a idade da restauração: família e memória na restauração dos...

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*Mestrando em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV/CPDOC. II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV) INTELECTUAIS E PODER Simpósio 2 | Cinema e política cultural A Idade da Restauração: família e memória na restauração dos filmes da Coleção Glauber Rocha Marco Dreer Buarque* Resumo: O trabalho pretende verificar de que maneira o conjunto de filmes recentemente restaurados de Glauber Rocha compõe, em um contexto global de boom de memórias, uma importante ferramenta de propagação de memória do mais celebrado cineasta brasileiro. Também se procurará observar o papel da família Rocha enquanto mantenedora da memória de Glauber Rocha, sendo o Tempo Glauber espaço estratégico de monumentalização da obra do cineasta. Outro objetivo será identificar a atuação majoritariamente feminina na guarda da memória junto aos principais projetos de restauração de filmes no Brasil, partindo do caso da família Rocha, em que mãe e filha do cineasta baiano estão à frente dos projetos de preservação e restauração do seu legado artístico. Palavras-chave: cinema, restauração, memória, Glauber Rocha **** Não há na história do cinema brasileiro personagem tão influente e celebrado quanto Glauber Rocha. Passados 28 de sua morte, ainda que seu legado não se revele explicitamente nas telas de cinema através dos filmes das novas gerações de cineastas, ao menos os reflexos de sua personalidade multifacetada, polêmica e – por que não – genial ainda se fazem sentir com muita intensidade no cenário cultural brasileiro. Em 2009 Glauber

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*Mestrando em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV/CPDOC.

II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV)

INTELECTUAIS E PODER

Simpósio 2 | Cinema e política cultural

A Idade da Restauração: família e memória na restauração

dos filmes da Coleção Glauber Rocha Marco Dreer Buarque*

Resumo:

O trabalho pretende verificar de que maneira o conjunto de filmes recentemente restaurados

de Glauber Rocha compõe, em um contexto global de boom de memórias, uma importante

ferramenta de propagação de memória do mais celebrado cineasta brasileiro. Também se

procurará observar o papel da família Rocha enquanto mantenedora da memória de Glauber

Rocha, sendo o Tempo Glauber espaço estratégico de monumentalização da obra do cineasta.

Outro objetivo será identificar a atuação majoritariamente feminina na guarda da memória

junto aos principais projetos de restauração de filmes no Brasil, partindo do caso da família

Rocha, em que mãe e filha do cineasta baiano estão à frente dos projetos de preservação e

restauração do seu legado artístico.

Palavras-chave: cinema, restauração, memória, Glauber Rocha

****

Não há na história do cinema brasileiro personagem tão influente e celebrado

quanto Glauber Rocha. Passados 28 de sua morte, ainda que seu legado não se revele

explicitamente nas telas de cinema através dos filmes das novas gerações de cineastas, ao

menos os reflexos de sua personalidade multifacetada, polêmica e – por que não – genial

ainda se fazem sentir com muita intensidade no cenário cultural brasileiro. Em 2009 Glauber

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completaria 70 anos, de modo que, no mês de março, uma série de atividades foi realizada no

Tempo Glauber para celebrar a vida e a obra do cineasta baiano.

Inaugurado em 1983, o Tempo Glauber é uma associação cultural coordenada por

membros da própria família Rocha – a se destacar a atuação militante de décadas a fio da mãe

do cineasta, d. Lucia Rocha, e mais recentemente da neta, Paloma Rocha, que, igualmente

cineasta, tratou por trabalhar com o legado do pai também através de suas obras audiovisuais.

Mesmo passando por uma ininterrupta via-crúcis no levantamento de financiamento para a

manutenção do centro, tanto no sentido de manter o corpo técnico e os equipamentos voltados

para a preservação do acervo quanto mesmo na própria manutenção estrutural da casa, o

Tempo Glauber é, espantosamente, o único centro no país, até a presente data, a abrigar o

conjunto documental de um cineasta brasileiro. E não por acaso se trata justamente de um

centro voltado para a memória do cineasta mais representativo do país, que se fez influenciar

não só propriamente pelos seus 10 longas-metragens, mas também por seus artigos, seus

livros, suas gravuras, sua incessante troca de correspondências, suas participações em

programas de TV, sua atuação política, em suma, em uma série de atividades que, em

conjunto, é definidora de um artista múltiplo e inquieto.

