situaçãodas igrejas, a Igreja não se reconhece nos pobres. Pode reconheceros pobres enquanto parcela importante do mundo, mas a Igrejanão se reconhece neles, e os pobres, por sua vez, não reconhecemo Cristo na Igreja. Trata-se de uma situação de perda de identidadeou de auto-alienação da Igreja, situação essa em que a Igreja, afi-nal, não é mais a Igreja. A Igreja que não é mais a Igreja dos po-bres põe em risco o seu caráter eclesial. A questão dos pobrestransforma-se, pois, numa questão eclesiológica."

A mensagem do púlpito com sua pesada ênfase no outromundo, sua reflexão teológica abstrata e desvinculada da vida real,c sua atitude patemalista, apenas beneficia as estruturas domi-nantes da sociedade. A Igreja tem apoiado as instituições vigentes,com suas injustiças, e batizado com aprovação religiosa os quemanipulam o sistema por causa de interesses de classe, sócio-polí-ticos e econômicos.

Na América do Norte, por exemplo, houve igrejas que apoia-ram a escravidão por muito tempo. Grande número de cristãosbrancos acreditam que não havia nada errado nisso.' Até mesmocitavam certas passagens da Bíblia para justificar a posição (Ef6.5-8, 1 Co 7.17-24), além de outras autoridades. Haviam brancosque até iam mais longe tentando provar pelas Escrituras que asoutras raças particularmente a negra, vieram dos filhos amaldiçoa-dos de Cão (filho de Noé) e que, portanto, a Igreja podia muitobem se unir às forças coloniais e explorá-Ias.

Outro exemplo nos vem dos tempos pré e pós coloniais naAfrica." Na época colonial os missionários europeus e americanostrabalharam ao'lado dos colonizadores, administrando os programascoloniais juntamente com eles, contra os africanos, de tal modoque não se via diferença alguma entre Igreja e Estado. Mbiti es-creve: " .. os missionários cristãos vindos da Europa e da Américapenetraram no interior da África pouco antes da ocupação colo-nial ou juntamente com ela. A imagem recebida pelos africanos,ainda presente hoje, é de que o cristianismo tem muito a ver comas práticas colonialistas. Ainda estamos demasiadamente perto da-quela época 'para fazer a dissociação. Este provérbio Gikuzu ex-pressa o fato muito bem: 'Não há diferença entre sacerdote cató-lico romano e europeu - são a mesma coisa' ."9

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Sob o regime colonial a Igreja perde a universalidade. FrantzFanon, referindo-se ao problema diz: "A Igreja se tornou a Igrejados brancos, dos estrangeiros. Não chama os nativos a viver noscaminhos de Deus mas segundo o estilo do homem branco, dochefe, do opressor" .10

Na África do Sul, onde milhões de africanos são explorados,a Igreja tem feito muito pouco em termos de solidariedade paracom os que lutam em favor dos pobres pela libertação das comu-nidades oprimidas." Cosmas Desmond, sacerdote que trabalhou naÁfrica do Sul, mostrou como a política do apartheid não só vemapoiada pelo poder político colonial mas também por algumasigrejas que falham no exercício de seu papel profético e não pro-nunciam o julgamento de Deus sobre os opressores. A Igreja nãoé chamada para apoiar silenciosamente a opressão, mas para adotara opção revolucionária sob o mandato do Evangelho."

A Igreja ainda reflete Cristo?

A mensagem e as atividades da Igreja hoje em dia nem semprerefletem a presença de Cristo entre nós. Os pobres perguntam: "Je-sus ainda está na Igreja?" Alguns sugerem que é a Igreja que estámorta e não Deus ou Jesus Cristo. Deus em Jesus Cristo está vivoe ativamente envolvido na história humana para reconciliar omundo consigo; mas a sua presença não mais se manifesta de ma-neira clara na instituição eclesiástica. Isso porque boa parte da lin-guagem, liturgias, cânticos, mensagem e interpretação do cristia-nismo tornou-se obsoleta e irrelevante para a nossa sociedade mu-tável. Os corpos eclesiásticos distanciam-se dos sinais dos tempose continuam a empregar metodologias missionárias atrasadas quenada têm a ver com as complexas sociedades contemporâneas.

Por exemplo, na África, nas Américas e na Ásia e outraspartes do mundo tocadas pela pobreza, vê-se a proliferação deinúmeras novas igrejas entre o povo." Os pobres amadurecem ese tornam conscientes de que as estruturas eclesiásticas tradicionaisnem sempre foram fiéis à vocação divina e não se preocuparam comos pobres a quem foram inicialmente enviadas por Cristo. Os po-bres, por sua vez, sentem-se separados, até mesmo alienados, damaioria das instituições eclesiásticas. Organizam, então, suas pró-prias estruturas religiosas, buscando um lugar onde se sintam bem.Procuram, também, novas estruturas sociais que lhes ofereçam es-perança e novidade de vida em oposição às atuais estruturas fe-chadas e controladas. Começa a surgir o ministério profético dascomunidades dos pobres.

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Depois de muitos séculos de atividades missionárias na índia,na África, na Ásia e na América Latina, o cristianismo ainda nãoconseguiu ganhar o coração dos povos autóctones. Muitos aindaconsideram o cristianismo uma religião estrangeira revestida dedisfarces ocidentais. Não se encarnou na cultura do povo. Não con-seguiu se harmonizar com o espírito do povo.

Tornar-se realmente pobre: um desafio

Outro desafio dos pobres à Igreja é que, enquanto a mensagemdos pobres se encarna e se enraíza na cultura e nas experiênciasdo povo, o crescimento numérico fora das estruturas das igrejashistóricas ameaça a Igreja do status quo. Os pobres sabem queessas instituições tradicionais cristãs acabaram demasiadamente oci-dentalizadas, materializadas e burocratizadas. Ao lado da exigênciados pobres para uma atitude crítica diante da mensagem do evan-gelho, há também um apelo à "descolonização do cristianismo". Aparticipação dos pobres nesses movimentos desafia a Igreja. A re-descoberta da funcionalidade das religiões populares desafia as ins-tituições cristãs. Mostra que elas precisam primeiramente libertara si mesmas antes de participar plenamente na libertação dos pobres.

Outra questão igualmente importante é se "a Igreja encontrao Cristo nos pobres"." A Igreja, no começo da obra missionáriadurante o período colonial, não associou os pobres com o Cristoporque seu conceito de Cristo havia sido parcialmente deformadopela bagagem européia ocidental que lhe acompanhava desde oprincípio. Mas quando começou a perceber mais claramente a exis-tência de um estilo de vida baseado no amor, na koinonia, na par-ticipação comunitária caracterizada por amor e serviço, coisas queexistiam entre os pobres, começou a sentir o impacto desse desafio.A Igreja principiou a reavaliar suas próprias posições à luz docompromisso cristão com o mundo e com os pobres."

O desafio.•.não consiste em apenas se identificar com os pobres,mas em se tornar pobre e, acima de tudo, em se tornar o que aIgreja deve ser. A Igreja precisa se ver como a igreja dos pobrese criar novas estruturas capazes de apoiar os pobres em sua práxislibertadora. B importante que a Igreja se una aos pobres na cria-ção dessa nova comunidade de participação.

Gutierrez diz que "somente ao rejeitar a pobreza, tornando-sepobre para lutar contra ela, pode a Igreja pregar a sua mensagemcaracterística: 'a pobreza espiritual', isto é, a abertura do homem eda história para o futuro prometido por Deus. Somente assim po-derá a Igreja cumprir autenticamente. .. sua função profética de

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denunciar as injustiças humanas. E apenas assim poderá pregar apalavra libertadora, a palavra da genuína irmandade." 16

A reinterpretação da mensagem bíblica que vê Deus como olibertador que se manifesta por meio dos pobres na sociedade paralibertar os oprimidos e os opressores põe diante da Igreja um novodesafio. 17 Os pobres estão envolvidos, embora fragilmente, numanova busca teológica e ética de sentido e dignidade para as suasvidas, até agora marginalizados e domesticados."

- Os pobres procuram um lugar onde possam se sentir livrespara compartilhar as lágrimas, dizer as tristezas, apresentar as ne-cessidades espirituais e físicas, responder ao mundo no qual viveme, finalmente, esvaziarem-se diante, de Deus.

As formas atuais da pobreza são escândalo à fé cristã. NaLibéria, por exemplo (mas não só lá), a distribuição da riqueza édeplorável. O povo não aprendeu a compartilhar o que tem. Aterra é rica com recursos minerais, solo fértil, grandes florestascheias de madeira que estão sendo cortadas por companhias locais eestrangeiras e exportadas.Entretanto quase a totalidade dos quasedois milhões de habitantes da Libéria é pobre. Nove entre dezpessoas vivem na miséria. Apenas 4% da população controlava60% da receita em 1971. Já em 1976 apenas 2.1 % dessa mesmagente controlava os mesmos 60% da renda nacional. Nesse mesmoano a situação do país tinha se deteriorado tanto que o governoteve que declarar "guerra à pobreza" .19

Boa parte do mundo sofre da praga do desemprego em massa,do sub emprego, da falta de recursos para a saúde, da ausência deeducação decente e de paupérrimos padrões de vida. A degradaçãoe a morte rondam tanto crianças como adultos.

A pobreza representa uma situação escandalosa para a Igreja.Quando se barateia a vida de qualquer pessoa, a totalidade da vidaé barateada. Cristo veio para que tivéssemos vida em abundância.Mas a persistência da fome, da doença, e da morte desafia a Igreja.A ,existência de miséria entre aqueles por quem Cristo morreu co-loca sério problema de fé e de práxis para as estruturas eclesiásticasque vivem em riqueza e desenvolvimento."

Nas igrejas ricas, as congregações não aceitam com facilidadeprogramas que exigem doação e partilha: Para se entender o signi-ficado do discipulado cristão (que sempre faz exigências difíceisde suportar) devemos dar o que temos. Essa disponibilidade fazparte do desafio. E para isso são necessários sacrifício e boa orga-nização da economia. O desafio às igrejas ricas vem nestas pala-vras: Cristo "teve a mesma natureza de Deus. .. abandonou tudoo que tinha, e tomou a natureza de servo" (Fp 2.6 e 7), e, sendo

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rico, tornou-se pobre (2 Co. 8.9) por amor de nós. Assim, emborati Igreja precise de recursos humanos para prosseguir na missão,não foi estabelecida para buscar glórias terrenas, mas para procla-mar humildade e auto-sacrifício?" "Porque já conhecem o grandeamor de nosso Senhor Jesus Cristo: ele era rico, mas se fez pobrepor causa de vocês, para que se tornassem ricos por meio da suapobreza" (2 Co. 8.9).

Finalmente, os pobres desafiam a Igreja porque a maioria dospobres não faz parte da Igreja: em geral, os cristãos são ricos epodem satisfazer as próprias necessidades. Os cristãos não só con-trolam a riqueza das nações, mas também os sistemas dominantespolíticos, econômicos e educacionais. Ao possuir os mecanismos decontrole que lhes permitem manipular o sistema em seu favor,fazem com que o pêndulo esteja sempre do seu lado, deixando oresto da humanidade entregue à fome e à miséria. Assim proce-dem enquanto cristãos, cativos dos parâmetros operacionais ondepredominam "as leis do mercado".

Os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres. A distân-cia entre eles não é apenas desafio à Igreja: trata-se de uma situa-ção escandalosa para a fé cristã." Infelizmente, a Igreja nem sem-pre tem agido responsavelmente no contexto de sua vocação cristã.Os pobres consideram a Igreja distante de suas necessidades e cla-mores - o que, por sua vez, também se constitui em desafio.

A luz de tais desafios que poderá responder a Igreja? Talveztenha que responder à mesma pergunta feita por Jesus aos discí-pulos: "Quem o povo diz que o Filho do Homem é?" Eles disse-ram: "Alguns dizem que o Senhor é João Batista ... outros afir-mam que é Elias. E outros, ainda, que é Jeremias, ou algum outroprofeta. - E vocês? Quem é que vocês dizem que eu sou? - per-guntou ele" (Mt 16.13-16).

A compreensão que a Igreja tem de si mesma depende da com-preensão que tem de Jesus Cristo. Esse é o primeiro passo neces-sário para saber como responder ao desafio dos pobres.

De que maneira são relevantes à Igreja?

"Apesar desses obstáculos, os marginalizados, os pobres e osórfãos, vêem a fé cristã como fonte de nova influência humaniza-dora e como fundamento de nova comunidade humana. Onde querque a conversão tenha sido verdadeira, de indivíduos ou grupos,os convertidos percebem a salvação em Cristo não apenas em ter-mos de salvação individual ou para a vida depois da morte, mastambém como fonte espiritual de nova comunidade terrena ondesua dignidade e status humanos são reconhecidos. A promessa de

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humanização inerente ao Evangelho da salvação tem trazido os opri-midos para a Igreja" }23

Os cristãos, individualmente e em grupos, e as instituições ecle-siásticas desafiados pelos pobres, começam a olhar com novas pers-pectivas a sua situação de opressão. Cada vez mais se torna visívelque as ações e programas de caridade apenas aliviam a miséria dealguns, não sendo suficientes para erradicar a pobreza estruturale atacar eficazmente suas causas primeiras. Os cristãos começam ase convencer de que para se combater os agentes da miséria, damarginalização e da dominação, nossos esforços devem incluir açãopolítica e mobilização popular.

As comunidades de crentes em Cristo percebem, cada vez maisclaramente, a gritante pobreza material de milhões e milhões deseres humanos em nosso mundo. Ao mesmo tempo percebem a exis-tência de pessoas que vivem em abundância e desperdício. A con-tradição é tão visível que os membros das igrejas começam a seinquietar com o consumismo e a praticar medidas de solidariedadepara com os que não têm o suficiente para viver. Os pobres, en-quanto isso, emocional e racionalmente, tornam-se conscientes desua miséria, conhecem as próprias frustrações e, naturalmente, de-monstram irritação quando se comparam com os outros.

Inúmeras organizações eclesiásticas começam a responder àinjustiça e à desigualdade. Nas últimas duas décadas, a renovaçãodas igrejas tem sido expressa por meio da descoberta dos pobres,de seus desafios, e da sua potencialidade para a renovação da socie-dade, incluindo as igrejas. Em todas as partes do mundo, noOriente e no Ocidente, no Norte e no Sul, consideráveis porções dacomunidade cristã estão se posicionando em solidariedade para comos pobres, tentando remediar a separação surgida nos últimos doisséculos da história do mundo entre os pobres e os oprimidos (cons-cientes da situação) e as instituições eclesiásticas."

Os cristãos e as organizações eclesiásticas que participam naluta dos pobres e oprimidos por justiça e libertação experimentamnovo dinamismo e nova vitalidade. Abrem-se novos caminhos paraa vida da comunidade cristã. Uma das mais importantes experiên-cias decorrentes dessa atitude é a nova maneira como os pobresentendem os símbolos cristãos e as Escrituras. A Bíblia cai nas mãosdo povo (como em outras épocas quando era traduzida para overnáculo) e os pobres se apropriam da interpretação dos textossagrado. É o sinal da nova era: as Boas Novas são dadas aosnecessitados e miseráveis (Mt 11.2-6; Lc 7.18-23).

Esta reação revela a profundidade do desafio dos pobres: sãocomo agentes do julgamento de Deus que chama a Igreja ao arre-

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pendimento. " ... os pobres têm significação central em nossa com-preensão da sociedade e de nossos modos de vida. São pobres nestecontexto os que a sociedade trata efetivamente como se fossem in-feriores aos seres humanos porque, na verdade, são usados (istoé, explorados) para a produção de seus prazeres (que eles, os po-bres, não têm), são deixados à margem dos benefícios da sociedade,e não têm acesso ao que os ricos e poderosos têm assegurado. Amaneira desumana como são tratados os pobres revela a tendênciaessencialmente desumanizadora de nossa sociedade. Assim, os po-bres, nesse sentido mais amplo que inclui os marginalizados eoutros excluídos e não só os fisicamente miseráveis, não represen-tam apenas um entre outros problemas da sociedade. Representamsinais do julgamento de Deus sobre a sociedade. Não são, pois, emprimeiro lugar, objetos de caridade e compaixão, mas sujeitos eagentes do julgamento de Deus e indicadores dos caminhos doReino." Este desafio demonstra ao mesmo tempo a importânciados pobres para a Igreja.

Em face de tais desafios a Igreja poderia adotar postura arro-gante, como lhe é comum, e dizer- "A pobreza não nos interessa".Mas mesmo no sentido mais elementar a pobreza de fato nos in-teressa, pois enquanto certas igrejas podem corretamente dizer quea pobreza não lhes afeta imediatamente, muitas outras, principal-mente no Terceiro Mundo, não podem tomar essa atitude. Pois nes-ses casos os membros das igrejas são os próprios pobres.

Esta é a primeira área de relevância dos pobres para as igrejas.(Nossas irmãs e irmãos são pobres). É o que o Novo Testamentoestabelece como o mínimo para a preocupação social.

A Igreja Apostólica de Jerusalém, descrita no capítulo 15 deAtos, procurava resolver o problema da catolicidade da Igreja."Para que alguém se batizasse em Cristo deveria, antes, ter fre-qüentado o culto judaico? Teria, por outro lado, o Senhor se re-velado tão radicalmente nesta nova era que a antiga prática litúr-gica não mais eta necessária para indicar obediência a ele? Pode-riam os cristãos oriundos de outras culturas fora do judaismo serplenos membros da Igreja mediante a mera aceitação do Evangelhoe da vida com os outros na disciplina do Espírito Santo?

O Concílio de Jerusalém resolveu a questão no espírito da li-berdade." Dada a experiência de Paulo e Barnabé em sua pregaçãoaos gentios, o Concílio decidiu eliminar a prática do culto judaicocomo essencial à participação na vida da Igreja. A única exceçãoa essa liberdade foram certas prescrições éticas destinadas a per-mitir que a prática da liberdade dos cristãos gentios não fosse uminsulto aos cristãos judaicos e, assim, não levassem a Igreja à divi-

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são. Segundo Lucas tratava-se do seguinte: abster-se das oferendastrazidas aos ídolos; abster-se de comer sangue e carne de animaisestrangulados; e praticar a castidade sexual (At 15.20 e 21).

Na Epístola aos Gálatas Paulo menciona mais uma recomen-dação dada a ele e a Barnabé da parte dos pais de Jerusalém, noencerramento do encontro. Diz ele: " ... reconheceram que Deusme havia dado esse privilégio, e deram a mão a mim e a Barnabé.Como companheiros, todos concordamos que nós iríamos trabalharentre os não-judeus, e eles entre os judeus. Eles somente pediramque nos lembrássemos dos pobres das igrejas deles, e isto eu tenhoprocurado fazer com muito cuidado" (GI 2.9 e 10). O conselhopara relembrar os pobres vem logicamente de uma Igreja cuja ex-periência envolve não só orações e milagres, mas também a partilhade alimento de casa em casa e a manutenção da propriedade emcomum (At 2.43-47).

O desafio dessa prática em favor dos pobres na Igreja resultouem pelo menos duas coletas maiores para os necessitados da Igreja,sob a responsabilidade de Paulo (At 12.29 e 30, e 1 Co 16.3). Ainsistência de' Paulo em distribuir a segunda coleta em Jerusalémresultou no seu encarceramento.

Mas os cristãos pobres desafiam a Igreja não só pelo que nãotêm. Oferecem às Igrejas não apenas a pressão física de suas ne-cessidades mas também sua experiência. Dão à Igreja uma visãode como o mundo realmente é.e não de como deveria ser. Trata-sede um mundo de miséria e opressão. A Igreja apostólica ensina aestes uma visão da vida que não lhes deixa em desespero. À essaIgreja os pobres ensinam uma visão da vida que não lhe deixaperder contacto com a história.

Na verdade, os cristãos pobres não diferem dos pobres quenão são cristãos. A primeira revelação à Igreja não foi a fé profes-sada pelos pobres, mas a pobreza dos pobres. Agora, no entanto,temos esta segunda revelação que vem da pobreza. A primeira re-velação é específica e pode ser medida pelos instrumentos da eco-nomia e da sociologia. A segunda revelação é uma declaração sobrea fé em face da pobreza e da opressão. Assim como nossas concei-tuações teológicas a respeito da vida eterna tornam-se mais rele-vantes quando morre alguma pessoa querida, assim também, nossodiscurso teológico sobre a pobreza torna-se mais relevante quandopronunciado a partir da experiência do empobrecimento.

Tais declarações, agora, ao lado de correspondente práxis, de-safiam a Igreja. A lista das novas teologias já é bastante longa.Algumas são sérias e abrangentes, enquanto outras não passam demodismos. A que mais nos chama a atenção é a "teologia da liber-

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tação"." Vamos dar, mais adiante, certo espaço a esta teologl« IIsobre a prática dela decorrente. O que importa, neste momento, ('anotarmos a existência de intensa fermentação de idéias relacionadas com a missão da Igreja." São livres, espontâneas e até mesmoinconsistentes. Aparecem aqui e ali. Desenvolvem-se. Essas novasidéias e formas de missão surgidas nessa parte da Igreja reunidaao redor dos pobres são tremendamente importantes para a Igrejacom seu credo e sua missão histórica de testemunhar o senhor JesusCristo.

O conflito da nova teologia com a antiga leva a Igreja a algomais fundamental do que a própria teologia. Para a maioria daIgreja essa coisa mais básica é a Bíblia, ou os eventos testemunha-dos pela Bíblia. O reconhecimento da condição dos pobres comotema da Igreja tem sido responsável pela releitura do livro sa-grado."

Este retorno à Bíblia pâra entender a vida quando as antigasinterpretações já não eram suficientes esteve presente na ReformaProtestante do século dezesseis e entre os radicais protestantes, as-sim chamados de anabatistas, no mesmo século. A mesma coisa sevê na atual volta à Bíblia entre os católicos romanos. Tal fenô-meno ainda não se nota entre os protestantes, muito embora co-mece a ser vislumbrado na Igreja dos pobres quando se descrevee se define a si mesma nas Escrituras.

Até aqui a discussão sobre a importância para a Igreja, dasituação e da luta dos pobres tem levado em consideração elemen-tos mais ou menos concretos e tangíveis. Os cristãos pobres sãovisíveis. Tornam a pobreza visível e a interpretam. Muito se es-creve a favor e contra a teologia da libertação. A prática da soli-dariedade para com a luta dos pobres obedece a determinada estra-tégia e a certas táticas. A Bíblia é a Palavra de Deus, mas vem anós por meio da nossa linguagem e pressupõe a nossa compreensão.

Mas nessa luta dos pobres há também algo intangível. Tem aver com a maneira como lemos a Bíblia. Se a interpretação clás-sica das Escrituras começa a ser confrontada por nova interpreta-ção, qual delas será a correta? Que quer dizer "correto"? Podemosprocurar compreender o problema a partir do contexto histórico;esse contexto pode nos ajudar; mas os cristãos também acreditamnuma doutrina da iluminação. Segundo essa doutrina os cristãosacreditam que o próprio Deus nos dá a correta compreensão dasEscrituras por meio de seu Santo Espírito que nos dirige a com-preensão e a interpretação. Essa prática nos poderá parecer arcaicamas é elemento essencial histórico no uso das Escrituras bem comofunção importante e vital para a piedade contemporânea.

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o Espírito Santo age, entretanto, não apenas na maneira comoa Igreja interpreta a Palavra de Deus, mas também na prática damissão. O capítulo 16 do livro de Atos descreve claramente comoo Espírito Santo redirecionou os bem elaborados planos missioná-rios de Paulo e Silas. Esses missionários foram "proibidos" de pre-gar na região da Ásia; revisaram os planos e decidiram pregar naBitínia, mas, também dessa vez, "o Espírito de Jesus não o permi-tiu". Finalmente, o Espírito Santo lhes concedeu nova visão ecom ela nova orientação para a missão.

A porção da Igreja que se decidiu pelos pobres diria que foichamada e conduzida a essa atitude pela obra do Espírito Santo.Tanto os que acreditam nisto como os que pensam que se trata desacrilégio, precisam ser humildes. Ê muito fácil fazer-se afirmaçõesque não podem ser medidas materialmente, mas, não obstante aadvertência, qualquer Igreja morna, sem surpresas nem enigmas,dificilmente poderia afirmar ser o templo do Espírito Santo.

A linha de pensamento que estamos desenvolvendo pressupõeque os pobres têm função salvadora para a Igreja, e que sua exis-tência, e especialmente sua sensibilidade diante da vida, conclamamuma igreja orgulhosa a revisar sua prática e ao arrependimento. Atéaqui temos entendido os pobres como elemento positivo, corretivo,e até mesmo criativo na medida em que afetam o pensamento ea missão da Igreja. Mas num outro sentido a importância dos pobresna Igreja e no mundo passa a ser negativa. Estamos nos referindoà situação em que os pobres não trazem práticas justas nem arre-pendimento, mas se limitam a ser sinais humanos da ira vindourade Deus." Encontramos essa compreensão do papel dos pobres nosprofetas do oitavo ao sexto séculos antes de Cristo (Am 5.10-24).

Por que voltar aos profetas? Não nos bastam as escrituras doNovo Testamento para nos orientar na fé e na prática? Podemosnos confinar ao Novo Testamento, se quisermos; tanto Jesus comoTiago nos oferecem excelentes textos (Tg 5.1-6, Me 10.23-25), masas situações das igrejas identificadas com a cultura das nações oci-dentais e das classes sociais ricas correspondem mais diretamenteà situação de Israel na época dos profetas do Antigo Testamento."

A Igreja do Novo Testamento era uma igreja dos pobres. Nin-guém seriamente discorda desta afirmação. Por exemplo, Paulo des-creve claramente a igreja de Corinto como uma igreja formada prin-cipalmente de pobres (1 Co 1.26).32

Se as igrejas tivessem permanecido ao lado dos pobres e dosfracos, teríamos preservado a mesma visão correta da vida até nos-sos dias por meio da mera aplicação direta do ensino ético doNovo Testamento. Mas as igrejas do Ocidente, em geral, e as daEuropa oriental, antes do advento do socialismo, identificaram-se

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com os poderes dominantes da sociedade." Assim, inverteram asposições existentes nas comunidades do Novo Testamento. As co-munidades do Antigo Testamento dos séculos oitavo ao sexto antesde Cristo oferecem paralelo mais direto.

Que nos dizem os profetas? Vamos nos limitar a examinarapenas os profetas Amós, Isaías e Ieremías." Todos estes vêem duascausas principais para o julgamento vindouro de Deus sobre Israele Judá. De um lado, o povo abandonara o culto ritual de [avé e osubstituira por diversas outras práticas estrangeiras (Cf. Amós capí-tulos 3 e 4; Isaías 28.7-22 e Jeremias 2.26-37, por exemplo); deoutro, abandonara também a lei moral da justiça ao próximo e emseu lugar começara a praticar a opressão, a ambição, a mentira, oroubo e a violação dos direitos do órfão, da viúva, do pobre e doestrangeiro (ver especialmente [r 22).

O profeta, em face da apostasia, tinha a função de chamaro povo ao arrependimento. As igrejas cristãs têm pregado a partirdessas escrituras com a esperança de que o arrependimento virámediante certas advertências. Os profetas não eram assim tão oti-mistas! Encontramos um resumo- de sua atitude na chamada deIsaías pelo Senhor (Is 6), mas todos os três profetas mencionadosnão alimentavam grandes ilusões a respeito do arrependimento dopovo. O Senhor ordenou a Isaías: "Vai e dize a este povo: podeisouvir certamente, mas não haveis de entender; podeis ver certa-mente, mas não haveis de compreender. Embora o coração destepovo, torna pesados os seus ouvidos, tapa-lhe os olhos, para quenão veja com os olhos, e não ouça com os ouvidos, e não sucedaque o seu coração venha a compreender, que ele se converta econsiga a cura". Disse, então, o profeta: "Até quando, Senhor?" Eo Senhor respondeu: "Até que as cidades fiquem desertas ... atéque o solo se reduza a um ermo, a uma assolação". É impressio-nante como Jesus e Paulo retomaram essas tremendas palavras deIsaías e as aplicaram a seu próprio tempo (Mt 13.14 e 15; At28.25-27). é:

As escrituras dizem que o Senhor escuta o clamor dos pobres(Ez 2.23-25; SI 12.5; Tg 5.4). Não dizem que os poderosos e osque se relacionam com o poder ouvem e se compadecem desseclamor. Segundo a experiência dos profetas, as injustiças pratica-das contra os pobres não eram divulgadas, nem ouvidas nem sen-tidas pelos outros. Mas Deus as conhecia e capacitava os profetaspara que as conhecessem também. Deus usava os profetas para de-nunciar as situações de injustiça. O fato final e tremendo a res-peito da relevância dos pobres para as igrejas, é que, enquantoevocam o clamor profético da Igreja, a maioria da Igreja jamaisvai escutar esse clamor.

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NOTAS

1. Gustavo Gutierrez, Teologia de Ia liberación, p. 371, CEP, Lima, Peru,1971.

2. André Biéler, "Gradual awareness of social, economic problems (1750-1900)", in Julio de Santa Ana (ed.), Separation without hope, p. 3-29,especialmente p. 26-28 sobre "The majority of christians indifferent,conservative and often reactionary", Genebra, WCC, 1975. Cf. tambémno mesmo volume os capítulos de [ohn Kent, "The church and thetrade union movement in Britain in the 19th century", e de GünterBrackelmann, "German protestantism and the social question in the 19thcentury".

3. Bispos do centro-oeste do Brasil, Marginalização de um povo: um cla-mor das igreias, p. 41 e 42, "Nossa igreja denuncia a marginalização eapoia a organização dos trabalhadores", Goiânia, maio de 1973..

4. Paulose Mar Paulose, Church's mission: 1. Struggle for iustice, 2. lnvol-vement in political struggles, p. 9, Bombaim, Build, 1978.

5. Gustavo Gutierrez, Teologia desde el reverso de Ia historia, p. 24, 28-32,35 e especialmente 43: "A outra percepção (central na teologia da liber-tação) é a perspectiva dos pobres: classes exploradas, raças marginali-zadas e culturas desprezadas. Isso nos levou a considerar o tema da po-breza e dos pobres na Bíblia. Nesse contexto os pobres são a chave paraa compreensão do sentido da libertação e da revelação do Deus liber-tador. " A teologia assim compreendida emana das classes popularese de seu mundo: a linha teológica verdadeira é verijicada no envolvi-mento real e frutífero no processo da libertação", Lima, CEP, 1977.

6. Benoít Dumas, The two alienated faces o] the one Church, mencionadopor José Miguez-Bonino em "The struggle of the poor and the Church",The Ecumenical Review, vol. XXVII, n. 1, 1975, p. 40 e 41.

7. Roger Bastide, Airican civilizations in the New World, New York,Harper & Row, 1971.

8. Iack Woddis, lntroduction to Neo-Colonialism, New York, InternationalPublishers Co., 1968.

9. Iohn Mbiti, Ajrican religions and philosoph», p. 231, Londres, Heine-mann, 1967.

10. Franz Fanon, The wretched of the earth, p. 42, New York, Grove Press,1968.

11. Cosmas Desmond, Christians or capitalists? Christianity and politics inSouth Ajrica, Londres, Bowerdean Press, 1978.

12. lbid.

13. Julio de Santa Ana (ed.), op. cito Examinar as contribuições de AndréBiéler e Nikolai Zabolotski.

14. Cf., entre outros, Walter J. HoIlenweger, The peruecostals, Londres,SCM Press, 1972.

15. Cf. a nota 5, acima.

16. Declaração da Conferência dos Teólogos do Terceiro Mundo, em Dar-es-Salaam, de 5 a 12 de agosto de 1976.

17. Gustavo Gutierrez, op. cit., p. 301 e 302.18. Robert McAfee Brown, Theology in a new key, p. 96-100 sobre "A her-

meneutic engagement", Filadélfia, Westminster Press, 1978.

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1'1 Susukuu BuIletin, Relatório sobre a pobreza em massa na Libéria, ronlooriginal: Relatório anual do Ministério do Planejamento e da Econornlub segunda sessão da 48.' legislatura da Libéria para o período de 1.·de janeiro a 31 de dezembro de 1976, Monrovia, Libéria, 22 de dezem-bro de 1976. Examinar também: Censo de 1974 sobre população e ha-bitação, no Population Bul!etin, números 1 e 2, publicado pelo Ministériodo Planejamento e da Economia, em Monrovia, Libéria, em 26 de de-zembro de 1975 e em 27 de setembro de 1976, respectivamente. Con-sultar, ainda, Indicative manpower plan of Liberia for the Period 1972-1982.

IlJ, CL a declaração sobre "Estruturas de cativeiro e linhas de libertação:algumas reflexões teológicas", adotada pela consulta conjunta de CCPDc CICARWS, em Montreux, dezembro de 1974. "Somos escravos nummundo onde nem mesmo a Palavra de Deus pode ser facilmente ouvidaem qualquer lugar. A própria Igreja parece estar cativa ao se aliar ouse comprometer com os poderes da idade antiga. Aí a Palavra de Deustambém se torna cativa. A libertação tem que começar na casa deDeus." The Ecumenical Review, volume XXVII, n. 1, janeiro de 1975,p. 4~.

I. Gustavo Gutierrez, op. cit., p. 300.2. David M. Paton (ed.), Breaking barriers, Nairobi 1975, p. 122 e 123.

Relatório da sexta sessão da Quinta Assembléia do Conselho Mundialde Igrejas, sobre "Human development: Ambiguities of power, techno-logy and quality of Iife", parágrafos 9, 11 e 13, Grand Rapids, Michigan,Wm B. Eeerdmans, e Londres, SPCK, 1976.

'I. M. M. Thomas, "Salvation and humanization", Salvation today: a con-temporary experience, p. 59, Genebra, WCC, 1972.

4. Cf. sobre o assunto as declarações dos bispos católicos romanos daAmérica Latina feitas na segunda conferência geral latino-americana doepiscopado católico romano, realizada em Medellin, Colômbia, em 1968.Também, Speech [rom the dock, por Donald Lamont, Londres, CatholicInstitute for International Relations.

5. David E. [enkins, The contradiction 01 christianity, p. 49, Londres,SCM Press, 1976.

ó. At. 15.4-29. São Paulo, menciona em sua epístola aos Gálatas (2.6-10)o que acontecera. Cf. Martin Dibelius, Studies in the Acts oi theApostles, capítulo 5, sobre o concílio apostólico, Londres, SCM Press,1956.

27. Günter Bornkamm, EI nuevo testamento y Ia historia dei cristianismoprimitivo, p. 102: "O concílio resolveu conceder liberdade irrestrita àproclamaçãrf do evangelho da salvação entre os gentios". Salamanca,Sígueme, 1975. O título da edição original em alemão é Das NeueTestament Bibel, Stuttgart, Kreuz-Verlag, 1971.

