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Revista Brasileira de Estudos Políticos | Belo Horizonte | n. 102 | pp. 101-137 | jan./jun. 2011 A ideia central do positivismo jurídico 1 e very idea of legal positivism Stanley L. Paulson 2 Resumo: No passado recente, a distinção entre o jus- positivismo inclusivo e o exclusivo foi vista como uma controvérsia importante no âmbito dessa corrente. Eu sustento que uma distinção mais fundamental se encontra em outra seara, qual seja, na distinção entre o positivismo como naturalismo e o positivismo sem o naturalismo. No primeiro campo, do positivismo 1 Tradução de Thomas da Rosa de Bustamante. Revisão técnica de Andityas Soares de Moura Costa Matos. 2 Stanley L. Paulson é Doutor em Filosofia pela Universidade de Wisconsin- Madison (Estados Unidos da América) e em Direito pela Universidade de Harvard (Estados Unidos da América). Doutor honoris causa pelas Univer- sidades de Uppsala (Suécia) e Kiel (Alemanha). Professor de Direito e de Filosofia na Universidade de Washington (Estados Unidos da América). Professor Convidado na Universidade de Kiel e Professor Associado “John Fleming” de Direito na Universidade Nacional da Austrália. Em 2003 a Fun- dação Alexander von Humboldt (Alemanha) concedeu-lhe seu tradicional prêmio de pesquisa destinado a estudiosos estrangeiros de humanidades internacionalmente reconhecidos. Atualmente trabalha em uma monografia sobre a Filosofia do Direito de Hans Kelsen a ser publicada pela Oxford. Entre seus vários livros, artigos e traduções de textos Kelsen destacam-se Hard cases in wicked legal systems: south african law in the perspective of legal philosophy (Oxford, Clarendon, 1991), Legality and legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar (Oxford, Clarendon, 1997), Judging the judges, judging ourselves: truth, reconciliation and the apartheid legal order (Oxford, Hart, 1998), The constitution of law: legality in a time of emergency (Cambridge, Cambridge University, 2006) e Hard cases in wicked legal systems:

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Revista Brasileira de Estudos Políticos | Belo Horizonte | n. 102 | pp. 101-137 | jan./jun. 2011

A ideia central do positivismo jurídico1

The very idea of legal positivism

Stanley L. Paulson2

Resumo: No passado recente, a distinção entre o jus-positivismo inclusivo e o exclusivo foi vista como uma controvérsia importante no âmbito dessa corrente. Eu sustento que uma distinção mais fundamental se encontra em outra seara, qual seja, na distinção entre o positivismo como naturalismo e o positivismo sem o naturalismo. No primeiro campo, do positivismo

1 Tradução de Thomas da Rosa de Bustamante. Revisão técnica de Andityas Soares de Moura Costa Matos.

2 StanleyL.PaulsonéDoutoremFilosofiapelaUniversidadedeWisconsin-Madison(EstadosUnidosdaAmérica)eemDireitopelaUniversidadedeHarvard(EstadosUnidosdaAmérica).Doutorhonoris causapelasUniver-sidadesdeUppsala(Suécia)eKiel(Alemanha).ProfessordeDireitoedeFilosofianaUniversidadedeWashington(EstadosUnidosdaAmérica).ProfessorConvidadonaUniversidadedeKieleProfessorAssociado“JohnFleming”deDireitonaUniversidadeNacionaldaAustrália.Em2003aFun-daçãoAlexandervonHumboldt(Alemanha)concedeu-lheseutradicionalprêmiodepesquisadestinadoaestudiososestrangeirosdehumanidadesinternacionalmentereconhecidos.AtualmentetrabalhaemumamonografiasobreaFilosofiadoDireitodeHansKelsenaserpublicadapelaOxford.Entreseusvárioslivros,artigosetraduçõesdetextosKelsendestacam-seHard cases in wicked legal systems: south african law in the perspective of legal philosophy (Oxford,Clarendon,1991), Legality and legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar (Oxford,Clarendon,1997),Judging the judges, judging ourselves: truth, reconciliation and the apartheid legal order (Oxford,Hart,1998),The constitution of law: legality in a time of emergency (Cambridge,CambridgeUniversity,2006)eHard cases in wicked legal systems:

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comonaturalismo,JohnAustinaduzqueareduçãoao fato (hábito,medo) é suficientepara explicarosmateriais tipicamente jurídico-normativos; sendo as-sim,nenhumarelaçãonão-contingenteentreodireitoeamoralénecessária.IssosignificaqueocelebradoprincípiodaseparaçãodeH.L.A.Hart,longedeseencontrarnonúcleodopositivismo, é coroláriodeumadoutrinafundamental:onaturalismo.HansKel-sen é o proponente do positivismo sem o naturalismo. ApesardeKelsenobviamentedefenderoprincípioda separação, sua posição representa uma rejeição completadonaturalismo,que,comoeleinsiste,estámaldirecionado.Kelsen acreditapoder explicar anormatividade no âmbito do positivismo. Ele não constroi sua tese da normatividade como uma resposta àquestãolongamenteprestigiadadecomoaobedi-ênciaaodireitopodeserjustificada.Aocontrário,atesedanormatividadedeKelsenémelhorentendidacomoonúcleodoseuargumentocontraopositivismoenquanto naturalismo.

Palavras-chave: Positivismo. Naturalismo. Tese da separação. Normatividade e Moralidade. Austin, HarteKelsen.Abstract:Intherecent past, the distinction between inclusive and exclusive legal positivismhas beentoutedastheimportantcontroversyinthefield.Iar-guethatamorefundamentaldistinctionlieselsewhere– the distinction between positivism qua naturalism andpositivismwithoutnaturalism.Inthefirstcamp,positivism quanaturalism,JohnAustinarguesthatthe

pathologies of legality (Oxford,OxfordUniversity,2010),assimcomoaobracoletiva Normativity and norms: critical perspectives on kelsenian themes (Ox-ford,Clarendon,2007).PublicounoBrasiloartigoA reconstrução radical da norma jurídica de Hans Kelsen. Trad. Andityas Soares de Moura Costa Matos eOséiasSilasFerraz.In:MATOS,AndityasSoaresdeMouraCosta;SAN-TOSNETO,ArnaldoBastos(coords.).Contra o absoluto: perspectivas críticas, políticas e filosóficas da obra de Hans Kelsen.Curitiba:Juruá,pp.285-295,2011.

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reductiontofact(habit,fear)issufficienttoexplainthe ostensibly normative material of the law, and if thisisso,nonon-contingentlinkbetweenthelawandmorality can be necessary. This is to say that H. L. A. Hart’scelebratedseparationprinciple,farfromlyingattheverycoreoflegalpositivism,isacorollaryofthe fundamentaldoctrine,naturalism.HansKelsenis the proponent of positivism without naturalism. WhileKelsenofcoursedefendstheseparationprin-ciple, his position represents a wholesale rejection of naturalism,which,heinsists,iswrong-headed.Kelsenbelieves that he can explicate normativity within positivism. He does not offer his normativity thesis as an answer to the time-honoured question of how obediencetolawmightbejustified.Rather,Kelsen’snormativity thesis is properly seen as the core of his argumentagainstlegalpositivismqua naturalism.

Key-words: Positivism. Naturalism. Separation princi-ple. Normativity and morality. Austin,HarteKelsen.

Introdução

Muitonasdiscussões recentes sobre opositivismojurídicosugerequeacontrovérsiarelativaatalnoçãogiraem torno da distinção entre o positivismo inclusivo e o po-sitivismo exclusivo3.Comopontodepartidaparadistinguí-los, o princípio da separação é útil4.Noseunívelmaisgeral,

3 Umadiscussão excelente, naqualmuitos argumentos são esgrimidos,seencontraemKennethEinarHimma, Inclusive Legal Positivism em The Oxford Handbook of Jurisprudence and Legal Philosophy,ed.JulesColemanet al. (Oxford:OxfordUniversity,2002),pp.125-65.VertambémasasserçõesdetalhadasemMatthewH.Kramer,In Defense of Legal Positivism(Oxford:OxfordUniversity,1999);Kramer,Where Law and Morality Meet(Oxford:OxfordUniversity,2004).

4 H. L. A. Hart, Positivism and the Separation of Law and Morals, Harvard Law Review,71(1957-8),pp.593-629,reimpressoemHart,Essays in Jurisprudence and Philosophy(Oxford:Clarendon,1983),pp.49-87.

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oprincípioda separação – comoKennethEinarHimmaapontacomprecisão–nega“queháumasobreposiçãone-cessária”entreodireitoeamoral5.Oprincípiodaseparaçãovale, portanto, como o oposto do princípio da moralidade, segundooqualháuma“sobreposiçãonecessária”entreodireito e a moral, qualquer que seja a forma como ela possa ser explicada6.Osignificadodessanegativapositivistadoprincípio da moralidade pode ser precisado, como sabemos, ao se apelar para a distinção entre o positivismo inclusivo e oexclusivo.Opositivismoinclusivodeixaemabertoapos-sibilidade de que em dado sistema jurídico haja ou não uma sobreposiçãonecessáriaentreodireitoeamoral,aopassoque o positivismo exclusivo não reconhece a possibilidade dessasobreposiçãonecessária7.Novamente–dessaveznaspalavrasdeMatthelH.Kramer–“aseparabilidade entre o âmbito jurídico e o âmbito moral, diferentemente de sua separação inelutável, éumacondiçãoque [o juspositivistainclusivo]procuraestabelecer”8.