Ciosa e ciente da envergadura da herança representada pela obra de Glauber, os

membros da família não tardaram em procurar abrigo para o rico e numeroso acervo

produzido pelo cineasta baiano em sua curta trajetória de vida, fato que tomou maior vulto

quando da inauguração do Tempo Glauber, apenas dois anos após sua morte. O trauma

representado pelo falecimento precoce e inesperado de Glauber pareceu provocar, junto aos

seus entes mais próximos, uma busca sem demora para a manutenção da sua memória, como

se esta pudesse se pulverizar caso não ocorresse um ordenamento imediato do seu legado

documental.

O Tempo Glauber foi, portanto, uma maneira de manter viva a memória do

cineasta, no sentido mesmo de memória enquanto fenômeno dinâmico, palco de constantes

transformações, que dialoga com o passado mas que está sempre interagindo com o presente.

Poderíamos dizer, sem correr o risco do exagero, que o Tempo Glauber foi a melhor forma

que a família Rocha encontrou para manter Glauber vivo.

Pelo menos nos últimos dois anos, o empreendimento que mais teve repercussão

pública desenvolvido pelos herdeiros de Glauber foi o lançamento da Coleção Glauber Rocha,

a saber, um conjunto de quatro filmes de longa-metragem restaurados do cineasta baiano –

Barravento (1961), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro

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(1968) e A Idade da Terra (1980) – que recebeu tímida distribuição nos cinemas mas que

obteve maior repercussão quando do lançamento da versão em DVD. Desde sempre muito

debatidos, tanto no circuito cultural quando em âmbito acadêmico, os filmes de Glauber

Rocha obtiveram notoriedade à altura do seu criador, no entanto é enganoso considerar que se

tratam de filmes que receberam público minimamente expressivo; ao contrário, além de

contarem com baixo índice de espectadores quando de seus lançamentos nos cinemas, algo

característico à quase totalidade dos filmes pertencentes ao chamado Cinema Novo brasileiro,

é notório certo boicote que reiteradamente recebem dos canais de TV, sobretudo abertos, que

parecem se intimidar com uma suposta precariedade técnica dessas obras, vítimas que são de

certa exigência atual por determinados padrões estéticos.

Percebe-se, pelos depoimentos de Paloma Rocha, que ao reintroduzir essas obras

junto a um novo público haveria também uma tentativa tanto de sedimentar ainda mais seus

valores enquanto “clássicos” quanto de conquistar uma fatia maior de espectadores, de

maneira a ampliar a imagem de Glauber Rocha enquanto artista brasileiro seminal. A Coleção

Glauber Rocha, no entanto, não é fenômeno isolado, estando dentro de um amplo contexto de

cineastas brasileiros que, por volta do início da década de 2000, começaram a ter seus filmes

mais notórios restaurados, sejam recebendo um tratamento mais profissional e custoso, tendo

como destino as salas de cinema, ou seja até mesmo restritos às versões digitais em DVD,

voltados somente ao mercado doméstico.

Apesar de ser uma tendência com reflexos mundo afora, é patente o fato de,

sobretudo no caso brasileiro, serem muito poucos os cineastas contemplados por tais projetos

de restauração. Fazendo um sumário levantamento, é possível sem muito esforço identificar

de que extrato faz parte a grande maioria dos cineastas contemplados – via de regra, são

aqueles oriundos do movimento Cinema Novo, vivos ou não. Além de Glauber, cineastas

como Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor,

Cacá Diegues, entre outros, estão tendo suas obras restauradas, sendo todos eles diretamente

envolvidos com o Cinema Novo. Se Glauber é certamente o cineasta brasileiro mais celebrado

da história do nosso cinema, o Cinema Novo é também a manifestação cinematográfica de

maior prestígio de todos os tempos no Brasil. Independente do público circunscrito que

tiveram seus filmes, não é de se negar a habilidade que esses cineastas tiveram em, ao longo

do tempo, acumular um respeitável capital cultural e também social.