28. Existe extensa bibliografia sobre a teologia da libertação. Entre os teó-logos que desenvolvem estudos nessa linha estão Gustavo Gutierrez,Hugo Assmann, Leonardo Boff, José Miguez Bonino, [on Sobrino, JuanLuís Segundo, Porfírio Miranda, Georges Casalis, M. M. Thomas, Ma-nas Buthelesi, [ames Cone.

29. Ver especialmente os capítulos IX, XI, XII e XIII deste livro.30. Gustavo Gutierrez, Teologia de Ia liberación, capítulo XIII.31. David [enkins, op. cit., p. 53 e 54.32. N. Berdyaev, Christianity and class war, p. 121 e 122. Londres, Sheed

& Ward, 1933.

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33. Cf. Sergio Rostagua, Essays on the New Testament, p. 42-55. Genebra.WSCF, 1976.

34. Ver Pierre Burgelin, "La fin de l'êre constantiníenne", em Foi et vie,ano 58, n. 1, p. 8-55. Cf. também Julio de Santa Ana (ed.), Separationwithout hope? op. cito

35. Sobre Amós ver Georgio Zoum, Amos, il profeta delta giustizia, Turim,Claudiana, 1971. Sobre Isaías, especialmente J. H. Box, The book 01Isaiah, Londres, Isaac Pitmans & Sons, 1908. Também Elmer A. Leslie,Isaiah, Nashvllle, Tenn., Abingdon Press, 1963. Sobre [eremias, cf.Harold C. Case, The prophet [eremiah, Cincinnati, Ohio, Women'sDivision of Christian Service, Methodist Church;: 1953. Sobre profetase profetismo ver Martin Buber, The prophetic [aith, New York, Mac-millan, 1949.

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IX. Teologia a partir dos oprimidos

A luta dos pobres e a reflexão teológica

Seria errado imaginar-se que os pobres não têm teologia, quenão refletem sobre a experiência da vida cristã, e que essa reflexão11110 inclui protesto algum sobre a condição da pobreza. A maiorparte de sua reflexão teológica se dá na comunidade; não é indi-vidualista. Dirige-se, também, ao particular e ao concreto. Dificil-mente será sistematizada ou abstrata, Em geral, relaciona-se comLI situação em que vivem e os problemas que enfrentam. Raramenteserá ahistórica.'

A maior parte da teologia dos pobres não leva em considera-ção os rigorosos padrões acadêmicos de boa parte da atual teologia.Não tem essa pretensão," A teologia oriunda das comunidades dospobres tem outro ponto de partida, diferente agenda e diferenterazão de ser. É desconcertante para alguns teólogos, mas fonte deesperança e de renovação para muitos outros."

A igreja primitiva era pobre. O caráter imediato, concretoc histórico de muitas de suas reflexões relaciona-se de modo par-ticular com a atual igreja dos pobres. A Bíblia testemunha de modoespecial a experiência da igreja primitiva com Cristo. A igreja dospobres lê esses relatos a partir da perspectiva de sua pobreza,opressão e da Luta pela libertação, e encontra aí as suas própriaspreocupações expressas de maneira espiritual.

A transformação do povo bíblico "do caminho", que confessavao senhorio de Iesus, numa sociedade hierarquicamente controladac doutrinariamente definida já se prenunciava no Novo Testa-mento. O processo continuou a se desenvolver na igreja pós-apostó-lica, levando essa igreja ainda pobre a uma estrutura mais vertical.Em alguns casos, as estruturas foram criadas para enfrentar a situa-ção dos pobres. Mas em outros, em estruturas ofuscaram essa preo-cupação pelos pobres e alienaram a Igreja de sua missão histórica.Não há dúvida de que num mundo hostil fazia-se necessária certa

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organização. Contudo, sempre que a Igreja por meio de seus repre-sentantes, grupos e. instituições, se esquece dos pobres, surgemvozes proféticas para chamá-lade volta à fidelidade original.

Já era assim nos tempos do Novo Testamento. Tiago, no do-cumento conhecido como sua "carta", afirma que todos os querejeitam os pobres ou que fazem discriminações contra eles nacasa de Deus, blasfemam contra o nome de Jesus Cristo (2.7). Oautor do livro do Apocalipse louva a igreja de Smirna, cuja riquezaespiritual contrasta com a pobreza material; os que se opunhama essa igreja e a atacavam não se davam conta de que grande parteda indigência material tinha a ver com sua riqueza espiritual (Ap2.9-11). Em nossa época, quando a comunidade negra dos EstadosUnidos era discriminada, e se lhe negava certos direitos (da parteda população branca), Martin Luther King envolveu-se na luta emfavor da justiça racial. Sua carta enviada da prisão de Birminghamconstitui-se numa das principais vozes proféticas a partir dos opri-midos da história em nosso século."

Desde o começo havia escravos nas igrejas, e proprietários deescravos. Havia pobres, mas também ricos. A partir da época deConstantino, a Igreja alcançava todos os níveis sociais do império,e por meio de labor missionário extendia-se mesmo para além dasfronteiras militares dos domínios do imperador. Os que pertenciamàs classes mais baixas chamavam-se de cristãos por causa da con-versão de seus superiores. Os líderes cristãos poderiam ser depos-to e exilados se se mostrassem demasiadamente intransigentes edivisivos. Na Idade Média, a Igreja ocidental tornou-se um estado,chegando mesmo a rivalizar com outros poderes seculares. Nooriente surgiram também estruturas hierárquicas. A Igreja fez detudo para ser a igreja de todos; aparecia a cristandade. E os pobres,onde ficaram? 5

São poucos os temas da história eclesiástica mais ambivalen-tes do que a postura da Igreja para com os pobres. Os eremitasrefugiaram-se nos desertos em protesto contra uma Igreja rica emoralmente permissiva. Os votos monásticos de pobreza eram to-mados pelos que achavam os "conselhos evangélicos" inaplicáveisàs massas de cristãos comuns. Por outro lado, espiritualizava-sea noção de pobreza de tal maneira que os mais ricos podiam aindaser considerados "pobres no espírito". Na Idade Média predomi-navam conceitos favorecendo a existência de ricos e pobres naeconomia salvífica de Deus, ocupando os pobres o papel de objetosda caridade dos ricos a fim de lhes facilitar o acesso à salvaçãoeterna."

Essa ambivalência relacionada com os pobres existia.frequente-mente, numa mesma pessoa. Clemente de Alexandria argumentava:

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"Ouais ricos serão salvos?" E afirmava que as riquezas não deveriam ser consideradas obstáculos à salvação" -=- confortando assimgrande número de cristãos ricos pertencentes à sua congregação.Em outros escritos, no entanto, dizia que a criação inteira per-tence a Deus; os interesses individuais deveriam se subordinar aobem comum, e todas as pessoas ter acesso a meios suficientes desobrevivência. A justiça haveria de prevalecer.

Em diferentes momentos históricos os cristãos têm feito opçãoclara pelos pobres. A existência de fundos comuns na Igreja pri-mitiva indicava que ela era consciente de ser uma igreja dos pobres.leão Crisóstomo foi exilado, e sua morte relacionava-se com o de-sufio que fizera ao poder imperial e à preocupação com os pobres: marginalizados. São também importantes certos movimentos lei-gos de protesto contra a pobreza ao longo da história da Igreja.

o mau uso da teologia

A ambivalência de boa parte do material teológico sobre ospobres indica uma espécie de conquista: a reflexão do poder doEvangelho não obstante a oposição estrutural. Essa oposição eravisível na íntima relação entre Igreja e sociedade. As Igrejas ten-dem a adotar modelos organizacionais copiados da cultura, noprocesso de chegar a um programa fixo." A sociedade sempre es-perou que a Igreja defendesse as estruturas sociais dominantes, nãolhe permitindo mais do que hesitantes e fracos protestos contra ainjustiça social. Com isso ela quase sempre teve medo de parecerestar do lado dos pobres num desafio às classes mais altas.

Em alguns casos combinou-se aberta opressão teológica comopressão sócio-política e econômica. A teologia, dessa maneira, aju-dou a deixar os pobres em sua triste condição, posto que os escritosteológicos produzidos nos centros de poder interiorizaram em si ascondições sociais do contexto. Ao procurar responder à comuni-dade melhor conhecida, o teólogo justificava por meio de argumen-tos racionais a-edominação que essa mesma comunidade exerciasobre outras. Tais teólogos tornaram-se agentes da opressão, na teo-logia, na Igreja e na sociedade. Não é difícil achar exemplos: cum-plicidade com a prática do apartheid na África do Sul; justificaçãoda noção colonialista das imposições dos brancos na Ásia; aceita-ção da sujeição dos povos indígenas ou dos negros nas Américas.Esses exemplos gritantes, entretanto, podem parecer maléficos ape-I1US à curto prazo. As teologias que legitimam a opressão flagrante,tornam-se, para a maioria dos cristãos conscientes, caricaturas doEvangelho de Jesus Cristo na medida em que as implicações sociaisde suas premissas se tornam evidentes.

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As teologias, por outro lado, que apenas ignoram a injustiçasocial talvez não demonstrem imediatamente a parcialidade de suafidelidade ao testemunho bíblico. Ao justificar situações de opres-são representam um papel mais sutil e difícil de ser desmascarado.As pessoas tornadas pobres pelo centro de poder a que pertenceo teólogo podem lhe ser desconhecidas pessoalmente. Tais pobrestalvez não façam parte de sua universidade ou congregação. A facedesses pobres está ausente, distante, e sua voz não se faz ouvir noslugares onde o teólogo dialoga e profere o seu discurso. De facto,o teólogo tornou-se vítima da perspectiva sócio-econômica da classedominante.

Nesse processo, os mecanismos sócio-econômicos e políticospassam a ser aceitos sem qualquer séria análise da maneira comolevam ao empobrecimento importantes setores da população nacio-nal e mundial," A interpretação dos símbolos cristãos segue sendofeita com o pressuposto implícito ou expresso de que as relaçõessociais existentes continuarão indefinidamente quando não são con-sideradas resultado da lei natural ou da vontade de Deus. A voca-ção à justiça maior, quase sempre presente na expressão teológica,fica comprometida com o ponto de partida dessa teologia. E, assim,essa teologia torna-se escrava das poderosas forças que militam con-tra os pobres. Submete-se ao projeto histórico dos setores domi-nantes da sociedade e se deshistoriciza. Pode-se, pois, falar hojeem dia no cativeiro burguês da teologia." Essa teologia não surgeda luta dos pobres por ter participado nessa luta com eles. Elavem da parte superior da pirâmide social, não das bases.

A autoridade da teologia

Qualquer pensamento teológico relaciona-se com o contexto. Asuposta neutralidade contextual confirma a existência de relaçõessócio-econômicas e políticas, e a identifica, inadvertidamente, comos grupos dominantes. Legitima situações de opressão. As assimchamadas "teologias neutras" só diferem em grau das teologias deordem ou proponentes do status quo ao sancionar estruturas queproduzem e perpetuam a pobreza.

Qualquer teologia "neutra" não pode se dirigir aos pobres emsua condição. Não dá testemunho do Deus da história que age entrenós para libertar os oprimidos e anunciar boas novas aos pobres.Não é fiel a este aspecto crucial do testemunho bíblico. Qualquerteologia "neutra" declara que Deus é conivente com a opressãoe o sofrimento, não se colocando ao lado dos pobres. Esse tipo deteologia não tem autoridade.

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A contextualização da reflexão teológica significa a opção porcerto contexto particular, em baixo, na base da pirâmide social. Ateologia é feita, então, da perspectiva da luta pela libertação levada1\ efeito pelos oprimidos da história.l1 A opção pelos pobres signi-fica oposição à opressão e não conformismo com os poderosos queoprimem diversos setores da sociedade. A opção pelos pobres quertnrnbém a libertação do opressor de sua condição alienada na espe-rança de que se volte de Mamom para Deus.

Por meio de envolvimento com pessoas marginalizadas, temhavido diversas conversões ao ponto de vista dos oprimidos de ma-nciras as mais variadas: missionários em colônias desafiam as es-truturas em operação; homens de negócio concluem que a injus-tiça da situação deve levá-los a abandonar os lucros. Na maioriados casos, porém, a tendência é de agir para os pobres e não comeles.

A teologia precisa considerar a Bíblia e a tradição da Igrejanas suas expressões de solidariedade para com os pobres além daluta dos próprios pobres - suas frustrações e êxitos na busca delibertação. Deve também tomar cônsciência da apatia da Igreja eda sua traição aos pobres. A autoridade da teologia, no entanto,deriva de sua apreciação fiel das situações históricas nas quais,diante de Deus, se dá a libertação e nas quais a fala teológica podeser, em si, libertadora." Não se trata da única tarefa da teologia,mas da sua principal tarefa. É desse ponto nevrálgico central quedepende sua autoridade.

Temas decorrentes

I. O PONTO DE VISTA TRINITÁRIO

O conceito de revelação nas teologias que legitimam a opres-são é, em geral, estático. Se algum lugar fôr dado à experiência deCristo na comunidade da fé, será sempre secundário em relação à"plena" revelação bíblica. Este conceito estático da revelação trazsérias consequências para as afirmações teológicas básicas. Deve-sedar mais atenção à ação do Espírito Santo. A terceira pessoa daTrindade deveria ser vista como fonte de nova compreensão darevelação. O que se perde é o conceito dinâmico do Deus que serevela a seu povo de maneira sempre nova por meio do poder doEspírito Santo 00 15.26-16.4). Ao se conceitualizar a revelação emCristo considerando-a fechada, as teologias que legitimam a opres-são tendem a criar. sistemas teológicos fechados, incapazes de per-ceber novas manifestações do Espírito Santo. Estabelecem, assim,

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a falsa segurança que impede o discípulo cristão de viver naquelaexpectativa constante diante do Deus que faz novas todas as coisas.

2. }ESUS, EOS FARISEUS: TEOLOGIAS CONFLITANTES

Em Mc 3.1-6 Jesus discute com os fariseus a respeito da curano Sábado. Está na Sinagoga um homem com a mão aleijada e osfariseus ficam atentos para ver se Jesus vai curá-lo em dia de Sá-bado, para assim acusá-Io de transgressão da lei. Percebendo-seobservado, Jesus cura o homem. Não havia urgência para fazê-Io noSábado, mas Jesus age de propósito. Ao assim proceder, mostra queé diferente dos .fariseus. A diferença é tanto doutrinária como namaneira de ser.

A posição de Jesus neste conflito com os fariseus resume-sebem em palavras anteriormente pronunciadas por ele: "O Sábado .foi feito para servir o. homem; e não o homem para servir o Sá-naóo'; (Me 2.27). "Sábado", aqui, significa "Torah", a lei dadapor Deus, que é a demonstração visível da revelação de Deus aopovo. A estrita obediência à lei era o que tornava o judeu membrodo povo escolhido. Os fariseus eram, sem dúvida alguma, os maisfiéis neste aspecto.

Mas Jesus diz: a lei foi feita para o homem e não o homempara a lei. Em outras palavras: a lei é meio e não fim em si mesma.O fim é obediência a Deus, diferente de obediência à lei. O Deus deIsrael não se delicia na obediência legalista: quer que sua lei sejainstrumento por meio do qual as pessoas se libertem para fruir aaliança com ele. A obediência a Deus é, segundo Jesus, libertação;a obediência à lei, escravidão." Vê-se aí a diferença entre a teologiade Jesus e a dos fariseus.

Os fariseus entendiam que a lei era a verdade revelada porDeus de uma vez para sempre. Dela deduziam-se prescrições para aconduta religiosa e moral. Tal código de conduta, com todas assuas possibilidades casuísticas, valia para todas as situações e tem-pos. Qualquer desvio dessas prescrições era tido como violaçãoda lei.

Jesus não pensa dessa maneira. Não parte de determinadanorma mas da situação humana real. Estava ali um homem queprecisava de ajuda e ele o ajuda não obstante o código geralmenteaceito de que não se devia fazer qualquer coisa no Sábado. Jesusnão prega as boas novas da cura ao homem aleijado. Ele o cura.Não entra numa discussão teológica com os fariseus: age. E o quefaz é o próprio evangelho libertador para o homem aleijado; é suaresposta teológica aos fariseus.

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3. TEOLOGIA DOS RICOS - TEOLOGIA DOS POBRES

A aliança das organizações eclesiásticas e das lideranças cris-tãs com os poderosos ao longo da história concorreu para desen-volver certo tipo de compreensão teológica aceitável a estes áomesmo tempo em que se distanciava enormemente dos fracos e hu-mildes. A teologia estabelecida tem sido usada e manipulada paracomunicar idéias e expectativas dos setores dominantes da socie-dade. Os críticos deste uso da teologia estabelecida dizem, de umlado, que essa teologia ajudou a legitimar as estruturas injustas eos mecanismos de opressão, acalmando o povo e levando-o a aceitarcom resignação o status quo social. Por outro lado, mostram quetal teologia não ajuda nem ajudará a resolver os problemas dospobres e oprimidos: quando muito, ajudará a elaborar programaspara os pobres, mas nunca estará junto com eles em sua luta e nassuas expectativas. Essa teologia em lugar de motivar os pobres paraenfrentar a injustiça, destina-se, antes, a desarmá-los." As teologiasque legitimam a opressão têm dado ênfase no literalismo (funda-mentalismo), espiritualização inadequada, fuga do mundo, e assimpor diante." -

Trata-se, pois, de uma teologia que não serve. Os pobres nãosão particularmente dados à espiritualização; como já vimos, a reli-giosidade popular expressa-se em termos concretos, nos domíniosdo senso comum. 16 Embora manifeste a alienação, permanece naesfera da história. A teologia dos pobres ajuda-os efetivamente atentar superar a injustiça que sofrem, a opressão que cria tal injus-tiça. Emana dos próprios fatos de sua história e situação. Como selê neste documento sobre missão urbana e rural na Ásia. "O pen-samento teológico é verdadeiramente histórico ao tratar da transfor-mação histórica de estruturas de desumanização e injustiça. Omovimento histórico na direção de uma sociedade humana e justadesenvolve-se por meio da transformação estrutural da sociedademais do que p•..or qualquer outro meio. A transformação se dá emtodos os níveis - econômico, político, social e cultural. As estru-turas e valores tradicionais culturais bem como as mais recentesestruturas econômicas e políticas desumanizadoras devem sertransformadas a fim de que as pessoas venham a ser liberadaspara o Reino futuro". 3.7

Essa maneira de se fazer teologia só poderá se desenvolverpelos próprios pobres e oprimidos. :É o que, na verdade, está acon-tecendo nos últimos anos: surge nova teologia tanto na Ásia, Áfricae América Latina como em países industrializados, a partir dospobres e oprimidos. Para que isso aconteça é preciso que os pobresse apropriem da Igreja. Em situações de opressão e injustiça as

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igrejas oferecem aos pobres um lugar onde possam ser realmentehumanos. Assim, os pobres começam a renovar a Igreja que, emmuitas situações, começa a ser "a igreja dos pobres". 18 É desseslugares que surgem novos desenvolvimentos teológicos com novapercepção, que lhes revela fonte poderosa de motivação para aação e para o sustento de suas esperanças.

Teologias que legitimam a opressão

As teologias que legitimam situações de opressão são, basica-mente, a-históricas. Em parte, porque dão prioridade à sistemati-zação e à conceitualização dos símbolos cristãos sem referênciasconstantes à vida histórica da comunidade cristã. Além disso, comoo ser humano deve ser visto enquanto pessoa integral que vive nasociedade, cujo corpo e relações sociais são dadas por Deus damesma maneira como a mente e o espírito, assim também as pessoasvivem na história. As teologias que legitimam a opressão partemde uma visão estática da história, confirmando as relações sócio-econômica e políticas existentes, ao mesmo tempo em que aceitamde maneira implícita (e até mesmo explícita) o contexto históricodado. Essas teologias não consideram o movimento e a mudança,essências da realidade histórica, nem a caminhada histórica dacomunidade na direção de uma sociedade mais justa.

Quando não se leva a sério, na tarefa teológica, o contextosocial, a realidade social acaba sendo negada na reflexão teológica.A pobreza passa a ser vista como condição lamentável ou até mes-mo como virtude espiritual e não como resultado de determinadadinâmica histórica do mundo guiado por mecanismos dominantessócio-econômicos e políticos. O protesto e as práticas cristãs quedesafiam esses mecanismos não parecem merecer qualquer impor-tância. Termos como "mundo decaído", "ordem temporal" ou "rei-no secularizado", entre outros, não apagam o sofrimento diário dospobres resultante de exploração concreta e constante.

A falta de análise social tem cegado muitas teologias tradicio-nais levando-as a não ver os próprios pressupostos sociais ideoló-gicos. Acham que são "neutras" e "objetivas", sem reconhecer suaentrega inconsciente às normas, atitudes e formas de comporta-mento de suas sociedades. Suas "teologias de ordem" refletem,muitas vezes, as estruturas autoritárias de sociedades feudais e deoutros tipos de organização social forte, e servem para legitimarconsciente ou inconscientemente sistemas vigentes políticos e sócio-econômicos criados pelas classes dominantes. Ao se consideraremindependentes de pontos de vista ideológicos específicos, sucum-bem à ideologia dos que estão no poder. is

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APeNDICE

Apresentamos neste apêndice dois exemplos desta teologia "dosmiseráveis da história". O primeiro foi escrito por Gustavo Gutier-rez 20 e o segundo é o relatório da Conferência Teológica Asiáticarealizada em Sri Lanca, de 7 a 20 de janeiro de 1979.

OS POBRES NA IGREJApor Gustavo Gutierrez

Talvez eu devesse deixar claro, de início, que a Igreja não seenvolve com a questão da pobreza por estar presente num país po-bre. Envolve-se em primeiro lugar e fundamentalmente pelo Deusda Bíblia a quem ela quer e deve ser fiel. O fato de se encontrarnum país pobre pode, certamente, dar à Igreja toda a oportunidadede melhor entender sua responsabilidade de ser a comunidade quetestemunha o Deus que se fez pobre em Jesus Cristo. Esse fato nosleva a uma outra questão. A expressão "países pobres" é, às vezes,ambígua. Estritamente falando, são pobres os países onde a grandemaioria da população vive na pobreza causada pela ordem socialinjusta. Assim, a questão dos pobres na Igreja não envolve apenaso Deus no qual acreditamos mas também o conflito social no qualparticipamos.

Tendo esses fatos em mente, eu gostaria de sugerir alguns dospensamentos sobre o problema surgido em nossa experiência enas discussões durante os trabalhos diários. Concluiremos que ospobres, hoje em dia, em vez de serem vistos meramente como "umproblema para a Igreja", levantam a questão a respeito do própriosignificado da "Igreja".

Os miseráveis da terraBoa parte da história da Igreja (ou da cristandade como é,

também, chamada) tem sido usada para demonstrar como a Igrejase vê a si mesma. A partir de seu interior, por assim dizer. A sal-vação sobrenatural aparece como valor absoluto da qual ela é asuprema guardiã. O cristianismo ocidental foi construído pastorale teologicamente em relação com o fiel - o cristão. Para se enten-der a si mesma a Igreja volta-se para si mesma. É o que se chamade eclesiocentrismo.

As razões históricas desta atitude são óbvias e facilmentecompreensíveis. Quando novas terras foram descobertas, a tarefa deincorporá-Ias à Igreja era vista como a própria missão de salvação.A Igreja ligou-se historicamente com a cultura ocidental, com araça branca e com as classes dominantes da sociedade européia.

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Sua expansão pelo mundo afora deu-se, naturalmente, nesses tem-pos. Os missionários seguiram os caminhos dos colonizadores. Oeclesiocentrismo adquiriu sabor de ocidentalismo.

Já se tornou conhecido cliché dizer que o Vaticano 11 acaboucom a mentalidade da "cristandade". Chegou a hora de se dialogarcom o mundo e de serví-lo. A Igreja está sendo chamada a se voltarpara fora de si, para o mundo moderno. Este mundo é hostil àIgreja, existiu muito tempo antes dela e se orgulha de seus própriosvalores. O Papa João XXIII deu ao Concílio a tarefa de abrir aIgreja para o mundo, buscando para ela linguagem teológica ade-quada, e dando testemunho de uma Igreja para os pobres. Apóssuperar as dificuldades iniciais, a Igreja conseguiu cumprir a pri-meira dessas exigências.

A constituição A Igreja no mundo mostrou o novo horizontedescortinado pelo Vaticano 11 para a ação da Igreja. Ofereceu umavisão otimista do mundo e de seu progresso, da ciência modernae da tecnologia, considerando .o indivíduo o sujeito da história e daliberdade, com algumas reservas sobre os riscos que tais valoresenvolvem. Afirmou, em particular, que tais valotes não podem seralcançados fora do contexto da mensagem cristã. A constituiçãoapelou para a colaboração entre crentes e não crentes "na justaconstrução deste mundo onde ambos vivem juntos". No mundo forada Igreja, que não precisa ser necessariamente hostil à Igreja, oSerihor se faz presente e ativo. Ele chama a comunidade cristã ademonstrar maior lealdade ao Evangelho. Nesse mundo a Igrejadeve realizar sua missão como sinal, como sacramento universalda salvação.

As grandes reivindicações do mundo moderno são reconheci-das, muito embora com a devida moderação. Por outro lado, osconflitos sociais são mencionados apenas em termos gerais (exis-tência da pobreza e da injustiça no mundo) e se fala da necessidadede desenvolvimento dos países pobres. Até certo ponto manteve-sea raiz individualista da sociedade burguesa.

Não existe crítica séria dos efeitos da dominação do capitalismomonopolista sobre as classes 'obreiras, particularmente nos paísespobres. Nem são mencionadas com clareza as novas formas deopressão e de exploração perpetradas em nome desses valores domundo moderno. O Concílio preocupou-se com outra coisa: chega-va o tempo para o diálogo entre a Igreja' e a sociedade moderna.Mas o Vaticano 11 não percebeu que a sociedade não era homogê-nea e que se dividia em classes sociais conflitantes. O mundo parao qual ele se "abriu" foi a sociedade burguesa.

A terceira tarefa dada por João XXIII ao Concílio quase nãoapareceu nos textos finais. O tema da pobreza, conhecido nos cor-

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redores do Vaticano como "Esquema 14", bateu nas portas daIgreja mas apenas se lhe abriu uma fresta. Entretanto, muitos cris-tãos estão se tornando cada vez mais conscientes de que se a Igrejadeseja ser fiel ao Deus de Jesus Cristo, ela deve se examinar a partirdas bases, da posição dos pobres deste mundo, das classes explo-radas, das raças desprezadas e das culturas marginalizadas. Elaprecisa descer aos infernos do mundo e conviver com a pobreza,a injustiça, as lutas e as esperanças dos despojados porque deles éo Reino dos Céus.

Basicamente significa viver como Igreja a mesma vida quemuitos de seus membros já vivem como seres humanos. Renascercomo Igreja significa morrer para a antiga história de opressão ecumplicidade. Seu poder para viver de novo depende da coragemque venha a ter para morrer. Trata-se de sua paixão. Essas coisasparecem sonho para muita gente mas na verdade não é mais doque o verdadeiro desafio que enfrenta a comunidade cristã hoje.Vai chegar o momento em que qualquer outro tipo de fala daIgreja soará vazio e sem ' sentido.

Há muitas pessoas trabalhando agora nessas linhas, em modosvários e talvez até mesmo modestos (dimensões políticas do Evan-gelho, envolvimento na luta dos pobres, defesa dos direitos huma-nos, africanização da fé cristã, recusa do passado colonialista, eassim por diante). O alvo é ser fiel ao Evangelho e à constanterenovação do chamado de Deus. Aos poucos começa-se a entenderque, em última análise, não se trata de tornar a Igreja pobre, masde perceber que os pobres deste mundo são o povo de Deus, emtestemunho perturbador do Deus que faz a libertação.

Subversão da história

Encontramos o Pai de Jesus Cristo na história humana. EmJesus Cristo proclamamos o amor do Pai por todos os seres hu-manos. Como já vimos, esta é uma história de conflito embora nãoa possamos deixar assim. Devemos também insistir que a história(na qual Deus se revela e onde o proclamamos) precisa ser relidaa partir dos pobres. A história humana foi escrita, nas palavrasde um teólogo brasileiro, "com a mão branca" das classes domi-nantes. O ponto de vista dos miseráveis da história é coisa bemdiferente. A história precisa ser relida a partir de suas lutas, resis-tências e esperanças.

Grandes esforços têm sido feitos para apagar a memória dosoprimidos. Retira-se-lhes enorme fonte de energia, vontade histó-rica e rebelião. Hoje, nas nações humilhadas procuram entenderseu passado a fim de construir o presente em bases sólidas. A his-

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tória do cristianismo também tem sido escrita por mãos brancas,ocidentais e burguesas. Relembremos "Os Cristos vergastados dasIndias" como Bartolomé de Ias Casas costumava chamar os índiosdo continente americano, e com eles todos os outros povos pobresque têm sido vítimas dos senhores deste mundo. Sua memória aindavive nas expressões culturais, na religião popular e na resistênciaàs imposições da burocracia da Igreja. A memória de Cristo sub-siste em cada faminto, sedento, oprimido e humilhado, nas raçasdesprezadas e nas classes exploradas (Mt 25), essa memória deCristo que "nos libertou para que sejamos de fato livres" (Gl 5.1).

Essa frase, "re-leitura da história", não passaria de mero exer-cício intelectual ou de sonoridade vazia se não significasse também"refazer a história". Não é possível reler-se a história sem envol-ver-se com suas glórias e fracassos na luta pela liberdade. Refazera história significa subvertê-Ia, isto é, "torná-Ia de cabeça parabaixo e vendo-a de baixo e não de cima. A ordem estabelecida nosensina a pensar que a subversão é má, porque a ameaça. Mas, aocontrário disso, é bem pior ser e continuar a ser um "super-versivo",apoiando os poderes dominantes e vendo a história a partir dos inte-resses dos grandes deste mundo.

Esta história subversiva envolve nova experiência de fé, novaespiritualidade e nova proclamação do Evangelho. A compreensãoda fé nos termos da práxis histórica da libertação leva-nos à pro-clamação do Evangelho no próprio centro da práxis. Esta procla-mação é uma sentinela, um envolvimento ativo de solidariedade comos interesses e lutas das classes obreiras, a palavra que se efetivana ação, define atitudes e passa a ser celebrada com ação de graças.

O evangelho dos pobres

O Evangelho proclama a libertação em Jesus Cristo, capazde destruir toda injustiça e exploração e de produzir amizade eamor. Não me refiro a certo tipo de libertação que possa ser inter-pretada "espiritualmente", tão querida de certos círculos cristãos.A fome e a injustiça não são problemas meramente econômicos esociais, mas humanos. Desafiam as próprias bases em que vivemosnossa fé cristã. Berdyaev reinterpretou muito bem a maneira comose fala a respeito disso nesses círculos: "Se eu estou com fome, oproblema é material; mas se os outros estão com fome, o problemaé espiritual".

O amor e o pecado são realidades históricas presentes em si-tuações reais. É por isso que a Bíblia fala de libertação e de justiçaem oposição à escravidão e humilhação dos pobres na história. Odom filial realiza-se na história. Quando aceitamos outros como

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irmãos e irmãs aceitamos esse dom não apenas em palavras masem atos. Vive-se o amor do Pai e dá-se testemunho a respeito. Aproclamação do Deus que ama todos os seres humanos também setorna real na história, torna-se história. A proclamação do amorlibertador numa sociedade dominada pela injustiça e pela explora-ção de uma classe social por outra, transforma este "tornar-se his-tória" num apelo e num conflito.

Numa sociedade onde as classes sociais estão em luta, somosverdadeiros a Deus quando ficamos do lado dos pobres, das classestrabalhadoras, das raças desprezadas e das culturas marginalizadas.É desta posição que se pode viver e proclamar o evangelho. A pro-clamação do Evangelho aos oprimidos deste mundo mostra-lhesque a situação em que vivem é contra a vontade de Deus que sem-pre se manifesta por meio de eventos libertadores. O Evangelhoajuda-lhes, então, a perceber a injustiça da situação em que vivem.

A leitura do Evangelho do ponto de vista dos pobres e explo-rados e sua militãncia em favor da liberdade exigem uma Igrejado povo: surgida do povo e que arranca das mãos dos grandes destemundo impedindo-a de ser usada para justificar situações contrá-rias à vontade do Deus libertador.

Quando os pobres conseguirem expropriar o Evangelho dasmãos dos que hoje o consideram sua propriedade particular, tere-mos o que começa a ser chamado de "apreciação social do Evan-gelho", em círculos populares na América Latina. As Escriturasnos dizem que o sinal da chegada do Reino é a pregação do Evan-gelho aos pobres. Os pobres é que esperam e crêem em Cristo e,estritamente falando, são os cristãos. Poderíamos dizer, por outrolado, que os cristãos de hoje são os pobres.

Talvez devêssemos avançar e dizer que a pregação do Evan-gelho só virá a ser verdadeiramente libertadora quando os pobresforem os pregadores. A proclamação do Evangelho, nesse caso,seria uma pedra de tropeço, um evangelho "inaceitável à socieda-de", expresso no vernáculo. E assim o Senhor falaria a todos nós.E ao ouvi-lo haveríarnos de reconhecê-Io como nosso salvador. Essavoz fala in ecclesia num tom diferente.

Assim, os pobres deste mundo engendram seu próprio "credohistórico", mostrando a eles mesmos e aos outros porque crêem noSenhor que liberta o povo, crendo nele em comunhão com o pas-sado histórico, nas condições sociais em que vivem hoje. Inúmerastentativas estão sendo feitas em muitos lugares nesta direção. Não éverdade pensar que a América Latina esteja totalmente submergi dasob repressão e fascismo. Além disso, o sofrimento não é novidadepara o povo deste subcontinente; sempre o acompanhou ao lado,porém, da esperança e da vontade à rebeldia.

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Esse povo tem estado exilado em sua própria terra há muitotempo, mas tem também feito o seu próprio êxodo para retomá-Ia.O poder de resistência e de criatividade dos trabalhadores é incom-preensível aos defensores da ordem estabelecida, e desconcertanteaos que recentemente se consideram seus porta-vozes.

Há alguns anos a comunicação entre diferentes comunidadesenvolvidas na luta pela libertação na América Latina era ativa erica. Hoje em dia as condições eclesiásticas e políticas se transfor-maram e muitas dessas linhas foram quebradas. Mas surgem novosesforços por toda parte: por exemplo, nos grupos que agora se for-mam no Brasil. O aumento da fome e da exploração (especialmentenos países mais pobres), das prisões (em todo o subcontinente,entre os bispos reunidos em Riobamba), da tortura e do assassinato(de camponeses de Honduras, de sacerdotes argentinos), são preçosque estão sendo pagos pela rebelião contra a opressão secular e ocomeço da compreensão do que significa ser Igreja e cristão hojeem dia.