5 Himma,Inclusive Legal Positivism,n.1,p.125.6 Apretendida“sobreposiçãonecessária”entreodireitoeamoraléentendida

de muitas maneiras diferentes, como ilustrado por exemplos proeminentes na literatura recente. Ver,porexemplo,GustavRadbruch,Statutory Lawless-ness and Supra-Statutory Law(originalde1946),trad.BonnieLitschewskiPaulson e Stanley L. Paulson, Oxford Journal of Legal Studies,26(2006),pp.1-11;JohnFinnis,Natural Law and Natural Rights(Oxford:Clarendon,1980),2.ed.(Oxford:OxfordUniversity,2011);Finnis,Philosophy of Law (Collected Essays,vol.IV)(Oxford:OxfordUniversity,2011);RobertAlexy,The Argu-ment from Injustice(originalde1992),trad.BonnieLitschewskiPaulsoneStanleyL.Paulson(Oxford:Clarendon,2002);LonL.Fuller,The Forms and Limits of Adjudication, Harvard Law Review,92(1978-9),pp.353-409,reim-pressocomomissõesemFuller,The Principles of Social Order,ed.KennethWinston,2.ed.(Oxford:HartPublishing,2001),pp.101-39.

7 Cf.JosephRaz,The Authority of Law(Oxford:Clarendon,1979);Raz,Ethics in the Public Domain(Oxford:Clarendon,1994),pp.210-27et passim.

8 Kramer,In Defense of Legal Positivismn.1,p.114,itáliconosso.

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Pode-sechegaraumaperspectivamaisamplaaoseconsiderar não apenas o positivismo inclusivo e o exclusivo, mas também o não-positivismo, representado pela defesa do princípio da moralidade.9Segundotalcorrente,novamente,háumasobreposiçãonecessáriaentreodireitoemoral.Estáclaroquequalquerdessasduasoutrêsvisõesseencontraem uma relação de contrariedade10. Por exemplo, as teses de abertura que dão expressão ao não positivismo e ao positi-vismo jurídico inclusivo não podem ser ambas verdadeiras, mas elas podem muito bem ser ambas falsas, quando então a tese de abertura defendida pelo positivismo jurídico ex-clusivo seria verdadeira.

Pode-sedizeroquesequisersobreadisputaentreopositivismo inclusivo e opositivismoexclusivo–algunsde-fendemessadistinção,enquantooutrosnegamopositivismoinclusivo desde o início11.Euprefiro,dequalquermodo,sustentar que uma distinção mais fundamental dentro do âmbito do positivismo pode ser encontrada em outro âmbito. A distinção que tenho em mente é aquela entre o positivis-

9 Anomenclatura“não-positivismojurídico”éadequadaparasugerirumaleituragenéricado termo,demodoqueopositivismo jurídicoeonão-positivismojurídicocobremtodoocampodediscussões.Querdizer,naleituragenéricao“positivismo jurídico”eo“não-positivismo jurídico”podem corretamente ser lidos como contraditórios. Para uma enunciação esclarecedoradeváriasteoriasjurídicas,agrupadassobasrubricas“posi-tivismo”e“não-positivismo”,verAlexanderP.d’Entrèves,TwoQuestionsaboutLawemExistenzundOrdnung.FestschriftfürErikWolfzum60.Geburtstag, ed.ThomasWürtenberger et al. (Frankfurt:Klostermann,1962),pp.309-20,reimpressoemd’Entrèves,NaturalLaw,2.ed.(London:Hutchinson,1970),pp.173-84.

10 VerRobertAlexy,On the Concept and the Nature of Law, Ratio Juris,21(2008),pp.281-99epp.285-7.

11 Para críticas, cf., por exemplo, Stefano Bertea, A Critique of Inclusive-Positivism, Archiv für Rechts-und Sozialphilosophie,93(2007),pp.67-81;ScottShapiro, Law, Morality, and the Guidance of Conduct, Legal Theory,6(2000),pp.127-70.KramerrespondeaShapiroemWhere Law and Morality Meet (n. 1),pp.45-75.

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mojurídicocomonaturalismo(oupositivismonaturalista)e o positivismo jurídico sem o naturalismo (ou positivismo não-naturalista).Mesmoconsiderandoque,porrazõesins-titucionais, o positivismo jurídico tenha sido amplamente discutidoemumvácuo,permaneceumapresunçãodequeháligaçõesentreopositivismojurídicoeo“positivismoemsentidoamplo”quesesituaemumatradiçãofilosóficamaisabrangente–ou,comoseriaafirmadoemcírculosfilosóficosmaisrecentes,dequeháligaçõesentreopositivismojurídicoeonaturalismo.Dequetipodeligaçõesestamosfalando?Ofereçoumarespostanasprimeirasduaspartesdesteensaio.Naparteum,concentro-menaFilosofiadoDireitodeJohnAustinesustentoqueelarefleteumarubricafilosóficamaisampla,opositivismoemsentidoamploou–segundominhaterminologia –naturalismo. Jánapartedoisdo trabalho,considero e defendo a minha asserção de que o naturalismo pode ser substituído pelo positivismo em sentido amplo.

Especificamente, naparteumdo artigoduas tesessãodeespecialinteresse,sendoasegundaumaderivaçãoda primeira. Minha primeira tese é de que o naturalismo deAustin – sua redução, emduas junções,de conceitostipicamentejurídico-normativosaquestõesdefato(sabida-mente,ohábitoeomedo)–é,comoelesustenta,suficientepara completar suaasserção sobreanaturezadodireito.Minhasegundatese,quedefluidaprimeira,éaseguinte:seapassagemdequestõesdefatoaquestõesjurídicas,emAustin,ésuficienteparaexplicaranaturezadodireito,entãonenhumatesequedigarespeitoaligaçõesnão-contingentesentreamoraleodireitopodesertidacomonecessáriaparaexplicaranaturezadodireito.Consideradasemconjunto,essasduastesesconstituemumargumentogenuinamentesignificativo,comoeugostariadecrer.Querdizer,seessasduastesesforemdefatocorretaseseafilosofiajurídicadeAustin é representativa do positivismo jurídico tradicional,

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então o festejado princípio da separação não desempenha, na realidade, a função mais importante nos círculos do po-sitivismojurídico.Pelocontrário,oprincípiodaseparaçãoésimplesmenteocoroláriodonaturalismo,queéavisãopredominante.

Na parte dois do ensaio, considero a substituição do naturalismo pelo positivismo em sentido amplo. Ao pensar inicialmente sobre como dividir as espécies de positivis-mo jurídico, presumi que iria considerar o positivismo em sentidoamplo comoomaior cenáriofilosóficoemqueopositivismojurídicopodeencontrarseulugar.Noentanto,umaanálisedaliteraturamefezabandonaressaideia.Defato, falar do positivismo em sentido amplo poderia ser apropriado se euestivessedirigindominhasobservaçõesaosdesenvolvimentosdafilosofianametadedo séculoXIX,porexemplo.Naquelemomento,oconsensohegelianoanteriormente existente na Europa havia sido completa-mente substituídopelopositivismocientífico.Penso,porexemplo,emHermannvonHelmholtz,conhecidoporseutrabalhopioneironaFísicaenaFisiologia,assimcomoemseusesforçosparaajustarateoriadoconhecimentodeKantaumalinguagemmoderna,ouseja,positivista12. Tudo isso nametadedoséculoXIX13.Poroutrolado,“positivismo”éumtermoquevemsendomotivodeabusonoscírculosfilo-

12 Ver,porexemplo,HermannvonHelmholtz,Über das Sehen des Menschen (conferênciaemKönigsbergem1855),emHelmholtz,Vorträge und Reden, 4.reimpressão,2vols(Braunschweig:FriedrichVieweg,1896),vol.1,pp.85-117.

13 HelmutHolzheyofereceuma caracterização tripartitedopositivismofilosóficonametadedoséculo:primeiramente,oconhecimentoderivadodasciênciaséprivilegiado,enquantoaspretensõesdofilósofoacercadoconhecimento sãoquestionadas; emsegundo lugar,o conhecimentodarealidade (Wirklichkeitserkenntnis)érestritoaoquepodeserderivadodaexperiênciasensorial;e,emterceirolugar,opensamentoéentendidoape-nasemtermosdefunção“subjetiva”dainterpretação,juntamentecoma

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sóficosdehoje.JürgenHabermasescrevequeopositivismonafilosofiaprocedede“pressuposiçõescientificistas”14, e BernardWilliamsescreveque“retornaraopositivismo”comoobjetivodeevitarainterpretaçãoé“umaofensacontraaveracidade”15.