E se não nos é complicado perceber o perfil médio dos cineastas cujos filmes vêm

sendo restaurados, do mesmo modo é facilmente constatável a origem principal da base de

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sustentação e de pressão para o alavancamento desses projetos. São exatamente suas famílias

quem têm tomado a iniciativa em promover as restaurações dos filmes, sendo também

perceptível a presença mais efetiva das mulheres no comando dos projetos. Tive a

oportunidade de, em poucos minutos, levantar na Internet grande parte dos projetos de

restauração de filmes brasileiros – uma vez que são extremamente reduzidos em número,

principalmente se considerando a quantidade de restaurações que são produzidas anualmente

em países de Primeiro Mundo. É admirável constatar a presença quase que total das mulheres

à frente dos projetos, em que mães, netas, viúvas e sobretudo filhas, ao batalharem pelas

muito custosas e trabalhosas restaurações dos filmes dos seus familiares, acabam cumprindo o

papel de “guardiães de memória”.

Este trabalho, portanto, pretende analisar os projetos de restauração de um

conjunto de filmes brasileiros, do início da década de 2000 até hoje, tomando como exemplo

parte da obra restaurada do cineasta Glauber Rocha – a chamada Coleção Glauber Rocha.

Tentaremos observar de que maneira tais obras restauradas vieram a se tornar importantes

ferramentas de propagação da memória dos cineastas brasileiros, e mais especificamente

Glauber Rocha, o mais celebrado deles. Analisaremos também, entre outros pontos mais

específicos, quais seriam os perfis das obras que mais vêm sendo contempladas por projetos

de restauração, notadamente aquelas que foram originalmente produzidas ao longo do período

do regime militar, sobretudo as pertencentes ao chamado Cinema Novo. Uma vez que os

herdeiros dos cineastas brasileiros que tiveram suas obras restauradas são os maiores

responsáveis pela montagem e captação de recursos dos projetos, uma investigação da suposta

influência dessas famílias junto à mídia e aos órgãos financiadores se fará necessária.

Em um trabalho que gira em torno de uma série de questões referentes à memória,

é necessário buscar subsídios em alguns autores importantes que publicaram trabalhos hoje

clássicos referentes ao tema. Três autores principais serão chave nesse sentido, mais

especificamente conceitos que cada um deles desenvolveu referente ao tema. Portanto, o

trabalho não visa se referendar pelos autores como um todo, o que seria tarefa de alto risco e

suscetível a muitas imprecisões. Busca-se aqui, ao contrário, alguns conceitos específicos

trabalhados por esses autores que, a meu ver, podem contribuir para desvelar algumas

questões colocadas ao longo do trabalho. Os autores em questão são Michael Pollack, Pierre

Nora e Andreas Huyssen. Outros autores, mais contemporâneos, também serão utilizados por

terem publicados trabalhos inspirados, que de certa forma também se tornaram referência

dentro das reflexões acerca da memória, e por possuírem, de uma maneira ou de outra, pontos

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de contato com os personagens, lugares e eventos aqui abordados.

Michael Pollack trabalha com o conceito de “enquadramento da memória”, que

reinterpreta continuamente o passado em função dos embates travados no presente e no

futuro, em função da identidade dos grupos detentores dessa memória. Segundo Pollack, a

referência ao passado tem o objetivo de manter a coesão de um dado grupo social ou de uma

instituição, de modo a definir seu lugar junto à sociedade. Mas o autor também chama atenção

para o fato de que o trabalho de enquadramento da memória deve ser pautado pela

credibilidade, sob risco da perda da identidade individual ou de grupo. Pautar-se por uma

credibilidade significa proferir discursos coerentes, de modo a manter a imagem do indivíduo

ou do grupo íntegra. O autor também destaca que o trabalho de enquadramento de memória

tem seus atores destacados, verdadeiros profissionais da memória responsáveis por resguardar

a boa uma imagem de um indivíduo ou grupo.

Podemos reconhecer tanto na mãe de Glauber Rocha quanto em seu filha atores

com papéis destacados na manutenção da sua imagem enquanto o grande cineasta brasileiro.