Mas essas vidas e esse sangue derramado desafiam a Igrejainteira e não apenas os cristãos na América Latina, exigindo maisdo que simples análise. O responso a esse desafio decidirá até queponto a Igreja é fiel à sua própria tradição autêntica e ao Senhorque "estabelece justiça e retidão".

Como cantaremos ao Senhor em terra estranha, perguntava osalmista no exílio. Não pode haver vida cristã sem "canções" aDeus que celebram seu amor libertador. Mas como cantaremosa Deus num mundo cheio de opressão e repressão? Trata-se dequestão dolorosa para os cristãos, envolvendo a totalidade de suafé, exigindo uma espécie de nova aliança "conosco, que estamoshoje aqui, todos vivos" (Dt 5.3), e quebrando a aliança históricaanteriormente estabelecida com a cultura, a raça e a classe domi-nante.

Exige-se uma aliança com os pobres deste mundo, um novotipo 'de universalidade, coisa que cria certo sentimento de pânicoentre alguns e perda da antiga segurança entre outros. Mas, poroutro lado faz nascer tremendo sentimento de esperança para mui-tos. José Maria Arguedas dizia que é uma espécie de jornada emque "pouco conhecemos mas muito esperamos".

CONFER~NCIA TEOLOGICA DA ÁSIASri Lanca, 7 a 20 de janeiro de 1979I. Preâmbulo

Nós, cristãos da Ásia, juntamente com delegados fraternais deoutros continentes, reunimo-nos em Wennappuwa, Sri Lanca, de 7

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a 20 de janeiro de 1979, motivados por nossa solidariedade comnossos povos na luta em favor da plena humanidade e em virtudede nossa fé comum em Jesus Cristo. Trazendo conosco a experiên-cia da luta em nossos próprios países, viemos participar na vida ec nas situações das massas sedentas por justiça em Sri Lanca.

Durante estes dias tornamo-nos mais conscientes do que temosem comum como das divergências em nossa formação, aprofundan-do nossa compreensão tanto das riquezas como das angústias denossos povos na Ásia.

Reconhecemos, assim, a importante tarefa que nos espera. Nos-sas reflexões, já começadas em nossas realidades locais, ajudarama enriquecer o processo de interação e de participação entre nósque nos comprometemos com a luta dos pobres na Ásia. Ao mesmotempo, entendemos que estas reflexões são apenas parte do começode busca coletiva e constante de uma teologia relevante para aÁsia.

11. O contexto asiático

A Ásia sofre sob o tacão da pobreza forçada. Sua vida tem sidotruncada por séculos de colonialismo e mais recentemente de néo-colonialismo. Suas culturas são marginalizadas e suas relações so-ciais deformadas. As cidades com suas favelas miseráveis, tomadaspelos camponeses pobres vindos do interior, constituem o cenárioda riqueza irresponsável ao lado da pobreza abjeta, comum namaioria dos países da Ásia. Essa desigualdade extrema resulta dascontradições entre as classes, e da dominação contínua da Ásia porforças internas e externas. As conseqüências desse tipo de domi-nação capitalista é que todas as coisas, o tempo e a própria vida,tornaram-se mercadorias comerciáveis. Pequena minoria de proprie-tários dita a qualidade de vida para os produtores (obreiros, cam-poneses e outros) determinando o preço de sua energia, técnica,inteligência, bem como os benefícios materiais de que necessitampara o sustento. O que se produz, como e quando, e para quem,depende das decisões das empresas multinacionais em conluio comas elites nacionais e com o apoio aberto ou não das forças políticase militares.

A luta contra tais forças está sendo realizada corajosamentepelos advogados do socialismo. Esta ordem sócio-política corres-ponde às aspirações das massas asiáticas tanto nas zonas ruraiscomo urbanas ao lhes prometer o direito de dirigirem a própriavida e de determinar as condições sociais e econômicas para o bemestar de todos. Boa parte da Ásia já conseguiu, depois de muita luta,estabelecer esta ordem social. Entretanto, deve-se acrescentar que

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a transformação socialista aí ocorrida não foi completa e que essespaíses precisam continuar a se libertar de muitas outras deforma-ções por meio da prática de constante auto-crítica.

Não se pode esperar que os movimentos socialistas na Ásiaalcancem a plenitude em sua luta em favor da humanidade sema libertação interior dos instintos egoístas e exploradores. As antigastradições religiosas da Ásia (hinduísmo, budismo, islamismo e cris-tianismo) oferecem inspiração a muita gente. A riqueza espiritualdesses grupos não se expressa apenas em formulações filosóficasmas também em diversas formas artísticas como a dança, o teatro,a poesia e o cântico, e por meio de mitos e ritos, parábolas e lendas.Só quando mergulhamos nas "culturas populares" é que nossa lutaadquire dimensão autóctone.

Entretanto, bem sabemos que é ambígua a função social dossistemas religiosos e culturais. No passado tais sistemas servirampara legitimar relações feudais. No entanto, o princípio de auto-crítica inerente a eles pode ser força de libertação hoje em diaem face dos valores e das ideologias da dominação capitalista.

Sentimos, pois, que o contexto asiático que estabelece os ter-mos da teologia asiática consiste na luta pela plena humanidade emseus aspectos sócio-político e psico-espiritual. A libertação de todosos seres humanos é ao mesmo tempo social e pessoal.

111. Os temas

Entendemos que se grande parte das pessoas se acham social-mente prejudicadas e progressivamente alienadas do centro da vidae do sentido, não é mero acidente ou efeito de catástrofe nacional.De fato, do Paquistão à Coréia, passando pelo sub-continente e pelaÁsia Sul-Oriental, praticamente todos os governos parlamentares,com exceção do Japão, tiveram numa época ou noutra governosmilitares ou autoritários. Nesses países não só os direitos políticosforam suprimidos, mas também os direitos dos trabalhadores àgreve nas cidades e os direitos dos camponeses de se organizarem.Líderes e outras pessoas que manifestam pontos de vista políticosdissidentes são condenados a passar muitos anos na prisão, muitasvezes sem o devido processo de julgamento.

Por detrás dessa fachada de "lei e ordem" escondem-se leisque facilitam a exploração da mão-de-obra e que deixam essas ter-ras abertas à exploração irrestrita da parte do capital estrangeirocujos lucros acabam nas mãos de pequena elite. Encontramos pro-funda lógica nas economias duplas desses países. O setor industrial,monopolizado pelas elites nacionais, desenvolveu-se ao longo de

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linhas da economia de exportação que não corresponde às neces-sidades da população local. Além disso, depende grandemente decapital e tecnologia estrangeiras. Como resultado dessas relaçõescomerciais desproporcionais e da fraqueza desses países a depen-dência e a dívida externa cresceu além de limites que possam agoracontrolar. Os bancos internacionais e as empresas transnacionaistornaram-se os novos donos da política e da economia da Ásia.

Ao mesmo tempo o setor rural permanece estagnado. As assimchamadas reformas agrárias em nada mudaram as relações sociaisinjustas de produção nas zonas rurais. O benefício da "revoluçãoverde" foi para o bolso dos grandes proprietários que podem pagarpela tecnologia. Grande número de camponeses tiveram de sair desuas terras, nesse processo, e buscar abrigo nas favelas das princi-pais cidades da Ásia. Por outro lado, o excedente rural assimacumulado é investido em novas colheitas destinadas à' exportaçãoou canalizadas para as indústrias urbanas, impedindo o crescimen-to da produção para a alimentação. Como resultado, a Ásia que épotencialmente rica em agricultura, está importando alimentos defora numa taxa que aumenta anualmente de modo alarmante. Afome e a pobreza serão ainda por muitos anos o destino das massasasiáticas.

Entre os povos oprimidos começa a surgir um sinal de espe-rança ao se darem conta disso e ao se organizarem tanto nas cida-des como no campo. Em quase todos os países da Ásia têm havidoinsurreições. Boa parte desses movimentos, esmagados por repres-são sanguinolenta e intimidados por prisão e tortura, tornaram-seclandestinos acreditando que essa luta é o único meio disponívelpara a mudança da sociedade. Enquanto não apoiamos necessaria-mente o uso de violência que tem sido, muitas vezes, inevitável,questionamos e fazemos objeção à aplicação da "lei e da ordem"que consolidam o controle do poder pelas elites enquanto frustramas objeções conscientes e organizadas das massas oprimidas. Quandoa violência legalizada não deixa lugar para que as pessoas se liber-tem da miséria, poderemos nos surpreender que recorram, final-mente, à violência? Será que as igrejas cristãs entendem suficien-temente a mensagem da violência revolucionária nas lutas pelaindependência política na Ásia, pela sua emancipação e libertaçãoda violência presente nas atuais estruturas econômicas e políticas?

A juventude na Ásia, que forma amplo segmento da população,está sendo constantemente vitimada. Ela constitui número cadavez maior de desempregados. Por causa da falta de programas edu-cacionais adequados e da falta de empregos nas zonas rurais deonde vêm muitos dos jovens, observa-se irreversível processo demigração para os centros urbanos; nessas cidades os jovens tornam-

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se alvos da cultura de consumo e veículos de desculturalização. Poroutro lado não queremos deixar de mencionar a existência de estu-dantes e de trabalhadores jovens devotados ao exercício de umacrítica engajada na luta em favor dos direitos fundamentais dosoprimidos. Ao mesmo tempo, muitos deles se tornam lacaios depolíticos poderosos e de outros grupos de interesse, perdendo assima relevância genuína, e são até mesmo sacrificados por meio deviolência física.

O sistema educacional, ligado aos centros estabelecidos dopoder, existe para perpetuar a dominação da juventude. Serve demero canal para a transferência de habilidades técnicas e de conhe-cimento alienado sem qualquer referência aos valores humanísticos.A estrutura piramidal elitista da educação destina-se à fabricaçãode perde dores que são constantemente explorados.

Reconhecemos profundamente que as mulheres são tambémvítimas da mesma estrutura de dominação e exploração. No con-texto das religiões e das culturas asiáticas, as relações entre homense mulheres são ainda de dominação. A situação piora nas classesmais pobres da sociedade. Assim, as mulheres enfrentam opressãoduplamente imperdoável.

No nível econômico, essa sociedade dominada pelos homensreduz o "preço" da mão-de-obra feminina e limita o espaço da par-ticipação da mulher no processo de produção em todos os níveis -local, nacional, regional e conseqüentemente internacional. No nívelpolítico, as mulheres têm consciência da situação de seus países,mas também aí sua competência e atividade são sufocadas.

As mulheres são vulneráveis intelectual e sexualmente numasociedade onde a interação de forças tradicionais e modernas (espe-cialmente em relação com o turismo) leva-as a ceder diante dosvalores de consumo da sociedade capitalista. Força-as também àprostituição. Em vez de condenar o sistema gerador da prostituição,as mulheres é que são condenadas pelos homens que as exploram.

Reconhecemos a existência de minorias étnicas em todos ospaíses asiáticos. Encontram-se entre os setores mais pobres em todosos escalões incluindo o econômico, o político e o cultural. Buscamautodeterminação contra pesadas desigualdades. Mas essa luta au-têntica é muitas vezes utilizada pelos centros de poder que atiçama existência de antagonismo racial para camuflarem-se a si mesmose destruir a unidade entre os marginalizados.

Os meios de comunicação de massa, incluindo a palavra es-crita, cinema, televisão etc., estão controlados pela elite governa-mental para propagarem seu sistema dominante de valores, e seusmitos, de onde resulta essa cultura desumanizadora, individualistae consumista. Não obstante tal dominação, temos observado o sur-

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gimento de uma micro-media mais criativa que retrata realistica-mente a luta dos povos dominados.

Precisamos mencionar ainda o impacto crescente da urbaniza-ção e da industrialização irracional. As mulheres, as crianças e oshomens quase não têm oportunidade de educação, habitação decen-te e serviços de saúde, na medida em que essas necessidades sociaissão determinadas pelas forças do mercado. Com a transferência deplataformas de produção e de mecanização dos países industriali-zados, a poluição ambiental espalha-se na maioria dos países daÁsia, causando desequilíbrio ecológico. Unimo-nos, aqui, aos pes-cadores em sua luta contra práticas inescrupulosas de certos paísescomo o Japão, Formosa e Coréia do Sul.

Entendemos também o papel legitimizador da religião no de-curso da história em nosso contexto asiático. As religiões fazemparte integral da realidade social e não se separam das demais esfe-ras de ação. Na Ásia tem havido muita interação entre religião epolítica desde os tempos antigos, e hoje em dia existem importan-tes movimentos de renovação social inspirados por algumas reli-giões fora das instituições tradicionais. Basta observarmos o ele-mento crítico e transformador presente na cultura e na religião. Aanálise séria sócio-política das realidades e do envolvimento emlutas políticas e ideológicas nos mostra que a postura crítica é ele-mento vital da religião. A força criativa da cultura reúne o povoe lhe confere identidade em sua luta. A ação cultural crítica podedestruir velhos mitos e criar novos símbolos em continuidade comos tesouros culturais do passado.

IV. Em busca de uma teologia relevante

Estamos conscientes de que os temas vitais da realidade asiá-tica indicam o papel ambivalente representado pelas principaisreligiões e nos questionam, desafiando o status quo desumanizadorda teologia. Para ser relevante, a teologia precisa ser transformadaradicalmente.

A. Libertação: área de preocupação

No contexto da pobreza dos prolíficos milhões de asiáticos ede sua situação de dominação e exploração, nossa teologia deveestar voltada para a libertação.

O primeiro ato da teologia, a partir de seu interior, é o com-promisso. Esse compromisso responde ao desafio dos pobres emsua luta pela plena humanidade. Afirmamos que os pobres e opri-midos da Ásia estão sendo chamados por Deus para ser arquitetos

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e construtores de seu próprio destino. Assim, a teologia começacom as aspirações dos oprimidos à plena humanidade e se alimentade sua constante conscientização e de seus esforços para vencertodos os obstáculos à verdade de sua história.

B. Sujeitos da teologia

Para ser verdadeiramente libertadora, esta teologia precisasurgir dos pobres da Ásia a partir de sua consciência libertada.Articula-se e se expressa por meio da comunidade oprimida usandoos recursos dos estudiosos da Bíblia, dos cientistas sociais, dos psicó-logos, e dos antropólogos. Pode expressar-se de vários modos, pormeio de formas artísticas, teatro, literatura, estórias folclóricas esabedoria popular além de declarações de natureza doutrinária epastoral.

A maior parte dos participantes entende que qualquer teologiaé sempre condicionada pela posição de classe e pela consciência declasse do teólogo. É por isso que uma teologia verdadeiramentelibertadora precisa partir, em última análise, dos pobres da Ásia,em meio à sua luta em favor da plena humanidade. Eles é queprecisam refletir e dizer o que significa sua experiência de fé e vidana luta pela libertação. Sem, naturalmente, excluir os especialistasem teologia. Com seu conhecimento, os especialistas podem com-plementar a teologização que vêm das bases. E assim, sua teologiapoderá ser autêntica. Estará enraizada na história e nas lutas dospobres e oprimidos.

C. Libertação, cultura e religiãoA teologia, para ser autenticamente asiática, deve estar imersa

em nossa situação cultural histórica e crescer daí. A teologia, saídadessa luta do povo pela libertação, vai se formular espontâneamentena linguagem religiosa e cultural do povo.

Em muitos lugares da Ásia, devemos integrar em nossa teologiaos valores e as intuições das principais religiões. Essa integraçãodeve se dar, no entanto, ao nível da ação e do compromisso da lutado povo e não só no plano das categorias intelectuais ou elitistas.As tradições das grandes religiões da Ásia entendem a libertaçãode duas maneiras: libertação do egoísmo das pessoas e da sociedade;essas religiões também contêm forte motivação para a conversãopessoal. Elas, ao lado das culturas locais, podem oferecer o sentidoasiático a essa tarefa de gerar a nova pessoa e a nova comunidade.São fontes permanentes de crítica da ordem estabelecida e indica-doras da construção da sociedade verdadeiramente humana. Massabemos, por outro lado, do papel domesticador que as religiões

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representaram no passado. A religião e a cultura precisam, pois, sesubmeter constantemente à auto-crítica. Neste contexto, questiona-mos a preocupação acadêmica desejosa de teologia asasim chamadas"indígenas" ou "aculturadas", divorciadas da luta histórica pelalibertação. Em nossos países não pode haver hoje em dia qualquerteologia indígena que não seja antes de tudo teologia da libertação.A garantia de que nossa teologia seja indígena e da libertação éseu envolvimento na história e na luta dos oprimidos.

D. Análise social,,,<f.

A teologia comprometida com a libertação dos pobres utiliza-sedos instrumentos da análise social das realidades da Ásia. De quemaneira participaria na libertação dos pobres sem entender as estru-turas sócio-políticas, econômicas e culturais que escravizam os po-bres? A visão da plena humanidade e da complexidade da lutaé constantemente desafiada e deformada pela mistura de motivos einteresses e pela confusão do aparente com o real. Tal análise pre-cisa abranger a totalidade da largura e da altura, do comprimentoe da profundidade da realidade asiática, da família à vila, da cidadeà nação, do continente ao mundo todo. A interdepedência econô-mica e sócio-política fez com que a terra se transformasse numaaldeia global. Essa análise precisa acompanhar o processo históricomutável submetendo-se constantemente à auto-crítica e avaliandoas religiões, as ideologias, as instituições, os grupos e as classessociais que, por sua própria natureza, correm o risco da burocraciadesumanizadora.

E. Perspectiva bíblicaAo levar a sério a situação humana a teologia pode ser

considerada como reflexão articulada, em fé, sobre o encontrode Deus pelo povo em sua própria situação histórica. Para nós,cristãos, a Bíblia é importante fonte para a tarefa teológica. ODeus encontrado na história do povo não é outro senão o mesmoque se revelou nos eventos da vida, morte e ressurreição de Jesus.Cremos que Deus e Cristo continuam a estar presentes nas lutasdo povo em busca da plena humanidade na medida em que espera-mos a consumação de todas as coisas quando Deus será tudo emtodos.

Quando a teologia se liberta dos atuais preconceitos de raça,classe e sexo, coloca-se a serviço do povo e se transforma em pode-rosa força motivadora para a mobilização dos fiéis em Jesus à par-ticipação na luta atualmente travada na Ásia em favor da identidadeprópria e da dignidade humana. Precisamos, portanto, desenvolver

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novas áreas de teologia tais como a compreensão do desafio revo-lucionário de Jesus, a percepção de que Maria representa a mulherverdadeiramente libertada que participa na luta de Jesus e de seupovo, superando as separações entre as denominações, e reescre-vendo a história das igrejas asiáticas a partir da perspectiva dospobres.

V. Espiritualidade e formação

A formação para a vida e o ministério cristãos tem que serfeita por meio de participação nas lutas de nosso povo. Exige-separa isso o desenvolvimento de espiritualidade correspondente, derecusa do sistema explorador em que vivemos, de sermos margina-lizados no processo, de perseverança no compromisso, de correrriscos, e de se alcançar paz interior mais profunda no meio desseenvolvimento ativo com as lutas do povo (Shanti).

Nossos irmãos cristãos que têm passado pelas prisões asiáticasdão-nos novos elementos de fidelidade ao povo inspirados em Jesus.A eles também enviamos mensagens de humilde solidariedade e deesperança na oração. Que os sofrimentos dos prisioneiros asiáticosfaçam nascer em nossos dias a renovação genuína de todos nós ede nossas comunidades de crentes.

VI. 1rarefas futuras

Chegando ao fim desta conferência, sentimos a necessidadede prosseguirmos na busca iniciada aqui. A fim de mantermos vivosos esforços em favor de uma teologia que fale pelos povos asiáticos,as seguintes tarefas precisam ser executadas.

1. Precisamos continuar a aprofundar nossa compreensão darealidade asiática. por meio de envolvimento ativo na luta do povocom vistas à plena humanidade. Isso significa lutarmos lado a ladocom nossos camponeses, pescadores, trabalhadores, favelados, mar-ginalizados e minorias, jovens e mulheres oprimidas para juntosdescobrirmos a face de Cristo.

2. Nossa teologia precisa nos levar a transformar a sociedadeem que vivemos de modo que as pessoas venham a experimentaro que significa estar plenamente vivo.

3. Continuaremos a participar no desenvolvimento de umateologia relevante para a Ásia por meio de constante interação erespeito mútuo pelos diferentes papéis que assumimos na luta, comoteólogos profissionais, trabalhadores das bases e gente da Igreja.

4. Buscamos construir forte rede de comunicação entre todosos grupos que lutam em favor da plena humanidade tanto em nível

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nacional como internacional. As seguintes ações concretas tomadas110 longo desta conferência demonstram o começo desse trabalho.

a) carta de solidariedade a 76 pessoas que trabalham em bar-cos em Hong Kong aprisionadas quando solicitavam melhores con-dições de habitação;

b) declaração pública pela delegação de Sri Lanka solicitandoapoio para o povo de língua Tamil em sua luta por seus direitos;

c) mensagem ao bispo Tji da Coréia, apoiando a luta coreanac lamentando a ausência da delegação coreana a esta conferência;

d) carta à empresa japonesa Kawasaki de Aço, protestando con-tra a exportação de sua poluição para outros países da Ásia;

e) telegrama aos bispos latino-americanos e ao Papa JoãoPaulo 11, expressando profundo interesse pela conferência de CE-LAM em Puebla, México;

f) solidariedade com os participantes filipinos em seu pro-testo contra a poluição causada pela transferência de indústriasaltamente polui dor as e pela construção de usinas nucleares.

5. Estamos preocupados com os programas de formação emnossas instituições de treinamento e com o estilo de vida de nossoslíderes pastorais. As experiências vividas nesta conferência de-monstram a necessidade de novas ênfases em nossa política teoló-gica e pastoral. Precisamos avaliar nossas estruturas paroquiais ediocesanas para descobrir onde nos alienam das massas pobres daÁsia dando-nos a imagem de poder e força. São urgentes os ajus-tamentos necessários para que nosso pessoal religioso se coloquemais em contato com os problemas do povo.

6. Para facilitar a implementação destas tarefas, formamos aComunidade Teológica Ecumênica da Ásia.

Durante duas semanas oito pessoas de nosso grupo, participan-tes desta Conferência Teológica Asiática, tentamos entender o cha-mado contemporâneo dos pobres e oprimidos da Ásia.

"'O silêncio da oração no culto e a unidade na fé ajudaram amanter nossa comunhão em tensão dialética e criativa.

Na qualidade de cristãos percebemos as tarefas urgentes danossa renovação e das igrejas a fim de melhor servirmos o nossopovo.

A esta tarefa histórica e sagrada entregamo-nos ao mesmotempo em que convidamos todos os cristãos e todas as pessoas deboa vontade onde quer que se encontrem para participar nestabusca incessante.

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NOTAS

1. Não negamos a presença de elementos escapistas ou extra-terrenos emexpressões vastamente divergentes entre os pobres. Tais elementos po-dem ser, simultaneamente, protesto contra a presente situação de impo-tência sentida pelos pobres e a apropriação de elementos estranhos àcomunidade. O protesto clama: "Esta condição não permanecerá parasempre".

2. Cf. por exemplo o livro de Alfredo Fierro, The militant Gospel, p.323-329, da SCP Press, de Londres, publicado em 1977, que critica osatuais desenvolvimentos teológicos na América Latina.

3. Cf. Reinhold Neibuhr, Moral man and immoral society, p. 255: "A com-preensão da religião cristã tornou-se posse quase exclusiva das classesmais altas e privilegiadas. Sentimentalizaram os pobres de tal maneiraque em lugar de lhes oferecer os recursos que possuem, deixaram queesses pobres permanecessem moralmente confusos a ponto de não perce-berem as implicações da mensagem cristã para a luta social na sociedadeocidental. Sem contar com isso, a civilização ocidental, quer venha aenfrentar uma catástrofe, quer venha a controlar gradualmente a vidaeconômica, sofrerá crueldades e terá de enfrentar animosidades capazesde destruir a beleza da vida humana. .. A tragédia perene da históriahumana é visível quando os que cultivam os elementos espirituais sedivorciam dos problemas do homem coletivo ou não os entendem, pre-cisamente onde os fatores brutais são mais óbvios. São problemas nãoresolvidos permitindo que as forças se degladiem entre si, nada ofere-cendo para mitigar as brutalidades existentes ou para eliminar as futili-dades da luta socia!". Londres, SCP Press, 1963.

4. Cf. Martin Luther King.5. Cf. Julio de Santa Ana, Good news to the poor, p. 65-80. Genebra,

WCC, 1978.6. Ibid., p, 81-94.7. Cf. Lee Brummel, Roberto E. Rios e Carlos A. Valle, Los pobres: en-

cuentro y compromiso, p. 69-86. Buenos Aires, La Aurora, 1978.8. Cf. o capítulo V deste livro.9. Ver [uan Luís Segundo, Libertação da teologia, capítulos 1 e 2, São

Paulo, Edições Loyola, 1978. Também Robert McAfee Brown, Theologyin a new key, p. 60-74. Philadelphia, Westminster Press, 1978.

10. Cf. Church and State, Faith and Order paper n. 85, p. 158 e 159. Gene-bra, WCC, 1978.

11. Gustavo Gutierrez, Teologia desde el reverso de Ia história, Lima, CEP,1977.

12. Cf. Rubem Alves, Theology o] human hope, capítulo 1. Washington,Corpus Books, 1969.Cf. Franz Hinkelammert, Las armas ideológicas de Ia muerte, p. 135.San José, Educa, 1977, e Saiam anca, Sígueme, 1978.Como diz José Miguez Bonino em relação a este tipo de crítica da reli-gião (portanto, da teologia também) em Christians and marxists: themutual challenge to revolution, p. 49 e 50: "O elemento religioso ésempre visto como um manto ideológico, a falsa consciência da verda-deira necessidade humana. Enquanto ideologia, oculta do homem averdadeira natureza de sua alienação. Por um lado, oferece o falsoremédio à doença humana - o futuro do céu transcende de paz e

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14.

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unidade no qual o homem se aliena de sua força humana e é levadoenganosamente a aceitar o inferno do presente. Marx é' cáustico na de-núncia desta função deletéria da religião. Não precisamos citar maisdo que um de seus penetrantes comentários: 'A hipoteca que o cam-ponês possui em relação aos bens celestiais é sua garantia para a hipo-teca que tem a burguesia sobre os bens materiais dos camponeses'. Poroutro lado, a religião confere à miséria do presente certo caráter sagra-do: é o 'ópio do povo' no sentido negativo de lhe fazer dormir. f. apartir dessa compreensão da religião que a atitude mais militante contraela tem encontrado fundamento na propaganda comunista anti-religiosa.Lênin inclina-se para essa interpretação, como se vê na adaptação quefez do dictum famoso de Marx: Lênin fala da religião como o 'ópiopara o povo'." Londres, Sidney, Auckland, Toronto, Hodder & Stough-ton, 1976.

15. Cf. [ames Cone, A black theology oj liberation, p. 68: "O literalismosempre significou a remoção das dúvidas da religião, permitindo queo crente justifique todos os tipos de opressão política em nome de Deuse da pátria .. No tempo da escravidão os negros eram ensinados a serescravos obedientes porque era da vontade de Deus. Afinal, Paulodissera: 'escravos, obedece i os vossos senhores'; e por causa da 'maldi-ção de Cão', os negros foram vistos como inferiores aos brancos. Atémesmo hoje o mesmo tipo de literalismo é usado por estudiosos bran-cos para ensinar aos negros a não-violência, como se a não-violênciafosse a única expressão possível do amor cristão. E surpreendente quetais religiosos brancos não se dêem conta de que os opressores nãoestão na posição moral de ditar a natureza da atitude cristã. As 'exor-tações' de Jesus de 'oferecer a outra face' e 'andar a segunda milha'não dizem que os negros devem deixar que os brancos lhes infernizema vida. Não podemos utilizar o comportamento de Jesus no primeiroséculo como guia literal de nossas ações no século vinte ... As Escritu-ras. .. não decidem por nós." Philadelphia, Lippincott, 1970.

16. Cf. o capítulo II deste livro.17. Cf. Towards a theology of the people, I, p. 174. Tóquio, CCA-URM,

1977.18. Cf. Jether Pereira Ramalho, Basic christian communities in Brazil, The

Ecumenical Review, volume 29, n. 4, 1977.19., Cf. Iuan Luis Segundo, op. cit., capítulo 5.20. Concilium, 104, 1977, p. 11-16, New York, Seabury Press. Traduzido

Por Dinah Liyingstone, Copyright 1977 por Stichting Conciliume Sea-bury Press. Usado com permissão.

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x. o papel da Igreja noProcesso da libertação

Vamos discutir neste capítulo como, no contexto da análisesócio-econômica e política já feita na primeira parte deste livro,grupos e igrejas cristãs começam a descobrir, a partir da perspec-tiva dos pobres, º significado da compreensão bíblica sobre o papelque o povo de Deus é chamado a representar na luta pela liber-dade e contra a pobreza.

Está aumentando o número de cristãos em favor dos pobres.É verdade que a crueldade da luta e a selvageria muitas vezes pre-senciada nos conflitos impedem certos cristãos de participar ple-namente na luta dos pobres e dos oprimidos. O uso da violênciaainda não é questão resolvida neste contexto. Entretanto, aumentao número de seguidores de Cristo que percebem nesses conflitosaS esperanças de amanhã. A Igreja é, teologicamente falando, o si-nal da nova humanidade desejada por Deus por meio de JesusCristo (CL Ef 2.19-22).

É por isso que as comunidades cristãs envolvidas nessa lutados pobres e oprimidos, enquanto parte da comunidade ou em soli-dariedade com o povo, levantam-questões sobre o papel da Igrejano processo da libertação - no combate à pobreza, na luta pelajustiça, e no sustento, participação e manutenção de tudo isso.

o escândalo da pobreza e o desafio dos pobres

A existência da pobreza e dos pobres em escala tão alta comonestes dias não deixa de ser escandalosa, desafiando a Igreja e re-lembrando-a de que sua razão de ser, estabelecida pelo Senhor eMestre,é que viva a incompatibilidade radical entre a dimensão au-tenticamente evangélica e profética,de um lado, e a situação cadavez mais contraditória e desumana deste mundo, de outro, e que,ao assim proceder, possa introduzir nesta situação a novidade radi-cal do novo céu e da nova terra "onde mora a justiça" (2 Pe 3.13).

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Reduzido pela modernização a um código formal de valoresprivados e de princípios gerais ("generosos"), o cristianismo acha-secada vez menos capaz de intervir na esfera econômica, na lei darentabilidade máxima nos processos do mercado, na violação dosdireitos humanos e na crescente marginalização de certos segmen-tos da sociedade.' A vida econômica marcha implacavelmente paraa morte do homem e da natureza, enquanto alguns grupos cristãos,por causa de sua incapacidade, silêncio ou comprometimentos, nadapodem fazer para salvar a situação. Resta ao cristianismo, nessecaso, oferecer a esta realidade mortífera, nada mais do que meraconsciência espúria ao lado de esperança também espúria,"

Enquanto continuar a presente situação escandalosa dos po-bres, as igrejas deverão enfrentar questões desafiadoras a sua cre-dibilidade, como estas: lutam as igrejas em favor da justiça, comoparte de sua prática cristã? Proclamam os propósitos de Deus nacerteza de sua vitória na história humana - por meio do teste-munho do Deus libertador que vem para levantar e reunir de novoos oprimidos? Encontra-se em jogo, naturalmente, a credibilidadeda Igreja de Cristo enquanto sinal e testemunho estabelecido porDeus neste mundo para. revelar aqui mesmo sua glória e manifes-tar a salvação,"

Os corpos eclesiásticos não podem ser vistos como instituiçõesmonolíticas. Se por muitos séculos as igrejas estabeleci das aliaram-seaos poderes dominantes da sociedade (entre os quais a própriaIgreja), houve também muita gente ativa nas mesmas igrejas, e opróprio cristianismo institucional abriu-se de tempos a tempos àsexpectativas do povo," Esse aspecto nada monolítico tem sido maisvisível hoje em dia, com a pluralidade de opiniões prevalescentenas igrejas.

A dupla conversão da Igreja

Daí a necessidade da dupla conversão da Igreja, do batismoduplo e da "imersão" também dupla.

1. Em primeiro lugar, trata-se da indispensável conversão àPalavra de Deus enquanto práxis de Deus na história, pela salva-ção da humanidade." A Igreja está sendo constantemente convidadaa continuar nas palavras de Cristo (Jo 8.31), a agir "na verdade",e a caminhar na luz porque "ele é a luz". Essa é a condição indis-pensável para que tenhamos "comunhão uns com os outros" e paraque o sangue de Jesus nos limpe de "todo o pecado" (1 [o 1.6 eseguintes). Antes de ser ética, a Palavra de Deus é a eficaz práxishistórica que sustenta o universo, assim como "a palavra que saida minha boca ... não torna a mim sem fruto ... antes, ela cumpre

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a minha vontade e assegura o êxito da missão para a qual a enviei"(ls 55.11). "Antigamente Deus falou muitas vezes e de muitas ma-neiras aos nossos antepassados, por meio dos profetas, mas nestesúltimos tempos ele nos falou por meio de seu Filho. Foi por meiodele que Deus criou o universo, e ele foi escolhido por Deus paraherdar todas as coisas. O Filho brilha com o brilho da glória deDeus, e é a perfeita semelhança do próprio Deus. Ele sustenta ouniverso com a sua palavra poderosa. E, depois de ter purificadoos homens dos seus pecados, sentou-se no céu, à direita de DeusTodo-Poderoso" (Hb 1.1-3). _

Deus quer que a Igreja seja o lugar por excelência da abun-dância de sua palavra: "Que a mensagem de Cristo, com toda asua riqueza, viva no coração de vocês" (CI 3.16); a habitação daPalavra que "se fêz homem" onde haveremos de ver "a sua gló-ria, cheia de amor e de verdade", recebida "como Filho único doPai" 001.14); porque essa Palavra de Deus "é viva e poderosa,e mais afiada do que -qualquer espada de dois gumes... E elajulga os desejos e pensamentos dos corações humanos" (Hb 4.12).Em resumo, conversão ao que São João escreveu no Apocalipse: emservos como João que "contou tudo o que viu. .. a respeito damensagem de Deus e da verdade revelada por Jesus Cristo" (Ap1.2), e ao que declara o servo de Iavé: "O Senhor [avé me deu umalíngua de discípulo para que eu soubesse trazer ao cansado umapalavra de conforto. De manhã em manhã ele me desperta, sim,desperta o meu ouvido para que eu ouça como os discípulos. OSenhor [avé abriu-me os ouvidos ... " (Is 50.4 e seguintes).