Nonosso tempo, a visão que continua a gozardegrande receptividadenos círculosfilosóficos é onatura-lismo.WillardVanOrmanQuine,o “paidonaturalismocontemporâneo”, segundoumcomentarista16, entende o naturalismocomooapeloàs ciências.Onaturalismo,deacordocomQuine,assimilaaepistemologiaauma“psicolo-giaempírica”17.AvisãodeQuinenãoé,entretanto,aúnicaformadenaturalismo.OnaturalismoémaiordoqueQuine,graçasacimadetudoaoextraordináriopapelqueesteexer-ceu para alçar o naturalismo à sua forma contemporânea. A visãodeQuineéhojeumadasimportantescaracterizaçõesdo naturalismo, ao lado da de David Hume. Retornarei a Hume na parte dois deste ensaio.

Finalmente, na parte três do trabalho dedico-me ao positivismo sem o naturalismo (ou positivismo jurídico não-naturalista).AquiafiguradominanteéHansKelsen.Se,porumlado,Kelsenestáobviamentedefendendooprincípio

ordenação dos elementos da experiência sensorial. HelmutHolzhey,Der NeukantianismusemHelmutHolzheyeWolfgangRöd,Die Philosophie des ausgehenden 19. und des 20. Jahrhunderts [Teil] 2. Neukantianismus, Idealismus, Realismus, Phänomenologie(Munich:C.H.Beck,2004),p.30.

14 JürgenHabermas,Knowledge and Human Interests(originalde1968),trad.JeremyJ.Shapiro(Boston:Beacon,1971),p.88.

15 BernardWilliams,Truth and Truthfulness (Princeton: Princeton University, 2002),p.12.

16 Penelope Maddy, Second Philosophy. A Naturalistic Method(Oxford:OxfordUniversity,2007),p.4.Umaúnicafiguraimportantenafilosofiajurídicacontemporânea escreve expressis verbisnalinhadonaturalismodeQuine:Brian Leiter, Naturalizing Jurisprudence(Oxford:OxfordUniversity,2007).

17 Vernota33abaixo.

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da separação, sua posição, por outro lado, representa uma rejeição completa do naturalismo, que, como ele insiste, es-taria mal direcionado. Assim, a ideia de que o princípio da separaçãoénadamaisdoqueumcoroláriodonaturalismonão pode ser atribuída a ele.

Minhamaiortese,portanto,éadequeAustineKel-sen representam dois pólos dentro do positivismo jurídico: nomeadamente, o positivismo jurídico como naturalismo e o positivismo jurídico sem o naturalismo. A posição repre-sentadapelaempreitadacolossaldeKelsen18é,segundomeparece,peculiar.Poroutrolado,qualquerdospartidáriosdeoutras tradições jurídico-teóricaspode ser substituídoporJohnAustin,comopretendodemonstrarmaisadiante.

1. John AustinNão é acidental que a enunciação de Austin do prin-

cípio da separação é encontrada em uma nota de rodapé da Conferência V. Trata-se de uma nota de rodapé substan-cialmente extensa na qual Austin prepara cuidadosamente oterrenoparaumaréplicadirigidaaWilliamBlackstone:

SirWilliamBlackstons[…]dizemseusCommentaries que as leis deDeussãosuperioresemobrigatoriedadeatodasasleis...queasleis humanas não possuem qualquer validade se contrariam estas [....]Ora,elepodequererdizercomissoquetodasasleishumanasdevem se conformar com as leis divinas. Se for isso o que ele quer dizer,concordosemhesitação....MasosignificadodessapassagemdeBlackstone,seéqueelatemalgumsignificado,pareceser,aocontrário,oseguinte:quenenhumaleihumanaqueconlitacomodireitodivinoéobrigatóriaouvinculante;emoutrostermos,quenenhumaleihumanaqueentraemconflitocomodireitodivinoé uma lei [...].Ora,dizerqueleishumanasqueconflitamcomo

18 OeditordaobracompletadeHansKelsen,(Hans Kelsen Werke,Tübingen:MohrSiebeck,2007),MatthiasJestaedt,estimaqueKelsentenhapublicadoescritosquesomam17.500páginas.

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direito divino não são vinculantes, ou seja, que não são leis, é uma afirmaçãonitidamentesemsentido19.

Relegaraumanotaderodapéoquenós,sobainflu-ência de H. L. A. Hart, estamos acostumados a denominar deprincípiodaseparação, sugerequeopontocentraldaposiçãodeAustinsesituaemoutrolugar.Defato,naCon-ferência VIAustindevotaumagrandepartedesuaatençãoàreduçãodiretadadoutrinadasoberaniaaconcatenaçõesdenaturezafática.Suaslinhassobreohábitodeobediênciacertamente soam familiares:

Osuperiorqueé tidocomosoberano…édiferenciado...pelosseguintestraçosoucaracterísticas:1.Amaior parte de dada socie-dadeestáhabituada a obedecer ou a se submeter a um superior determinado e comum... [e] 2.Este específico indivíduo,ouesteespecíficogrupodeindivíduos,não está habituado a obedecer a um determinado superior humano20.

Paraevitarqueosignificadodoapeloànoçãode“há-bito”sejaperdido,Austinrepeteopontonumerosasvezesna Conferência VI21.

ComesteesquemasobreAustin,játemosaconstruçãodoargumentocentralquelheatribuo.Seoseurepertórioconceitualpodeserreconduzidoàdoutrinadasoberaniaeseasoberaniapodeserreconduzida,porsuavez,aconcate-naçõesdefato,então,segundoAustin,talésuficienteparaexplicar os materiais tipicamente jurídico-normativos. E se

19 JohnAustin,Lectures on Jurisprudence(originalde1863),5.ed.,2vols.,ed.RobertCampbell(London:JohnMurray,1885),vol.1,Lecture V,pp.214-15,ênfasenooriginal.Cf.tambémJohnAustin,The Province of Jurisprudence Determined(originalde1832),ed.H.L.A.Hart(London:WeidenfeldandNicolson,1954),Lecture V,pp.184-5,ênfasenooriginal.

20 Austin, Lectures(n.17),Lecture VI,p.220,ênfasenooriginal;Austin,Province (n.17),Lecture VI,pp.193-4.

21 Austin, Lectures(n.17),Lecture VI, v.g.pp.222,pp.223-4ep.227;Austin,Province(n.17),Lecture VI, e.g.,pp.195,pp.198-9epp.202-3.

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essareduçãodasoberaniaaquestõesfáticasfordefatosufi-ciente,então,porhipótese,nãoénecessárioqualquerapeloàmoralidade. Em outras palavras, Austin incorporou em sua reduçãoastesesdequenãopodehaveruma“sobreposiçãonecessária”entreodireitoeamoral.Enãohárazãoparao proponente de uma tal teoria prestar especial atenção ao princípio da separação, que em si mesmo não basta para construir uma doutrina independente em sua teoria.

AntesdeprosseguircomAustin,eugostariadefrisaraimportânciageraldoqueacabodeexpordesuateoria.Con-siderando a proeminência do princípio da separação como anoçãosubjacenteàmiríadededefesasanglo-americanasdopositivismojurídicoaolongodoúltimomeioséculo,suaausência – com uma única exceção importante – do vívido debateeuropeusobreopositivismo jurídicohácemanosatrásparece,aomenosàprimeiravista,desconcertante22. A explicaçãoimediata,noentanto,éesta.Umgrupodeteóricosdo direito europeus de fin de siècle,identificadosdemodogeralcomopositivistas,fezomesmotipodeconsideraçãoqueAustin. Ouseja,elessustentavamquefatosnaturaiseramsuficientesparaexplicarosmateriaisostensivamentejurídico-normativos,ejáqueamoralidadenãopode,por-tanto,sernecessária,elesnãotinhamoportunidadedefalarsobre tal tema. Em uma palavra, o movimento deles era naturalista.

UmaboailustraçãopodeserencontradanotrabalhodeGeorgJellinek,afiguramaisinfluentenaTeoriadoDireitoPúblico (Staatsrechtslehre) no continente europeuhá cemanos,traduzidonosseusdiasparaamaiorpartedaslínguaseuropéias.Emcertoscírculos,presume-sequeJellinekéum“normativista”,um“neokantiano”.Contudo,umolharmais

22 AexceçãoàregraéHansKelsen,cujaposiçãoeuanalisonaterceirapartedesteartigo.

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próximo de seus textos demonstra claramente que na dou-trinafestejadadeJellinek“aforçanormativadofático”ficareduzida,semmaioresressalvas,aquestõesfisiológicasoupsicológicas.EtalreduçãoéumacriaçãodopróprioJellinek.Segundoafirma,o“significadonormativo”dofáticosereduzsimplesmenteanossatendênciafisiológicaoupsicológicaparareproduzir,emnossasmentes,aquiloaqueestamosacostumados23.TalteseestámaispróximodeHumedoquedequalquercoisanoâmbitodoneokantismo.