A mitificação em torno da imagem de Glauber pareceu ganhar maior vulto após a sua morte,

recebendo formas mais bem acabadas tanto com a atuação algo militante da sua mãe, d. Lucia

Rocha, a qual desde então sempre obteve espaço considerável junto aos meios de

comunicação, quanto pela filha, Paloma, seja coordenando junto coma a mãe o Tempo

Glauber, seja com seu próprio trabalho de cineasta, uma vez que o pai é objeto-fetiche de

todos os seus trabalhos. Um trecho de um depoimento de Paloma Rocha é revelador nesse

sentido, em que a cineasta fala da necessidade de revelar algo da “verdadeira” faceta de

Glauber Rocha, que teria sido fortemente abalada sobretudo em um episódio específico, mais

próximo da sua morte, em que o cineasta baiano considerou que o General Golbery seria “o

gênio da raça”. Paloma, ao dirigir Anabazys (2008), procurou, usando o termo de Pollack,

enquadrar a memória do pai, cuja imagem havia sido deturpada pelos menos em seus últimos

anos de vida.

Anabazys começa exatamente desta necessidade de reconstruir esse período de A Idade da Terra e a imagem de Glauber. Reconstruir toda uma história fragmentada do cinema e de colar estas partes todas. Uma necessidade muito minha, de reconstruir o discurso de meu pai e me reconstruir dentro do processo. (…) O filme vai muito no ponto dos nós dentro da compreensão dessa história de meu pai, do que eu considerava tabu, das acusações que ele sofreu, esse tipo de coisa que passei minha infância e adolescência inteiras ouvindo. Os ataques, toda a incompreensão sobre ele no Brasil, no processo da Ditadura, que foi muito o que eu vivi. Meu papel foi isso, de ir nesses pontos nevrálgicos e doloridos da história brasileira, que era por onde ele passava, de ele ter se vendido à direita brasileira, ter apoiado os militares, que a gente sabia que não era essa a verdade, e que eram também as

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minhas dores.

O enquadramento da memória do pai também fica clara quando Paloma fala do

relançamento de A Idade da Terra em Veneza, cujo público e juri do festival de cinema o

hostilizou quando da primeira exibição do filme em 1981, episódio que deixou cicatrizes

profundas na família.

Ele precisava voltar à cena e isto era mais forte. Quando fomos à Veneza apresentar o filme, que foi onde tudo aconteceu, foi a redenção tão desejada que estava se concretizando. Teve um jornalista que perguntou o que eu queria fazer. Eu disse: eu queria ressuscitar meu pai (risos). O máximo que eu podia fazer era deixar ele falar. Eu tinha essa necessidade.

O segundo autor a que iremos recorrer é Pierre Nora, que desenvolveu o célebre

conceito de “lugares de memória”, que são os arquivos, as bibliotecas, os dicionários, os

museus, os cemitérios e as coleções, assim como as comemorações, as festas, os monumentos,

santuários, associações, testemunhos de um outro tempo, “sinais de reconhecimento e de

pertencimento a um grupo” em uma sociedade onde tende-se a perder os rituais, a

dessacralizar as fidelidades particulares, onde se nivela por princípio e tende-se a reconhecer

apenas indivíduos iguais e idênticos. Uma vez que haveria uma percepção de que o passado

está se esfacelando cada vez mais rapidamente, os homens trataram de moldar lugares onde o

passado se refugia e se cristaliza, de modo a afastar a ameaça da perda de identidade.

A inauguração do Tempo Glauber é uma mobilização consciente dos familiares do

cineasta baiano de, por meio de uma quantidade considerável de documentos produzidos ou

relacionados ao artista, abrigar a sua memória o mais fidedignamente possível. O Tempo

Glauber talvez seja o “lugar de memória” mais bem organizado e acabado relacionado ao

cinema brasileiro, centro guardião do legado do maior dos seus cineastas. É interessante

relacionar o Tempo Glauber ao caso da Fundação Darcy Ribeiro, que foi objeto de

investigação de um excelente trabalho de Luciana Quillet Heymann. A autora destaca que a

criação de um centro nesses moldes faz parte de um

processo de monumentalização da memória de seu patrono, seja ele seu instituidor, como no caso em questão, seja a instituição produto da ação dos herdeiros, após a morte do titular. Nesse último caso, em geral, a justificativa manifesta da instituição é resgatar e divulgar a memória do personagem, constituindo-se em um espaço para a evocação de sua imagem e a atualização de sua trajetória, lembrada e ressignificada em trabalhos acadêmicos, exposições, eventos e comemorações. (Heymann, 2005: p. 50)