2. "Imersão" na história dos oprimidos: ao lado da conver-são à práxis da Palavra de Deus na história na qual ele revela suaglória, vem o batismo, ou, em outras palavras, a "imersão" namesma história, como o lugar onde "o universo todo, com muitodesejo e esperança, aguarda o momento em que os filhos de Deusserão revelados" (Rrn 8.19). "Pois sabemos que até agora o uni-verso todo geme com dores iguais às dores de parto" (Rm 8:22).Os pobres e os oprimidos anseiam por sua libertação, por um mun-do mais justo, fraterno e partícípatório." A História, antiga oumoderna, é um grande parque de construção onde o trabalho nuncafinda. Estamos vivendo no meio de uma criação, a se desenrolarconstantemente, avançando ou retrocedendo, com seus altos e bai-xos. Os pobres e os oprimidos desenvolvem a sua própria práxislibertadora, dentro ou fora da Igreja, com ela ou contra ela. Nosúltimos dois séculos esta prática libertadora avançou apesar daIgreja ou sem levá-Ia em consideração.' Contudo, tal prática temsido autenticamente humana nos seus níveis mais profundos. Caroregada de esperança no âmago da luta sofrida por um mundo mais

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fraterno, mesmo quando essa sede de justiça se manifesta am-bígua, como sempre acontece em nossa condição humana, dentrode nossa historicidade e de nossa contingência, sempre expostaaos perigos de retroceder, de ser domesticada, e de- se estabelecerem novas formas de opressão ao chegar ao poder, como a Históriatantas vezes já o ilustrou. Mas não deixa de ser a procura de umcerto absoluto ancorado bem no fundo do coração humano, postoque o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus.

A vida da Igreja no contexto da libertação

Nesta luta por mais justiça, na direção de um mundo maisfraterno apesar das contingências e limites, os oprimidos não têmreconhecido na Igreja esse testemunho em favor dos povos, sinalestabelecido por Deus entre as nações. As instituições cristãs, desua parte, não têm conseguido ler aí os sinais dos tempos." Fre-qüentemente as instituições eclesiásticas reagem com medo diantedesta marcha dos oprimidos. Será por causa de sua atitude mora-lizadora ou, talvez, de sua incapacidade para ler esses sinais, quan-do, de fato, deveriam apreender à profunda inspiração e alento devida no que está agora sendo construído no mundo? Quem sabeas igrejas temem a perda de certas aquisições e privilégios, certoestilo de vida, certa maneira de existir, não querendo se arriscarcom o que está sendo vivido em outros lugares? Estarão as igrejassendo tentadas a excluir-se e a se retirar do mundo?

A prática de Deus e a práxis dos oprimidos

Entretanto, na Bíblia inteira Deus não tem medo de coisa al-guma feita pelos homens, sejam suas criações, invenções ou cons-truções, mesmo quando os homens o desafiam como em 1 Sm 8, aolhe exigirem um rei.

O Deus da Bíblia, o Deus revelado em Jesus Cristo, não temeos seres humanos, e, por isso, não erige barreiras. Pelo contrário,derruba as que existem e as que os seres humanos insistem emlevantar entre si. Jesus não traz nova moral. É amigo do povo.Envolve-se apaixonadamente com os seres humanos, principalmentecom os excluídos da sociedade e com os isolados por barreiras.Compromete-se com estes a tal ponto que acaba "pendurado" numa"barreira", num madeiro (Dt 21.22; Gl 3.13). Foi morto porquepraticava a destruição das barreiras: "Porque o próprio Cristo nostrouxe a paz ... " fazendo de todos nós "um só povo". _. Desfa-zendo a inimizade "como se fosse um muro ... Pela sua morte naCruz, Cristo destruiu o ódio (Ef 2. 14-16).

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A tensão escatológica da prática de Jesus e da história humana

Do começo ao fim os evangelhos, especialmente o de João,mostram-nos que o Verbo se fêz carne e habitou entre nós e quevimos a sua glória 00 1.14). Os evangelhos nos comunicam a ex-periência da comunidade primitiva de que Jesus era um homemreal, plenamente humano. Mas naquela vida humana de Jesus deNazaré, João nos comunica outra realidade nela revelada: a glóriado Pai nele presente.

A vida de Jesus de Nazaré não começou nem terminou noslimites da realidade meramente humana: portava a glória de Deus- aquela glória manifesta num momento preciso e inesperado parao povo. Em São João, a totalidade da vida de Jesus de Nazaré tema marca dessa hora 00 16.16-24, especialmente o versículo 21).Há sempre uma hora para vir: a mulher que vai dar à luz tem asua hora 00 16.21). A hora de Jesus éa de revelar sua vida, deonde viera e para onde deveria ir, demonstrando a plena dimensãode sua vida humana. Em outras palavras, em Jesus de Nazaré en-contramos um ser plenamente humano que nos abre uma dimensãomais vasta da realidade e entra muito mais profundamente na rea-:lidade humana para ir além dessa mesma realidade. Essas novas di-mensões da realidade ele as oferece à humanidade inteira. Retornaao Pai com essa humanidade toda, levando-a ao lugar de ondeviera 00 17.24; 14.2).

A encarnação do Verbo não é estática; trata-se de um itinerá-rio, de um caminho. Jesus, assim, anda conosco constantemente nasnovas estradas para Emaús, adaptando-se à fraqueza de nossa inte-ligência e de nossa visão, desejando que o único sinal de sua pre-sença entre nós seja a participação na Palavra e no Pão. Não éassim que foi descrita a comunidade primitiva dos cristãos em Atosdos Apóstolos, como "o caminho" (At 9.2; 18.25 e 26)?

A história humana enquanto locus da páscoa escatológica

O Deus da Bíblia é o Deus que anda, que leva os seres hu-manos nessa caminhada. É o Deus dos nômades; andando comele não se pode parar. Movimenta-se por meio da vida de Abraão,vem à Moisés, parte para o Egito para conduzir o povo da opressãopara a libertação, manda Elias enfrentar [ezebel e os falsos profe-tas, e assim por diante. Passa tão depressa que só o podemos verpelas costas. Quando nos damos conta de quem era ele, ele jápassou. Por isso temos que ir sempre atrás dele, seguindo os seuspassos.

A encarnação do Verbo em Jesus de Nazaré faz parte do mes-mo movimento dinâmico. É essencial que Jesus esteja neste mundo,

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como parte da realidade humana. E assim foi-lhe também essencialpassar deste mundo para o Pai: "É bom para vocês que eu vá". Ahora esperada por Jesus era a da sua passagem deste mundo parao Pai, não porque não gostasse deste mundo, mas para levar estemundo consigo.

E agora, depois de sua ressurreição, ele continua a "ir antesde nós" e a nos esperar "na Galiléia", naquela "Galiléía dos gen-tios", "dos pobres", naquela terra de esperança, diríamos, onde"o povo que vivia nas trevas viu uma grande luz," e onde, paraos que "viviam na região sombria da morte, surgiu uma luz"(Mt 4.16).

A novidade radical do Reino

Cristo se fêz homem para inaugurar o Reino de Deus no âmagoda condição humana, de forma radicalmente nova. "Agora façonovas todas as coisas!" (Ap 21 :5). "Quando alguém está unido aCristo, é nova pessoa; acabou-se o que é velho, e o que é novo jáveio. Tudo isto é feito por Deus .. " (2 Co ·5.17 e parte do 18). SãoJoão nos diz que "Deus amou o· mundo de tal maneira que deu oseu único Filho, para que todo aquele que nele crer não morra,mas tenha a vida eterna. Porque Deus mandou o seu Filho parasalvar o mundo e não para julgá-lo" 00 3. 16 e 17), pois "emborafosse Filho de Deus, ele aprendeu, por meio dos seus sofrimentos,a ser obediente. E depois de perfeito, tornou-se a fonte da salvaçãoeterna para todos os que o obedecem" (Hb 5.8 e 9).

O Reino de Deus abre na história o caminho para o cumpri-mento dos propósitos de Deus no mundo. Em outras palavras, oReino de Deus abre o caminho para a realização do futuro hu-mano. Os que moldam o futuro, rejeitando a mudança e a novi-dade radical do Reino, fecham-se a essa realidade. É por isso queRubem Alves afirma: "Talvez por isso o Evangelho seja tão céticoa respeito dos ricos e poderosos a ponto de exclamar: Como é di-fícil aos ricoS' entrar no Reino de Deus! Os ricos e poderosos que-rem preservar o seu 'agora'. O Reino, ao contrário, é a presençado futuro que força os homens a ir de cada 'agora' a novos ama-nhãs. O sofrimento do escravo, contudo, não tem nada de virtuoso.Se o fosse, o escravo encontraria a felicidade no próprio sofrimento.Não poderia ter o direito de esperar pela sua superação. O sofri-mento, antes, é o ponto de partida para a dialética da libertaçãoque nega as coisas antigas e se alonga, em esperança, na direçãodo novo"."

Esta realidade do Reino manifesta por meio de todos os quebuscam a justiça, a irmandade, a alegria, a paz, o amor e a par-

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ticipação. Os movimentos populares, as comunidades dos que pro-fessam outras religiões, homens e mulheres que afirmam ideologiasestranhas ao cristianismo, quando buscam esses valores menciona-dos, não buscam outra coisa senão o mesmo Reino de Deus.

o poder libertador do Reino

O dom de Deus em Jesus Cristo por meio do Espírito Santoé o poder da ressurreição, "o poder de uma vida que não tem fim"(Hb 7.16), libertador. "Cristo nos libertou para que sejamos defato livres" (Gl 5.1). O Evangelho é a proclamação desta liberta-ção em Jesus Cristo pelo poder do Espírito.'? Trata-se de uma liber-tação total que alcança as raízes da condição humana, o própriointerior do pecado, de toda forma de injustiça e exploração, levan-do-nos à amizade e ao amor. "Quem não ama ainda está morto.Quem odeia o seu irmão é assassino" (1 [o 3. 14b e 15a).

Conseqüentemente, o Reino não deve ser procurado em nossomundo humano, mas no centro das realidades históricas. Comosublinha São João no capítulo 3 de sua primeira epístola, não sepode interpretar a libertação em termos puramente espirituais, comoé costume em alguns círculos cristãos. A fome e a injustiça nãoindicam a existência de problemas meramente sociais e econômicos;num sentido mais inclusivo são problemas humanos que desafiam anossa maneira atual de praticar a fé cristã. O pecado e o amorsão realidades históricas experimentadas e praticadas em situaçõesconcretas. Ê por isso que a Bíblia fala de libertação e justiça emoposição à escravidão e à humilhação dos pobres na história, e olivro de Provérbios nos diz que Deus "vigia as sendas do direito,e guarda o caminho dos seus amigos fiéis" (Pv 2.8), e acrescentaque "oprimir o fraco é ultrajar seu Criador" (Pv 14. 13a). VemosDeus se rebelando sempre que a injustiça se toma flagrante e in-tolerável. "Pelos pobres oprimidos e os necessitados que gemem,agora me levanto," diz o Senhor; "porei a salvo a quem o deseja"(SI 12.6). A injustiça desafia a soberania de Deus na história (porexemplo, Amós, capítulo 4).

Libertação e Encarnação do Verbo

A ação libertadora continua de modo ainda mais radical naencamação do Verbo: "Quando chegou o tempo certo, Deus enviouo seu próprio Filho. Ele veio como filho de mãe humana, e viveudebaixo da Lei dos judeus para libertar os que estavam debaixoda Lei, a fim de podermos nos tomar filhos de Deus" (GI 4.4 e 5).

Essa dádiva é experimentada na história e continua até hojegraças ao Espírito que nos ensina a clamar: "Abba, Pai!" (GI 4.6).

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E é pelo fato de tratarmos os outros como irmãos e irmãs que re-cebemos esse dom gratuito, não em palavras mas em atos. B o quesignifica receber e viver o amor do Pai e dar testemunho de seunome.

De novo, esse amor libertador é em essência um dom recebidode graça: "Mas Deus nos mostrou o quanto nos ama: quando aindaéramos pecadores, Cristo morreu por nós" (Rm 5.8). Somos todoschamados a testemunhar esse amor e a ministrá-lo: "Para realizaresta tarefa, eu trabalho e luto com a força poderosa que Cristodá, que é a força que age em mim" (CI 1.29). A Igreja tem avocação de ser o sacramento dessa libertação: "Quem diz que viveem união com Deus deve viver como Jesus Cristo viveu" (1 [o 2.6.).

o amor libertador é fonte de conflito

A proclamação do amor de Deus, salvador e libertador detodos os seres humanos, e especialmente dos desprivilegiados, en-cama-se na história. A proclamação desse amor libertador numasociedade caracterizada pela injustiça e pela exploração de umaclasse social por outra, de um pafs por outro, ajuda a provocar osurgimento de uma história diferente e inspira desafios e conflitos."

A práxis libertadora do amor de Jesus gerou conflito, dissen-sões e "cisma" no sentido etimológico do termo, a ponto de levá-loà morte. Em diferentes ocasiões o próprio Jesus se referiu aodesejo dos Judeus de levá-lo à morte por causa de sua práxis: "Eporque ele disse isso, os líderes judeus agora procuravam matá-10 ... " 00 5.18; 7.1, 19: 11. 53).

Referia-se a essa mesma práxis quando disse: "Vocês pensamque eu vim trazer paz ao mundo? Pois eu afirmo que não vimtrazer paz, mas divisão" (Lc 12.51).1~

o amor libertador é dom e tarefa a ser realizada

Em resumo, este amor libertador do Senhor é dom que nosquestiona e desafia, que nos chama a nos entregarmos a ele. "Nossoamor não deve ser somente de palavras e de conversa. Deve serum amor verdadeiro, que se mostra por meio de ações" (1 [o3.18), de modo que a glória de Deus 'venha a ser manifesta. As-sumir a causa dos pobres e oprimidos é reconhecer a verdadede Deus no meio de uma sociedade dividida pelos conflitos declasses, pela existência dos que são relegados às margens da so-ciedade, e pela existência da exploração dos países pobres. Aescolha desta práxis libertadora do Senhor significa não apenasesperar pelo dia do Senhor mas, principalmente, apressar a sua

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vinda, como nos relembra São Pedro: "Esperem a vinda do Diade Deus, e façam o possível para que venha logo mesmo ...Deus prometeu, e nós estamos esperando um novo céu e umanova terra, onde mora a justiça" (2 Pe 3.12 e 13).

A práxis libertadora de Israel e de Deus: chamado às igrejas

Deus insistiu a se associar na práxis com um povo cuja vo-cação era de ser um sinal no meio das nações, para as nações (Is55.4), uma luz: "Eu, [avé, te chamei para o serviço da justiça,tomei-te pela mão e te moldei, pus-te como aliança do povo, comoluz das nações, a fim de abrir os olhos dos cegos, a fim de soltardo cárcere os presos, e da prisão os que habitam nas trevas. Eusou [avé; este é o meu nome! Não cederei a outrem a minha gló-ria, nem a minha honra aos ídolos" (Is 42.6-8).

A fidelidade de Israel: palavra de alerta às igrejas

Mas a experiência de Deus com o seu povo foi muito amarga:"Desde o dia em que vossos pais sairam da terra do Egito atéhoje, enviei-vos todos os meus servos, os profetas, cada dia, incan-savelmente. E eles não me escutaram, nem prestaram ouvidos, masendureceram a sua cerviz, e foram piores do que seus pais. .. ederam as costas em vez da face" (Jr 7.25,26 e 24). Qual foi aconsequência? "Onde podereis ser feridos ainda, vós que perse-verais na rebelião? De fato, toda a cabeça está contaminada peladoença, todo o coração está enfermo; desde a planta dos pés atéa cabeça, não há um lugar são" (Is l.5e6).

Exílio e cativeiro: aviso às igrejas

A conseqüência do crime duplo de Israel, de idolatria e deinjustiça, será o caminho para o exílio e para o cativeiro: "Pelosangue que derramaste te tomaste culpada e pelos ídolos que fa-bricaste te contaminaste e fizeste com que se apresse o teu dia,chegaste ao termo dos teus anos. Eis porque fiz de ti um motivode opróbrio entre as nações e um objeto de escárnio para todosos povos ... No meio de ti se desprezam pai e mãe, em teu seioo estrangeiro sofre opressão, o órfão e a viúva são oprimidos. Des-prezaste as minhas coisas santas, profanaste os meus sábados ...Espalhar-te-ei entre as nações, dispersar-te-ei por países diversos eremoverei de ti a tua imundície ... " (Ez 22.4, 7,8,e 15).

O exílio e o cativeiro foram os resultados lógicos da infideli-dade de Israel, da sua "prostituição", de sua práxis injuriosa àglória do Senhor: "Jerusalém tropeçou, [udá caiu, porque as suas

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palavras e os seus atos são contra [avé, insultam o seu olharmajestoso ... [avé levantou-se para acusar, está em pé para julgaros povos. [avé entra em julgamento com os anciãos e os príncipesdo seu povo: 'Fostes vós que pusestes fogo à vinha; o despojotirado ao pobre está nas vossas casas. Que direito tendes de es-magar o meu povo e moer a face dos pobres?'" (ls 3. 8, 13-15).

o "remanescente" e o pobre de Javé

As igrejas não devem se esquecer de que [avé em sua fide-lidade e misericórdia levantará um "remanescente" entre os depor-tados (Ez 6.8-10; 12.10) e Deus os reunirá no exílio para arestauração messiânica (Jr 22.3; 31. 7). Esse "remanescente" seráreconhecido como "o pobre de Iavé" de que fala o profeta Sofo-nias:: "Naquele dia não terás vergonha de todas as tuas más ações,pelas quais te revoltaste contra mim, porque, então, afastarei deteu seio teus orgulhosos fanfarrões; e não continuarás mais a teorgulhar em minha montanha santa. Deixarei em teu seio umpovo pobre e humilde, e procurará refúgio no nome de [avé oResto de Israel" (Sf 3.11 e 12).-

Cristo, a "semente" do novo Israel

Na verdade, o Messias é que será a verdadeira "semente"(Ir 23.25) do novo Israel; nascido da Virgem Maria, filha dopovo de Israel, do humilde remanescente, cuja confiança inabalá-vel no Deus libertador e Salvador "que olha para a humildade desua serva", e que "depõe dos tronos os poderosos e exalta oshumildes", encontra expressão incomparável para todos os temposno Magnificat (Lc 1.46 e seguintes).

A prática de Jesus e a prática política

Depois de ter multiplicado os pães, disse a multidão: "Defato este é o p"rofeta que devia vir ao mundo! Quando Jesus soubeque queriam levá-lo à força para fazê-lo rei, voltou outra vez so-zinho para o monte" (Jo 6. 14 e 15). Se Jesus tivesse aceito o rei-nado naquele momento, não teria podido manifestar a plena di-mensão do que viera revelar ao mundo: multiplicara os pães ealimentara a multidão, mas as coisas não terminavam aí. Nadaterminava nas estórias relacionadas com as multidões: "Que é queDeus quer que a gente faça? Perguntaram eles. Que creiam na-quele que ele enviou, respondeu Jesus" 00 6.28 e 29). Jesus anun-cia o pão que é dom de Deus mas não dispensa o outro pão.Jesus anuncia, mostra, e revela esse pão da vida que entra nos co-

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rações, e abre os corações do povo para um tipo de fome e sedeque nunca se acabam, e que João traduz como "vida eterna":"Não trabalhem pela comida que se estraga, mas pela comida quedura para a vida eterna. O Filho do Homem dará esta comida avocês, porque Deus, o Pai, deu provas de que ele tem autoridade"00 6.27; também Mt 6.25-33). O verdadeiro pão, do céu, o pãode Deus, é dádiva do Pai, "é aquele que desce do céu e dá vidaao mundo" 00 6.32 e 33).

Este "pão da vida" procede do Pai e não tem limite. Tra-ta-se do "pão" que abre inúmeras possibilidades às capacidadeshumanas e ao futuro da humanidade. Não há contradição entre asduas ações de alimentar a multidão e de lhes dar o pão da vida.A contradição existiria se ficássemos em apenas um nível. ParaJesus, o pecado não reside apenas no nível moral ou espiritual;consiste em se transformar qualquer situação num absoluto: "Meusfilhinhos, evitem os falsos deuses" (1 Jo 5.21); o pecado consisteem se fechar numa situação sem a possibilidade de novo começo,pois o coração humano permanece faminto e sedento mesmo quan-do satisfeito com pão: "Felizes os que têm fome e sede de fazera vontade de Deus, pois ele os deixará completamente satisfeitos"(Mt 5.6).

Jesus Cristo e o exercício do poder

Poder é exercício de influência por meio de meios coercitivosou não, com a finalidade de se alcançar alvos definidos pelos queexercem tal influência. Há diferentes tipos de poder: econômico,social, intelectual, militar entre outros. Jesus enfrentou diversasmanifestações de poder: religioso (dos escribas e dos fariseus, Mt21.23-27; Me 11. 27-33; Lc 20.1-8); social e cultural (dos sadu-ceus, Lc 21.27-33); e político (de Pôncio Pilatos, Lc 23.1-25 eparalelos). Esses poderes, segundo o testemunho dos evangelhos,podem ser considerados desumanizadores. O poder de Jesus, noentanto, que era o poder de seu Reino, não era como os outros,porque o seu Reino não era "deste mundo" 00 18.36).

Os representantes das teologias oficiais entendem que se fazaí clara divisão entre o cristianismo e os poderes vigentes. Apoia-se implicitamente, por causa disso, tais poderes, embora nem sem-pre esse tenha sido o caso. Infelizmente, essa posição não vê oproblema das relações de Jesus com os poderes deste mundo numaperspectiva mais ampla."

Para Jesus de Nazaré a coisa importante é que vinha do Paie retomava para ele. O centro de seu ser e de sua existência era

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o fato de ser o Filho unigênito de Deus. Reconhece com alegriaesse dom. É o que lhe faz ser o homem pobre por excelência.

Ser discípulo de Jesus Cristo significa referir-se sempre a algomais além, posto que Jesus é o Filho que sempre se refere aoPai, sua fonte inexaurível, como a sarça ardente. Cessa, nessecaso, qualquer culto da personalidade: Jesus refere-se constante-mente ao Pai tanto em relação com o passado como com o futuro.

A ação e o ser de Jesus de Nazaré contrariam, portanto, qual-quer tipo de absolutismo, e tudo que signifique fechamento. Aocontrário, ele se empenha sempre em liberar novas energias, no-vas perspectivas e novas criações: "Agora faço novas todas ascoisas" (Ap 21.5).

Se a Igreja quiser ser profética, se se entender como a con-tinuação dos profetas em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo,precisa estar consciente e proclamar o absoluto de Deus e a cria-ção dos seres humanos à sua imagem, denunciando o poder dosídolos, os poderes que impedem a realização das potencialidadeshumanas, o poder de todos os sistemas fechados, e os poderesque não passam de criaturas humanas com pretensões ao absolu-tismo, começando, naturalmente, com a sua própria vida institu-cional e com o seu estilo de vida.

No final do evangelho de Mateus, Jesus diz: "Recebi todoo poder no céu e na terra" (Mt 28.18). O Cristo ressurrecto dis-põe de todo o poder e é esse mesmo poder que ele concede a suaIgreja.

No Evangelho de São João, encontramos Jesus dizendo a Pi-latos, seu juíz: "O meu Reino não é deste mundo ... se ele fossedeste mundo, os meus seguidores lutariam para eu não ser entre-gue aos judeus. Não, o meu Reino não é deste mundo... Foipara falar da verdade que eu nasci e vim ao mundo" 00 18.36 eseguintes). Os evangelhos sinóticos apresentam os mesmos tiposde problemas a respeito de Jesus e do poder. Nas tentações nodeserto, o teiftador diz a Jesus: "Se você é filho de Deus, mandeque estas pedras virem pão". Pede-lhe que domine sobre as "na-ções da terra" (Cf. Mt 4. 1 e seguintes, e paralelos). Como já vi-mos, encontramos a mesma tentação novamente no capítulo 6 doquarto evangelho, na estória da multiplicação dos pães. Jesus re-jeita esse tipo de poder. Não fora esse o caminho que traçarapara si mesmo.

O que interessava a Jesus era isto: "Recebi todo o poder".Para Jesus, o seu poder, o seu reinado, era um dom recebido doPai. E ele não se apodera orgulhosamente do que recebera, comose tudo não passasse de usurpação (Cf. Fp 2.6 e seguintes).

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Conseqüentemente, "como cristãos e como igrejas não pode-mos falar a respeito de uma nova ordem mundial nem trabalharem seu favor no meio de situações de dominação e de estruturasde opressão sem referência ao poder libertador de Jesus Cristo.Ele nos liberta do pecado tanto individual como social. Reconhe-cemos a expressão dessa força libertadora no Evangelho. A pala-vra profética da aproximação de Javé dos humildes e dos sempoder, encontra eco em passagens fundamentais dos evangelhos(Lc 4.17-21; Mt 25.31-46, entre outras). O Evangelho veio paraos pobres, para os sem poder, para os oprimidos, os cativos e osenfermos. Na pessoa de Jesus, [avé se colocou decididamente aolado dos pobres; buscou os que "nada são" (1 Co 1. 26-31). Apalavra "nada" não se refere a qualquer qualidade moral intrín-seca mas ao fato de serem os pobres marginais, entregues nasmãos dos poderosos" l4

Com esta linha de pensamento entendemos a relação de Je-sus com os poderes e aprendemos a perceber o papel da Igrejano processo da libertação.

A Igreja: novo Israel

A "semente" do novo Israel é descrita por São Paulo comoaquele que "já existia antes de tudo, e em união com ele todasas coisas são conservadas em ordem e harmonia". Ele é, também,"a cabeça do corpo, a Igreja" (Cl 1.17 e 18) que é "a totalidadedele mesmo, que completa todas as coisas em todos os lugares"(Ef 1.23). Essa Igreja, combinação da força de Deus com a fra-queza do homem, da graça do Espírito com o pecado humano, dopoder da ressurreição com o peso da morte - essa Igreja é osupremo sinal de tensão e paradoxo.

Para a multidão dos pobres, apesar da assistência recebidadas instituições eclesiásticas, com seus inegáveis sinais de renova-ção e esperança, esses corpos religiosos parecem ter sido na prá-tica verdadeiros obstáculos, até mesmo barreiras entre Cristo eos seres humanos ou, puramente ignorados. Não tem sido fácilpara o povo pobre reconhecer nas igrejas, destinadas a ser sinaisentre as nações, esse testemunho para os povos, essa lâmpada le-vantada no mundo "para brilhar diante dos homens" a fim de que"os outros vejam as boas coisas" feitas pelos seguidores de Jesus"e louvem o Pai que está no céu" (Mt 5.14-16).

A Igreja "sacramento"

Seguindo o Mestre, a Igreja é chamada na força e no poderdo Espírito a ser o sacramento desta tensão escatológica, desta

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"páscoa", desta "passagem", trazida à história da humanidade pelamorte de Cristo na cruz e pela sua ressurreição dentre os mortos.Não se pede dela êxito econômico nem político.

Cristo, por meio de sua Páscoa introduziu em nossa condi-ção humana mortal a eternidade, abrindo nossa história à pleni-tude do Reino. A última palavra não será pronunciada antes queCristo "preencha o universo" (Ef 4.10), recapitulando em si ahumanidade toda no caminho para o Pai: "Tudo isto é de vocês,e vocês pertencem a Cristo, e Cristo pertence a Deus" (1 Co 3.22 e 23).

Cristo desejou que sua Igreja fosse o sacramento de sua ple-nitude (Ef 3.19), incluindo aí o universo renovado e governadopelo Senhor. É o sacramento que nos diz: "Tudo isto é de vo-cês, e vocês pertencem a Cristo, e Cristo pertence a Deus". Quísque a Igreja fosse o "sal da terra" (Mt 5. 13-16), e fermento nomeio da massa" (Mt 13.33).

Quando a Igreja "perde seu sabor" e deixa de ser o levedono meio dos esforços pela libertação e da luta dos oprimidos pormaior justiça e fraternidade, quando sua "luz" diminui no cami-nho dos que são dobrados pelos fardos, a Igreja falha na missãoem favor da libertação e da salvação oferecida por Cristo, e deixade conferir a essa libertação a verdadeira dimensão em Cristo queé a participação na construção de seu Reino.:"

A missão da Igreja não consiste em ser membro ou garantiade poderes ou autoridades políticas e econômicas, estabelecidasou não. Não se limita à ordem política. Essa ordem não é priori-tária para a Igreja. Ela está sempre em movimento, deixando queo povo caminhe, que viva esta "passagem" com a humanidade so-fredora, e testemunhe no meio das realidades humanas injustas,de natureza social, política e econômica, aquela esperança que"não nos decepçiona, porque Deus tem derramado o seu amor emnossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos deu"(Rm 5.5). Sua missão consiste em estar sempre alerta na defesado direito dos oprimidos: "O povo da terra exerce a extorsão epratica o roubo; ele oprime o pobre e o indigente, sujeita o es-trangeiro à extorsão, contra o seu direito. Busquei entre eles umhomem capaz de construir um muro e capaz de pôr-se na brechaem prol da nação, para que eu não a destruisse, mas não o en-contrei" (Ez 22.29 e 30). Sua missão consiste, imitando o fun-dador, em estar preparada para se tornar pobre em vez de ricaa fim de enriquecer com essa pobreza o combate da humanidade(Cf.2 Co 8.9).

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Pois se a Igreja se desvestisse de todo poder político e selibertasse da riqueza econômica, nada teria para temer ou perder,podendo então se devotar à luta dos oprimidos e dos fracos, fa-lando como Pedro ao paralítico de nascimento: "Certo dia, às trêshoras da tarde, na hora da oração, Pedro e João foram ao templo.Todos os dias ficava ali um homem que tinha nascido coxo. Na-quele lugar, chamado Porta Formosa, punham o homem para pediresmolas às pessoas que entravam no templo. Quando ele viu Pe-dro e João entrando, pediu uma esmola. Eles olharam bem paraele e Pedro falou: - Olhe para nós! O homem olhou para eles,esperando receber alguma coisa. Então Pedro disse: - Não te-nho nenhum dinheiro, mas lhe dou o que tenho: Em nome deJesus Cristo, de Nazaré, levante-se e ande! Em seguida, Pedropegou a mão direita do homem e o ajudou a se levantar. Nomesmo instante, os pés e os tornozelos dele ficaram firmes. Entãoele deu um pulo, ficou de pé, e começou a andar. Depois entrouno templo com eles, andando, pulando e agradecendo a Deus"(At 3.1-8).

A missão da Igreja consiste em ser testemunha na marchada humanidade na direção indicada por São Gregório de Nissaem seu comentário ao Cântico dos Cânticos: "Quem se levantasobre os próprios pés terá de fazê-lo sempre; pois quem caminhana direção do Senhor terá sempre espaço pela frente. O homemque quer subir não para aqui e ali como se estivesse sempre co-meçando". Ao se colocar do lado dos oprimidos, nessa tensão man-tida no próprio centro da história, da qual ela é sinal e testemu-nha, a missão da Igreja consiste em "apressar" com o EspíritoSanto, no meio das ambiguidades da realidade humana, "a vindado dia do Senhor", a chegada daqueles "novos céus e novas ter-ras" nos quais, segundo as promessas de Deus, "mora a justiça"(2 Pe 3.12 e 13).

A missão da Igreja, por causa desse compromisso, antecipa aexperiência da koinonia na qual os pobres se sentem aceitos etodos os homens são irmãos, com um só coração e alma, ondeninguém diz que as coisas que têm são suas, mas tudo pertencea todos (CL At 4.32). Para que se acredite nisso é preciso quea koinonia seja vivida em diakonia, que é a única forma de podera ser exercido pela Igreja.

ConclusãoPara concluir, voltamos à passagem de São Paulo, já citada:

"Tudo isto é de vocês, e vocês pertencem a Cristo, e Cristo per-tence a Deus" (1 Co 3.22 e 23). Aí está o resumo de tudo. O que

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a Igreja tem que proclamar aos pobres como boas notícias paraeles é que "todas as coisas são de vocês": a obra da criação e ahistória humana, eis aí o domínio de vocês ."Vocês são de Cristoe Cristo é de Deus". Cristo vem de longe e vai para longe. Sendoo Filho, ele é o pobre por excelência e ele possui esta liberdadetotal.

Em última análise, o que dá ao Evangelho caráter radical,sua raiz, é o sinal da cruz. Os judeus queriam sinais de podere autoridade, os gregos exigiam a racionalidade científica, argu-mentos (CL 1 Co 1.22). Mas a libertação, a plenitude da luz, aliberdade autêntica, emana da mais completa fraqueza e da lou-cura da cruz de Jesus Cristo. Nela não há lugar para triunfalismo.Apenas para obediência a Jesus. Precisamos deste sinal da cruzpara contemplar e constantemente buscar a compreensão nas rea-lidades de nossa história e de nosso mundo humano, no qual so-mos batizados, para redescobrir a força, o poder, e o radicalismodo Evangelho." Trata-se de uma experiência a ser repetida e vi-vida passo a passo.

"Quanto a mim, eu me orgulharei somente da cruz de nossoSenhor Jesus Cristo. Porque, por meio da cruz, o mundo estámorto para mim, e eu estou morto para o mundo" (Gl 6.14). Êum sinal que primeiramente crucifica-nos a nós mesmos, em rela-ção com o que pensamos ser possível fazer e pensar. Devemoscolocar este sinal da cruz sobre todas as realidades. Há muitacoisa para ser feita e dita neste mundo. É aí o lugar de nossoenvolvimento apaixonado e de nossa luta.

Nada é perfeito, tudo é relativo. Este sinal da cruz significaque tudo se torna possível para nós e para os outros. Significaque coisas novas podem ser feitas e criadas. A Igreja precisa se en-volver neste processo de mudança, nesta luta, para que se torne:

1. O lugar onde a Palavra de Deus é lida e relacionada comos sinais dos tempos, e ao mesmo tempo, o lugar onde os sinaisdos tempos são lidos em relação com a Palavra de Deus - emoutras palavras, lugar de conversão permanente.

2. Lugar de irmandade, de koinonia, de participação já expe-rimentada, de solidariedade na qual os oprimidos possam se re-conhecer - em outras palavras, segundo o livro de Atos, o tipocristão de irmandade é manifestação do testemunho da missãoque a Igreja realiza por amor de Jesus e no poder do Espírito(At 4.32-35).

3. Lugar de diakonia, de viver pelo poder daquele que habitaem nós, e que nos envolve e "emerge" no mundo, a fim de re-

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velar sua justiça e o poder de seu amor - em outras palavras,lugar de tensão escatológica, de êxodo e de páscoa.