Novamente, minha tese é de que o naturalismo de Austin–aultrapassagemdosmateriaistipicamentejurídico-normativosparaconcatenaçõesdefato–constitui-secomomoedacorrenteparaospositivistasemgeral.Aindaquemi-nhatesepareçaóbvia–eeuficariamuitosatisfeitoseassimfosse –, ela é raramente aceita. Por exemplo, no seu festejado ensaio Positivism and the Separation of Law and Morals24 e no-vamente em seu livro The Concept of Law25, Hart enumera cinco doutrinas diferentes sob a rubrica do positivismo jurídico –comando,separação,análise,decisãojudicialcomodedu-çãológicaenão-cognitivismo.Eleatribuiastrêsprimeiras

23 Jellinekescreve:“Buscarabasedaforçanormativadofáticoemsuarazoa-bilidadeconscienteouinconscienteseriaumgraveerro.Ofáticopodeserracionalizadoposteriormente,mas sua importâncianormativa repousaemumapropriedadedotiponão-derivadadenossanatureza.Suaforçaéalgocomoqualjáestamosacostumados,sendofisiologicamenteepsicolo-gicamentemaisfácilreproduzirdoque[criar]algumacoisanova”.GeorgJellinek,Allgemeine Staatslehre, 2. ed. (Berlin:O.Häring,1905),p.330,3. ed. (1914),p.338.Areduçãoaofático,nessepontodotrabalhodeJellinek,ébem capturada por Michael Stolleis, Public Law in Germany 1800-1914 (ori-ginalde1992),trad.PamelaBiel(NewYorkandOxford:Berghahn,2001),pp.442-3.

24 VerHart,Positivism and the Separation of Law and Morals,n.2,pp.601-2,n.25,reimpressoemHart,Essays in Jurisprudence and Philosophy,n.2,pp.57-8,n.25.

25 VerH.L.A.Hart,The Concept of Law, 2. ed. (Oxford:Clarendon,1994),p.302,nanotapertencenteàp.185.

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aJeremyBenthameaAustin.Adoutrinaqueeuconsideroser fundamental – o naturalismo – não aparece na lista de Hartenãoéimplicadapornadaquenelafigure.

Dirijo-me novamente em direção a Austin, como prometido.Sustenteiacimaserpossívelreconduzirtodoorepertório conceitual de Austin à doutrina da soberania, a qualpodeserreduzidaaumencadeamentodefatos.UmargumentosimilarpodesersustentadoaoseconsideraradoutrinadeAustinsobreoscomandos,aqualestáimplícitana teoria da soberania26. A doutrina do comando, em uma leitura do tratado de Austin, pode ser entendida em termos de três componentes: a intenção do autor do comando para queumsujeitoaja(oudeixedeagir)emdeterminadosen-tido; a expressão, por parte do autor do comando, de sua intençãodirigidaaodestinatário,e–umaspectocentraldadoutrina – o poder do autor do comando para impor uma sanção caso os indivíduos sob sua direção deixem de cum-prir a diretiva27. Entretanto, o poder de impor uma sanção não deve ser entendido como uma propriedade do autor do comando.Comefeito,esteécaracterizadonateoriaaustinia-naemtermosdopoderdeimporsanções.Emtalhipótese,ele pode não deter este poder sobre o indivíduo particular emfacedequemeleemitesuadiretiva,comosedánocasode um comando putativo de um soberano em face de outro soberano.Opoderdeimporsançõesdeveserentendidoemoutros termos, ou seja, como uma relação entre o autor do comandoeodestinatáriodocomandoou,maisgeralmen-te, entre um superior e um inferior28.Austindáexpressão

26 VerAustin,Lectures(n.17),Lecture V , e.g.,p.177;Austin,Province(n.17),Lecture V, e.g.,p.132.

27 Austin, Lectures(n.17),Lecture I,p.91,vertambémp.89;Austin,Province (n.17),Lecture I,p.17,vertambémpp.13-14.

28 Austin, Lectures(n.17),Lecture I,pp.96-7;Austin,Province(n.17),Lecture I,pp.24-5.

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atalrelação–quepodemoschamarde“relaçãodepoder”–quandoescreve:“Otermosuperioridadesignificaforça.Trata-se do poder de afetar os demais com um mal ou uma doredeforçá-los,pormeiodomedo de tal mal, a ajustar sua condutaaodesejodoautordocomando”29.

Omedo,entendidocomofatobruto,éanoçãooperativaaqui,eoargumentoprocededamesmamaneiraantesvista.Seos“termoscorrelatos”deAustin–obrigaçãoesanção–foremreconduzíveisaoseucorrelato,ocomando30, e se o comandoforreconduzível,porsuavez,aencadeamentosde fatos–emparticular,aomedogeradonodestinatáriodocomando–,então,segundoAustin,talpassoésuficienteparaexplicaranaturezadosmateriaistipicamentejurídico-normativos31.Eseestepassoforsuficiente,entãopodeserquenenhumapeloàmoralidadesejanecessário.

É útil considerar, ainda que por apenas um momento, oconceitodemedo.Assimcomoninguémiriasustentarqueo desejo sexual é adquirido mediante o raciocínio ou como produto da experiência, também é este o caso no que se re-

29 Austin, Lectures(n.17),Lecture I,p.96,ênfaseadicionada.Cf.tambémp.90:“aquiloquenãoétemidonãoéapreendidocomoummal”;Austin,Province (n.19),Lecture I,p.24,ênfaseadicionada;cf.tambémp.16.

30 Sobrea“correlatividade”,verAustin,Lectures(n.17),Lecture I,pp.89,96;cf.tambémpp.91-2;Austin,Province(n.17),Lecture I, pp. 14, 24; cf. também pp.17-18.

31 ComonotadoporHart,Austinpossuiaindaumasegundainterpretaçãodocomando.Elasemostraemsuadefiniçãodeobrigação“comoa‘chancedeprobabilidade’dequealguémordenadoafazerouaseabsterdefazeralgosofraalgummalquandodadesobediência”.VerH.L.A.Hart,Analytical Jurisprudence in Mid-Twentieth Century: A Reply to Professor Bodenheimer, University of Pennsylvania Law Review,n.105(1956-7),pp.953-75ep.965;H. L. A. Hart, Legal and Moral Obligation em Essays in Moral Philosophy, ed. A.I.Melden(Seattle:UniversityofWashington,1958),pp.82-107epp.95-9;Hart, The Concept of Law,n.23,p.282notac.Para o próprio texto de Austin sobre“chanceouprobabilidade”,verAustin,Lectures(n.17),Lecture I, p. 90);Austin,Province(n.17),Lecture I, p.16.

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fere ao medo. A despeito do fato de que a experiência pode moldar nossas respostas em ambas as frentes, os fenômenos em si mesmos têm uma base independente da experiência32. Hume fala de um instinto natural. Tal menção a Hume me conduzàpartedoisdemeuensaio,queserefereàsubsti-tuição do naturalismo pelo positivismo em sentido amplo.

2. A substituição do naturalismo pelo positivis-mo em sentido amplo

Frisei na IntroduçãoqueQuine,emnomedonaturalis-mo,noslevaaapelarparaasciências.Assim,aepistemologiasetorna“PsicologiaEmpírica”33.Apesardehavergrandesdi-ferençasentreaempreitadanaturalistadeQuineeadeDavidHume,hátambémsemelhanças.Porexemplo,muitosvêemateoriadeHumesobreanaturezahumana,noLivroIIIdeA Treatise on Human Nature,comoumestudosobrePsicologiaMoral.SegundoumproeminenteintérpretedeHume,“emlargamedida,ateoriadeHumesobreanaturezahumananãoé,emnossavisão,filosófica,massimpsicológica”34.O

32 DevooexemploaH.O.Mounce,Hume’s Naturalism (London and New York:Routledge,1999),p.62.

33 “Aquestãoepistemológica éumaquestãodoâmbitoda ciência: [comohomens]conseguiramchegaràciênciaapartirdetãolimitadasinforma-ções.Nossoepistemologistacientíficobuscaresponderaessaindagação.[...]Semdúvida,evoluçãoeseleçãonaturalfiguramnessaexplicação,eeleirásesentirlivreparaaplicarafísicaseencontrarumcaminho”.W.V.O.Quine,Five Milestones of Empiricism (lecturede1975),emQuine,Theories and Things (Cambridge:HarvardUniversity,1981),pp.67-72.

34 Terence Penelhum, Hume’s Moral Psychology em Cambridge Companion to Hume, ed. DavidFateNorton(Cambridge:CambridgeUniversity,1993),pp.117-49ep.119.Penelhumnãoestásozinho.Cf.tambémJerryA.Fodor,Hume Variations(Oxford:Clarendon,2003),pp.1-27et passim,quesugereque o naturalismo de Hume antecipa o trabalho corrente no âmbito da ciênciacognitiva.

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famoso dictumdeHume–algunsiriamdizer“notório”–deque“arazãoé,edeveserapenas,aescravadaspaixões”,35 é maisútilquandovisualizadocomoumarespostaaopapelelevadodesempenhadopelarazãonasfilosofiasracionalistasda tradição cartesiana.36AtáticadeHumeédiametralmenteoposta. Ele olha para dentro:

Pense em qualquer ação que possa ser tida como viciada: homicídio doloso,porexemplo.Examine-aemtodasassuasluzesedigasevocê pode encontrar qualquer questão de fato, ou uma existência real, que pode ser chamada de vício. De qualquer modo que você enfrenteoproblema,encontraráapenascertaspaixões,motivos,vontadesepensamentos.Nãoháoutraquestãodefatonestecaso.Ovícioescapainteiramenteenquantovocêoconsidereenquantoobjeto.Vocênuncapodeencontrá-loatédirecionarsuareflexãoparasipróprioedistinguirumsentimentodedesaprovaçãoquesurgeemvocêmesmoemrelaçãoatalação.Essaéumaquestãodefato,maséobjetodosentimentoenãodarazão.Elaresideemvocêmesmoenãonoobjeto.Portanto,quandovocêaduzquequalqueraçãooucaráterévicioso,vocênãoquerdizernadaalémdofatodeque,daconstituiçãodesuanatureza,vocêderivaumaimpressãoouumsentimentodeculpaaocontemplá-la37.