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É interessante notar, portanto, alguns pontos de contato tanto entre as

personalidades e as trajetórias de Darcy e Glauber, quanto também as semelhanças que

podemos identificar nas estratégias de construção e consolidação de suas respectivas

memórias, seja por atuação deles próprios (algo que em Darcy se deu de forma mais intensa),

seja pela presença dos herdeiros diretos (aqui o caso da família de Glauber é mais flagrante).

Parafraseando o termo cunhado por Darcy, poderíamos afirmar que, em função do caráter

grandioso e múltiplo dos seus legados, bem como de seus destacados papéis políticos (apesar

de Glauber não ser figura política stricto sensu), ambos foram personagens “fazedores”.

Cientes da envergadura da herança representada pela obra de Glauber, os

membros de sua família não tardaram em procurar abrigo para o rico e numeroso acervo

produzido pelo cineasta baiano em sua curta trajetória de vida, fato que tomou maior vulto

quando da inauguração do Tempo Glauber, apenas dois anos após sua morte. O trauma

representado pelo falecimento precoce e inesperado de Glauber pareceu provocar, junto aos

seus entes mais próximos, uma busca sem demora para a manutenção da sua memória, como

se esta pudesse se pulverizar caso não ocorresse um ordenamento imediato do seu legado

documental.

O Tempo Glauber foi, portanto, uma maneira de manter viva a memória do

cineasta, no sentido mesmo de memória enquanto fenômeno dinâmico, palco de constantes

transformações, que dialoga com o passado mas que está sempre interagindo com o presente.

Poderíamos dizer, sem correr o risco do exagero, que o Tempo Glauber foi a melhor forma

que a família Rocha encontrou para manter Glauber vivo.

Os primeiros projetos de restauração cinematográfica no Brasil eclodiram por

volta dos anos 1980, juntamente ao surgimento dos laboratórios voltados para esse campo. O

contexto era bastante favorável, em um momento histórico no qual se vivia um resgate do

valor da memória enquanto fator determinante para a cultura e para a política das sociedades

ocidentais. Segundo autores como Andreas Huyssen, a “febre de memória” se acelerou na

Europa e nos Estados Unidos a partir da década de 1980, impulsionada inicialmente pelos

debates cada vez mais constantes sobre o Holocausto. Em certo sentido o Holocausto passou a

ser modelo para outros discursos de memórias, chamando a atenção para experiências

traumáticas particulares:

No movimento transnacional dos discursos de memória, o Holocausto perde sua qualidade de índice do evento histórico específico e começa a funcionar como uma metáfora para outras histórias e memórias. O Holocausto, como lugar-comum

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universal, é o pré-requisito para seu descentramento e seu uso como um poderoso prisma através do qual podemos olhar outros exemplos de genocídio. (Huyssen, 2000: p. 13)

Tanto o surgimento do Tempo Glauber quanto à proliferação de projetos de

restauração de filmes em âmbito mundial parecem se relacionar a essa ânsia pela manutenção

da memória e – ao mesmo tempo e relacionado a ela – pelo temor crescente do esquecimento.

Quando fala em “febre de memórias”, Andreas Huyssen também está apontando para a

tendência de certa espetacularização das memórias, em que a preocupação com estas está

também muito relacionada a “modas” e fetichismos. A criação de bares temáticos com

motivos nazistas seria a radicalização distorcida dessa noção. É importante também chamar a

atenção para o fato de ser perceptível que a maioria dos filmes que vêm sendo restaurados dos

países subdesenvolvidos são aqueles produzidos em algum período de repressão política. No

caso brasileiro, são os filmes do movimento Cinema Novo que vêm recebendo projetos de

restauro, não só pelo já apontado prestígio e capital cultural das famílias dos cineastas, mas

também por terem sido obras gestadas durante o sufoco da ditadura militar.