Portanto, o papel da Igreja no processo da libertação é dese tornar sinal desse reino de justiça e amor, conservando cons-tantemente diante de si a figura de Jesus na cruz. A mensagem aser proclamada é, sem dúvida, de amor, mas do amor crucificado,que permanece vitorioso, graças à confiança que temos na retidãode Deus. Somos chamados a reconhecer a face de Cristo nas facesdos irmãos e irmãs oprimidos e perseguidos pela injustiça deoutros seres humanos e de suas estruturas existentes, e a lutarjuntos para que sejam menos desfigurados e venham a descobrirno significado desses sofrimentos o poder da redenção que noslevanta e dirige na caminhada em direção à luz da ressurreição:"O povo que vive na escuridão verá uma grande luz! E a luz bri-lhará sobre os que vivem na região escura da morte!" (Mt 4.16).

NOTAS

1, Em mais de um sentido, trata-se de resultado dos atuais processos desecularização, muito relacionados com a evolução do sistema de livremercado. A religião tem sido relega da ao setor privado da vida: sua in-fluência nos assuntos públicos não é considerada relevante pelos quecontrolam e manipulam as leis do mercado, a não ser quando a religiãoapóia a ideologia dominante. Curiosamente, coisa semelhante acontecenas economias orientadas por planificação central, onde a rejeição dopapel da religião nos aspectos sócio-político-econômicos da vida se ex-pressa por meio de termos bastante duros (muito embora no presenteessa rejeição não se manifeste tão fortemente como no passado).

2. Tem sido esse o caso de grupos que apoiaram golpes de estado de tiporeacionário na América Latina: os assim chamados grupos "Pátria, Fa-mília e Propriedade", "Tradição, Família e Propriedade", entre outros.CL Jaime Rojas e Franz Vandeschueren, Chiesa e Golpe Cileno, Torino,1976, Claudiana.

3, CL To break the chains oj oppression, p. 76: "Para os que tomam esteponto de vista (ou melhor, pontos de vista, posto que há mais de umentre os que trabalham junto aos pobres), ortopráxis está mais perto daverdade do que ortodoxia: o último liga-se ao primeiro e lhe dá con-teúdo, caso contrário não valeria mais do que mera conversa ideoló-gica; em geral, apenas reflete a ideologia dos dominadores. Apenas oenvolvimento ativo no destino e nas lutas dos pobres ganhará credibi-lidade para uma mensagem que busca ser o sinal de novo modo devida". Genebra, CCPD/WCC, 1975.

4. CL Julio de Santa Ana (ed.), Separation without hope?, especialmente ocapítulo escrito por André Biéler, p. 23 e 24. Genebra, WCC, 1978.

5, CL Gustavo Gutierrez, "Evangelio y práxis de liberación social", Fecristiana y cambio social en Americú Latina, p. 244: "Neste contexto,a teologia será a reflexão crítica dentro da práxis histórica e sobre ela,em confronto com a palavra do Senhor vivida e aceita pela fé. .. Re-

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fletir sobre a fé enquanto práxis libertadora é refletir sobre a verdadeque está sendo feita e não meramente declarada. Em última análise,nossa exegese da palavra, à qual a teologia procura contribuir, dá-seem fatos". Salamanca, Sígueme, 1973. CL também Leonardo Boff, Quées hacer teologia desde América Latina, p. 7 e 8, Lima, Miec-Ieci, 1977.

6. Cf. Ian Fraser, The [ive runs, p. 3-41, Londres, SCM Press, 1975.7. Julio de Santa Ana (ed.), op, cit., especialmente os capítulos de Nikolai

Zabolotski: "The Russian Orthodox Church and the poor in the 19thand 20th centuries", e do Metropolita George Khodor: "Social actionand thought among Arab orthodox christians (1800-1920)".

8, Nikolai Berdyaev, Christianity and class war, Londres, Sheed & Ward,1933.

9. Theology of Human Hope, p. 115. Washington, Corpus Books, 1969.10. CL Iürgen Moltmann, The Church in the power of the Spirit, p. 209:

"A verdade da proclamação de Jesus, sua pregação do Evangelho aospobres, seu perdão dos pecados e as curas dos doentes são fatos ratifi-cados por meio de sua entrega à morte e da ressurreição dos mortos.A pregação apostólica à vocação, justificação e libertação dos homensvem deste evento da' verdade. Mas se dirige à parousia e à ressurreiçãodos mortos, isto é, à nova criação. A verificação de tudo isso se dáentre a memória de Cristo e a esperança do Reino, por meio da pre-sença do Espírito e do poder da ressurreição"'. Londres, SCM Press,1977.

11. CL Robert A. McAfee Brown, Theology in a new key, p. 180: "Con-versão significa olhar para as coisas de uma perspectiva diferente por-que experimentamos uma "reviravolta" (coisa, que sempre acontecequando somos receptivos a mudanças). "Se olharmos para o mundo daperspectiva dos que dizem que tudo está bem, procuraremos preservá-Iocomo ele é. Se percebermos que o mundo precisa de reformas, procura-remos fazer com que o atual sistema funcione melhor por meio daeducação e de outros métodos de persuasão. Mas se entendermos que osistema não funciona mais, trabalharemos por mudanças mais radicais".Philadelphia, Westminster Press, 1978. CL também Rubem Alves, op.cit., p. 16 e 17.

12. Convém relembrar, a respeito, o que se diz em To break the chains ofoppression, p. 64 e 65: "Cremos que dentro da comunidade cristã, ondese dá a reflexão teológica, se deve reconhecer claramente que nossoDeus é Pai de todos, ricos e pobres, e que lhe interessa transformar aIgreja no sacramento da reconciliação universal em Jesus Cristo. Masao mesmo tempo, devemos também reconhecer que a reconciliação bus-cada por Deus e à qual somos chamados não pode ser alcança da ocul-tando-se as injustiças e as desigualdades que separam seus filhos, maspela busca da verdadeira fraternidade, significando que devemos parti-cipar nos esforços de levar a verdadeira libertação e a igualdade aosoprimidos, antecipando entre eles os sinais provisórios da reconciliaçãoem Cristo".

13, Esta perspectiva aparece em To break the chains of the oppressed, capí-tudo IV, p. 36-45. Também no relatório-da Seção VI da Quinta Assem-bléia do Conselho Mundial de Igrejas sobre "Desenvolvimento huma-no: as ambigüidades do poder, da tecnologia e a qualidade da vida",parágrafos 35-40. David M. Paton (ed.), Breaking barriers: Nairobi, 1975,p. 129 e 130, Grand Rapids, Mich., Wm B. Eerdmans, e Londres,SPCK, 1976.

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14. Ibid., p. 130.15. CL [arries Cone, Black theology and black power, p. 62-115, New York,

Seabury Press, 1969.16. Ver Robert McAfee Brown, op. cit., p. 162 e seguintes, especialmente

179-182.17. A palavra grega indicadora dessa atitude mental, dessa espiritualidade,

na luta, é parresia. Aparece poucas vezes nos Evangelhos, mas trans-parece em cada gesto e palavra de Jesus. Sua vida expressa melhordo que qualquer outra coisa o significado da ousadia evangélica -parresia. É a palavra usada por Lucas em Atos 4.13 para descrever aatitude de Pedro e João quando, aprisionados, foram levados a julga-mento. Parresia é necessário para o testemunho da Palavra de Deus (At4.29). É fruto de conversão, como prova a experiência de São Paulo. Apartir de sua conversão (cf. At, 9.20-30) ele prega o Evangelho comparresia até o fim de sua vida (At 28.31). Ele e outros crentes foramsustentados pelo Espírito Santo para esse fim - essa era a obra doParacIeto 00 16). O contexto normal da parresia é o conflito. É o quenos ajuda a superar o medo, o acanhamento, a fraqueza... É normalpara os que pregam o Evangelho. porque as "Boas Novas" trazem con-flito ao mundo. "Por causa disso, parresia é elemento constitutivo davida ecIesial em qualquer época em que a ação 'de Deus na Históriatenha sido experimentada". CL David Molineaux, La audacia cristiana- Parresia en el Nuevo Testamento, em Páginas, n. 7, p. 16 e seguintes,Lima, CEP, dezembro de 1976.

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3.o caminho à frente:propostas para ação

-e

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XI. Evangelização, Bíblia e Liturgiana Igreja dos pobres

Vamos conversar um pouco a respeito de evangelismo, leiturada Bíblia e celebrações litúrgicas nas igrejas dos pobres. A teologiados marginalizados expressa-se por meio da pregação das BoasNovas de Deus aos seres humanos, de novas maneiras de utilizaro testemunho escrito da Palavra de Deus, e de novas manifesta-ções do culto cristão. É nesses níveis que a Igreja dos pobres vaise manifestar nas comunidades cristãs de modos semelhantes.

Os pobres: evangelizados e evangelistas

Os ensinamentos de Jesus foram ouvidos pelos pobres como"boas notícias" (Lc 7.22). Essa proclamação era consubstanciadapor fatos concretos que davam esperança e felicidade aos pobres:os doentes eram curados, os cegos viam de novo, os leprosos erampurificados, os mortos ressuscitavam e os oprimidos procuravamquebrar as estruturas de cativeiro em que viviam. Pessoas simples- pescadores, gente sem educação - recebiam poder para fazeras mesmas coisas. Esse é o sentido do chamado dos doze, quereceberam autoridade da parte de Jesus "para expulsar todos osespíritos maus e curar doenças", e "anunciar o Reino de Deus"(Lc 9. 1 e 2; Mt 10. 1, 5, 7-11, 14; Mc 6.7-12). Os pobres não sórecebiam as Boas Novas mas também o poder de comunicá-Ias aosoutros.

A história da Igreja Cristã demonstra que o privilégio dospobres não se circunscreveu aos discípulos de Jesus. Ao longo dosséculos, o Evangelho tem sido comunicado por meio de palavrase obras de pessoas pobres, sem poder nem prestígio social. Natu-ralmente, tem havido exceções, mas se pode dizer que a mensagemdo amor de Deus com as promessas de justiça e libertação paratodos os seres humanos tem sido pregada principalmente pelos po-bres. Infelizmente, a separação que se deu entre os organismoseclesiásticos e os pobres não favoreceu a continuação desse pro-cesso.' Além disso, as alianças entre as instituições eclesiásticas e

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os poderes dominantes da sociedade enfraqueceram a confiança dopovo no poder salvador e libertador do Evangelho.

Felizmente, a preocupação da Igreja de estar com os pobres,de ser a Igreja dos pobres, está aumentando hoje em dia," Comoindicamos, há setores das igrejas que optaram conscientemente portrabalhar com os pobres, afirmando dessa maneira certa "redesco-berta do Evangelho" por meio de participação na vida, nas expec-tativas e na luta dos pobres. Por meio dessa experiência não afir-mam apenas que os pobres estão recebendo o Evangelho, mas quesão também os verdadeiros evangelistas de nossa época.

Que significa tudo isso? Não há perigo, em tal afirmação, dese idealizar os pobres? Poderemos dizer que eles pregam as "boasnovas" quando suas vidas, por causa da opressão que sofrem, ex-pressam muito mais o mal do que as qualidades da "vida abun-dante"? Em primeiro lugar, os pobres carregam em si claro julga-mento das estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes res-ponsáveis pela opressão e pela desigualdade. A falta de satisfaçãodas suas necessidades humanas básicas é o veredito que condenao estilo de vida afluente e de desperdício, cuja culpa é de pequenaminoria no mundo atual. Os que vivem na riqueza e se dispõema participar na vida dos pobres acabam experimentando inquieta-ção, sentimentos de culpa ou quase de culpa, que lhes move àmudança, ao arrependimento e à conversão. Neste sentido, os po-bres representam desafio aos ricos na direção de vida nova.

Em segundo lugar, não obstante os males que sofrem, os po-bres são portadores de esperança. Sabem que não têm quase nadaa perder, mas muito esperam. Suas esperanças não são fáceis. Suasexpectativas não poderão ser alcança das de um dia para outro. Es-peram o que desejam. E não se dão por vencidos!

Por séculos, as comunidades autóctones na América Latinanão têm lutado por seus direitos. Por séculos, o povo africano temlutado pela liberdade. Por séculos, as comunidades asiáticas cla-mam por justiça e respeito para com suas culturas. Por séculos, ostrabalhadores em todas as partes do mundo aguardam o surgimentode uma sociedade mais justa e participatória. Por séculos, as mu-lheres esperam reconhecimento de seus direitos de pessoas humanasde facto, e não apenas de jure. E, o que é mais importante, todaessa gente tem pago o preço dessa luta sem esmorecer. Essa espe-rança que tanto lhes têm custado tem tido o apoio dos que comeles se têm envolvido historicamente.

Em terceiro lugar, quando olhamos para trás, vemos que mui-tas mudanças não foram feitas por pessoas detentoras de poder,mas por pessoas que buscaram reformas das estruturas econômicas,sociais e políticas. Naturalmente, os resultados alcançados nem

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sempre foram os esperados; contudo, houve progresso no nível es-trutural. Nesse sentido, também, os pobres têm sido portadores deboas notícias.

Em quarto lugar, os pobres têm se encarregado de mostrar aomundo os sinais do Reino de Deus. A vida que levam é muitomais solidária do que a dos ricos, muito mais condicionados pelosdemônios da possessão e do individualismo (Lc 12.16-21). Os po-bres experimentam alegria muito maior do que os preocupados emacumular riquezas. Também, nesse sentido, carregam as marcas doReino que "não é questão de comida ou de bebida, mas de justiça,paz e alegria que o Espírito Santo dá" (Rm 14.17). Talvez os maisclaros sinais do Reino que manifestam sejam a justiça e a eqüida-de, de um lado, e a reivindicação por participação, de outro, idéiainseparável do significado da irmandade cristã, da koinonia, que éa verdadeira expressão do Reino de Deus na história.

Pode-se dizer que os pobres são mensageiros do Evangelhoporque julgam os caminhos errados dos poderosos e dos ricos, cha-mando-os ao arrependimento, porque são, também, portadores deesperança, trazendo mudanças à realidade histórica, e porque, alémdisso, mostram ao mundo os sinais do Reino de Deus. Com issoqueremos dizer que a Igreja não é a Igreja verdadeira se não fora Igreja dos pobres, se não participa nas suas lutas em favor dajustiça. Entretanto, a tarefa evangelística dos pobres não é clara,pois sua condição é ambivalente. Por exemplo, também eles sãochamados ao arrependimento; em muitas ocasiões eles comprome-tem suas esperanças com o que não é esperança a fim de sobrevi-ver; às vezes as mudanças que provocam acabam servindo mais àcausa dos ricos do que à sua. Assim, nem sempre são claras assuas manifestações do Reino da justiça: não são inequívocos.

É verdade. Ninguém o pode negar, a não ser que venhamosa idealizar os pobres. No entanto, nenhuma destas afirmações podemser usadas para negar o papel dos pobres na evangelização, primei-ramente, porque a pregação da mensagem do Evangelho pelas ins-tituições eclesiásticas também tem sido ambivalente; a paz faz partedo Evangelho, mas os organismos cristãos têm apoiado muitasguerras. A liberdade é sinal dos filhos de Deus, mas os cristãostêm participado na opressão colonialista e no tráfico de escravos.Isto é, as instituições cristãs têm se aliado a causas não-cristãs napregação do Evangelho aos povos não-cristãos. A ambivalênciaprecisa ser superada por meio de fidelidade a Jesus Cristo. É pre-ciso pagarmos o preço desse discipulado e um dos principais re-quisitos é não se comprometer com Mamon."

Em segundo lugar, nenhuma comunidade cristã tem o direitode desqualificar os pobres na tarefa evangelística sem antes parti-

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cipar em sua vida, esperanças e lutas. Os grupos cristãos devota-dos ao ministério com os pobres encontram novo poder evangelís-tico entre os necessitados e oprimidos. Descobrem, ainda, que entreos pobres suas vozes se harmonizam com a Palavra de Deus. Onovo tipo de evangelização promovido pelos pobres, caracteriza-sepela efetiva apropriação da mensagem de Jesus pelos oprimidosque tudo fazem para tornar verdadeiras as Boas Novas da liber-tação.'

Tendo dito essas coisas, lembremo-nos de certos elementos dasnarrativas dos evangelhos que acentuam os pobres como portado-res da mensagem do Reino de Deus. Por exemplo, o cego querecebeu a visão de Jesus 00 9.1-12), e o paralítico, que, por maisde trinta anos, esperara ser curado e que foi afinal libertado dasdores por Jesus 00 5.1-18). A respeito do primeiro caso, Jesusdiz que o problema era menos importante do que a manifestaçãodo poder de Deus: "Ele não é cego por causa dos pecados dele oudos pecados de seus pais. É cego para que o poder de Deus semostre nele" 00 9.3). No segundo caso, o próprio paralítico co-meça a testemunhar o evento libertador operado por Jesus: a lei(a respeito do sábado) era menos importante do que a ação deDeus e o ato de comunicá-Ia por meio do paralítico. Ambas as pes-soas, o cego e o paralítico, eram pobres. Os dois tornaram-se por-tadores da mensagem das boas novas, porque haviam vivido o sig-nificado do Evangelho.

Em outras palavras, Jesus vê os pobres como não os vêemos ricos. Para os ricos, os pobres representam a oportunidade dedemonstrar até que ponto são caridosos. Mas para Jesus, os pobressão em si mesmos a manifestação potencial do Reino. Jesus via ospobres de modo diferente dos ricos: Jesus via-os como mediadoresdo Reino de Deus. Coisa semelhante pode-se dizer a respeito daestória da cura do leproso (Me 1.40-45, especialmente os versículos44 e 45).

Mais importante, ainda, é o fato já indicado neste livro maisde uma vez: o próprio Jesus se faz presente de modo oculto entreos pobres (Mt 25.31-46). Se evangelizar significa tornar possível oencontro com Jesus Cristo, os pobres são aqueles em quem o Cristose faz presente de modos desconhecidos. Eles são os evangelistasque carregam o Cristo, Cristóforos!

Leitura da Bíblia na Igreja dos pobres

A Bíblia, muitas vezes, tem sido a inspiração de mudançassociais e culturais ao longo da história da fé cristã. Mas a domes-ticação da teologia e da Igreja limitaram a visão da Bíblia e tira-ram dela a força libertadora. Se nossas igrejas quiserem realmente

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ser igrejas dos pobres, devem redescobrir esse poder libertador eusar a Bíblia como instrumento que é na luta pela libertação dasopressões e da injustiça." A capacidade da Bíblia de servir dessamaneira se vê no uso prático de inúmeros grupos em diferentescircunstâncias que nela encontram ajuda para suas reflexões a res-peito de experiências do dia-a-dia. Utilizam a Bíblia como auxílioem suas vidas diárias, procurando entender sua mensagem secularpara obter orientação para as atividades políticas," Dessa maneiraredescobre-se o seu caráter real. E entendemos que ela é uma co-leção de documentos que atestam a maneira como as pessoas vi-veram a libertação. e aprenderam a lê-Ia nessa perspectiva.

No início da história de Israel encontramos o Exodo da "casada escravidão", a difícil jornada de um povo oprimido para a li-berdade. O pensamento posteriormente desenvolvido em Israel arespeito da teologia da criação não queria estabelecer uma teologiadas ordens e reforçar o status quo, mas falar da criação de umhabitat humano - o pré-requisito do verdadeiro desenvolvimentohumano (SI 8). O protesto profético contra a injustiça social refletea consciência da identificação completa de Deus com a causa dospobres e dos explorados (Cf. Os 6.4-10; Mq 3-9-12; Am 6.1-8). Ahistória de Jesus Cristo contada no Novo Testamento mostra o atode solidariedade da parte de Deus para com os desprezados e so-fredores. A mensagem de Jesus Cristo convoca os seres humanos àmudança e ao reconhecimento da soberania de Deus. O julgamentode Jesus foi um ato político e prova muito bem que seus inimigosentenderam corretamente sua mensagem. Os evangelhos, com suasestórias de milagres, documentam a libertação e a humanizaçãoacontecidas quando, pelo poder do Espírito de Jesus Cristo, a vidahumana era radicalmente transformada. Paulo concentra sua men-sagem na idéia da justiça à vista de Deus (Cf. Rm 3.21-26), e nofim da Bíblia encontramos a visão de um mundo transfigurado erenovado (Ap 21 e 22). Os conceitos centrais da Bíblia expressam,acima de tudo, linguagem política. As palavras-chave da Bíblia(justiça, shalom no Antigo Testamento, evangelho no Novo) nãosão apenas tomadas de empréstimo do mundo político, mas clara-mente dirigidas a ele.

Essa explicação apaga a dialética entre "horizontal" e "verti-cal" na proclamação? A Bíblia nunca pretendeu ser um panfletopolítico. Ê e permanece fruto das experiências humanas com oDeus que não se ausenta da história humana mas quer entrar nelaapaixonadamente.' Conseqüentemente, chama a atenção dos sereshumanos para os atos de Deus na história até nossos dias. Essamensagem ainda inspira os seres humanos agora e até mesmo cria,em conseqüência, movimentos políticos,"

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Posto que o estudo bíblico nos leva diretamente à luta polüicae nos envolve em movimentos de oposição à pobreza, à cxploruçuoe à opressão, podemos ver aí a expressão do espírito libertador deDeus." De fato, uma das marcas específicas do Espírito Santo \.:011

siste em criar movimentos emancipatórios e chamar pessoas a nelesparticipar. Na Igreja dos pobres, portanto, não se pode separar aleitura "espiritual" da Bíblia da leitura "política". A espirituali-dade e a luta política não podem se separar, e o estudo da Bíbliaé elemento essencial no desenvolvimento de nova espiritualidade:a espiritualidade da luta dos pobres."

Mas descrever a Bíblia como coleção de documentos de umateologia da libertação não seria ainda suficientemente preciso. Alibertação não pode ser isolada, como se fosse um ato desconexo.Ela é sempre realizada no meio de processos ricos em contradi-ções e conflitos. Os livros da Bíblia evidenciam tais conflitos. Porexemplo por detrás de 1 Sm 8-10 há duas posições políticas di-Ierentes." Amós 7.10 e seguintes, narra o confronto direto de duasposições teológicas e de seus comprometimentos políticos." E quan-do Paulo e Tiago expressam diferentes opiniões teológicas (compa-rar Rm 3.28 com Tg 2.14 e respectivos contextos) a explicaçãodeve ser buscada nos contextos sociais contrastantes. Sem dúvidaalguma, na base da tradição bíblica são evidentes inúmeras esco-lhas concretas envolvendo conflitos e até mesmo provocando-os eproduzindo-os."

Muito aprendemos sobre esse tema examinando a maneiracomo o cânon do Novo Testamento foi estabelecido. Ele reflete adiscussão de princípios teológicos que resultaram na coleção detextos que conhecemos com suas inevitáveis tensões. A última coisaque se poderia concluir dessa combinação de documentos numúnico livro seria a tentativa de acabar com as tensões aí presentes.Mas, bem ao contrário, o propósito foi o de afirmá-Ias. A melhorprova do que estamos dizendo é o fato do Diatesseron, a Harmoniados Evangelhos de Taciano, nunca ter conseguido se estabelecer naIgreja."

Reconhecendo-se que o estabelecimento do cânon da Igrejaprimitiva não queria encobrir as diferenças teológicas existentes,coisa que sempre representa divergentes interpretações da realida-de social, fica aberto o caminho para a leitura da Bíblia orientadapelo conflito, capaz de nos ajudar a entender melhor e a melhordescrever os conflitos sociais contemporâneos." Uma vez que aluta dos pobres contra a exploração e a opressão envolve conflitocomo fator essencial, a Igreja desejosa de ser a Igreja dos pobresnão deve evitar mas promover a leitura da Bíblia orientada pelo

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conflito. Essa leitura justifica-se tanto politicamente como a partirda própria Bíblia.

Obviamente, essa maneira de ler a Bíblia exige novas formasde procedimento. Exige discussão em grupos e entre grupos. Quan-do. gente de diferente educação (raça, classe ou status) alcançacompreensão mais profunda de seu mundo em virtude da leiturada Bíblia em comum e encontra inspiração para a ação social, aleitura da Bíblia transforma-se ela mesma em instrumento de avan-ço social.

Devemos entender que qualquer tipo de leitura bíblica é cul-tural e socialmente condicionada e tem conseqüências políticas. Asigrejas que desejam ser igrejas dos pobres terão de promover for-mas de leitura da Bíblia capazes de ajudar no processo emancipa-tório da libertação. Qualquer leitura da Bíblia só alcança significa-ção precisa por meio de envolvimento social. Por outro lado, qual-quer leitura da Bíblia emancipatória e orientada pelo conflito sóvai alcançar o significado preciso quando os pobres forem os su-jeitos e não apenas os objetos dessas atividades sociais. A leiturada Bíblia orientada pelo conflito faz parte da dinâmica da catoli-cidade vista como um movimento no processo da libertação mesmoquando esse processo venha a se expressar por diferentes escolhase atividades.

Liturgia na Igreja dos pobres

A tensão é diferente no culto cristão: Trata-se do espaço daliberdade, da oferta do descanso do sábado, da celebração anteci-patória da nova ordem do mundo, mas ao mesmo tempo é adora-ção em relação com os acontecimentos cotidianos, desafiada pelosconflitos do dia-a-dia. Só é culto cristão na medida em que leva asério esses conflitos. Na prática, no entanto, é grande o perigo dese evitar essa dialética. Assim, a liturgia é bom lugar para se estu-dar tal evasão. Embora a diversidade das práticas litúrgicas impos-sibilitem, na prática, avaliações generalizadas, encontramos três as-pectos que nos parecem importantes para o exame da práxis litúr-gica da Igreja dos pobres.

1. As liturgias de nossas igrejas são frutos de longa tradição.Tendem, portanto, a conservar o passado. Aos grupos de avant-garde dentro da Igreja e aos de fora elas parecem fossilizadas.Posto que a atitude tradicionalista para com a liturgia volta-separa o passado e carrega consigo o perigo de consolidar e santifi-car o status quo na Igreja e na sociedade, torna-se essencial tornara celebração da liturgia sensível às experiências contemporâneas e,especialmente, às dos grupos oprimidos.

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2. Até mesmo as liturgias tradicionais têm valores pcsitivoscomo o de dar às congregações a oportunidade de descobrir cdesenvolver a própria identidade. As diferentes tradições litúrgicusdas igrejas são formas óbvias desta busca de identidade na varie-dade dos contextos culturais e sociais."

Uma vez que a libertação não é processo meramente econô-mico mas também inclui o desenvolvimento da visão dos oprimi-dos, a Igreja dos pobres precisa fazer da liturgia a expressão dotrabalho e da cultura dos pobres: o lugar onde descobrem e expe-rimentam a própria identidade."

Para esse fim será vital à liturgia que as congregações desen-volvam atividades próprias: atividades naturais e livres e não ape-nas as prescritas por lecionários e livros de orações - certamentemuito apropriadas às circunstâncias que as originaram.

As principais questões enfrentadas pela Igreja dos pobres emrelação à liturgia são estas: "De que maneira a liturgia pode setransformar em meio pelo qual a Igreja dos pobres descobre a pró-pria identidade? De que maneira a Iiturgia poderá ajudar a trans-formar as grandes massas dos pobres em comunidade verdadeira-mente humana?"

3. Na tradição ortodoxa encontramos referência a uma "litur-gia depois da liturgia"." Trata-se do momento em que se passa daedificação e da adoração da congregação reunida para a vida diáriano mundo.

Esta idéia de uma "liturgia depois da liturgia" convida-nos aalguma reflexão. O estágio preparatório do culto tem adquirido ta-manha importância para as pessoas interessadas na renovação doculto que poderia ser descrito como uma "Iiturgia antes da litur-gia", quando são consideradas as experiências dos participantes, osmateriais existentes para o culto e avaliados os diversos elementosdisponíveis.

Se nossas igrejas desejam ser igrejas dos pobres será precisoque incorporem as experiências do povo no ato do culto transfor-mando-as em princípios formativos da liturgia. Os pensamentos eos sentimentos dos pobres devem fazer parte das celebrações litúr-gicas da Igreja dos pobres."

Torna-se necessária a criação de "pontos de transferência"para a introdução das experiências do dia-a-dia no culto. Há di-versas maneiras para tal procedimento: por exemplo, por meio degrupos de ação e de projetos que deliberadamente preparam a li-turgia, mas também e especialmente por meio do uso de elementosda vida diária.

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B preciso coligir sistematicamente material adequado para essefim. Nesse material não devem faltar:

* Música popular relacionada com a vida diária: hinos e can-ções utilizados na luta dos pobres. A música e as canções dos po-bres expressam seu sofrimento resultante de condições iníquas devida e sua esperança de libertação, sua busca e descoberta da iden-tidade. As formas musicais de expressão representam indispensávelnível de comunicação e de participação na Igreja dos pobres.

* Orações e meditações que possam justificadamente ser con-sideradas formas relevantes de espiritualidade Iibertadora." Na ora-ção, os sofrimentos, as angústias e as esperanças do povo situam-seno contexto mais amplo e abrangedor da presença de Deus. Aoração é forma vital da participação da congregação nos problemasde nosso mundo e expressão de sua esperança no poder transfor-mador de Deus. A Igreja socialmente comprometida tem que seruma igreja em oração. A Igreja decidida a se identificar com acausa dos pobres deve aprender a orar no espírito da pobreza."

* Textos seculares e bíblicos, que simbolizem e descrevam mo-delos de ação adequados à expressão dos responsos humanos bá-sicos à vida (como medo ou esperança).

Os responsos básicos dos pobres devem irrigar o culto dasigrejas. Deve haver busca de símbolos que sirvam de ponte entreas experiências cotidianas e a mensagem cristã. Novos símbolosserão possíveis quando os temas fundamentais e as palavras deci-sivas da vida diária forem descobertos.

* Sugestões para novas maneiras de entender os sacramentose para lhes dar novas formas. O Batismo e a Ceia do Senhor repre-sentam o envolvimento de Deus na vida diária do mundo." AIgreja dos pobres deve usá-los e entendê-l os como sinais materiaisde transformação?" Ao usar especialmente os sacramentos, mani-festa-se a presteza e capacidade da Igreja para enfrentar as tensõesentre as presentes realidades da pobreza e da opressão e a espe-rança do novo mundo. Para isso é preciso que os sacramentossejam vistos tanto como a celebração antecipatória do novo mundo,e como pretexto contra as presentes estruturas de injustiça. A Ceiado Senhor, em particular, representa a participação da congregaçãonos problemas materiais dos seres humanos bem como a alegriaantecipada do prospecto da nova ordem do mundo.". * Símbolos populares e outros elementos representativos da

luta dos pobres. Todos os elementos populares têm importantelugar no culto. Em seus atos de adoração, as igrejas deveriam levarem consideração o fato de que outras religiões e movimentos não-

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religiosos também participam na batalha contra a miséria. Batode solidariedade e demonstração da catolicidade da Igreja levar emconsideração essas formas de expressão."

NOTAS

1. CL Julio de Santa Ana (ed.), Separation without hope? especialmentea conclusão. Genebra, WCC, 1978.

2. CL "Ministry with the poor", International Review 01 Mission, v. LXVI,n. 261, janeiro de 1977. Também de Jether Pereira Ramalho, "BasicEcclesial Communities in Brazil", The Ecumenical Review, v. 29, n. 4,outubro de 1977, p. 395-397. CL o Dossier n. 13 da CCPD: Good newsto the Poor, Genebra, 1978.

3. Ver Julio de Santa Ana, Good news to the poor, capítulo 3, p. 27 e 28,Genebra, WCC, 1977.

4. Diego lrrarázabal, "Las clases populares evangelizan: como?", Páginas,v. IH, n. 14, fevereiro de 1978, p. 6.

5. Como afirma José Porfirio Miranda: "( ... ) para a Bíblia a lei não é o'árbitro neutro' que a tradição greco-romana nos impôs, cuja tarefaconsistiria em preservar o status qJ.JO superando pela força tudo o quese lhe opõe. Para a Bíblia ( ... ) a lei consiste em finalmente se alcançarjustiça para os pobres e oprimidos deste mundo. Completamente opostaà defesa do status quo, a realização da justiça não só o subverte ( ... )tendo o Ocidente até mesmo procurado camuflar essa busca de jus-tiça, mesmo por meios teológicos". Marx and the Bible: a critique 01the philosophy 01 oppression, p. 30, Londres, SCM Press, 1977.

6. Cf. Jether Pereira Ramalho, op. cit., p. 397: "Ao ler a Bíblia eles (ospobres) querem descobrir a realidade da vida, e em suas vidas queremachar a realidade da Bíblia. Usam a Bíblia espontaneamente como ima-gem, símbolo ou espelho do que experimentam no dia a dia. Quasechegam ao ponto de misturar os dois, dizendo: 'nossa Bíblia é nossavida'. Mas nem sempre conseguem fazer a relação entre a Bíblia e avida. Algumas vezes estabelecem relações arbitrárias sem base na Bíbliaou na realidade da vida de hoje. Mas nada disso deve deter ou impedira profunda intuição presente nos usos que o povo faz da Bíblia: 'aBíblia relaciona-se com a vida' ".

7. Na mesma linha, embora sobre a pessoa de Jesus, [on Sobrino indica:"Seria anacrônico buscar em Jesus elementos para a análise de classescomo encontramos agora no trabalho dos sociólogos. Contudo, sua ati-tude geral evidencia que ao tentar entender a justiça, Jesus adota pos-tura fundamentada nos pobres e destinada a lhes beneficiar. A justiçaenquanto ideal universal não pode ser entendida ou tornada operacio-nal a não ser que se passe de alguma forma pela experiência concretada injustiça. Neste sentido, o primeiro princípio para a concretizaçãodos valores morais acaba sendo o primeiro princípio da cristologia,isto é, a encarnação. A adoção deliberada de posturas parciais é neces-sária para a compreensão da totalidade." Christology at the crossroads:a Latin American Approach, Londres, SCM Press, 1978.

8. CL José Porfirio Miranda, op. cit., capítulo 5, especialmente p. 250 eseguintes.

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9. Cf. José Miguez Bonino, Revolutionary theology comes of age, p. 89e 90, Londres, SPCK, 1975.