Taisnoções–impressão,sentimento,instinto,aconsti-tuiçãodesuanatureza–derivamdeumolharparadentro.Eisso,segundoHumenosfazacreditar,éafontedasnossasexplicaçõespsicológicas.

Essa apresentação de Hume como naturalista parece uma surpresa para os que tentam buscar suas pistas nos manuais queo caracterizam comoum seguidorde seuspredecessoresempiristas,LockeeBerkeley,enquantoreco-nhecem – e levam ao extremo – o ceticismo a que essa visão

35 David Hume, A Treatise on Human Nature(originalde1739-40),2.ed.,ed.P.H.Nidditch(Oxford:Clarendon,1978),II.iii.3,p.415.

36 Penelhum, Hume’s Moral Psychology,n.32,pp.119-20.37 Hume, Treatise,n.35,III.i.1,pp.468-9.Aênfaseéoriginal.

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inevitavelmenteconduz.Oargumentoquesustentaoceti-cismoéfamiliar:Oempirismotevesuafontenaexperiênciasensorial. Crenças que derivam da experiência sensorial não podemserobjetodejustificação.Ajustificaçãorequerumapeloaalgoindependente,masnãohá,porassimdizer,umpassoparaforadaexperiênciacomvistasaapelarparaalgoindependenteemrelaçãoaelaprópria.Oresultadodissoéo ceticismo.

Tal ponto, em tom explicitamente crítico ao ceticismo de Hume, deriva, inter alia,dofilósofoThomasReid.Aodefender sua própria visão, Reid sustenta que a experiência sensorialnãoé“o quenóspercebemos”,mas,aocontrário,“aquelaquenóspercebemos”38.NormanKempSmith–emensaiosque trilharamnovoscaminhoshácemanoseemum tratadoextraordinário sobreHumeescritohá setentaanos – vira a interpretação de Reid sobre Hume de ponta-cabeça39.NasesplêndidaspalavrasdeKempSmith:Hume“édescrito como não tendo feito nada além de liberar os seus sucessores de um rótulo ao qual ele próprio permaneceu submetido.Umveredictoestranhamenteparadoxal!”40 Na interpretaçãodeKempSmith,Humeestavaperspicazmenteconsciente do ceticismo inerente ao empirismo tradicional e buscou criar uma alternativa. Essaa alternativa – qual seja, o naturalismo–éencontradanoLivroIIIdoTratado de Hume. Defato,KempSmithafirmaqueamelhorformadeseler

38 The Works of Thomas Reid,8.ed.,2vols.,ed.WilliamHamilton(Edinburgh:JamesThin,1895),vol.1,pp.108,112,117,121et passim. A citação no texto deMounceéumenunciadosumário.Cf.Mounce,Hume’s Naturalism,n.30,1,p.54.AfilosofiadeReidéapresentadacomdetalhesemKeithLehrer,Thomas Reid(LondonandNewYork:Routledge,1989).

39 Cf., emparticular,NormanKempSmith,The Philosophy of David Hume (London:Macmillan,1941).OsensaiosiniciaissãoThe Naturalism of Hume (I.),Mind,14(1905),pp.149-73eThe Naturalism of Hume(II.),pp.335-47.

40 KempSmith,The Philosophy of David Hume,n.37,p.3.

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HumeéiniciarcomoLivroIIIdoTratado antes de se voltar paraoLivroI,cujoceticismoseráentãovisto,demaneiracorreta,comoonaturalismoqualificadodeHume.

3. O positivismo sem o naturalismo: o caso de Hans KelsenOndeopositivismo comonaturalismo se apresenta

comopontodepartida,HansKelsenéoelementodedissi-dência.Outrospositivistasjurídicospodemserenumeradosentreosnaturalistas,sustentandoque, jáqueosfatossãosuficientesparaexplicarosmateriaisnormativos,amorali-dadenãopodeserentendidacomonecessária.Kelsennãoofereceessetipodeargumento.Diferentementedetodososoutros,elenãoestásustentaqueosmateriaistipicamentejurídico-normativossãoredutíveisafatos.Kelsendefendeoqueelechamadeumafilosofiajurídico-normativa.

SegundoKelsen,anormatividade41 é sua alternativa aosdemaispontosdevistanoâmbitodaFilosofiadoDireito.Semembargo–eeisaíoproblemanuclear–nuncahouveumconsensoacercadoque elepretendedizer com isso.AsinterpretaçõesdaideiadeKelsensobrenormatividadepercorrem todos os possíveis entendimentos alternativos, desde uma visão contrafactual da normatividade42 até uma tesesobrea“normatividadejustificada”.Estaúltimaéde

41 A normatividade, que para muitos propósitos é um conceito baseado em simesmo,temgozadodeumaboadosedeatençãonafilosofiarecente.Cf., por exemplo, JosephRaz,Explaining Normativity: On Rationality and the Justification of Reason, Ratio12(1999),pp.354-379,reimpressoemRaz,Engaging Reason(Oxford:OxfordUniversity,1999),pp.67-89.Cf.tambémAlan Millar, Understanding People. Normativity and Rationalizing Explanation (Oxford:Clarendon,2004)eJohnSkorupski,The Domain of Reasons(Oxford:OxfordUniversity,2010).

42 EmumavisãogeraldotrabalhodeKelsen,RobertWalterescrevequeossistemas coercitivos – em especial os sistemas jurídicos – devem ser inter-

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longealeituramaisambiciosadanormatividadenafilosofiajurídicadeKelsen,tendolhesidoatribuídadediferentesma-neirasemediantediversostiposdeargumentoporninguémmenosdoquequatrofigurasdedestaque–RobertAlexy,CarlosSantiagoNino,JosephRaze,umpoucomaiscedo,Alf Ross –43que,atéondevaimeuconhecimento,chegaramcada qual à sua conclusão de maneira independente dos demais.Limito-meaquiaRaz,cujasasserçõessãoemcer-tosaspectosasmaisextremasdetodasasquatro.RaziniciacontrastandoaposiçãodeHartcomadeKelsen.H.L.A.Hart é um proponente de uma compreensão da normatividade social,entendendo“anormatividadedodireitoeaobrigaçãodeobedecê-lo enquantonoçõesdistintas”.Uma compre-ensão completamentediferente,Raz continua, é evidentenotrabalhodealguémquereconhece“apenasaconcepçãode uma normatividade justificada”44, talcomoHansKelsen.Ao caracterizar anormatividade justificada,Raz escreve:“Considerarodireitocomonormativosignificaconsiderá-lo

pretados“como se fossemnormativos”.RobertWalter,Der gegenwärtige Stand der Reinen Rechtslehre, Rechtstheorie, 1 (1970),pp. 69-95 e 70, comênfasenooriginal.

43 Cf. Robert Alexy, The Argument from Injusticen.4,pp.95-123;CarlosSan-tiagoNino,Some Confusions surrounding Kelsen’s Concept of Validity, Archiv für Rechts-und Sozialphilosophie,n.64(1978),pp.357-77epp.357-65,repro-duzidoemNormativity and Norms. Critical Perspectives on Kelsenian Themes [citadoaquicomoNN],ed.StanleyL.PaulsoneBonnieLitschewskiPaulson(Oxford:Clarendon,1998),pp.253-61;CarlosSantiago Nino, La validez del derecho(BuenosAires:Astrea,1985),pp.7-40et passim;JosephRaz,Kelsen’s Theory of the Basic Norm em American Journal of Jurisprudence,n.19(1974),pp.94-111,reimpressoemNNpp.47-67eemRaz,The Authority of Law, 2. ed. (Oxford:OxfordUniversity,2009)[citadoaquicomoAL],pp.122-45;Alf Ross, Validity and the Conflict between Legal Positivism and Natural Law, Revista Jurídica de Buenos Aires,n.4(1961),pp.46-93(ediçãobilíngue),p.82.Cf.emgeralpp.78-82,reimpressoemNN,pp.147-63,especialmentep.160;cf.emgeralpp.159-61.

44 Raz,Kelsen’s Theory of the Basic Norm,n.41,p.105;NN,n.41,p.60;Raz,AL, n.41,p.137.

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justoeadmitirqueeledeveserobedecido.Osconceitosdenormatividadedodireitoedeobrigaçãodeobediênciaaodireitosãoanaliticamenterelacionados.Kelsen,portanto,vêodireitocomoválido–querdizer,normativo–somentesealguémdeveobedecê-lo”45.