Os filmes de Glauber, agora restaurados, sedimentam o seu papel de “objetos de

memória”, ou seja, de bens simbólicos que apontam para a trajetória e a afetividade que

marcam Glauber e seus herdeiros. Ganhando nitidez e resoluções novos, além de um melhor

balanceamento de cores e um maior contraste, os filmes reativam a sua importância enquanto

“objetos de memória”, dando maior sentido não só à família que é herdeira direta, mas

também como uma herança cultural brasileira.

E se apontamos os filmes de Glauber Rocha como sendo “objetos de memória”

não seria exagero afirmarmos que sua mãe, d. Lucia Rocha, seja tal qual d. Alzira Vargas, na

feliz expressão de Angela de Castro Gomes, uma “guardiã da memória”.

(...)seu relato, ao delinear o perfil do pai (…) instaurava uma imagem de Alzira sobre ela mesma, cuidadosamente conformada através do tempo: a de guardiã da memória. (Gomes, 1996: p. 20)

Podemos traçar uma série de paralelos entre a trajetória de uma e de outra,

principalmente quando ocorre a experiência da perda. Tanto d. Alzira quando d. Lucia

parecem canalizar praticamente todas as suas energias na tarefa de salvaguardar a memória

quando do falecimento dos seus familiares, de modo que suas trajetórias de vida sofrem

significativas transformações. D. Lucia, inclusive, com a morte de Glauber, ganhou uma

notoriedade pública que não tinha quando seu filho era vivo e atuante. Quanto mais a morte

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de Glauber foi se afastando no tempo, mais sua própria imagem enquanto personalidade

combativa e atuante passou a se confundir com à da mãe.

Antes de morrer, o Glauber me pediu para cuidar das coisas dele, para reunir seus filmes. Com tanta coisa que me aconteceu, depois de passar pelo sofrimento com a morte dos meus filhos e do meu marido, eu nem sei como resisti. (...) No início eu fui muito acusada, de que não ia conseguir. (…) Eu continuei, viajei muito, catei artigos no mundo todo. Não venci tudo porque a falta de dinheiro é a maior dificuldade. Mas ainda assim o “Tempo Glauber” está aí.

Um aspecto a ser ressaltado na trajetória de Glauber Rocha é a multiplicidade da

sua produção artística, em que seus filmes, apesar de serem os objetos de maior repercussão e

reconhecimento públicos, compõem apenas uma parte de um heterogêneo conjunto de

trabalhos. Além dos filmes, o legado de Glauber é composto de textos, entrevistas, desenhos,

poemas, romances, storyboards, rascunhos, receitas médicas, bilhetes, grafismos etc. Essa

espantosa produção é reflexo de uma personalidade múltipla e irrequieta, de modo que parecia

haver, por parte do artista baiano, uma urgência em produzir e publicar o máximo que fosse

possível em um curto espaço de tempo.

Glauber parecia prever uma existência meteórica e, em função disso, parecia

querer deixar, o quanto antes, um legado farto e solidamente construído. Isso é possível de ser

observado na constância em que o tema da morte surge ao longo de sua obra, seja em filmes,

seja em cartas. Mesmo na sua juventude, a morte e o sentido de posteridade já eram grandes

questões nos seus escritos e na sua produção como um todo, havendo de quando em vez um

tom apocalíptico e auto-destrutivo presente nas suas palavras. Suas correspondências em carta

datam de 1953 a 1981, cobrindo portanto dos seus 13 aos seus 42 anos, parte desse montante

reunido no já clássico Cartas ao mundo (Companhia das Letras). O título da publicação é

feliz ao deixar entrever o propósito e o espírito de Glauber ao trocar correspondências: nas

cartas, o cineasta baiano não se propunha somente a relatar sua intimidade e trocar

confidências, mas sobretudo havia uma necessidade da falar de si através do outro e, mais do

que isso, bradar ao mundo sobre a urgência da sua obra.