10. CL o relatório de M. M. Thomas, como moderador da Comissão Centraldo Conselho Mundial de Igrejas à Quinta Assembléia. David M. Paton(ed.), Breaking barriers: Nairobi 1975, p. 237-240, especialmente o pará-grafo 31: "Todos esses temas nos falam da necessidade da 'espirituali-dade para o combate' - como disse David Jenkins ... Torna-se fun-damental aqui a redescoberta da Bíblia e da liturgia. Neste contexto oconceito e a prática ortodoxa de theosis, e a centralidade da eucaristiaenquanto celebração da humanidade em comunhão com a natureza, asociedade e o cosmo transfigurados, precisam ser reafirmados e rede-finidos em relação com a espiritualidade das lutas contemporâneaspela defesa do humanum e da unidade de todos os seres humanos.Não esqueçamos que nossa luta não é apenas contra os outros mascontra as falsas espiritualidades da idolatria de raça, nação e classe,e de ideais que se autojustificam enquanto reforçam as estruturascoletivas de desumanização e opressão. Qualquer espiritualidade deretidão deve começar com arrependimento em face da idolatria levan-do-nos ao Deus verdadeiro e à justificação pela fê". Grand Rapids,Michigan, Wm B. Eerdmans, e Londres, SPCK, 1976.

11. Embora Samuel tivesse adotado postura mais 'democrática', a maioriado povo (como é comum na prática das democracias) queria a monar-quia. Importa observar que entre o princípio teórico e a prática, Deusopta pela prática (v. 22). A justiça não é questão teórica, mas resultadoda ação do povo.

12. A controvérsia entre Amós, profeta de Deus, e Amazias, sacerdote deBetel, sobre o governo de Joroboão não é primeiramente teológica, maspolítica. Mas a teologia nunca se separa da política.

13. CL São Paulo indo a Jerusalém: o conflito com os judeus tornou-seinevitável na ocasião (CL At 21.15-40, especialmente os versículos 27-32).

14. Cf. Hope W. Hogg, "The Diatesseron of Tatian", Allan Menzies (ed.),The Anti-Nicene Fathers, Grand Rapids, Michigan, Wm B. Eerdmans,1951, v. X, p. 35-41. Cf. Feine, Behm e Kuemmel, Einleitung in dasneue Testament, p. 359 e 387, Berlim, Evangelische Verlagsanstalt, 1965.Também Hans Freiherr von Campenhausen, Die Entstehung der Christ-lichen Bibel, p. 205 e 206, Berlim, Evangelisches Verlagsanstalt, 1975.

15. Sergio Rostagno ajuda a aclarar a questão: " ... a prática dos antigosnão os ajuda a situar sua teologia. É precisamente a nossa própriaprática, pela qual somos totalmente responsáveis, que nos ajuda a en-tender a virulência dos infelizes antigos". Essays on the New Testament,p. 50, Genebra, WSFC, 1975.

16. A questão da 'indigenização' da Igreja deve ser apreciada nessa pers-pectiva. A vida litúrgica da comunidade cristã está entre as principaisexpressões desse esforço. Deve-se notar, no entanto, que 'indigenização'não quer dizer apenas o uso de elementos culturais nas celebraçõeslitúrgicas, mas a integração, também, de aspectos e ênfases sociais noculto. CL Knolly Clarke, "Liturgy and Culture in the Caribbean". EmIdrish Hamid (ed.), Troubling the waters, p. 141-147 - especialmentep. 154. San Fernando, Trinidad, Ramahan Printery, 1973.

17. "Nesta perspectiva há uma questão bastante vital: criação e liberdadelitúrgica. Na verdade, a liturgia permeia a vida diária da comunidade.

É sensível à realidade da vida e está perto dela. "Ser criativo no vidusocial significa ao mesmo tempo ser criativo no nível litúrgico da vidada Igreja. Cf. J. B. Libano, "Uma comunidade que se redefine", SEDOC.v. 9, sobre Comunidades eclesiais de base, col. 325, outubro de 1976.

18. Cf. o relatório da consulta de teólogos ortodoxos, do Conselho Mundialde Igrejas, realizada em New Vaiamo, Finlândia, em setembro de 1977:The ecumenical nature of the orthodox witness, Genebra, WCC, 1978.

19. Neste sentido, o melhor exemplo bíblico são os Salmos. Ernesto Cardenalnos oferece belos exemplos ao colocá-Ios na linguagem de hoje e emcontexto contemporâneo.

20. Cf. Frei Beto, Cristo: oração na ação, Rio de Janeiro, suplemento deCEI, n. 18, julho de 1977. .

21. Quando os pobres oram, suas orações são abertas; não são formaisnem ritualizadas.

22. 1 Co. 11.26: "Porque, cada vez que vocês comem deste pão e bebemdeste cálice, anunciam a morte do Senhor, até que ele venha".

23. Sobre o Batismo, consultar o documento de Fé e Ordem, One Baptism,One Eucharist and a Mutually Recognized Ministry, parágrafo 7, p. 11,Genebra, WCC, 1975.

24. Cf. Tertuliano, Sobre a Paciência, MPL, T. I., Col. 1371.25. O Conselho Mundial de Igrejas e a CCPD têm publicado calendários

Iitúrgicos e Livros de Oração. Tais esforços devem ser apreciados e in-tensificados. Entretanto, materiais adequados devem também ser publi-cados em outras formas como, por exemplo, lecionários para uso diretono culto público; relatórios que incluam estórias das lutas popularesem favor da libertação; e cânticos, orações e outros elementos litúrgicos,que venham a ser muito mais do que meros documentos sem vida.

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XII. Das Estruturas Eclesiásticas

A busca de uma Igreja Cristã realmente representativa dospobres envolvida em suas lutas e expectativas, tristezas e esperan-ças, incluirá inevitavelmente questões de ordem e de estruturas ecle-siásticas. Trata-se, naturalmente, de matéria delicada, uma vez queas diferentes denominações estão mais preparadas para consideraras inovações ao nível das idéias, dos valores e dos programas doque da organização da Igreja. Além disso, torna-se cada vez maisclaro que segundo as experiências das diferentes igrejas e comuni-dades cristãs que optaram pelos pobres, que essa opção envolvenecessariamente a questão da ordem eclesiástica.' Ao mesmo tem-po, essas igrejas envolvidas com os pobres sabem que eles encon-tram-se em outras partes da sociedade e não na Igreja. Os pobressentem que as estruturas eclesiásticas não têm nada a ver comeles, muito embora a situação fosse outra nas comunidades cristãsprimitivas (At 2.42-47; 4.32-37; 1 Co 1.26-29 e Tg 2.5-7).

Como já afirmamos antes, são inúmeras as comunidades cris-tãs que já optaram claramente pela justiça e pela libertação emmeio aos conflitos sociais de nosso tempo. Envolvem-se em movi-mentos de solidariedade para com os oprimidos apelando para queas autoridades religiosas também combatam o racismo e se envol-vam nas lutas em favor da mudança das estruturas sociais, econô-micas e até mesmo políticas. A maior parte dessas comunidadescristãs que optaram pela transformação social sente a necessidadede certa consistência na atitude da Igreja. Essa opção na sociedadeexige também envolvimento na renovação da Igreja," O problemadas estruturas eclesiásticas, reconhece-se, não pode ser tratado damesma maneira que o das organizações gerais da sociedade, em-bora se perceba que a ordem eclesiástica precise ser mais flexívelpara melhor responder às aspirações e necessidades do povo co-mum.' A Igreja é chamada a ser o corpo de Jesus Cristo entre osseres humanos; em outras palavras, a ser o corpo do servo." Con-tudo, muitas vezes parece que as pessoas são chamadas para servir

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às estruturas e não o contrário. Mas as estruturas foram criadaspara servir ao povo, principalmente os menos privilegiados.

Qualquer reforma da Igreja deve ser orientada em primeirolugar e acima de tudo pela ação do Espírito Santo. Aos olhos dasigrejas que querem ser igrejas dos pobres, o Espírito de Deus estáconvocando os cristãos ao arrependimento e à transformação emface do desafio dos pobres à Igreja de hoje. Já se percebem pro-fundamente renovadas pelos novos dons do Espírito Santo quandoos pobres começam a sentir que a Igreja começa a ser sua. Ospobres trazem nova compreensão e dão novo ímpeto ao trabalhoda Igreja, chamando as igrejas institucionais a mudar sua organi-zação e a reformar suas estruturas. Não se trata de mero ajusta-mento aos sinais dos tempos; trata-se da caminhada no processoda libertação, em que a Igreja vai se transformando em instrumen-to do serviço de Deus, fiel a Jesus Cristo."

Por exemplo, muita gente ao redor do mundo - incluindo ospobres, em particular - estão querendo maior participação nadiscussão dos processos decisórios que afetam suas vidas. Estamossempre ouvindo, cada vez mais, que o desenvolvimento só se dácom a participação do povo. Não suportando o nível de alta infor-mação das pessoas encarregadas de fazer decisões, nem de seu pro-fundo conhecimento das situações, as pessoas em geral não estãopreparadas para largar mão do direito que têm de dizer o quepensam e de tomar parte no processo. Na maioria, as igrejas cris-tãs, porém, ainda são demasiadamente hierárquicas, sem a neces-sária abertura à participação de seus membros em todos os níveisde sua vida." A análise sociológica da composição dos processosdecisórios das igrejas demonstra que reproduzem as estruturas dedominação vigentes na sociedade; não permitem que aí participemos setores mais baixos da sociedade tais como as mulheres e ospobres. Embora boa parte do clero seja dependente, os modelosherdados dão-lhe ainda poder e dominação de muitas maneiras. 7

Nesse sentido, a koinonia e a eucaristia nos recordam de for-ma dramática a unidade essencial da Igreja. A raiz da palavrakoinonia leva-nos ao sentido "daquilo que é tido em comum". Airmandade ou comunhão da Igreja baseia-se na fé comum, no com-promisso igual, na tarefa assumida por todos no mundo. Os cris-tãos vivem e participam na mesma realidade e assim são um sócorpo. O significado da eucaristia é iluminado pelo reconhecimentodesse compromisso comum perante o Senhor. Não é apenas acelebração da presença de Cristo em sua Igreja, mas também agratidão alegre pelo poder transformador de seu Espírito na comu-nidade cristã e no mundo. A eucaristia e a koinonia são aspectosinseparáveis da realidade cristã.

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As igrejas que estão procurando responder positivamente aodesafio dos pobres sentem que suas estruturas devem corresponderàs da comunidade a que tentam servir. É a experiência, por exem-plo, da Igreja Evangélica Metodista da Bolívia, cujas congregaçõessão formadas principalmente de aymaras. Essa Igreja transformousuas estruturas para servir a Jesus Cristo com maior facilidade nomeio de seu povo." É o que também acontece em certos setoresdas igrejas nas Filipinas, na Coréia do Sul e em diversos paísesafricanos. o Com isso queremos dizer que as estruturas eclesiásti-cas devem se adaptar ao povo, e ser suficientemente flexíveis paraaceitar seus desafios e expressar suas idéias. As comunidades ecle-siais de base no Brasil nos dão outro exemplo desta renovação daIgreja. Em vez de seguir o modelo organizacional que mantém arelação vertical entre a autoridade hierárquica superior e o clero (emantém o laicato na posição passiva de mero receptor de serviçossem qualquer participação ativa na dinâmica da Igreja), essas comu-nidades afirmam, na sua experiência, a situação real da vida do povode Deus como aspecto principal da Igreja, deixando que a organi-zação seja mera conseqüência da realidade expressa. "O poder deCristo (exousía) não se circunscreve a poucos, mas está presentena totalidade do povo de Deus responsável pelo tríplice serviçode Cristo: testemunho, unidade e adoração. Este poder de Cristodiversifica-se segundo funções específicas, mas não exclui nin-guém"."° Em outros contextos, por exemplo em alguns países so-cialistas como a União Soviética, onde muitos membros da Igrejanão pertencem aos setores governamentais da sociedade, a existên-cia da Igreja oferece ao povo oportunidade de participação navida religiosa. 11

Esta nova consciência na vida da Igreja desafia claramente osdiferentes ramos do movimento ecumênico e, em particular, doConselho Mundial de Igrejas. Por muito tempo, o ecumenismo temsido a preocupação de certos círculos de elite das igrejas. Tá étempo de encontrarmos novos modos de expressá-lo levando emconsideração o que se passa nas bases, em muitos lugares, onde aunidade no serviço e no culto parece alcançada com mais facili-dade. Trata-se de ecumenismo do povo e dos pobres que não sepreocupam com os aspectos formais da unidade cristã nem dosdiálogos entre as religiões e as ideologias. Esse ecumenismo dopovo acredita que o ecumenismo institucional deve seguir o queestá sendo praticado ao invés de ficar estabelecendo normas parao que deveria ser Ieito.?" Este desafio dirige-se não apenas aoConselho Mundial de Igrejas,mas também, e talvez em termos maisfortes, aos grupos ecumênicos nacionais e regionais. É essencialestar alerta ao que os leigos - homens, mulheres e jovens - já

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estão praticando e comunicando a respeito da unidade crista. Numente dos pobres, a .ortopráxis é muito mais importante do qUl'a ortodoxia para a causa da unidade cristã.

As novas formas eclesiais oriundas da Igreja dos pobres cluramente ressaltam a necessidade da Igreja ser entendida, na suuexpressão concreta local ou diocesana, enquanto comunidade deministérios obedientes a Jesus Cristo no serviço a todos os sereshumanos e, em particular, aos mais pobres. O problema é o se-guinte: quem cuida do todo, quem mantém ordem e harmoniaentre· os diferentes carismas de modo que todas as coisas funcio-nem juntas para a edificação do mesmo corpo? Neste sentido, noBrasil, por exemplo, as pessoas envolvidas com as comunidadeseclesiais de base falam sobre o "ministério da unidade" que éexercido pelo ministro (presbítero, bispo ou leigo especialmentedesignado para essa responsabilidade). Não tem nada a ver como "ministério da autoridade" pelo qual a autoridade é exercida decima, e até mesmo de fora da comunidade. Em contraste comeste, o ministério da unidade situa-se no centro da comunidadeeclesial devotada a expressar a realidade da Igreja dos pobres emnossa época. 13 Experiências desse tipo podem' ser encontradas naíndia, África, Itália e outros lugares. Representam novas formula-ções de propostas para as estruturas eclesiásticas oferecidas à sé-ria consideração das autoridades. Não devemos esquecer que, co-mo o vento, "o Espírito de Deus sopra onde quer".

O ministério da unidade sublinha os aspectos de participaçãoe de responsabilidade assumidos no interior da comunidade cristã.O uso freqüente de termos como "separar" para designar respon-sabilidades eclesias é infeliz por conotar separação geográfica emlugar da identificação com as necessidades da comunidade. Origi-nalmente, essa linguagem refere-se apenas a tarefas necessárias,como evidenciam as cartas de Paulo. Em muitas ocasiões ele acen-tua "estar com" a comunidade cristã, como fator crucial. Essa ên-fase permaneceu na Igreja antiga. Os líderes da Igreja provoca-ram, muitas vezes, a consciência da situação dos pobres sempreque a dignidade de seu ofício permitia que suas vozes fossemouvidas e seus atos visíveis. Entretanto, o registro disso tudo não émuito claro.

As igrejas, tendo demonstrado nos últimos séculos de sua his-tória que não estiveram e ainda não estão muito perto do povo(CL Separation without hope?), deveriam agora prestar atençãoaos muitos e variados desenvolvimentos em processo na Igreja dospobres. Essas coisas indicam que as estruturas eclesiásticas inade-quadas devem ser reformadas. Naturalmente, nem todas as expe-

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riências das bases precisam ser institucionalizadas. Mas é essencialque sejam vistas como expressões da peregrinação do povo de Deusna história, sempre caminhando para a frente, com os olhos nofuturo, na direção do reino prometido em vez de permanecer ca-tivo do passado e das tradições (Hb 12.1-2). Sentimos que, diantedessa situação, o Conselho Mundial de Igrejas deveria tomar a ini-ciativa de procurar canais e meios pelos quais tais expressões eculturas se tornassem conhecidas. Precisa-se de mais pesquisa nes-sa área. Essa pesquisa não deve se limitar aos programas de jus-tiça e serviço, mas estender-se também aos de fé e testemunho.

NOTAS1. CL Leonardo Boff, Eclesiogênese: as comunidades eclesiais de base re-

inventam a Igreja, especialmente número 4 e 5 de SEDOC, v. 9, n. 95,sobre Comunidades eclesiais de base, outubro de 1976, col. 410-418.Também, do mesmo autor, "As eclesiologias presentes nas comunidadeseclesiais de base", Uma Igreja que nasce do povo, n. 201-209, Petrópolis,Vozes, 1975.

2. José Miguez Bonino, seguindo Diez Alegria, comenta: "O cristão com-prometido com a libertação torna-se, por isso mesmo, envolvido na lutapela reforma da Igreja, ou, para dizê-l o mais drasticamente, pela recons-tituição do cristianismo no qual todas as formas de organização e ex-pressão venham a ser humanizadas e liberadas". Revolutionary theologycomes o/ age, p. 159, Londres, SPCK, 1975.

3. CL entre outros o que diz o bispo da Paraíba, Marcelo Pinto Carva-lheira em "A caminhada do povo de Deus na América Latina", RevistaEclesiástica Brasileira, v. 38, fascículo 150, 1978, p. 316-319. ChristianLalive D'Epinay, Haven o] the masses, p. 50 e seguintes, Londres, Lut-terworth, 1969.

4. CL Dietrich Bonhoeffer, Ethics, p. 17 e seguintes, Londres, SCM Press,1955.

5. Marcelo Pinto Carvalheira, op. cit., p. 326: "Em face dos poderes destemundo e da sua capacidade de manipulação para alcançar seus projetosde grandeza tecnológica e política, a comunidade da fé, portadora doprojeto de Deus, talvez venha a se sentir impotente e ver sua esperançasabotada. É nesse contexto que a fé cristológica torna-se mais decisiva.Em Jesus crucificado Deus mostrou o destino do poder deste mundo;ele não nos leva ao Reino de Deus. Para esse propósito Deus escolheuo que é loucura no mundo "para confundir os sábios; e o que é fra-queza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e oque no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu parareduzir a nada o que é" (1 Co 1.27 e 28). A missão da fé consiste emrepresentar constantemente e em presentificar esse poder de Deus, dan-do-lhe forma concreta segundo o modelo deixado por Jesus Cristo.Esse poder passa pela fraqueza, pela pobreza e pela morte, amoroso,esperançoso e devotado a todos. A ressurreição demonstra a força dosfracos: são eles os herdeiros da vida e os inauguradores do novo mun-do. A comunidade cristã vive por esta esperança e se organiza no poderda ressurreição. Não teme os poderosos deste mundo, porque sabe queo Senhor venceu este mundo (Jo 16.33). Em última análise, Deus é oSenhor da história e não esses poderosos. Deus conduz a história ao seufinal feliz, apesar do ziguezaguear humano e do peso mortal do pecado".

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6. Cf. o relatório do secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas, Dr.Philip A. Potter, à Quinta Assembléia. David M. Paton (ed.), Breakingbarriers: Nairobi 1975 p. 252: "Todas as pessoas têm o privilégio c aresponsabilidade de desenvolver e compartilhar com os outros na co-munhão do Espírito os dons que receberam. A tarefa do movimentoecumênico e do Conselho Mundial consiste, portanto, em encorajar asigrejas a fomentar essa participação de todos os criados à imagem deDeus e fortalecidos pelo Espírito na vida da congregação e da comuni-dade ". Grand Rapids, Michigan, Wm B. Eerdmans, e Londres, SPCK,1976.

7. Como se lê no Relatório de uma consulta ecumênica asiática sobredesenvolvimento: prioridades e orientações, p. 59 e 60, sobre "Igreja eestruturas societais": "1. Recomendamos a descentralização de serviçosdiante da ruptura e da relocação das estruturas de serviços. .. 2. Cre-mos que as estruturas elitistas e hierárquicas da Igreja não mais ofere-cem o dinamismo necessário para refletir o ethos destes novos tempose promover o verdadeiro desenvolvimento com a participação do povo.3. Queremos estruturas inicialmente mais abertas e receptivas às genuínastentativas e programas inovadores destinados a promover este novoespírito de desenvolvimento, mesmo se não forem muito ortodoxos".Cingapura, Conferência Cristã da Asia, 1974.

8. CL CENPLA, Avaliação da obra da Igreja Metodista na Bolívia, Rio deJaneiro, 1978, mimeografado.

9. Ver o capítulo X deste livro.10. CL Leonardo Boff, op. cit., col. 413.11. CL Erich Weingartner (ed.), Church within socialism: Church and State

in East European Socialist Republics, p. 55: " ... a vida eclesiásticanão demonstra nenhum sinal de estar moribunda ou inativa. Pelo con-trário, tudo indica que a religião experimenta grande reavivamento,especialmente entre os jovens, e apesar do tradicionalismo essencial dateologia ortodoxa, a Igreja não tem sido cega aos desafios de nosso tem-po." Roma, IDOC, Dossiês 2 e 3, 1976.

12. CL por exemplo Stanley J. Samartha (ed.), Towards world community:the Colombo papers, p. 126-129, sobre "A common commitment toreconstruct community" e "Ways of working together", Genebra, WCC,1975. Também C. S. Song, Christian mission in reconstruction: an asianattempt, p. 190: "Não podemos, portanto, dizer simplesmente que asreligiões, universais ou primitivas, não passem de produtos da imagi-nação do homem ou de sua natureza pecaminosa. .. Ao entendermos aimportância de todas as religiões nos tornaremos, como cristãos, humil-des e alegres .•- humildes porque o cristianismo não será o únicoguardião da verdade de Deus, e alegres porque o amor de Deus emJesus Cristo envolve também os que estão fora da Igreja cristã de modoigualmente salvador." Madras, Christian Literature Society, 1975. Gus-lavo Gutierrez, de outro contexto, diz em sua Teologia da Libertação:"A unidade vai se forjar não a partir dos que dizem 'Senhor, Senhor",mas dos que 'fazem a vontade do Pai'. Reconhecer o fato da luta declasses e nela participar ativamente, não será, então, para a comunidadeeclesial negar a mensagem de unidade de que é portadora, mas precisa-mente descobrir a senda que a permitirá libertar-se daquilo que nopresente a impede de ser sinal claro e verdadeiro da fraternidade hu-mana". Teologia de Ia liberación, CEP, Lima, Peru, 1971, p. 348.

13. Cf. Leonardo Boff, op. cit., col. 414 e 415.

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XIII. Envolvimento social

Importante característica das igrejas que optam claramente pe-los pobres é a recusa de ver a ação social como mero apêndice damissão para considerá-Ia a forma da práxis substancialmente pre-sente na proclamação da comunidade cristã aos pobres." O envol-vimento social, assim, faz parte indispensável da vida da Igreja.Na experiência da Igreja dos pobres, é impossível separar ação nasociedade e proclamação da mensagem libertadora de Jesus Cristo.Essa é a missão cristã.

Procura-se corrigir a idéia de que a proclamação da Palavraé mais importante do que a .ação social. Desta forma, a pregaçãoda mensagem tem função normativa em relação ao envolvimentosocial. O significado da proclamação da Palavra traça os parâme-tros dentro dos quais a ação social cristã vai operar. Em geral amensagem é proclamada de tal maneira que transmite o pontode vista do grupo dominante da sociedade. Há exceções a estaregra geral, naturalmente, mas tendem a atrair a atenção dos quecontrolam o sistema produtor de idéias. Assim, os que ousam seopor ou criticar os que manipulam os meios de dominação sãoadvertidos ou silenciados. Entretanto, se a apresentação da men-sagem for feita em relação à práxis da comunidade eclesial, torna-se mais difícil o exercício desse controle dos poderosos. A men-sagem estará substanciada não em teoria ou em conceitos abstra-tos, mas na vida concreta.

As igrejas inclinadas favoravelmente aos pobres sabem que oenvolvimento social relaciona-se intimamente com a apresentaçãoda mensagem. 2 Envolver-se com a ação social significa tambémpregar o Evangelho. A Igreja sempre será, em palavra e ação,"comunidade confessante". Os atos apoiam a pregação e a prega-ção acompanha a ação social na comunidade cristã." Não poderiaser de outra maneira na vida da igreja cujo envolvimento socialnão se determina a priori mas de seu compromisso real com ospobres. Como já dissemos, a Igreja dos pobres não só acredita que

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Deus em Jesus Cristo se colocou ao lado dos pobres, mas tambémque Jesus está sacramentalmente presente entre os pobres de hoje. '1

As atividades dos pobres, com suas lutas pela justiça e pela liber-tação, devem ser levadas em consideração tanto no envolvirncntoda Igreja com trabalho social como na sua pregação. O Evangelhoda Libertação é oferecido por Deus em Cristo a todos os homense mulheres indiscriminadamente.

Estaremos dizendo que a Igreja deveria ser como um partidopolítico? De maneira alguma. A Igreja abre-se para todos: é areunião dos chamados, e Deus não exclui quem quer que sejadesse chamado. fi Se a Igreja viesse a ser como qualquer partidopolítico, não seria mais a irmandade dos chamados, mas mero gru-po exclusivo. A Igreja dos pobres não exclui outros grupos ouclasses sociais desde que expressem em palavras e atos a preocupa-ção pela justiça e pela libertação dos oprimidos como se vê noministério de Jesus (Lc 4.17-21). Ao procurar ser fiel a JesusCristo, a Igreja olha nessa direção: quer serví-Io entre os pobres.estando com eles. Decorre daí a sua ação política. Jesus Cristo,presente nos "menores" (Mt 25.31-46) e nos pobres, exige que osignificado da mensagem se expresse por meio de práxis socialsolidária para com os pobres, tornada clara e específica no envol-vimento social.

Como já vimos, a busca de libertação é elemento constantenessa práxis social. Os Hebreus, oprimidos no Egito, sob a domi-nação faraônica, não desejaram outra coisa. As comunidades ne-gras, ainda escravizadas nas Américas, desejam a libertação." Aspessoas que lutaram contra o poder colonial em favor da indepen-dência, queriam a libertação. É o que também desejam os quesofrem violações dos direitos humanos. Igualmente, os que se sen-tem amassados pelos mecanismos opressivos que refletem a "lei domercado". Libertação, portanto, é a busca permanente dos pobrese oprimidos." Acham-se, às vezes, de tal maneira oprimidos, quenem mesmo conseguem efetivar essa procura. A experiência histó-rica nos mostfà, contudo, que não se entregam: a luta continua!E as comunidades cristãs com eles envolvidas sabem muito bem oque isso significa.

O envolvimento social das igrejas significa seu compromissocom os pobres nessa luta. Não se trata de ação social em benefíciodos pobres. Se fosse assim, teria de ser chamada de assistênciasocial e não de "ação social". A assistência social possui conota-ções paternalistas." Além disso, a identificação da ação socialcom assistência social não poderia ser descrita como essencial àmissão da Igreja. Ao ficar do lado dos pobres, a Igreja participade suas lutas e preocupações e substancia a proclamação do Evan-

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gelho na práxis da libertação abrindo caminhos para a vinda deuma sociedade nova, mais justa e mais participatória.

As comunidades cristãs decididas a trilhar esse caminho esfor-çam-se para manter viva a esperança entre os pobres. Trata-se decompromisso custoso, pois não é nada fácil ter esperança numasociedade caracterizada por escandalosa pobreza, como é a nossa.Mas as igrejas possuidoras desta esperança crêem que Jesus Cristoage continuamente entre os pobres. Estão prontas para persistirnessa esperança porque confiam neles e sabem porque lutam. 9

Participam, então, em sua resistência em face dos poderes opres-sores, como fizeram as igrejas das Filipinas, ou no Chile, por meiode esforços contra a repetida violação dos direitos humanos. Advo-gando a causa dos pobres mostravam-se coerentes com o compro-misso com eles assumido. 10

Na Europa Ocidental, há comunidades cristãs lutando pelosdireitos dos operários migrantes, e combatendo o racismo não ape-nas em seus países também em outros lugares do mundo. Em algunspaíses, como na África do Sul, na Coréia do Sul e no Brasil, têm-se envolvido em lutas para abrir espaços à ação popular. Por meiode compromissos desse tipo, algumas igrejas estão demonstrandosolidariedade para com os pobres e oprimidos em seu desejo decriar uma sociedade melhor. Essas igrejas não querem liderar acaminhada mas apenas acompanhar o povo em sua peregrinaçãopara a liberdade e para a justiça.

Os que tomaram essa opção entraram num processo de trans-formação contínuo e doloroso. Tem sido preciso acabar com ve-lhas alianças tradicionais com os donos dos mecanismos de domi-nação existentes nos centros de poder. E, por outro lado, mostrarsolidariedade com os pobres sem querer dirigí-los ou simplesmentedizer-lhes o que fazer. Ao contrário, é a prática social dos pobresque dá substância ao envolvimento social da Igreja. Com isso ascomunidades cristãs comecam a ser educadas na humildade. Sa-bem que não são líderes no processo da libertação. Podem apenasservir os pobres por meio desse tipo de envolvimento. E precisamestar preparadas para pagar o preço dessa opção, assim como ospobres já o pagaram ao longo da história.

o testemunho e o serviço são inseparáveis

Ao se alinhar com os pobres, as igrejas tudo fazem para alcan-çar seus alvos e objetivos: justiça social numa sociedade libertadada exploração econômica, e da opressão sexista e institucionalizada,a fim de que as necessidades humanas básicas venham a ser satis-feitas, e a vida compartilhada entre todos. Na India, por exemplo,

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a Igreja precisa desafiar radicalmente o sistema social." Na Amé-rica Latina, ela tem que se opor aos regimes militares acostuma-dos a empregar novas formas de segurança nacional organizadapara violar os direitos humanos e institucionalizar o autoritarismoe a tortura.?" Na África a Igreja terá de desafiar as estruturasneo-colonialistas responsáveis pela manutenção do estado de depen-dência dos povos do continente, e lutar contra os poderes doracismo. Na América do Norte, ela deverá ser solidária com osgrupos minoritários oprimidos. Na Europa, a Igreja deverá estardo lado da causa dos trabalhadores estrangeiros. Em nível mun-dial, ela terá de se opor às operações oligárquicas políticas docapital transnacional, particularmente quando se mostram profun-damente envolvidas com a produção militar e com o comércio dearmas.14 Observemos que não vêm das igrejas, primeiramente, aproposta desse tipo de envolvimento, mas, acima de tudo, dos po-bres em sua luta contra os males que lhes oprimem.

Certos setores das igrejas organizadas não querem se envol-ver com esse tipo de comprometimento por achá-lo "retórico". Fi-cam, então, dizendo que a única atividade válida no campo socialé a assistência e a caridade. Ê provável que se essas igrejas ouvis-sem com mais cuidado o clamor dos pobres, mudassem de posição.Perceberiam que a luta dos pobres é muito mais séria e profundado que mera retórica. Tem custado, na prática, as vidas de milha-res de jovens na África do Sul, na Nicarágua e no Líbano, entreoutros países. Trata-se de um movimento que exige das igrejasmuito mais do que simples caridade. Espera delas demonstraçõespráticas de amor em ação, enfrentando as raízes da injustiça e nãoapenas seus efeitos.:" Quando isso acontece, os pobres percebemque não estão sós em sua luta. Nesse momento, podem reconhecera Igreja dos pobres. E o que é mais importante, podem ver a pre-sença de Jesus Cristo na Igreja.

As Igrejas, por sua vez, descobrem que não existe separaçãoentre martyria e~diakonia, entre testemunho e serviço. O testemu-nho se torna real por-meio do serviço expresso nesse compromisso.Ao mesmo tempo, o serviço só pode ser explicado em termos deproclamação, quando alguém procura saber as razões do mesmo.Ê impossível, pois, tentar-se impor aos pobres as idéias das igrejasa respeito da maneira como a luta contra as causas da opressãodeva ser conduzi da ou de como eliminar a fome no mundo. Pelocontrário, as igrejas precisam estar com os pobres de acordo como sentido do Evangelho. Por exemplo, as igrejas têm recebido ulti-mamente de vários lugares, pedidos de ajuda financeira para arealização de cursos de treinamento para agentes de mobilizaçãosocial. Na Indonésia, são conhecidos como "motivadores", em cer-

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tas partes da África, "animadores", na Ásia "catalisadores" e naAmérica Latina, "agentes de pastoral". O título não é muito impor-tante. O que realmente importa é que os pedidos são feitos pelospróprios pobres. Estão sentindo a necessidade de treinar pessoaspara trabalhar com eficiência nas várias situações em que vivem.Mas não desejam ser dependentes. Acreditamos que pedidos dessanatureza exigem respostas adequadas das igrejas donas de recursosbem como do Conselho Mundial de Igrejas.

Para resumir nosso ponto de vista sobre o envolvimento so-cial - baseados em experiências de grupos e paróquias cristãs -podemos dizer que ele precisa ser visto e formulado em relaçãoorgânica com as aspirações dos próprios pobres. Passa-se, assim, arepresentar um "papel instrumental". Infelizmente, as igrejas, mui-tas vezes, têm atuado como instrumentos dos ricos. re Dessa ma-neira, não podem achar nenhuma justificação no Evangelho (Lc18.24 e seguintes; Mt 19.23 e seguintes; Me 10.23-25). Mas ossinais a que nos referimos nestas páginas indicam que as igrejasdesejam agora trabalhar em relação orgânica com os pobres, repre-sentando papéis instrumentais, e tornando-se, afinal, igrejas dospobres. Como já vimos, essa escolha não exclui ninguém que desejaser fiel à vocação de Jesus Cristo.

Dessa maneira evita-se trabalhos paternalistas de tipo "assis-tencialista" e "caritável". Não se trata de opção "triunfalista".Segundo entendemos, trata-se da opção dos que desejam ser discí-pulos de Jesus Cristo e se acham prontos para seguí-lo quando eonde quer que seja. Por isso recebemos com gratidão a declaraçãoda Assembléia de Nairobi do Conselho Mundial de Igrejas quandoafirma que participação no desenvolvimento significa "unir-se comtodos os que se envolvem com a organização dos pobres em sualuta contra a pobreza e a injustiça". 17 Essa afirmação faz parte doministério profético ao qual Deus chama as igrejas, tanto na de-núncia das estruturas injustas que oprimem os pobres como aonos lembrar dos vários sinais do Reino de Deus na história.

Chamado para a solidariedade

A Igreja no Novo Testamento expressou essa preocupação pormeio de participação. A comunidade em Jerusalém compartilhavacom os outros a sabedoria que tinha e os dons do Espírito. Acomunidade de Antioquia partilhava com as outras comunidadescristãs da época sua preocupação com o trabalho missionário daIgreja. São Paulo pedia aos coríntios e a outros que dividissemcom os pobres de Jerusalém a riqueza possuída (Cf. 2 Co 8.9 e se-guintes). Essa participação mútua deve ser entendida como expres-

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são da solidariedade existente entre os diferentes membros do mes-mo corpo (1 Co 12). A Igreja primtíva praticava e afirmava asolidariedade. Essa solidariedade, também se manifesta, por outrosmeios, entre os pobres. Em geral compartilham o que têm, entresi. Não nos surpreende, pois, que a idéia neotestamentária dakoinonia, comunidade dos que participam dos dons do EspíritoSanto e da mesa do Senhor, se expresse mais plenamente e commais realidade nas igrejas dos pobres do que nas igrejas dos ricos.Não nos surpreende por que os pobres sempre viveram a soli-dariedade com mais naturalidade do que os ricos.