Obviamente,RazvêumparadoxoemseatribuiratesedanormatividadejustificadaaKelsen,poistalteseosituamuito mais próximo da teoria do direito natural do que de qualquer coisa encontrada no âmbito do positivismo jurídico tradicionalounaturalista.Defato,Razchamaaatençãoparatalparadoxo,escrevendoque,apesardeKelsen“rejeitarasteorias jusnaturalistas, ele usa consistentemente o conceito jusnaturalista de normatividade, qual seja, o conceito de normatividadejustificada”46.

Intérpretesdecertofilósofocertamentefarãooqueelesconsideram ser a leitura mais promissora de seu trabalho. Até aí, tudo bem, mas com uma advertência: o mérito verdadeiro seencontraementenderoqueofilósoforealmenteescreveuaoinvésdeimporaseutextoumainterpretação“defora”,porassimdizer.ComoPaulW.Franksescreveemseulivrosobreospós-kantianos,“seassumirmosquefigurashistó-ricasestãoperguntandoourespondendoanossasquestões,[...]corremosoriscotantodedistorceroqueelesdisseramcomo o de perder uma oportunidade de aprender com eles, sejapositivaounegativamente”47.

AssimcomoAlexy,NinoeRoss,Razpodeobjetarqueeleestápropondoumainterpretaçãodotextoenãoimpondouma interpretação sobre ele. A réplica é boa até o momento, masdámargemàquestãodequãorepresentativassãoas

45 Ibidem.46 Raz,Kelsen’s Theory of the Basic Norm,n.41,pp.110-11;NN, n. 41, p. 67;Raz,

AL, n. 41, p. 144.47 PaulW.Franks,All or Nothing. Systematicity, Transcendental Arguments,

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passagensselecionadasporRazeosdemais.Comojátiveaoportunidadedeargumentarcommaisvagaremoutrotrabalho, os trechos selecionados não são, de fato, repre-sentativosdotrabalhodeKelsen.Portanto,opontodevistadeFrankspermaneceválido:Aprendemosmelhor sobrefigurashistóricasquandoconsideramosasquestõesqueelespróprios estão formulando e respondendo.

Oque,então,deveocuparolugardanormatividadejustificada?Minharespostaéaseguinte:oprojetodeKelsenaolongodemuitasdécadasfoi,acimadetudo,umatentativaambiciosaedelargoalcancededemonstrar,primeiramente,que o naturalismo na ciência jurídica de fin de siècle estava enganadoe,emsegundolugar,desenvolverosrudimentosdeumateoriaalternativaqueassegurariaaautonomia(Ei-gengesetzlichkeit)dodireitoe,aomesmotempo,apureza(Rei-nheit)daciênciajurídica.Talnoslevanovamenteàquestãodanormatividade.AalternativadeKelsenaonaturalismoproduzatesedanormatividade,eissonãodeveriaparecersurpreendente.Eletemquesecomprometercomalgoqueapresentacaráternormativoparaevitarficar,aofinal,semqualquer alternativa diante do naturalismo. Contudo, em marcante contrasteà tesedanormatividade justificada, atesedeKelsensobreanormatividadeéapenasumapartede seu esforço maior em desenvolver uma alternativa ao naturalismo e atribuir respeitabilidade à ciência do direito, sublinhandosuadimensãonormológica.Euchamoessatesekelsenianadetesenormológica da normatividade. Tal como

and Skepticism in German Idealism(Cambridge/London:HarvardUniver-Univer-sity,2005),p.5.Obviamente,talideianãoénova.CitoFranksporquesuaenunciaçãodamatériaébastanteperspicaz.Paraumefeitosemelhante,cf. JohnRawls,Lectures on the History of Political Philosophy (Cambridge:HarvardUniversity,2007),p.251:“Aoestudarostrabalhosdosescritoresdepontadatradiçãofilosófica,deve-setercomopreceito-guiaidentificarcorretamente os problemas que eles enfrentavam, entender como os viam equaisquestõesformulavam”.

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Kelsenaentende,sua importânciaésublinhadaporumaconexão“jurídica”,necessária enormológicanopróprionúcleodesuafilosofia.Noquesesegue,minhapreocupaçãoprimáriaconsisteemchamaraatençãoparatalconexão.

AalternativadeKelsenaonaturalismoésublinhadaemminha reconstrução pelo conceito de imputação periférica. “Imputar”(dolatimimputare)significasubmeteracálculo,conferir, atribuir.OverboalemãodeKelsenézurechnen; “imputar” éuma tradução confiável,principalmente emfacedoprópriousoocasionalfeitopelopróprioKelsendapalavra imputieren quando zurechnen era esperada48.

Kelsenapresentaduasdoutrinassobreaimputação.Aprimeira delas, a da imputação central, é sem dúvida uma reflexãosobreatradiçãofilosófica,emboraousoporKelsenda imputação central seja bem diferente do tradicional49. A segundadoutrina–adaimputaçãoperiférica–épeculiaraKelsen.Ambasasdoutrinastentamoferecerumaalternativa

48 ComoescreveKelsen:“Seriaumgravemalentendidosealguémquisessedealgummodoimputar[imputieren]aessasobservações[sobreaautoridadedeagentesadministrativos]osignificadodeummandatopoliticoparaamaiorrestriçãopossíveldaatividadeadministrativadoEstado”.Kelsen,Hauptprobleme der Staatsrechtslehre (Tübingen:J.C.B.Mohr,1911),p.503.Cf.pp.138,194e209,reimpressoemHans Kelsen Werke,ed.MatthiasJestaedt,vol.2(Tübingen:MohrSiebeck,2008),p.650;cf.tambémpp.244,306e322.Cf.tambémHansKelsen,Über Grenzen zwischen juristischer und soziologischer Methode (Tübingen:J.C.B.Mohr,1911),p.44.

49 AimputaçãocentralfuncionanosprimeirostrabalhosdeKelsencomoumamaneiradeescapardonaturalismoedopsicologismo.Maistardeelesevoltaparaanormafundamental,jáevidenteemDas Problem der Souverä-nität und die Theorie des Völkerrechts(Tübingen:J.C.B.Mohr,1920),eparaumargumentotranscendentalneokantiano.Essespassosrepresentamseuesforçoparasubstituiraimputaçãocentralporalgomaissatisfatório.Nadaobstante, a imputação central sobrevive em outros pontos do trabalho de Kelsen.Suadiscussãomaisextensadeambasasdoutrinasdaimputação–acentraleaperiférica–seencontraemumlongoensaio:HansKelsen,Unrecht und Unrechtsfolge im Völkerrecht em Zeitschrift für öffentliches Recht, n.12(1932),pp.481-608.Cf.também§§1-2,pp.481-504,§5,pp.525-9e§7,pp.537-44.

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àexplicaçãocausale,poressarazão,apresentamsignifica-dospoucousuaisnafilosofia jurídicadeKelsen, sendoaimputação central tratadanos escritos iniciaisdeKelsen,lugarposteriormenteocupadopela imputaçãoperiférica.Devo limitar minha discussão à última espécie – a imputação periférica–porqueessaéadoutrinaquesubjazàtesedanormatividadenormológicadeKelsen.

Kelsennosdizqueaimputaçãoperiféricaestabelecerelaçõesentre“fatosmateriais”(Tatbestände).Segundoelesustenta na Allgemeine Staatslehre, obra que vale como uma enunciaçãoinicialdesuadoutrina:“Umaimputaçãoperi-féricasemprepartedeumfatomaterialparachegaranadaalémdeoutrofatomaterial”50.Umaenunciaçãocomparáveléencontrada na primeira edição da Reine Rechtslehre.Nofinalde uma seção destinada à doutrina da imputação central, Kelsenacontrastacomaimputaçãoperiférica.Aimputaçãocentral,eleescreve,“éumaoperaçãointeiramentediferenteda imputação periférica mencionada anteriormente, na qual um fatomaterial está conectado... a outro fatomaterialdentro do sistema, ou seja, na qual dois fatos materiais estão ligadosemumsistemajurídico-normativoreconstruído”51.

Duasquestõessurgem.OqueexatamenteKelsenen-tendepor“fatosmateriais”?Ecomopoderiaaimputaçãoperiférica,conectoradefatosmateriais,serformulada?Noqueserefereàprimeiraquestão,Kelsenarespondeemter-mosde“condiçõesjurídicas”e“consequênciasjurídicas”;mais precisamente, em termos do estado de coisas que valemcomocondições jurídicasemdadocasoparticular.

50 HansKelsen,Allgemeine Staatslehre(Berlin:JuliusSpringer,1925),§12,d,p.65.

51 HansKelsen,Introduction to the Problems of Legal Theory: a Translation of the First Edition of Kelsen’s “Reine Rechtslehre” (1934).Trad.BonnieLitschewskiPaulsoneStanleyL.Paulson(Oxford:Clarendon,1992)[citadoaquicomoLT],§25,d,pp.50-1.

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Emlinguagemhohfeldiana,trata-sedaposiçãojurídicaqueemergecomosuaconsequência jurídica. Issopareceumaadequação estranha, pois normalmente nós não pensamos emumaconseqüênciajurídicaenquantoumfatomaterial(Tatbestand).Pelocontrário,emumanorma jurídicahipo-teticamente formulada, um fato material que se enquadra noâmbitoda cláusulaantecedentedanormaensejaumaconsequênciajurídica,estabelecendo,nadoutrinadeKelsen,a posição jurídica da responsabilidade, a qual vale como consequencia jurídica.