O estilo e o tom que Glauber dava aos seus escritos remetem àquilo que Michel

Foucalt chamava de “escrita de si”. Somadas às suas obras, as cartas de Glauber pareciam

constituir em um corpo completo, onde vida privada e figura pública constantemente se

misturavam, sendo esse um corpo racional e de ação. A militância de Glauber se fazia

presente nas linhas e entrelinhas dos seus escritos. Nas palavras de Foucault:

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O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constitui, um “corpo”. E é preciso compreender esse corpo não como um corpo da doutrina, mas sim (...) como o próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez a sua verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue”. Ela se torna no próprio escritor um princípio de ação racional. (Foucault, 2006: p. 152)

Nas cartas, Glauber não pretendia se manter ao nível do íntimo e do privado, mas,

ao contrário, visava, através delas, tudo exteriorizar. Por ser o maior propagador e divulgador

do cinema brasileiro aqui e alhures, Glauber pretendia se fazer presente também por meio das

cartas, como uma presença imediata e com voz ativa. Conforme atesta Foucault, “escrever é

‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro.” Portanto, a carta seria

um modo de olhar sobre o destinatário e, ao mesmo tempo, ao falar sobre si, uma maneira de

se oferecer ao olhar do outro.

De acordo com Foucault, diante dessa intensa troca de olhares e experiências, as

cartas proporcionariam um encontro quase físico, face a face. Haveria na troca de

correspondências não apenas uma intenção de dar conselhos ou de oferecer ajuda de parte a

parte, mas sobretudo um sentido de atitude, de ação, em que um examina o outro, e ao mesmo

tempo se autoexamina. O trabalho que se opera no destinatário também acontece com o

próprio sujeito que envia a carta, mas devemos compreender essa operação menos como um

deciframento de si mesmo e mais como uma abertura ao outro sobre si próprio.

E Glauber Rocha parecia ter plena consciência dessa operação, pois seus escritos

tinham a intenção não só de revelar a si mesmo e ao outro, como a muitos outros, os quais não

se restringiam a um destinatário específico. Ao enviar uma carta a Darcy Ribeiro, por

exemplo, Glauber não estava apenas tratando de temas que eram comuns a remetente e

destinatário, não estava somente se debruçando sobre este e aquele tema, este ou aquele filme,

mas sobretudo proferindo algo cuja recepção haveria de ser ampla, de dimensões políticas.

Isso é perceptível desde sua primeira carta, aos 13 anos, na qual procura justificar

a apresentação de teatro que fez na escola a seu tio. Fora a erudição algo precoce para um

jovem dessa idade, é de se notar já naquele momento certa propensão a mobilizações e a

angariar capital cultural. E, por meio da “escrita de si”, também já está claramente

evidenciada a vaidade artística que seria uma das suas marcas registradas da sua maturidade:

Bem, deixaram o argumento a meu cargo. Que fiz? Vim para casa e lutei em busca de um assunto invulgar, um assunto que revolucionasse a “turma”. Precisamos entregar tudo no dia seguinte. Pensei, pensei e nasceu-me aquela idéia. Rápido minha pena desenhou no papel todo o enredo. (...) Aquela peça absolutamente não

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revela a minha personalidade (pois penso que um escritor deve escrever o que pensa e o que sente, enfim deve expressar a sua própria filosofia). (Bentes, 1997: p. 78)

O que vem à tona nas missivas é, muitas das vezes, uma indistinção entre seus

escritos e suas obras, uns tendo a tarefa de reafirmar e completar os outros reciprocamente,

mas sempre tendo como missão disseminar a produção de sua geração, bem como

eventualmente atacar os inimigos mais evidentes. Em carta de 1968 a Alfredo Guevara,

intelectual de prestígio e diretor à época da revista Cine Cubano, Glauber oferece, por

exemplo, um panorama exaltativo da produção brasileira recente, aproveitando para dar uma

demonstração de força política e coragem ao conseguir barrar uma tentativa de censura a um

de seus textos mais célebres:

[...] terei muito a fazer em nossa organização de Cinema Novo, que é, apesar de tudo, uma das raras coisas que ainda produz positivamente no Brasil, apesar de todas as dificuldades políticas de vários fronts. [...] Mas, apesar disto, o nosso grupo está se fortalecendo, Saraceni terminou seu último filme, Capitu (belíssimo), Gustavo Dahl terminou seu primeiro filme, O bravo guerreiro, fortíssimo, mostrando que é impossível conciliar com a burguesia para fazer revolução, Walter Lima Jr. está filmando Brasil Ano 2000 e Paulo Gil terminou Proezas de Satanás, Iberê Cavalcanti, A virgem prometida etc. Nossa distribuidora está ficando auto-suficiente e o público aumenta: mas a censura está feroz e estamos enfrentando guerras de todos os fronts. O Departamento de Polícia Política fez uma análise-processo do meu artigo “Estética da fome”, publicaram a acusação, eu enfrentei e agora já assumi publicamente minhas posições: é uma forma de se expor mais e encorajar outros. É uma pequena e insignificante revolução mas é mais positivo fazer estes filmes do que falar da revolução nos bares e nas praias (Bentes, 1997: p. 308).