Entretanto, notemos que os problemas criados pela existênciada pobreza no mundo em geral, estão desafiando a consciência dosricos nestas últimas duas ou três décadas. Em resposta a esse de-safio a ajuda está sendo organizada e institucionalizada. Os ricosestão oferecendo aos pobres enormes somas em dinheiro, toneladasde alimentos e milhares e milhares de peritos para lhes ajudar. Empoucos casos os resultados têm sido bons; e assim mesmo porqueas pessoas envolvidas com o problema puseram-se a transformara situação. Nesses casos, a ajuda material serviu de apoio, comoexpressão de solidariedade com os desprivilegiados. Mas na maio-ria dos casos os resultados obtidos não equivalem à quantidade deassistência dada aos pobres pelos ricos. l8 Esse tipo de auxílioocultava, em geral, outros interesses, como evidenciam pesquisasrecentes. 19

Internacionalmente, a organização do sistema de ajuda se fazprincipalmente por meio de projetos elaborados pelos necessitados.Recebem, então (às vezes nada recebem), ajuda financeira de"agências donantes" (internacionais, não-governamentais, mistas,benevolentes etc.). Em certos casos, esse dinheiro ajudou muitaspessoas a se libertarem da pobreza e alcançar independência. En-tretanto, na maioria dos casos, esse tipo de auxílio apenas serviupara consolidar situações de dominação e dependência. Nesses ca-sos, não há solidariedade verdadeira nem participação, mas rela-ções assimétricas com grande margem de interferência dos "doa-dores" .120 Estabelecem-se, dessa maneira, relações de desigualdade.Aplica-se o princípio das "leis do mercado" ao sistema de projetos,transformando-o num "mercado de projetos". Certamente, não seataca a pobreza em suas raízes com esse tipo de ajuda. A ajudaprecisa ser dada em termos de solidariedade, de tal maneira queseja visível na totalidade do processo.

Numa perspectiva desse tipo, a participação de recursos podeajudar na libertação dos pobres, significando:

a) libertação dos pobres explorados do Terceiro Mundo ondea maioria das pessoas estão perecendo de fome, de pobreza física,

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de ignorância, de alienação cultural e de opressão política, gera-dora de todos os tipos de problemas;

b) libertação dos setores pobres do mundo, considerados"prósperos", capitalistas e socialistas, chamados de "civilizados"- em geral, "civilização cristã" - onde pequenas minorias igno-ram as dimensões humanas de sua verdadeira pobreza humana,buscando cega e avidamente caminhos e maneiras para assegurara própria dominação sócio-econômica baseada na expansão egoístae no gozo de posses e, quase sempre, satisfazendo a interessesegoístas e desprezíveis.

Observemos, pois, que o exercício da solidariedade liberta osricos 21 no sentido em que quando o cristão materialmente abastadose torna responsável e profeticamente consciente da necessidadeda solidariedade humana, ele também passa a ver com clareza quetodos os seres humano são, ao mesmo tempo, ricos e pobres.Portanto, porque podemos, devemos compartilhar com os outrostodo o potencial material, cultural e humano e todos os fatoresque orientam nossas aspirações comuns para o desenvolvimento,para a realização do ser humano completo e de todos os sereshumanos (2 Co 8.8-15).

Assim, na medida em que não somos deste mundo, mas "co-locados no mundo" (Jo 17.5-18) para regenerá-lo, temos o privi-légio de ser chamados para refletir o imensurável amor de Cristo,o Verbo feito carne. O Filho de Deus que se tornou filho dohomem permite que participemos da exuberante abundância doseu reino de justiça. Não nos pede mais do que isso: de que parti-cipemos nos tesouros de seu reino soberano e rico.

Envolvimento social em países socialistas

Poderia se pensar que as exigências de envolvimento socialdas .igrejas com os pobres dirigem-se apenas às comunidades cris-tãs do mundo capitalista, em nações tanto pobres como ricas, eque as igrejas nos países socialistas estariam fora dessa preocupa-ção. Saibamos, no entanto, que essas igrejas conhecem muito bemesse desafio dos pobres em relação a seu envolvimento social. Porexemplo, recente publicação da Igreja Evangélica Luterana da Hun-gria diz o seguinte a respeito da participação dos cristãos no de-senvolvimento: "Estaríamos falando no vácuo a respeito da riquezae da pobreza se não considerássemos o desenvolvimento históricoque levou a humanidade a esse contraste inaceitável entre riquezae pobreza. Mesmo se admitíssemos ser errado ou impossível umpadrão de vida igual para todos os habitantes do mundo, não hádúvida de que o triste contraste entre riqueza e pobreza tem sido

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causado pelo sistema capitalista imperialista, e que somente osocialismo poderá oferecer o tipo de auxílio radical na situaçãopresente além de atos ocasionais de alívio da miséria. Uma vezque a solução do problema relacionado com esse contraste é vitalpara a humanidade, deveríamos nos orientar pelo socialismo, mes-mo sabendo que nesse campo, ao se superar o passado, luta-secontra novos problemas ... O· cristão precisa ter consciência des-sas realidades em seu serviço no mundo. Se o cristão procura,hoje, a solução radical do problema colocado pelo conflito entrea riqueza e a pobreza, não pode escapar da questão que o leva acooperar com as forças do socialismo". 22

O mesmo tipo de convicção é expresso pela "Confissão deFé" da Igreja Presbiteriana Reformada de Cuba: "A Igreja vivena prática real e concreta da liberdade humana -conquista por seusmembros na participação comprometida com o desenvolvimentoqualitativo e o crescimento quantitativo do "amor-justiça", nasestruturas sócio-políticas e econômicas da sociedade humana, in-cluindo as próprias estruturas da Igreja enquanto instituição sócio-jurídica. .. A Igreja não apoia Rem serve as classes opressorascom seus interesses destruidores da vocação humana para a liber-dade, por meio da exploração do trabalho de muitos para oaumento da riqueza de poucos às custas do crescimento geral damiséria humana, "sinal" da frustração do amor de Deus". 2:1

NOTAS1. Cf. o relatório da primeira seção da Conferência Mundial sobre a Sal-

vação Hoje, sobre cultura e identidade, parágrafo 7: "Quando os 'agen-tes de salvação' colocam-se mesmo equivocamente do lado dos opresso-res, a mensagem cristã é distorcida e a missão perde o sentido". BangkokAssembly 1973, Genebra, CWME/WCC, 1973, p. 74. Também se lê norelatório da seção I sobre a confissão da fé hoje, da Quinta Assembléiado Conselho Mundial de Igrejas, a respeito do evangelho integral: "OEvangelho\ sempre inclui: o anúncio do Reino de Deus e do amor pormeio de Jesus Cristo, o oferecimento da graça e do perdão dos pecados, oconvite ao arrependimento e à fé em Cristo, o chamado à irmandadena Igreja de Deus: o mandamento para se testemunhar as palavras eos atos salvadores de Deus, a responsabilidade de participação na lutaem favor da justiça e da dignidade humana, a obrigação de denunciartudo o que impede a realização da plenitude humana, e o compromissodo risco da própria vida". David M. Paton (ed.), Breaking barriers:Nairobi 1975 (os itálicos são nossos). Grand Rapids, Wm B. Eerdmans,e Londres, SPCK, 1976.

2. CL Igreja Evangélica Metodista na Bolívia, Manifesto to the nation,CCPD, Dossiê n. 1, Churches in development, Genebra, WCC, 1973_

3. Tg 2.14-17: "Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não temobras, que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? Se umirmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessáriopara a subsistência de cada dia, e alguém dentre vós lhes disser: 'ide

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em paz, aquecei-vos e saciai-vos', e não lhes der o necessário para asua manutenção, que proveito haverá nisso? Assim também a fé, senão tiver obras, será morta em seu isolamento".

4. Cf. Julio de Santa Ana, Good news to the poor, capítulos H e IH, p.12-35, Genebra, WCC, 1977. Também os capítulos XIII e XIV destelivro.

5. É Deus que reúne sua ekklesia por meio de sua Palavra, com o poderdo Espírito que vem do testemunho apostólico. Explica-se assim porquegrupos de cristãos caracterizam-se por nomes indicadores do fato deque se reúnem na igreja. pelo chamado de Deus. Eles são "chamados"(Rm. 1.6) para ser santos (Rrn. 1.7; 8.27). A palavra grega ekklesiarelaciona-se com o verbo kaleo, chamar. Não há Igreja sem o chamadode Deus.

6. CL a expressão deste esforço em [ames Cone, Black Theology and Blackpower, New York, Seabury Press, 1969.

7. Cf. Teologia de Ia liberación, de Gustavo Gutierrez. Ver também a obrade M. M. Thomas, Towards a theology of contemporary ecumenism, p.148 e 149, Madras, Christian Literature Society, 1978.

8. Cf. Bispo Paulose Mar Paulose, Church's mission: 1. Struggle for justice.2. lnvolvement in political struggles, p. 21 e 22: "A Igreja coreana vivehoje sob ditadura política, e. .. acredita que o poder político opressorcontradiz a fé cristã e a missão da Igreja. Qualquer igreja responsávelnão pode ficar indiferente a esse tipo de situação, pois ao deixarmosde lado a responsabilidade de cristãos no que concerne à preservaçãoe promoção da dignidade humana estaremos abandonando a fé emJesus Cristo. Portanto, a igreja coreana, em meio à repressão e à perseguição, envolve-se na luta pelo restabelecimento dos princípios demo-cráticos em nosso país, para a reorganização da sociedade sob o plenoreconhecimento da dignidade básica do ser humano. Ela está levandoa sério o Evangelho. Sabe que o Evangelho é a palavra da reconcilia-ção. E, também, que o ministério da reconciliação envolve não apenasa reunião dos opositores alienados, mas também a luta pela libertaçãodos oprimidos e explorados". Bombaim, Build, 1978. Em situação dife-rente, a declaração dos bispos do Centro-Oeste do Brasil, Marginaliza-ção de um povo, expressa compromisso semelhante. Goiânia, 1973, es-pecialmente p. 41-44.

9. Gustavo Gutierrez, Signos de lucha y esperanza: testimonios de Ia igle-sia en América Latina 1973-1978, introdução, p. xlii: "Os pobres sabemque a história lhes pertence e que embora chorem hoje, hão de riramanhã (Lc 6.21). Essa risada vem da profunda confiança no Senhor- do tipo encontrado nos cânticos de Ana e Maria - que os pobresvivem no meio da história que querem mudar. Essa alegria é subversivanum mundo de opressão, perturbando os poderosos, denunciando omedo dos hesitantes e revelando o amor do Deus da esperança ", Lima,CEP, 1978.Cf. lohn Perkins, "What it means to be the Church", International Re-view of Mission, v. LXVI, n. 263, sobre "direitos humanos", julho de1977, p. 244-247.Ver o capítulo X deste livro.Cf. Robert F. Currie, S1. The Church: credible sign of people's liber-ation? Socio-political and theological analysis of a church movement inBihar, lndia, Mermajal PO, Mangalore, Centre for Human Concern,1978.

10.

11.12.

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13. Cf. Gustavo Gutierrez, op. cito14. Cf. o relatório da consulta sobre militarismo do Conselho Mundial de

Igrejas, realizada em Glion, Suíça, de 13 a 18 de novembro de 1977, p.8-11, Genebra, CCIA/WCC, 1978.

15. Cf. Thomas Cullinan, OSB, The roots of social iniustice, p. 8 e seguin-tes. A privatização da propriedade representa, para ele, uma das princi-pais causas da injustiça social. Londres, Catholic Housing Aid Society,1973.

16. Cf. [ohn Kent, "The Church and the Trade Union Movement in Britainin the 19th century". Julio de Santa Ana (ed.), Separation withouthope?, p. 30-37, Genebra, WCC, 1978.

17. Cf. o relatório da seção IV sobre "desenvolvimento humano: ambigüi-dades do poder e da tecnologia e a qualidade da vida", da Quinta As-sembléia do Conselho Mundial de Igrejas. Davi M. Paton (ed.), op. cit.,parágrafo 12.1, p. 123.

18. Iohn White, The politics of [oreign aid, Londres, Bodley Head, 1974.19. Theresa Hayter, Aid as imperialism, Hardmonsworth, UK, Penguin

Books, 1971.20. Cf. o dossiê n. 8 sobre qualidade do auxílio, Genebra, CCPD/WCC,

1976. Ver especialmente "Combined analysis of the replies to thequestionnaire on 'the quality of aid' ", p. 21.

21. Foi o que o jovem rico não entendeu: cf. Mt 19.16..22; Me 10.17-22 eLc 18.18-30. Ver também Julio de Santa Ana, op. cit., p. 24-28. Essaexperiência de libertação foi vivida por Pierre Vaudês, fundador domovimento valdense no século doze. Cf. [ean Gounet e Amadeo Molnar,Storia dei Valdesi, col. I, p. 10-13, Torino, Claudiana, 1974.

22. Contribuição da Igreja Evangélica Luterana na Hungria à Sexta Assem-bléia da Federação Luterana Mundial realizada em Dar-Es-Salaam, em1977: ln Jesus Christ a new community, Budapest, Magyarországi Evan-gélíkus Egyház, Sajtoosztálya, 1977, p. 114 e 115.

23. Citado por Sergio Arce-Martinez em "Development, People's Partici-pation and theology", The Ecumenical Review, V. 30, n. 3, 1978, p. 271.

~

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XIV. Esforço comum pelanova sociedade

Já assinalamos que a sociedade humana de nossos dias divide-se entre ricos e pobres - os que têm e os que nada têm, opresso-res e oprimidos. Estamos todos preocupados com o fato da pobrezae entendemos que a principal causa dessa situação é a opressão ea exploração. 1 As forças da opressão, embora numericamente mi-noritárias, são poderosas e unidas e sua atividade é sistemática eabrangedora. Elas mantêm a opressão e conduzem a exploração,deixando o povo na periferia, e representando o jogo de deixarcair algumas "migalhas" na forma de caridade ou de ajuda, aomesmo tempo em que reservam para si as principais riquezas erecursos do mundo."

Os pobres começam, aos poucos, a se dar conta da situação.Os sinais desse fato são visíveis em todas as sociedades e nacões. Aluta contra o colonialismo é bom exemplo atualmente. C;esce ainquietação e aumentam as áreas de conflito no mundo, e o povocomeça a desafiar "as principalidades e os poderes". As forçasopressoras contra atacam com mais opressão e assistimos ao co-lapso e ao estabelecimento de ditaduras, especialmente na Ásia,na África e na América Latina, onde vive e luta a maioria dospobres do mundo. J

A busca da nova sociedade

As lutas e conflitos que vemos ao redor são sinais da cons-tante busca da nova sociedade. Os povos da Ásia e da África sobo colonialismo ocidental pensavam que seriam livres se se livras-sem desse imperialismo. Entendamos que os atuais governantes,embora nacionais, são ainda agentes do neo-colonialismo e conti-nuam a oprimir o próprio povo." A procura da nova sociedadecomeça a ser feita a partir desta experiência e frustração. Há duasinfluências principais. Em primeiro lugar, das ideologias. Sem en-trarmos na discussão dos méritos ou das limitações das experiên-cias da Rússia e da China neste século, pode-se dizer que elas

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produziram enorme impacto no mundo e não podem ser ignora-das." As ideologias responsáveis por tais feitos são levadas a sérioem muitos países na busca da nova sociedade. Os instrumentosempregados por essas ideologias estão sendo utilizados para acompreensão das situações locais sem a idealização daquelas expe-riências. O gandhismo é outra ideologia presente nessa busca nocontexto indiano. '6 A sarvodaya (bem estar para todos) ainda é osonho indiano profundamente enraizado em seu meio cultural. Onacionalismo é outra ideologia ainda não bem definida e, talvez,reacionária, mas que se faz presente em inúmeras situações. 7

A segunda influência é a das religiões e crenças. Predominano cenário asiático gente não cristã. O islamismo aumenta consi-deravelmente em muitos países do mundo. Boa parte das pessoasenvolvidas com a busca da nova sociedade pertence a religiões eculturas que, em geral, não se chamariam de cristãs. A busca danova sociedade em tais contextos resulta no renascimento dessasreligiões a partir do final do século 19 até nossos dias, especial-mente na Ásia. Reconhece-se, também, que certos elementos pre-sentes nas religiões e nas culturas exercem função repressora edevem ser abandonados na busca da nova sociedade. 8

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A Igreja na busca da nova sociedade

Jesus Cristo anunciou a vinda do Reino de Deus e seus após-tolos falaram de "novo céu e nova terra". Jesus pregou, ensinou ecurou os doentes no contexto do anúncio da nova sociedade. Nãose mostrou preparado para institucionalizar os "serviços" de curados enfermos e de dar alimento aos famintos. Procedeu dessa ma-neira para mostrar ao povo na vida diária novas possibilidades epara encorajá-Ia a participar em movimentos destinados à criaçãode comunidades humanas verdadeiras sem a exploração de unspelos outros." Não foi o fato de auxiliar os pobres que veio aameaçar os opressores da época, mas a pregação e o ensino a res-peito do Reinoçde Deus, juntamente com os sinais do desperta-mento do povo. As Boas Novas que pregou ainda ecoam no mundoe seu espírito está presente em movimentos tanto dentro como forada Igreja. Importantes personalidades devotadas à luta pela digni-dade e pela liberdade, essenciais às Boas Novas pregadas por Je-sus, não fazem parte da Igreja, como Mahatma Gandhi. Hoje emdia, a busca da nova sociedade expressa-se, principalmente naÁsia, muito mais fora da Igreja do que nela, coisa que nos develevar à humildade e, ao mesmo tempo, à gratidão a Deus.

A Igreja nos países desenvolvidos, com poucas exceções, re-sultou de empreendimentos missionários de igrejas ocidentais como apoio do expansionismo colonial a partir do século dezesseis.

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Os missionários manifestaram-se agressivos como quem trazia "aluz" aos "filhos das trevas" condenados a viver nessas terras pa-gãs. A conversão a que chamaram o povo envolvia o abandono desuas raízes sócio-culturais ao lado da mudança religiosa, para ado-tar práticas e valores da nova cultura. 10 Com isso "separavam-se"dos companheiros e das comunidades originais transformando-seem grupo exclusivo. A mensagem pregada pelos missionários per-tencia, em geral, ao domínio metafísico chamando a atenção dosnov-os convertidos para um outro mundo. Os países e comunidadesalcançadas pelos novos pregadores reagiam desfavoravelmente eviam os novos convertidos com suspeita e preconceito. Os conver-tidos, por sua vez, sentindo-se inseguros, retiravam-se dos princi-pais segmentos da vida do povo e se alienavam em suas assem-bléias e organizações. Ê típica a situação da Índia, onde os cris-tãos enquanto comunidade não representaram nenhum papel sig-nificante na luta pela libertação do país, e até hoje o complexominoritário das igrejas não permite que os cristãos participemplenamente nas lutas do povo ..

As igrejas na Ásia, África, América Latina, Oriente Médio ePacífico, precisam comprovar sua credibilidade antes de entrar nes-sa busca da nova sociedade. Precisam entender a missão no pró-prio contexto, levando em consideração outras religiões, não seconformando em apenas seguir os modos da pregação do Evan-gelho da igreja no ocidente.11 Precisam ainda provar que estãoprofundamente preocupadas com a mudança social e com a buscada nova sociedade ficando do lado dos oprimidos e não dos opres-sores. A credibilidade das igrejas na Coréia do Sul e nas Filipi-nas entre os habitantes locais e mesmo aos de fora é muito altaporque não titubearam em se arriscar na Iuta-contra os regimesopressores. As igrejas do sub-continente indiano não são muitobem vistas pelo povo, a não ser pelo "serviço", por causa de suaalienação. Começam a surgir, agora, grupos de ação destinados aabrir novos canais de comunicação tornando-se parte da busca danova sociedade. Em situações em que a Igreja não passa de mino-ria e onde não tem sido vista como participante no processo demudança social, será presunçoso pensar que ela poderá realizar porsi mesma essa busca da nova sociedade e de lhe oferecer liderança.Após ganhar a confiança do povo, a Igreja poderá, certamente,tornar-se "serva" nesse processo de busca.

Valores e decorrências da busca comum

Ao considerarmos o valor e as implicações da busca comum,vamos assinalar três áreas principais.

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1. A qualidade da busca: Será enriquecida ao nos unirmoscom pessoas de outros credos e ideologias. 13 Ê bastante limitada aexperiência das igrejas, especialmente em situações minoritárias, nacompreensão da dinâmica da sociedade e das suas realidades. Ebastante importante a busca comum quando o problema deve servisto em todas as suas dimensões e manifestações com a finalidadede se identificar suas causas. Algumas experiências em países asiá-ticos, onde mulheres e homens de diferentes religiões e ideologiasagem e pensam juntos, podem nos ser úteis. 14 Esse processo nãose confina a níveis locais e nacionais. Igrejas e organizações comoo Conselho Mundial de Igrejas deveriam procurar incluir em suaprogramação de estudo e reflexão pessoas pertencentes a outroscredos e ideologias para enriquecer esse processo qualitativamente.

2. A busca comum leva ao diálogo: As conversações entrecristãos e pessoas de outras religiões desenvolvem-se, principal-mente, nos níveis acadêmicos e teóricos. Entretanto, quando essasmesmas pessoas se encontram com o povo em situações locais,começa a haver verdadeiro diálogo. Descobrem que estão junta-mente preocupadas com o futuro da sociedade e têm igualmenteesperanças. Esse diálogo é significativo e o povo comum pode par-ticipar nele plenamente. Faz-se no contexto do compromisso co-mum com a busca da nova sociedade. 15 As igrejas e o ConselhoMundial de Igrejas devem anotar essas experiências e incentivara continuação do processo em todos os níveis.

3. A busca comum desenvolve unidade e solidariedade: Tantoa descoberta de pessoas e movimentos como a busca comum danova sociedade, fomentam unidade e solidariedade. Somente aunião dos oprimidos é capaz de libertá-los das forças opressoras. 16

As pessoas envolvidas nessa causa deveriam ser apoiadas pelasigrejas. Caso contrário, o opressor se fortalece. Destarte, a Igrejaprecisa levar a sério todas as pessoas e movimentos na lutado povo para apoiá-Ios de todos os modos possíveis, inclusivefinanceiramente.

Em suma, podemos dizer que nas situações e nas lutas dospobres a Igreja não deve trabalhar isoladamente, especialmenteonde outras religiões e ideologias são influentes e grande parte dapopulação pertence a outras religiões. 17 A Igreja precisa discernira obra do Espírito Santo em todos os movimentos, religiosos ouseculares, que trabalham em favor da sociedade humana justa ecriativa. Este processo é importante não só pela causa dos pobres,mas também pelo enriquecimento das percepções e das experiên-cias da própria Igreja:

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NOTAS

1. Cf. os capítulos I e II deste livro.2. Como disse Diogo de Gaspar: "Em primeiro lugar quero me dirigir

às práticas mais estabelecidas de caridade na vida diária, relacionadasa sistemas de assistência a longo prazo. A maioria dessas práticas, senão todas, poderiam ser classificadas de soluções "simétricas". Dirigem-se a sintomas ou - a vítimas de determinados sistemas sem se dar contade que sintomas e vítimas existem por causa de defeitos básicos nosistema social e econômico de determinada região geográfica. Examine-mos algumas feições do comportamento caridoso. Em primeiro lugar, ocomportamento caritativo não mede o lado que recebe em relação aoque dá. O que é dado não se relaciona com a riqueza de quem dá. Osque doam (indivíduos, instituições e nações) decidem que parte de suasfortunas será repartida. As necessídàdes dos que recebem não são me-didas. O receptor pode receber menos do que precisa ou mais do querequer. Em geral será apenas por coincidência que as necessidades e asobras de caridade vão se encontrar no mesmo nível. Portanto, da pers-pectiva estritamente econômica, as dádivas de caridade são atos "irres-ponsáveis". Como corolário, espera-se que o receptor seja "eternamentegrato ao doador", e que lhe seja plenamente leal e devotado. Não nosmaravilhamos, pois, ao saber que do ponto de vista psicológico e polí-tico surjam constantemente tantas surpresas". Em "Some comments onchanging life styles"', Study Encounter, v. XII, n. 3, 1976, p. 14.

3.' Ver o relatório do secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas àQuinta Assembléia. David M. Paton (ed.), Breaking barriers: Nairobi1975, p. 252 e 253. Grand Rapids, Michigan, Wm B. Eerdmans, e Lon-dres, SPCK, 1976.

4. Consultar o livro clássico de Kwame Nkrumah, Neo-Colonialism as thelast stage of imperialism, Accra, Ghana Press, 1965. Cf. também de[ames O'Connor, "The meaning of Economic Imperialism"': "A políticaneo-colonialista destina-se em primeiro lugar e principalmente a impedirque os novos países independentes consolidem a independência políticamantendo-os economicamente dependentes para a manutenção do sis-tema capitalista mundial. No caso puro do neo-colonialismo, a aloca-ção de recursos econômicos, esforços de investimentos, estruturas legaise ideológicas, bem como outras feições da antiga sociedade, permaneceminalteradas - com a única exceção da substituição do 'colonialismoformal' pelo 'colonialismo interno', isto é, a transferência do poder dosantigos senhores para as classes governantes do país. A independênciafoi alcança da em condições irrelevantes para as necessidades básicas dasociedade, representando negação parcial da soberania nacional e, poroutro lado, a continuação da desunião dentro da sociedade". Em K. T.Faun e Donald C. Hodges, Readings in US Imperialism, p. 40, Boston,Porter Sargent, 1971.

5. Cf. Choan-Seng Song, "New China and Salvation History: a Methodo-logical Enquiry", e Julio de Santa Ana, "Liberation for Social Justice:the common struggle of christians and marxists in Latin Arnerica", emStanley J. Samartha (ed.), Living faiths and ultimate goals: a continuingdialogue, p. 68-89 e 90-107 respectivamente. Genebra, WCC, 1974.

6. A influência de Gandhi é visível no pensamento de Samuel Parmar,conhecido economista indiano. CL sua contribuição em Beyond depen-dency: the developing world speaks out (Guy Erb e Valeriana Kallab,

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eds. Washington, DC, Overseas Development Council, 1975) e RichardD. N. Dickinson, To set at liberty the oppressed, Genebra, WCC, 1975.

7. Como se lê no relatório da seção 11 sobre "natureza e função do Estadonum tempo revolucionário, da Conferência Mundial de Igreja e Socie-dade, realizada em Genebra em 1966, parágrafos 47 em diante: "Certosenso de nacionalismo é essencial à construção das nações novas. Essetipo de nacionalismo, no entanto, não deve ser confundido com algunstipos agressivos de nacionalismo responsáveis por guerras, deificadoresda pátria e suscitadores de sentimentos de superioridade nacional ...Os que têm, agora, objeções até certo ponto compreensíveis ao nacio-nalismo precisam considerar sem preconceito o que significa nacionalis-mo e estado-nação para a construção de novos países: o nacionalismoenvolve o conceito de propósito nacional; é meio para a obtenção daindependência; procura a nova liberdade em face das antigas estru-turas coloniais a partir das quais a nação começou a ser construída; émeio' para o alcance de unidade entre os países sufocados pelos poderescoloniais na época da independência, países esses caracterizados, emgeral, por variedade étnica e lingüística; é, por fim, meio de se estabe-lecer a personalidade nacional". Christians in the technical and socialrevolutions oi our time, p. 106 e 107, Genebra, WCC, 1967.

8. Cf. Stanley J. Samartha (ed.) op. cito9. Ver o capítulo XIV deste livro.10. Cf. os estudos de Julio Barreiro, '.!Rejection of christianity by the indi-

genous peoples of Latin América", de C. I. Itty, "The Church and thepoor in Asian history", e de Sam M. Kobia, "The christian mission andthe African peoples in the 19 th century", no livro editado por Juliode Santa Ana, Separation without hope? , Genebra, CCPD/WCC, 1978.

11. Cf. CWME/WCC, Bangkok assembly 1973, p. 78-80, Genebra, WCC,1973.

12. Ibid., p. 60 e 61.13. CL Stanley J. Samartha ,ed, op. cit., p. vi-xvii.14. Cf. Friends oi the Philippines: Makibaka, joint us in struggle! Documen-

tação de cinco anos de resistência à lei marcial nas Filipina.s. Londres,Blackrose Press, 1978.

15. Cf. o relatóro da seção 111 sobre "a busca de comunidade, a procuracomum de vários credos, culturas e ideologias", da Quinta Assembléiado Conselho Mundial de Igrejas: "Muita gente salienta a importânciado diálogo perante a necessidade de cooperação de todos para o esta-belecimento .@asociedade justa e pacífica. O diálogo ajuda os povos nabusca da comunidade", David M. Paton (ed.), op. cit., p. 77.

16. Cf. To break the chaing of oppression, capítulo V, especialmente as pá-ginas 48-55, Genebra, CCPD/WCC, 1975.

17. Cf. os capítulos XIV e XVI deste livro.

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XV. Propostas às Igrejas

o compromisso de ser a Igreja dos pobres, trabalhando comeles e por eles, enfrenta imediatamente o problema fundamentalvisível na herança e na predominância de modelos de trabalho emtodas as fases da vida das instituições eclesiásticas voltados paraoutras opções com tendências a perpetuá-Ias. Para mudar o seucompromisso, a Igreja deve entender claramente não apenas asnovas orientações e razões para a mudança, mas também e espe-cialmente os novos métodos necessários para equipar as congrega-ções e seus membros a esse novo trabalho de ministério.1. É preciso identificar os métodos vigentes e entendê-los no pro-cesso da mudança ou de sua substituição. Estão presentes emvários aspectos do trabalho e da organização da Igreja:1.1 Em estruturas fechadas à participação do povo.1.2 Nos objetivos do ministério da Igreja baseados nos ricos e nospoderosos e não nos pobres.1.3 No tipo de evangelismo que dá mais importância ao aumentonumérico das comunidades em lugar da participação do Evange-lho com os pobres e oprimidos.1.4 No processo educacional em vigor nos corpos eclesiásticos des-de a catequese dos jovens até à formação do clero que produzinstituições preocupadas mais consigo mesmas e com seus proble-mas internos do que em trabalhar pela justiça no mundo.1.5 Na ação social que reflete práticas e estratégias comprometi-das com os interesses de classe dos ricos. As obras de caridadequerem dizer que os pobres não são companheiros no mesmo nível.1.6 Na ajuda de uma igreja à outra efetivada por minorias semqualquer participação do povo em geral alheia às verdadeiras ne-cessidades imediatas.2. Esses julgamentos negativos, não importando o grau de vera-cidade em qualquer parte da Igreja Católica, são contrabalança-dos pelo surgimento de novos movimentos contrários sinalizadores

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de uma Igreja que vai se transformando em Igreja dos pobres. Asestórias desses movimentos no primeiro capítulo deste livro ates-tam o que estamos afirmando. De modo menos dramático, inú-meras igrejas ao redor do mundo começam a trabalhar a partirdos pobres, por meio de esforços que redirecionam suas ativida-des e por atitudes corajosas e ousadas em favor deles. Os sinaisestão aí nas igrejas.3. À luz da irrelevância dos métodos herdados e desses novos mo-vimentos, que propostas específicas podem ajudar as igrejas a setornar igrejas dos pobres, trabalhando com eles e por eles?3.1 Alinhamento: se a Igreja nasceu dos pobres e vive para eles(At 2.42-47; 4.32-35 e 6.1-7) precisa, então, julgar cada momentode sua vida a partir da perspectiva dos pobres. E só poderá sersolidária com os pobres quando estiver onde eles estão. Essa soli-dariedade será contínua apenas quando se mantiver em contatodireto com os pobres e sua opressão. E poderá ser instrumentodos pobres na medida. em que o Senhor da Igreja agir por seuintermédio. As igrejas cujos membros já são das classes pobrestornam-se a vanguarda dos esforços cristãos, oferecendo de seus \estudos bíblicos e da reflexão baseada na ação, orientação segurapara as lutas em favor da justiça. As igrejas cujos membros sãode outras classes podem ser solidárias com os pobres por meiode participação em suas lutas diretamente ou advogando suas cau-sas, ao ser "voz dos que não têm VOZ".1 Nessas situações, con-tudo, as igrejas, ao se alinharem com os pobres e seus pontos devista, precisam fazer a seguinte pergunta: "o que estamos fazendoexpressa verdadeira solidariedade para com os pobres?" l2 Destamaneira os corpos eclesiásticos podem se tornar fiéis testemunhasdo Evangelho.

Propomos que as igrejas se alinhem com os pobres partici-pando com eles em níveis adequados, mas principalmente de mododireto, em suas lutas pela justiça, submetendo suas decisões aocritério da aiuda aos pobres na realização de suas esperanças eexpectativas.3.2 A Bíblia: as igrejas dos pobres dão testemunho da importânciada redes coberta da Bíblia e da sua importância para a vida diá-ria," Os pobres, na luta pela justiça, lêem a Bíblia e a descobremviva de modos diferentes quando a líbertação de que fala é amesma que eles buscam hoje. Superando a dicotomia entre asinterpretações espiritual e históricas que assolam as comunidadescristãs de pessoas mais privilegiadas, os pobres percebem imedia-tamente a relevância da Bíblia para as suas vidas. Discutindo osproblemas concretos de suas comunidades, enquanto lutam contra

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diferentes tipos de opressão, levam o estudo bíblico à ação. Entreas opções conflitantes pela libertação encontradas nas Escrituras,acham indicações que lhes ajudam a formular o próprio responso.Encontram na Bíblia auxílio para entender e enfrentar o conflito.Nesse modo novo de misturar luta e Bíblia, desenvolvem a didá-tica do conflito capaz de lhes dar nova compreensão da Bíblia.Como generalizou Alves, as igrejas ocidentais ressaltaram a com-preensão racional das Escrituras; as orientais, a mística; e as doTerceiro Mundo (dos pobres) a militante e atívista.' Para sermoshumanos precisamos da mente, do coração e da vontade. A novavitalidade do estudo bíblico entre os pobres restaura o que sepoderia chamar de plenitude, e oferece às igrejas dos pobres, bemcomo às com os pobres, imensas possibilidades de estudo bíblicoem ação.