Entretanto, são fatos materiais assim entendidos que Kelsencongregaaointroduziranoçãodeimputaçãoperifé-rica.Eleescreveque“seomododerelacionarfatos materiais écausalidadeemumcaso,étambémimputaçãoemoutro”52. Maisainda,eleempregadeumladoostermos“condiçãojurídica”e“consequênciajurídica”e,deoutrolado,ostermos“causa”e“efeito”comoosrespectivoscorrelatos(relata)dosprincípios de ordenação da imputação e da causalidade53.Ouseja, ele entende tais relatacomoespéciesdogênero“fatosmateriais”.

ParatornarclaraemKelsenaexpansãodanoçãodefatos materiais como relatadaimputaçãoperiférica,étalvezútil sublinhar seu esforço para oferecer um paralelo tão pró-ximoquantopossíveldoprincípiodacausalidade.Jáqueelepressupõequeosfatosmateriaissãoindisputavelmenterelata no caso da causalidade, então, da mesma forma, se-gundosuaargumentação,fatosmateriaisservemcomorelata nocasodaimputaçãoperiférica.Kelsenpretendedestacaruma relaçãoposta por leisnecessáriasque semanifestatantona causalidadequantona imputaçãonormativa.Odesenvolvimento desse paralelo é uma parte central de seu

52 Kelsen,LT,n.49,§11,b,p.23,ênfasenossa.53 Kelsen,LT,n.49,§11,b,pp.23-4.

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esforço para responder ao naturalismo e, ao mesmo tempo, tornaraciênciajurídicadeseutempoalgomaisrespeitávelcientificamente54. Se puder ser demonstrado que aspectos do princípio fundamental de ordenação das ciências naturais se refletemper analogiam no princípio fundamental de ordena-çãodaciênciajurídica,então,segundoKelsen,talparaleloserácapazdeelevardefatoostatus da ciência do direito enquanto ciência55.

Volto-meagoraparaasegundaquestão,queserefereàformulaçãodaimputaçãoperiférica.Umapropostaparaaformulaçãopodeserlidaassim(comumacláusula“ese”inserida entre parênteses, valendo como uma referência a outrascondiçõesassociadasacertoprocedimentojurídico):

Formulação I:Seumatodecerto tipoocorre (ese...),então o autor ou seu substituto56 deve responder por tal ato.

Todavia, essa formulação é excluída pela pressuposição deKelsendequeaimputaçãoperiféricaconectafatosma-teriais, sendo que o último fato material é entendido como a consequência jurídica imputada ao ato jurídico. Adotar aformulaçãoIcomoumexemplodeimputaçãoperiféricaequivaleria a confundi-la com a imputação central.

AalternativaquesepõeéumaespéciedessubjetivadaderivadadaformulaçãoI,querdizer,éumaestruturaquenãoprevêatribuiçõesasujeitosjurídicos:

54 Cf. emgeralKelsen,Über Grenzen zwischen juristischer und soziologischer Methode Grenzen,n.46,pp.1-15et passim; Horst Dreier, Rechtslehre, Staatssozi-ologie und Demokratietheorie bei Hans Kelsen, 2. imp.(Baden-Baden: Nomos, 1990),pp1-15et passim; Horst Dreier, Hans Kelsen’s Wissenschaftsprogramm em Die Verwaltung,Beiheft7:Staatsrechtslehre als Wissenschaft, ed. Helmuth Schulze-Fielitz(Berlin:Duncker&Humblot,2007),pp.81-114.

55 Consideroaquioparaleloemnomedasformasmetodológicas.Cf.asnotas63-67.

56 Utilizootermo“substituto”(surrogate)paracobrirtodasasvariaçõesnotemadaresponsabilidadevicarianaoucoletiva.Cf.asnotas60-61.

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Formulação II: Seumatodecertotipoocorre(ese...),entãotalatoétratadocomoatribuidordecertaconseqüênciajurídica.

Deixandodeladoseucarátercontra-intuitivo,pontoqueretomareiabaixo,aformulaçãoIIcapturaaespecíficaimportânciadaimputaçãoperiférica.Umaformulaçãode-fensáveldeverefletirumaconexãonecessáriaentredoisfatosmateriais.Eseaformulaçãoéconfinada,comoaqui,aoatoe à consequência jurídica – isto é, a consequência jurídica imputadaaoato–entãoarelaçãoé,defato,necessária.DeacordocomKelsen:

Sehá a necessidadedeum ‘dever’ absoluto quando a lei danatureza relaciona causas e efeitos, tambémháum ‘dever-ser’igualmente rigorosoquandoa leidanormatividade (Rechtsge-setz)estabelecearelaçãoentrefatosmateriaiscondicionantesecondicionados.Naesferadodireitoouna‘realidadejurídica’,[...]odelitoérelacionadoàpuniçãocomomesmocaráternecessárioque,naesferadanaturezaounada“realidadenatural”,acausaéligadaaoefeito57.

Issoseaproximadeumaenunciaçãocorretadaposi-çãodeKelsen,apesardesernecessáriodetalharaindacertoaspecto.Kelsennãopodepretenderumarelaçãonecessáriaentre o delito e a imposição de uma punição. Tal não faria sentido.ComosabemosecomoKelsendeixaperfeitamenteclaroemoutraspassagens,“nosistemadanatureza,apu-niçãonãosematerializaporumarazãoououtra”58. Não é a punição, mas a responsabilidade criminal – e, da mesma maneira, a responsabilidade civil –quefigurana relaçãonormológica necessária a que nos referimos acima. Emtermosmaisgerais,aresponsabilidade(consequênciajurí-

57 HansKelsen,‘Foreword’ to the Second Printing of ‘Main Problems in the Theory of Public Law’, trad. em NN,n.41,pp.3-22.Na última sentença do texto, os pontostambémestãopresentesnooriginal.

58 Kelsen,LT,n.49,§11,b,p.25.

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dica)funcionanessaformulaçãocomoosegundocorrelato(relatum),ouseja,osegundo“fatomaterial”.Arelaçãoderesponsabilidadequeseimpõeaoatoaoqualelaéimpu-tadaserevelaassimenquantoumarelaçãonecessária.Noentanto, a efetiva imposição da punição no direito penal e aconcretaexecuçãodo julgamentonodireitociviléumaquestãocontingente59.

Aindaassim,aformulaçãoIIparecesercontra-intuitivaaoimputararesponsabilidade(ouconsequência)aoatoenãoaoseuautor.Estamosacostumadosadistinguirentrea imputação da responsabilidade individual, de um lado, e coletivamente, de outro lado60. No primeiro caso, a imputa-çãodaresponsabilidadesedáemrelaçãoaoautorou,sobachancela da responsabilidade vicariana, ao seu substituto. No segundocaso,aresponsabilidadeéimputada,porexemplo,aumacompanhiadeseguros.

PorqueKelsenselimitaàimputaçãodaresponsabilida-deaoato,aoinvésdeligá-laaoseuautor?Talrestriçãopodeserexplicada,segundoacredito,peloelementocontingentepressupostonaidentificaçãodaparteresponsável.Talcomoentendidonessaounaquelajurisdição,ocaráterdaparteres-ponsável–autor,substitutoouentecoletivo–constituiumfatorcontingente,ouseja,umaquestãodepolíticajurídica

59 OargumentoaquiaduzidopodesercomparadocomodeHartdirigidoàpretensãodeAustin,paraquemanulidadeéumasanção.Hartargumentaque nulidade e sanção são conceitualmente distintos. Em especial, ele subli-nhaquenulidadesderivamnecessariamentedefalhasemsatisfazercertascondiçõesparaseobterefeitosjurídicos(JonesquersecasarcomSally,maso“casamento”énuloesemefeitoporqueelejáécasado),aopassoqueaefetivaimposiçãodesançãoconstituiumaquestãocontingente.VerHart,CL,n.23,pp.33-5eAustin,Lectures on Jurisprudence,n.17,LectureXXIII,p.457eLecture XXVII,p.505et seq.

60 Kelsen,LT,n.49,§13,p.27;HansKelsen,General Theory of Law and State, trad.AndersWedberg (Cambridge:HarvardUniversity,1945),pp.59e69-71;HansKelsen,Reine Rechtslehre,2.ed.(Vienna:FranzDeuticke,1960),§28,c,pp.125-6.

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e não da ciência do direito. Este ponto reforça a insistência kelsenianasegundoaqualarelaçãonecessáriaestálimitadaà imputação da responsabilidade ao ato.

De qualquer modo, é precisamente tal relação neces-sáriaentreoatoearesponsabilidade(entendidacomocon-sequência)querepresentaonúcleodaquiloquechamode“tesekelsenianadanormatividadenormológica”.Arelaçãoénormológicaporsernecessáriaoudecarátertipicamentejurídico,eénormativaporsernão-causal.Outraspermuta-çõesderivadasdaimputaçãoassimentendidaterãoentãolugarquandoaresponsabilidadeéatribuídaaumapessoa,ensejandoaatribuiçãodepoderaumórgãojurídicoparaprosseguircomaaplicaçãodequalquersançãoquelhesejasolicitada.