É importante lembrar que o fato desse imenso conjunto de cartas ter sobrevivido e

ter sido devidamente bem preservado é sintomático de uma personalidade extremamente

preocupada e ciosa de sua memória, sobretudo aquela de natureza pública. Guardar

correspondências desde os 13 anos de idade não é prática usual e inocente. Ao contrário, já

parecia haver por parte de Glauber e de d. Lúcia Rocha – co-responsável pela preservação dos

documentos do filho – uma forte intuição da noção de posteridade, da necessidade imperiosa

de juntar os registros documentais de uma vida intensa e artisticamente relevante. A

insistência de Glauber no tema da morte parecia estar diretamente relacionada à urgência das

suas ações e da sua produção intelectual, de modo que a preservação criteriosa de seu legado

documental seria essencial para que sua glorificação futura fosse a contento. Construído logo

após seu falecimento, a inauguração do Tempo Glauber enquanto centro catalisador da

memória do cineasta foi a consolidação desse arranjo, uma maneira de sistematizar o seu

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conjunto documental, que se encontrava mais ou menos disperso.

Dentro do legado glauberiano, portanto, é tarefa ingrata tentar apartar rigidamente o

que seria propriamente produção escrita daquilo referente à sua produção filmográfica, uma

vez que ambos se intercomunicam, em uma espécie de processo de contaminação. É possível

identificar, nos escritos de Glauber, uma série de pistas daquilo o que é reiteradamente visto

nas telas, e, do mesmo modo, a urgência e a radicalidade propostas em seus filmes estão

presentes, em maior ou menor grau, tanto nos seus ensaios quanto nas suas trocas de

correspondências. Ismail Xavier, ao prefaciar o antológico Revolução do Cinema Novo, é

preciso ao apontar para tal indistinção entre texto e filme na produção de Glauber:

Foi dentro de um jogo político de larga amplitude que emergiram os textos reunidos em Revolução do Cinema Novo, uma coleção que reitera a defesa do cinema de autor e evidencia uma articulação entre reflexão crítica e criação estética que esteve presente desde os primeiros passos de sua crítica. Em 1958, ao resenhar o filme Raíces, do mexicano Benito Alazracri, Glauber já estava delineando o que seria a estética de Deus e o diabo na terra do sol. (Xavier, 2004: p. 16)

A intenção em se debruçar sobre a volumosa produção escrita de Glauber Rocha não

tem aqui apenas a função de cumprir o seu sentido tradicional enquanto fonte escrita, pois,

uma vez que estamos lidando com um artista que estabelece cruzamentos estéticos diretos

entre texto e tela, entender a linguagem glauberiana não é apenas assistir aos seus filmes mas

também estar atento aos seus escritos. Isto posto, toda a discussão conceitual sobre a

restauração dos seus filmes, dentro da chave da linguagem pretendida por este trabalho, deve

forçosamente partir também da produção escrita do cineasta, de modo a enriquecer e melhor

fundamentar o debate. Muito dos questionamentos a respeito das intervenções de restauro nos

filmes de Glauber pode e deve ser iluminado pelos próprios textos do cineasta, pois se este

teve como preocupação deixar um vasto e intenso legado escrito, onde suas questões estéticas

já estavam dadas, a própria discussão da ética da restauração deveria passar por uma

investigação apurada dessa produção não-fílmica.

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Cinemateca Brasileira: www.cinemateca.com.br

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International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property

(ICCROM): www.iccrom.org

International Federation of Film Archives (FIAF): www.fiafnet.org

Library of Congress – Preservation: www.loc.gov/preserv