Propomos que as igrejas desenvolvam e apoiem o estudo bí-blico relacionado com a ação entre os que participam nas lutasdos pobres em favor da justiça.3.3 Teologia: a Igreja comprometida com a opção pelos pobrespercebe que certos conceitos teológicos herdados de experiênciashistóricas presas a outros tipos de comprometimentos represen-tam obstáculos às novas direções. Os valores populares e a religio-dade popular, mesmo quando indicativos da alienação dos pobres,expressam, também, sua resistência em face dos opressores. Por-tanto, os conceitos teológicos fundamentais e os modos da com-preensão da fé devem ser reformulados a partir da perspectivada pràxis libertadora dos pobres." Novo prumo mede as distor-ções das velhas estruturas de pensamento e oferece clara orienta-ção para a construção das novas. Mas a tarefa não é fácil, umavez que as estruturas familiares da teologia assumem certa aurade certeza que deve ser radicalmente rejeitada. O novo compro-misso de ser Igreja dos pobres pode dar o motivo e a força paraarrancar a velha teologia e plantar a nova, pois nesse compro-misso vem junto o julgamento de que sem ele os corpos eclesiás-ticos se desfiguram e deixam de ser Igreja de Jesus Cristo. AIgreja precisa esforçar-se seriamente para fundamentar seu traba-lho teológico nessa nova vida a partir da perspectiva dos pobres,encorajando os que já estão nesse caminho. Os teólogos devemabandonar as posições que tem nos centros de poder e participarna vida e nas lutas dos pobres.

3.4 Solidariedade, fortalecendo os fracos: a fidelidade à Palavrade Deus no contexto do mundo contemporâneo significa ficar dolado dos pobres na sua luta pela justiça," Os objetivos e propó-sitos dessa participação precisam ser definidos de acordo com as

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situações existentes. Em termos gerais, significa busca de liberta-ção e o sentido da plena humanização. A Bíblia mostra Jesuscomo a expressão perfeita dessa humanização. Infelizmente, háestruturas e sistemas que impedem o crescimento humano segun-do essa estatura de Jesus Cristo (Ef 6.10 e seguintes). Nessassituações procura-se não apenas participação e aceitação, mas mu-danças radicais na sociedade. Em muitas ocasiões a distância entreos ricos e os pobres é muito grande e os pobres quase não têmconsciência das próprias necessidades e direitos. Os pobres têmsido submetidos, historicamente, à manipulação pelas elites e pelosricos, por meio da criação de estruturas de exploração.

O propósito do esforço pela libertação, nesse contexto, nãoconsiste em dar aos pobres ideologia já pronta, mas em criar nopovo consciência e poder que o leve a mudar a sociedade segun-do o modelo que deseja. O processo de fortalecer os fracos paraque sejam sujeitos da mudança ocorre principalmente por meiode ajuda para que se organizem em face das estruturas locais depoder.' Esses conflitos e confrontos locais dentro da perspectivado todo ajudam o povo a se conscientizar e a se organizar paraenfrentar os principais problemas em escala maior. A alocaçãoadequada de recursos, bem organizada, pode ajudar a melhoraros esforços dos pobres.

Propomos que as igrejas apoiem esse tipo de trabalho em to-dos os níveis (incluindo o financeiro), facilitando as comunica-ções em âmbito mundial, reorientando as energias missionárias tra-dicionais para esse tipo de práxis libertadora com os pobres, e uti-lizando esse engajamento para aprender com bs próprios pobres.3.5 Envolvimento como base de reflexão: o aprendizado dos po-bres não vem de fria reflexão distanciada da ação, mas do meioda própria luta. Contudo, cuidadosa análise deve fazer parte doprocesso se esse aprendizado quiser participar na superação daopressão e na libertação do povo. É parte essencial do aprendiza-do ativo relacionar-se com o contexto onde ocorre a ação." A si-tuação estrutural e a ligação com outras forças envolvidas com aluta devem ser identificadas e entendidas na medida em que oprocesso da libertação prossegue. A análise da estratégia e dastáticas deve ser feita com cuidado, prevendo resistências e a ne-cessidade de modos alternativos. A essência do processo de apren-dizagem é o que alguns chamam de ação pastoral popular, isto é,envolvimento direto com os pobres na luta contra a opressão, eajuda que a ação pode dar à análise das realidades enfrentadaspelos pobres na práxis libertadora. A miséria e a existência sob aspoderosas forças condicionantes da sociedade moderna ocultam as

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realidades contextuais aos olhos do povo. Os métodos tradicionaisde nossas escolas não relacionam o envolvimento ativo com a aná-lise de modo a superar a cegueira. Para se evitar mero ativismoou análise escapista, precisamos de novos meios de análise práticarelacionada com a luta, para utilizá-Ia na contínua práxis da jus-tiça, da participação e da libertação.

Propomos que as igrejas devotem recursos de organiza doresde comunidade e educadores para a ação à tarefa do desenvolvi-mento de modos de analisar estruturas e contextos no meio daslutas de libertação, envolvendo-se diretamente com os pobres, eque os métodos assim aprendidos sejam usados na formação deagentes comprometidos com a busca de uma sociedade participa-tória, sustentável e libertada.

3.6 Luta em situações de conflito: "a luta é o melhor professor",dizia certo organizado r de comunidade numa favela de BuenosAires. 10 Bem no fundo dos movimentos de libertação instala-seinevitável contradição em face das forças opressoras que domi-nam as vidas do povo pobre. Abertas ou ocultas, tais forças odemoníaco, o baalismo que ofende o Deus da retidão (Os 4.7-14).Esse demônio não pode ser expulso sem que se rasgue de certamaneira o corpo no qual habita. No processo da libertação deve-seaceitar e entender o conflito como elemento necessário. Serve comoveículo de libertação e pode ser, portanto, usado para esse fim."

Quando os pobres e os oprimidos se levantam em favor dalibertação contra os poderosos que os oprimem, esse mesmo atojá os humaniza e lhes dá poder. Os corpos eclesiásticos estabele-cidos têm sido historicamente condicionados a evitar o conflito ea achar que a Igreja não pode perturbar a calma da vida comum.Esse condicionamento deve ser superado abertamente, envolven-do-se a Igreja em conflitos sempre que causas fundamentais esti-verem em jogo. Uma vez que o conflito é inevitável, o potencialde violência nas reações dos poderosos deve ser avaliado comcuidado e até mesmo usado. Não se pode escapar de certas rea-ções violentas à mudança, seja das poderosas forças de opressãonas estruturas da sociedade, ou de atitudes e comportamentos tra-dicionais. Não se trata da opção das Igrejas a favor ou contra aviolência. Isso deve ficar claro. Em situações de opressão, os po-bres são objeto de agressão diariamente, e as igrejas devem deci-dir que posição podem tomar em relação a esse tipo de violência.A marca de identificação com os pobres é essencial para se saberpor onde se anda nesses conflitos. A Igreja precisa trabalhar comintegridade para apoiar os pobres, e se abrir à sua práxis de lutacontra as forças do mal sem abandonar, ao mesmo tempo, a sen-

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sibilidade pastoral e o apoio comunitário que liberta as pessoaspara mudanças.".

Nós propomos que as igrejas participem ativamente em movi-mentos pela libertação, reivindicatôrios dos direitos dos pobres,e daí trabalhem para alcançar novos modelos de crescimento nafé orientados para a libertação.3.7 Educação: a educação do povo de Deus, da mesma maneira,deve estar de acordo com os novos compromissos da Igreja dospobres. As práticas pedagógicas incentivadoras do sistema valori-zador dos privilégios, os modelos de comportamento das classesdominantes e a privacidade e a caridade da piedade pessoal de-vem ser radicalmente criticadas e transformadas em comunidadee solidariedade. A educação popular cristã deve centralizar-se naconstrução da consciência para a. ação contra as forças contex-tuais presentes nos lugares que exigem libertação. Trata-se, pois,da educação do povo e não dos professores e líderes. Ela começana experiência do povo no lugar onde ele está, e vai se desenvol-vendo em diferentes níveis de consciência concomitantemente àluta contra as forças opressoras.í">

Esse modelo radical de educação na Igreja supera os tipostradicionais centralizados na escola, conhecidos por imporem e in-centivarem comportamentos passivos e auto-imagens negativas en-tre os educandos. Para nos livrarmos desses conceitos opressoresé preciso não só reorientar radicalmente as estruturas de educaçãoque os possibilitam, mas até mesmo começar de novo: não pode-mos continuar a manter modelos de autoridade na sociedade que"ensinam" submissão, mantém "valores educa tivos" baseados napublicidade dos meios de comunicação de massa, e em escolasque educam para a dependência. A libertação da Igreja para sera Igreja dos pobres significa nada menos do que a revolução ra-dical na maneira como se formam os seus membros. Os verda-deiros discípulos do Libertador só poderão ser formados e nutri-dos por meio de participação na luta pela libertação e pela refle-xão na medida em que essa luta vai se desenvolvendo.

Propomos que as igrejas desenvolvam novos experimentos ra-dicais com modelos de aprendizado relacionados com a ação li-gada à reflexão, e que tudo façam para substituir os antigos mo-delos educacionais por novos tipos de educação popular.3.8 Formação de agentes de mudança: a preparação de agentespara o trabalho da Igreja dos pobres envolve também mudançasradicais dos modelos tradicionais de treinamento de liderança,tanto do clero como do laicato. Somente os absolutamente com-prometidos na luta dos pobres, conhecidos pela compreensão em

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face dessa luta, deveriam ser indicados como agentes. A seleçãodessas pessoas deveria se dar com a participação do pOVO.16

Sua identificação com o povo não significa perda da própriaidentidade. Precisam aprender, em primeiro lugar, na práxis liber-tadora do povo, participando de suas inseguranças e perigos,aprendendo a dar atenção ao povo e a se retirar quando fôr con-veniente. Sua formação deverá incluir preparo na compreensãodos parâmetros ideológicos da sociedade, e deve ir além do merotreinamento teológico tradicional para analisar contextos e desen-volver a capacidade de correlacionar a teologia com outros cam-pos do conhecimento que podem contribuir para a compreensãoda sociedade. Os atuais métodos de educação teológica e de trei-namento dos leigos precisam ser radicalmente criticados em faceda necessidade de envolvimento nas lutas pela libertação e de umaeducação nova e mais profunda a respeito das dimensões contex-tuais, ideológicas e teológicas da práxis libertadora dos pobres.Assim como as antigas estruturas de educação refletem e incenti-vam as estruturas opressoras das sociedades dominantes, as novasformas de educação devem refletir o novo compromisso com ospobres. Os agentes envolvidos nessa luta podem, assim, desenvol-ver-se apenas por meio de novos métodos capazes de refletir aluta pela libertação e a práxis dos pobres.

Propomos que as igrejas reexaminem criticamente seus pro-gramas de educação dos clérigos e leigos na busca de novos mé-todos de envolvimento para a criação da sociedade libertada, par-ticipatória e justa e de modelos educacionais que possibilitem esseobjetivo.3.9 Assistência na busca da justiça: os movimentos de libertaçãodos pobres precisam de estruturas de apoio e de ligações entreeles. Confrontadas por forças globais de opressão, as lutas pelalibertação iniciadas em lugares específicos contra forças opresso-ras particulares, precisam de apoio de outros lugares e da pro-teção de redes de ação criadas pelos pobres. As igrejas encontramaqui importante papel para representar, pois têm acesso diretoaos pobres por meio de suas congregações e de suas estruturas in-ternacionais. Em certos países e em dados momentos históricos, asigrejas são quase as únicas instituições capazes de oferecer esseapoio. Algumas vezes eias têm mesmo que contribuir financeira-mente para proteger os agentes de libertação de pressões econô-micas. Outras vezes podem facilitar as comunicações para a mobi-lização de forças contra certos inimigos. Podem, ainda, chamara atenção de grupos locais que lutam pela justiça e pela libertaçãopara perceberem a existência de situações mais amplas e, assim,

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se aliarem a outros movimentos. Surgem problemas quando ospobres tentam se organizar em nível mais amplo sem apoio buro-crático e desligados das comunidades de base. Tudo isso deve serfeito, é claro, mas a Igreja com sua vasta rede de pessoas, grupose recursos pode ser de grande auxílio nesse nível da luta pelolibertação.

Propomos que as igrejas ativem suas inúmeras redes de apoioem benefício da luta dos pobres, analisem seu potencial para aluta, e desenvolvam meios de fortalecer as estruturas de conexãocapazes de apoiar a luta contra a pobreza e a opressão.3.1 O A Igreja dos pobres precisa livrar-se das dificuldades e far-dos das estruturas pesadas. Sabemos que os modelos verticais derelacionamento, as ricas heranças e as instalações luxuosas inevi-tavelmente alienam os pobres. Quando as igrejas examinam as pró-prias estruturas do ponto de vista dos pobres, percebem que boaparte de sua herança é perigosa e inútil na luta contra a opressãoque, por sua vez, é perpetuada por toda essa herança. As igrejaspodem, assim, oferecer apoio e certa força nessa luta. Oferecemespaço livre para a resistência do "povo onde podem organizar osconflitos, além de santuário de consolação para suas feridas. Suasfunções pastorais e proféticas ajudam a reunir as pessoas na prá-xis Iíbertadora, mesmo às expensas de seu aparato administrativoque se mostra d~snecessário e complicado. A flexibilidade passaa ser um dos principais objetivos para a mobilização dos recursosdas igrejas para a luta. Por outro lado, qualquer acúmulo inde-vido de estruturas limita essa flexibilidade. As instituições ecle-siásticas precisam reexaminar a própria organização em face dasnovas necessidades surgi das desse compromisso com os pobres.

Propomos que as igrejas reconsiderem suas estruturas orga-nizadas afim de que permitam a máxima disponibilidade de seusrecursos para as lutas em favor da criação de uma sociedade justa,participatória e sustentável.

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NOTASI. Cf. Dom Hélder Câmara, Les conversions d'un evêque: estretiens avec

José de Broucker, p. 183-192, Paris, Editions du Seuil, 1977.2. Essa foi precisamente a linha seguida pelos bispos brasileiros do Brasil

centro-oeste, no documento, Margina/ização de um povo, Goiânia, maiode 1973.

3. Cf. o capítulo XIV deste livro.4. Cf. Rubem Alves, "Libertad y ortodoxia: opuestos irreconciliables?", em

Cristianismo y Sociedad, XVI, n. 56 e 57, 1978, p. 37·42.5. Cf. Gustavo Gutierrez, Teologia desde el reverso de Ia historia, CEP,

Lima. 1977. Também o apêndice ao capítulo IX desse livro. Ver tam-

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bém Fred Rodrigues Kamath, "Community ressurrection in Mermajalvillage". Em Bobbi Wells Hargleroad (ed.), Struggle to be human: sto-ries of urban industrial mission, p. 62-68, Genebra, CWMEjWCC, 1973.

6. Cf. o documento "Structures of captivity and lines of liberation", ado-tado pela consulta conjunta da CCPD com CICARWS, em Montreux,em dezembro de 1974. The Ecumenical Review, v. XXVI!, n. 1, ja-neiro de 1975, p. 44-47, especialmente a 45.

7. Cf. "Carta de Dom Pedro Casaldáliga a seus amigos espanhóis", emSignos de lucha y esperanza, p. 254 e 255, de Gustavo Gutierrez, Lima,CEP, 1978.

8. CL as minutas do Simpósio sociológico sobre pesquisa ativa, realizadoem Cartagena, Colômbia, em 1977, Bogotá, Fundarco, 1977. O profes-sor OrIando Fals Borda, organizador desse simpósio é um dos princi-pais cientistas que trabalham nessa linha, juntamente com G. Hizer, Mi-gueI e Roziska Darcy d'Oliveira, entre outros.

9. Ver o livro de Paulo Freire, Ivan Illich e Pierre Furter, Educaciánpara el cambio social, especialmente o capítulo de Illich, "Critica a Iaensefíanza", p. 99-115, Buenos Aires, Tierra Nueva, sem data.

10. Para maiores informações sobre esta linha de experiência, ver BobbiWells Hargleroad (ed.), Struggle to be human, op. cit., p. 31-34.

11. Ver o capitulo V deste livro.12. Os ricos podem mudar. Sua salvação é ato da graça de Deus que os

chama ao arrependimento e à conversão. Cf. Lc 18.18-30, e Julio deSanta Ana, Good neW3 to the poor, capítulo Il I, Genebra, CCPDjWCC,1977.

13. Cf. Paulo Freire, Pedagogy of the oppressed, New York, Herder & Her-der, 1973. Também, do mesmo autor, "Education, Liberation and theChurch", em Study Encounter, v. IX, n. 1, 1973.

14. Em seu discurso à comissão central do Conselho Mundial de Igrejas,em agosto de 1977, Philip A. Potter, comentando Hebreus 13. 13-16,disse: "Também se quer dizer que a luta pela libertação das estruturasde injustiça, das violações dos direitos humanos, e do morticínio daguerra, é uma luta de sofrimento... Estamos aqui refletindo concreta-mente sobre o significado de se carregar a cruz por amor do Evan-gelho e do Reino de Deus de justiça e paz. Assim como a cruz deCristã autenticou a integridade de seu testemunho de verdade, a revela-ção e a fidelidade do Pai, assim as igrejas e o Conselho Mundial estãosendo desafiados a tomar sobre si o sofrimento da cruz curadora e vi-toriosa em confronto com os que se recusam a aceitar o chamado aoarrependimento, à metanoia, à mudança radical de pensamento e devida, e se voltar em obediência ao Evangelho. Quando "os principadose poderes", as estruturas de engano e mentira destrutiva, que se re-cusam a receber Cristo como Senhor, atacam o povo· de Deus, o sofri-mento pela verdade do Evangelho passa a ser o único caminho pormeio do qual a doutrina, a confissão e o envolvimento social se tor-nam veículos da verdade que temos de viver e proclamar."Para nós, pois, não há escape deste chamado ao sofrimento. Cristonão nos prometeu outra coisa. Ele nos advertiu que quando vivemosa verdade segundo o Espírito, quando denunciamos o mal e o pecadodo mundo, quando manifestamos confiança nos semelhantes envolven-do-nos com seu bem estar, atrai mos sobre nós o ódio do mundo. Mas éno meio do mundo e de seu ódio que ele nos promete o Espírito, o

Paracletos, para estar ao nosso lado, capaz de ouvir e expressar nossosgemidos sem palavras, para nos dar poder e guiar constantemente nucomunidade dos sofrimentos de Cristo. Esta espiritualidade marcadapelo sofrimento torna-se luz e esperança na luta pelo novo mundo noqual vai habitar a justiça e a paz de Deus. Trata-se de uma espiritua-!idade - de uma vida no espírito, que é doadora e sustentadora devida ... " The Ecumenical Review, v. 29, n. 4, outubro de 1977, p.363-365.

15. Essa é a linha de desenvolvimento definida pela Comissão de Desenvol-vimento do Conselho de Igrejas na Indonésia, e em diversas igrejase grupos cristãos na América Latina, com o apoio da CCPD do Con-selho Mundial de Igrejas (CCPD: Commission on the Churches' Parti-cipation in Development).

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CARTA ÀS IGREJASdos colaboradores deste livro

Graça a vós e paz em nosso Senhor Jesus Cristo.

As páginas deste livro refletem a experiência de número cadavez maior de congregações e grupos cristãos de diferentes partesdo mundo. Expressam pesar, mas também esperança; denunciama injustiça mas ao mesmo tempo ecoam os esforços dos que sus-piram pela vinda do Reino de Deus. Têm por objetivo, até mesmoalém do que expressam, procurar prestar contas da obra cons-tante e transformadora do Espírito de Deus na Igreja e na socie-dade. Em outras palavras, não representam meros resultados deteoria, mas principalmente da prática da fé enraizada entre ospobres da terra. Essa fé está impelindo grupos de gente pobrepara a Igreja de Jesus Cristo, que foi, ele mesmo, pobre entrenós. Desejamos por meio destas páginas, em nome dos própriospobres, convidar as igrejas e o Conselho Mundial de Igrejas a par-ticipar profundamente nessa experiência transformadora de se tor-nar Igreja dos pobres, solidária com eles, lutando com eles, esentindo com eles as mesmas tristezas, esperanças e alegrias.

Nós, que nos reunimos sob a inspiração desse compromissocom os pobres, em Ayia Napa, Chipre, para refletir sobre as im-plicações deste processo prático de transformação da comunidadecristã, desejamos convidar-vos a viver essa experiência renova-dora pelo poder do Espírito de Deus. Trata-se, para nós, de coisamaravilhosa testemunhar o processo (fomos tomados por ele e fa-zemos parte dele) no qual o povo de Deus vai sendo moldadoe formado a partir da massa dos. deserdados de nossa época. Comisso, participamos nesse movimento que fortalece os fracos, dávoz aos que não conseguem ser ouvidos, e ajuda o desenvolvi-mento da fé entre os que, segundo a lógica dos poderosos destemundo, jamais teriam o direito de esperar. Experimentamos a ri-queza do que vivemos juntos, a esperança que cresce em nós, anecessidade urgente da cessação da injustiça e da extensão da

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libertação dos oprimidos, semelhante à alegria dos primeiros cris-tãos quando receberam o Espírito Santo: essas coisas precisamser participadas pelos que, como nós, acreditam em Jesus Cristo.

Este convite para participar nas lutas e esperanças da Igrejados pobres nada tem de triunfalista. Assim como Jesus Cristo emsua pobreza teve a cruz preparada para si, assim a Igreja dospobres não pode. esperar por outro destino, especialmente se per-manecer fiel a ele: "Porque dei o exemplo, para que façam o queeu fiz. Eu afirmo que o empregado não é superior ao patrão, nemo mensageiro mais importante do que aquele que o enviou. Agoravocês conhecem esta verdade e, se a praticarem, serão felizes"(Jo 13.15-17). Vai neste convite o desejo de que a comunidadecristã se enriqueça com a vida dos pobres de hoje, entre os quais,disse Jesus, seria possível serví-lo ocultamente. Não se trata deconvite ao exercício do poder deste mundo, mas ao serviço hu-milde aos mais humildes da terra.

A experiência de nossas irmãs e irmãos que já fizeram estaescolha servem de base para a expressão nova em nosso tempode uma igreja de discípulos, isto é, de pessoas dispostas a seguiraté o fim o caminho seguido por Jesus. Entre os necessitados esilenciosos do mundo, começa a surgir uma koinonia dos pobres,que não apenas faz circular entre eles o pouco que têm, mas emparticular os reune nas esperanças e lutas às quais o Espírito deDeus lhes move, na medida em que lhes abre caminhos no meioda História - com terríveis sofrimentos e dores inimagináveis -na direção da plena manifestação da nova humanidade.

Neste sentido, a Igreja dos pobres é a que afirma, talvezcom maior vigor do que qualquer outro tipo de comunidade cristã,a dimensão da esperança da nossa fé. Há coisas que não pode-mos esperar "realisticamente" pela razão, mas que, não obstante,são desejadas e profundamente necessárias; entre elas está a jus-tiça para milhões de miseráveis. Ora, essa esperança está sendofirmemente mantida na Igreja dos pobres. Os membros dessa Igrejapagam alto preç'à por ela. Há coisas dificilmente vislumbradas que,no entanto, começam aos poucos a tomar corpo, como resultadoda participação dos pobres na história: por exemplo, o surgimentode sociedades realmente participatórias. Os pobres não vão renun-ciar seus direitos, não importando a extensão da caminhada. Asigrejas na Coréia do Sul, no Chile, na África do Sul, no Brasil,nas Filipinas e em tantos outros lugares, tanto no Ocidente comono Oriente, no Norte como no Sul, vivem dessa esperança e dessaação demonstrativa dos pobres como sendo suas. Em todos esseslugares a fé é manifestada realmente, que, segundo o autor daEpístola aos Hebreus, "é a certeza de que vamos receber as coi-

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sas que esperamos, e a certeza de que existem as coisas que nãovemos" (Hb 11.1),

Com isso a Igreja dos pobres torna-se comunidade abertapara o futuro: trata-se do povo de Deus atento à manifestação doReino e perseverante na busca da justiça. Não se volta apenaspara o passado; naturalmente, é nutrida pela memória dos atospoderosos de Deus na história, mas seu olhar se fixa no cumpri-mento do Reino de Deus quando haverá um novo céu e umanova terra, a nova Jerusalém sem as lágrimas dos explorados nema cobiça dos exploradores, onde a justiça fluirá como as torrentesque descem das montanhas. Alguns dirão que se trata de utopia.O mesmo termo terá sido aplicado, sem dúvida, à idéia da res-surreição de Jesus pelos que o condenaram a morte ou pelos queo mataram. Não teria sido o crescimento da Igreja consideradoutópico na véspera de Pentecoste? Não, essas afirmações não sãoutópicas. São afirmações dos pobres que entram para a Igreja eque em sua prática diária de fé mostram que elas têm substânciahistórica. Não são idéias vazias nem palavras sem sentido; ex-pressam a fé professada pela comunidade que nada tem a perdere, ao mesmo tempo, tem tudo para esperar. E vive dessa espe-rança e da luta pelo que espera. Por meio de seus sofrimentosela se fortalece como Igreja dos pobres.

Essa comunidade demonstra, na pobreza, enorme atividademissionária. Nem poderia ser de outra maneira quando nos lem-bramos de que está partilhando algo de muito valor, capaz de darsentido à vida pessoal e social. A existência seria vazia se nãohouvesse esse dom de Deus - a esperança que não deixa osseres humanos, especialmente os pobres, ser derrotados pela mortee pela destruição às quais parecem destinados pelos agentes doLeviatã que obstrui as manifestações da justiça prometida por Je-sus a todos os povos da terra; seria vazia, não obstante estar en-tupida de bens materiais, pois bem sabemos que quando a von-tade da posse nos domina acabamos sendo possuidos pelas coisas.A Igreja dos pobres, como Pedro e João diante do paralítico nosportões do templo, não tem prata nem ouro para dar. Em lugardisso, em nome de Jesus de Nazaré pode declarar aos destituídosda terra: "Levanta-te e anda! Vamos! Vamos para a frente! Nãonos deixemos vencer pelas forças controladoras do mercado, nempelas agências multinacionais, promotoras da injustiça, nem aindapor esse comércio mortífero que ajuda a violar os direitos dospovos!" A missão de compartilhar o poder de Jesus, e o amorque Deus ofereceu plenamente à humanidade em Jesus Cristo, é,de fato, a mensagem das boas novas; é o Evangelho. E são os po-bres os que estão sendo evangelizados! Maravilhosa experiência

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essa que está vivificando a Igreja e transformando a massa dis-forme dos deserdados de nosso mundo numa comunidade de sig-nificado histórico.

É, também, comunidade diaconal, que humildemente e comprofundo amor serve aos semelhantes. Os pobres vêm sofrendo porséculos. as injustiças impostas a eles pelos poderosos. Seu serviçoé vicário, dando-lhes força não apenas para sofrer mas tambémpara querer mudar a situação. A Igreja dos pobres trabalha labo-riosamente em muitos lugares com a finalidade de fazer dos infe-lizes seres realmente humanos, pelo menos enquanto permanecemreunidos em comunidade. Aí, os tímidos superam as inibições, osoprimidos sentem-se mais livres, os explorados encontram umacomunidade de iguais, e os que sentem o terrível ódio do mundodominado pela lei do mercado passam pela experiência viva doamor e da comunhão na graça de Deus. Não se trata de um ser-viço capaz de ser contado que nem dinheiro; é o serviço dos"menos do que humanos", destinados a se tornar realmente hu-manos (homens e mulheres) crescendo "segundo a medida da es-tatura da plenitude de Cristo". Este: serviço não consta nas listasde projetos das agências. Está além delas. Não resulta da meracaridade, mas de profunda solidariedade. É o que se manifestouem Jesus Cristo, que "sempre teve a mesma natureza de Deus,mas não insistiu em ser igual a Deus. Ao contrário, pela sua pró-pria vontade abandonou tudo o que tinha, e tomou a naturezade servo. Ele se tornou semelhante ao homem, e apareceu na se-melhança humana. Ele se rebaixou, andando nos caminhos daobediência até à morte - e morte de cruz" (Fp 2.6-8).

Temos consciência do preço a ser pago para que se concretizeesta Igreja dos pobres. Essa' consciência vem da experiência con-creta de irmãos e irmãs totalmente comprometidos com a tarefa.Criam comunidades confessantes, sempre em movimento; hoje,consolando as vítimas da opressão e da tortura; amanhã, talvez,confrontando-se com poderes econômicos que não pagam os salá-rios dos trabalhadores adequadamente; no dia seguinte, quemsabe, provavelmente lutando pelos direitos dos camponeses, for-çados, em geral, a emigrar porque os mecanismos baseados .na leido mercado lhes obriga a permanecer para sempre na pobreza.Esta Igreja, a Igreja dos pobres, não serve aos interesses dos po-derosos. Com Ana e Maria canta que o Senhor "depôs dos tronosos poderosos e exaltou os humildes" alimentando os famintos comboas coisas e despedindo os ricos vazios (CL 1 Sm 2.1-10; Lc1.47-55). Não se trata da Igreja devotada a odiar os poderosos ericos; a Igreja de Jesus Cristo não pode odiar ninguém. Contudo,trata-se da comunidade que denuncia os males gerados pelo

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acúmulo irresponsável de riqueza, o egoísmo, e 'a cobiça pela pro-priedade e pelo poder.

Neste sentido a Igreja dos pobres é comunidade profética:expressa a voz do Senhor em nosso tempo, conclamando os ricosa mudarem de vida, fraternalmente e não se auto-idolatrando.Quando os ricos e os poderosos se encontram com os pobres, tor-nam-se mais claramente conscientes das desigualdades sociais, dasinjustiças responsáveis pelas estruturas que possibilitam sua ri-queza, da opressão destinada a defender a ordem estabelecidana qual a maior parte das pessoas não consegue ser humana eonde as minorias não são respeitadas. Esse tipo de consciênciaenvolve o desafio à mudança, porque a condenação da situaçãoaí implícita não pode ser ignorada pelos que se preocupam real-mente pelos miseráveis deste mundo e se sentem responsáveis poreles. A Igreja dos pobres apela ao coração e à mente dos pode-rosos para que se transformem: "Você ainda precisa de uma coisa.Venda tudo o que tem e dê o dinheiro aos pobres" (Lc 18.22).Fazer uma coisa dessas é impossível à mera vontade dos sereshumanos, mas não é impossível para Deus. Eis aí novamente oanúncio das boas novas, a voz do Evangelho, vindo até nós pormeio dos próprios pobres.

Os pobres de nosso tempo exigem mudança e anunciam onovo mundo do Reino de Deus e sua justiça. É testemunho dissosua oposição - nem sempre clara, é verdade, e infelizmente nemsempre unânime, mas assim mesmo oposição, não encontrada, emgeral, entre os ricos e poderosos - à ordem social injusta, àsrelações tendentes a negar que o homem tenha sido criado à ima-gem e semelhança de Deus. Essa oposição expressa-se, algumasvezes, na luta contra "os governos, as autoridades e os poderesdo universo, desta época de escuridão" (Ef 6.12), provendo, emmuitos casos, correções necessárias para possibilitar avanços emjustiça e libertação humana. A Igreja dos pobres é a comunidadeprofética em ação, quase sempre silenciosa, mas pagando com osangue de. novos mártires pelo crescimento da vida da Igreja.

É a esta Igreja que nós estendemos a vós o convite. Convi-damo-vos à experiência viva de dar prioridade aos pobres, nãoapenas por meio de programas de serviço mas da própria evange-lização, para aprender com eles, viajar com eles, imaginar progra-mas e projetos religiosos a partir de seu lado da história, impli-cando fazer essas coisas com eles, de tal maneira que sejam elesos autores dos projetos e dos programas em lugar de projetos eprogramas feitos por nós para eles. Trata-se da Igreja de Cristo,mãe e irmãos é que os pobres encontram nessa Igreja a presençaà qual todos nós queremos ser fiéis. A experiência de nossas ir-

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mãs e irmãos é que os pobres encontram nessa Igreja a presençadaquele que foi conhecido como Emanuel: Deus conosco. Ospobres, como tais, com sua identidade, classe social e integridadepessoal, encontram aí a comunidade que em atos, e na prática dafé, manifesta Jesus Cristo. Graças a Deus, são manifestações daigreja transformada que assume o espírito dos pobres, cujos mem-bros com os corações dos pobres, participam em suas aspirações,lutas e expectativas.

Convidamo-vos a esta comunidade vicária posta ao lado dossofredores deste mundo para transformar esse sofrimento em mo-tivo de esperança. Na verdade, para encontrar Jesus Cristo. Ouan-do? Como? Quando dermos comida aos famintos e bebida aossedentos, quando vestirmos os despidos, recebermos com alegria osestrangeiros, cuidarmos dos doentes e libertarmos os prisioneiros.Quando fizermos essas coisas sem qualquer outro motivo a nãoser pelo amor. Então, como já está acontecendo no Mato Grosso,no Alabama, em Seul ou Beirute, Santiago, Berlim ou Lusaka, domeio do desespero, mas com claridade cada vez maior, a face deJesus Cristo começará a aparecer-no meio das instituições doPovo de Deus .

Irmãos, irmãs, igrejas amadas, nós vos convidamos a esta pro-funda experiência de fé. Fazêrno-lo em nome de Cristo que foipobre, a partir de seu amor, e no poder do Espírito que é o po-der dos sem poder e a força dos fracos e humildes. Os pobres vosesperam e, entre eles, o próprio Jesus.

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Apêndice

PARTICIPARAM NOS ESTUDOS PREPARATORIOSPARA A ELABORAÇÃO DESTE LIVRO ASSEGUINTES PESSOAS(reunidas em Ayia Napa, Chipre):

Rev. ALFRED BAYIGA (Conselho Mundial de Igrejas)

Rev. WALTHER BINDEMANN (Rep. Democrática Alemã)

Dr. COEN M. BOERMA (Holanda)

Sr. JOHN BROWN JR. (Estados Unidos)

Dr. LEE BRUMMEL (Argentina)

Sr. ALE X DEVASUNDARAM (India)Sr. JEAN-MARC EKOH (Gabão)

,," Dr. FRANZ J. HINKELAMMERT (Costa Rica)I"

Rev. MAKRAM KAZAH (Algeria)

Dr. WILLIAM KENNEDY (Estados Unidos)

Sr. GEORGE NINAM (India)Sr. JETHER P. RAMALHO (Brasil)

Rev. JAMES SOMERVILLE (Estados Unidos)

Dr. NYA KWIAWON TARYOR (Libéria)

Dr. JOACHIM WIETZKE (Rep. Federal da Alemanha)

Prof. NIKOLAI ZABOLOTSKI (Conselho Mundial de Igrejas) -e

Dr. JULIO DE SANTA ANA (Conselho Mundial de Igrejas)

Sra. ERNA HALLER (Conselho Mundial de Igrejas)

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