Todavia, aindaénecessárioapresentar a imputaçãoem termos que sublinhem os aspectos subjacentes à tese danormatividadenormológica.Emalgunspontosdeseutrabalho,Kelsentrataaimputaçãoenquantoumacategoriakantianaouneokantianaanálogaàcategoriadacausalida-de61.Noentanto,oargumento transcendentalqueKelsenaduzemnomedaimputaçãocomocategorianãoéplausível.SeKelsenaindaassimutilizaa imputaçãoemsuafiloso-fianosentidoacimacomentado,entãooseufundamentoprecisadeumexamemaisdetalhado.Minha sugestão édequeoconceitokelsenianodeimputaçãoperiféricapodeser compreendido como uma fórmula metodológica; trata-se, emespecial,da fórmulametodológicapeculiar à ciênciajurídica.TalnoçãoderivadotrabalhodeHeinrichRickert,neokantianodeBaden.

No ultimo capítulo de seu tratado O Objeto do Conhecimento,62Rickertdiferencia as categorias constitu-

61 Kelsen,LT,n.49,§11,b,p.23.62 HeinrichRickert,Der Gegenstand der Erkenntnis,2ed.(Tübingen/Leipzig:

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tivas da realidadeobjetiva–por exemplo, a categoriadapermanência–dasformasmetodológicascaracterísticasdasváriasdisciplinas.AideiabásicadeRickertéquearealidadeobjetiva,umavez constituída transcendentalmente,deveser nitidamente diferenciada do processamento (Bearbei-tung)domaterialdadonarealidadeobjetiva.Arealidadeobjetiva–omundofenomênicodeKant–éconstituídoemtermosdascategoriasdarealidade,enquantooprocessa-mento do material da realidade objetiva resulta do trabalho das disciplinas autônomas, fundadas em suas respectivas formasmetodológicas.Rickertoferecealegalidadecausal(Gesetzlichkeit)comoexemplodeumaformametodológicanas ciências naturais63. De fato, o exemplo deve ser tomado como genusdasformasmetodológicasnasciênciasnaturaisemgeral,poiseleseaplicaatodaselas.

Em O Objeto do ConhecimentoRickertcomeçacomascategoriasconstitutivasdarealidade:

Osignificadopeculiardas[...]formasqueforamdiscutidasemtermosde exemplosda causalidade e dapermanência exigeque elas possuam um nome especial que as diferencie enquanto formasoriginais,emoposiçãoàsformasmetodológicas.Apartirdaexpressão“realidadeobjetiva”,poderíamosfalarde“formasobjetivasdarealidade”.Maspreferimos[...]otermo“constitutiva”.Comoessasformasparticularesconstituemoqueestápressupostocomoumprodutofinalouummaterialdoconhecimentoreal,“constitutivo”designa exatamenteoquequeremos significar.Portanto,ascategoriasquemoldamomundorealeobjetivoapartir do que é, de fato, dado, deveriam ser chamadas de categorias constitutivas da realidade64.

J.C.B.Mohr,1904),pp.205-28,HeinrichRickert,Der Gegenstand der Erken-ntnis,6.ed.(Tübingen:J.C.B.Mohr,1928),pp.401-32.Cf.tambémHeinrichRickert,Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung(originaldee1902),5.ed.(Tübingen:J.C.B.Mohr,1929),pp.283-4,373-7et passim.

63 Rickert,Der Gegenstand der Erkenntnis,6.ed.,n.60,pp.409-10.64 Rickert,Der Gegenstand der Erkenntnis,6.ed.,n.60,pp.406-7.As aspas e a

ênfaseconstamdooriginal.Compare-secomRickert,Der Gegenstand der

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AsformasmetodológicasaqueRickertaludesãoes-pecíficasepertencemàsváriasdisciplinasautônomas.Aose referir emseu tratadoaodualismocartesiano,Rickertescreve:“Essaoutra espécie de dualismo, de acordo com a qual o mundo deve consistir em dois tipos de realidade, cada um excluindo o outro – o mundo da extensio e o mundo da cogitatio–,écriadapelaFísicaepelaPsicologia,cadaqualcomsuarespectivaformametodológica”65.

AFísicapossuisuaprópriaformametodológica,eomesmoacontececomaPsicologia.Aciênciajurídicatam-bémpossui suaespecífica formametodológica,qual seja,a imputação,ou comoKelsenàsvezes escreve, a “leidanormatividade”66. Conforme ele explica nas teses defendidas nos Hauptprobleme:

Oproblemacentralsetornaanorma jurídica reconstruída, entendida comoexpressãodoespecíficovalorjurídico–aautonomia–dodireito,querdizer,acontrapartejurídicadasleisnaturais(Natur-gesetz)–a“leidodireito”,porassimdizer,alei da normatividade (Rechtsgesetz).OquesemostraobviamenteimportantenosHaup-tprobleme éasseguraraobjetividadedavalidade,semoquenãopode haver qualquer tipo de norma, em especial a normatividade específica–querdizer,aautonomia–dodireito.Semaexpressãodessa autonomia, sem a lei da normatividade, não pode haver conhecimento jurídico e nem ciência do direito. Portanto, trata-sedeumjuízoobjetivo,nãodeumcomandosubjetivo.‘Aleidanormatividadeé–aparentemente–comoaleidanatureza,nosentidodequenãoédirigidaadestinatáriosespecíficoseéválidaindependentemente do fato de ser conhecida ou reconhecida’. Se aanalogiaentrealeidanormatividadeealeidanaturezaéain-dabastantelimitadaaqui,talsedáafimdepreveniraconfusão

Erkenntnis, 2. ed, n.60,p.211.65 Rickert,Der Gegenstand der Erkenntnis,6.ed.,n.60,p.424,comênfaseno

original.Cf.tambémpp.404,410,411,424,426et passim e comparar com Rickert,Der Gegenstand der Erkenntnis,2.ed.,n.60,pp.208,210,217,221et passim.

66 Vercitaçãoimediatamenteabaixo.

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entre ambas, e para evitar que se perca de vista, por causa dessa analogia,aespecificidadedaleijurídica,aautonomiadodireitoemfacedacausalidadeencontradananatureza67.

Oaspectonormativoounão-naturalistadoprojetodeKelsen–aforçadesualeidanormatividade–desempenhaseupapelnocontextodaciênciajurídicanormológica,en-tendidacomoaalternativakelsenianaaopsicologismoeaonaturalismonaciênciadodireito.Especificamente,ofocoestásituadonaformametodológicadaciênciajurídica,qualseja,arelaçãodeimputaçãoperiférica.Quandoacondiçãoprevista no antecedente da norma ocorre, isso implica ne-cessariamente a imputação de responsabilidade pelo ato. Quandoaimposiçãoderesponsabilidadeacertapessoaérealizada,talrepresentaumamudançanasituaçãojurídicadessapessoa.Amudança,insisteKelsen,énormativaenãocausal.

4. Considerações conclusivas

Fechando o ciclo, de volta à Introdução,gostariamaisumavezdealudiràdistinçãoentreopositivismojurídicoinclusivo e o exclusivo, comparando-a com a separação entre positivismocomonaturalismo(ounaturalista)epositivismosemnaturalismo(ounão-naturalista).Aprimeiradistinçãocoloca o positivismo inclusivo a reboque do positivismo ju-rídicoexclusivo.Querdizer,emtodosossistemasjurídicoscorretamentecaracterizadospormeiodavariante“exclusi-va”,nenhumadistinçãoextraéoferecidapelopositivismo

67 HansKelsen,‘Foreword’ to the Second Printing of ‘Main Problems in the Theory of Public Law’,n.55,pp.5-6,comênfasenooriginal.AcitaçãodeKelsenconstante deste trecho é dos Hauptprobleme,n.46,p.395,reimpressoemHans Kelsen Werke,vol.2,n.46,p.529.Apalavra“aparentemente”apareceemitáliconosHauptprobleme,masnãono‘Foreword’ supracitado. Cf. também Kelsen,LT,n.49,§11,b,pp.23-5.

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jurídico inclusivo:asduasvisões levamaomesmo lugar.Todavia,asegundadistinção,entreopositivismojurídicocomo naturalismo e o positivismo jurídico sem naturalismo, frisa uma diferença que se mostra enquanto uma constante. Ouseja,acaracterizaçãodedadosistemajurídicofeitapelopositivismo jurídico como naturalismo é sempre diferente deoutracaracterizaçãodomesmosistemajurídicooperadapelo positivismo não-naturalista.

Kelsen, nossoproponentedopositivismo jurídicosem naturalismo, luta em duas frentes: tanto contra a teoria jusnaturalista quanto contra o naturalismo. E ele responde a ambas as frentes com doutrinas independentes em sua FilosofiadoDireito, “independentes”no sentidodequenenhuma deriva da outra. Ele responde ao jusnaturalismo com o princípio da separação e ao naturalismo com a tese da normatividadenormológica.Oâmbitodessasduasdoutrinasdeve ser claramente diferenciado do positivismo jurídico como naturalismo, no qual o princípio da separabilidade é simplesmenteocoroláriodonaturalismoenãohá,obvia-mente,atesedanormatividadenormológica.

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