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  • A HISTRIA DO MORRO DO HOSPCIO (SO FRANCISCO DO SUL): PRIMEIROS PASSOS DO ESTUDO NA PERSPECTIVA DA

    CULTURA MATERIAL - BANDEIRA, Dione da Rocha; BORBA, Fernanda Mara; ALMEIDA, Graciela Tules de

    Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,

    ISSN 2316-266X, n.3, v. 8, p. 119-136

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    A HISTRIA DO MORRO DO HOSPCIO (SO FRANCISCO DO SUL):

    PRIMEIROS PASSOS DO ESTUDO NA PERSPECTIVA DA CULTURA

    MATERIAL

    BANDEIRA, Dione da Rocha Professora do Mestrado em Patrimnio Cultural e Sociedade - Univille

    [email protected]

    BORBA, Fernanda Mara

    Mestrado em Patrimnio Cultural e Sociedade - Univille

    ALMEIDA, Graciela Tules de Mestrado em Patrimnio Cultural e Sociedade - Univille

    RESUMO

    O stio arqueolgico Morro do Hospcio (Parque Ecolgico Municipal Celso Amorim Salazar Pessoa,

    So Francisco do Sul, Santa Catarina) foi objeto de uma pesquisa realizada pela Universidade da Regio de Joinville (Univille) com o intuito de estabelecer seus limites e as reas de maior concentrao de

    materiais arqueolgicos, bem como produzir informaes sobre as ocupaes antigas e as mudanas

    ocorridas ao longo do tempo no local. A partir do dilogo entre a cultura material, os documentos e

    depoimentos orais foi possvel entender de que modo o espao e suas diferentes funes integrou o territrio e a paisagem da antiga vila e depois cidade de So Francisco do Sul. Acredita-se que a cultura

    material revela sentidos, pois fruto das relaes sociais e identitrias, dos significados atribudos no

    (ao) tempo e no (ao) espao pelos indivduos, a partir de intenes construdas cotidianamente.

    Palavras-chave: Cultura material, Arqueologia histrica, So Francisco do Sul.

    ABSTRACT

    The archaeological site of Morro do Hospcio (located at Municipal Ecological Park Celso Amorim

    Salazar Pessoa, So Francisco do Sul, Santa Catarina) was a subject of study in a research conducted by Universidade da Regio de Joinville (Univille) in order to establish its limits and the areas of greatest

    archaeological materials concentration, as well as to produce information about ancient occupations and

    changes over the time. Based on the material culture, documents and oral testimonials it was possible to understand how the area and its different functions was incorporated in the territory and the landscape

    of the old So Francisco do Sul town. The material culture is the result of social and identity interactions,

    revealing the meaning attributed to time and space by individuals from their daily constructed intentions.

    Key-words: Material Culture, History Archaeology, So Francisco do Sul.

    O Morro do Hospcio uma rea situada no Centro Histrico de So Francisco do Sul,

    Santa Catarina, entre as ruas Fernandes Dias, Quintino Bocaiuva, Manoel Loureno de Andrade

    e Rafael Pardinho (Figura 1) com 16.500 m2, aproximadamente. O Centro Histrico, constitudo

    de casario que remonta ao perodo colonial, foi tombado em 16 de outubro de 1987 pelo Iphan

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    (processo de tombamento n. 1.163-T-85/SPHAN), inscrito nos Livros do Tombo Arqueolgico,

    Etnogrfico e Paisagstico (fl. 50 55, n. 101) e Histrico (Volume II, fl. 2 5, n. 518).

    Durante o processo de tombamento foram feitos estudos pela historiadora Marcia

    Regina R. Chuva e pelo arquiteto Jos Simes de B. Pessoa, profissionais do Iphan na poca, a

    partir dos quais afirmam a importncia da pesquisa arqueolgica no Morro do Hospcio e ainda

    que os remanescentes presentes no local, naquele momento, seriam do prdio

    mais significativo. [...] S nos restaram fotos antigas de suas runas; o crescimento da vegetao do morro nos impede de saber, pelas fotos atuais, o

    estado em que esto seus vestgios. Deve-se atravs da necessria pesquisa

    arqueolgica conseguir o resgate de maiores informaes, pois pertenceria a

    tipo mais importante de edificao religiosa denotada pela preocupao

    de uma implantao que o destacasse do conjunto (BRASIL, 1986, p. 17-

    18) [grifo nosso].

    Figura 1 Localizao do stio arqueolgico Morro do Hospcio (azul) no Centro Histrico de So Francisco do Sul (vermelho)

    Fonte: Google Earth adaptado por Alves (2014).

    Entre as informaes conclusivas, os tcnicos inserem o Morro do Hospcio, juntamente

    com os morros do Rdio e da Caixa Dgua, na proposta de tombamento e de delimitao do

    Centro Histrico (BRASIL, 1986, p. 20).

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    Devido antiguidade e presena de runa de antiga igreja, o Morro considerado um

    stio arqueolgico histrico. Com o projeto de criao de Parque Municipal na rea, foi

    necessrio realizar prospeco arqueolgica cujos objetivos foram: delimitar o stio e os locais

    de concentrao de materiais arqueolgicos, levantar informaes histricas, e avaliar os

    impactos causados pelas obras do Parque, iniciadas antes da finalizao dos estudos

    arqueolgicos. As metodologias empregadas no estudo envolveram levantamento de: (1)

    vestgios arqueolgicos acima e abaixo da superfcie, valendo-se de caminhamentos e

    sondagens sistemticos; (2) informaes sobre a histria do centro histrico e do Morro do

    Hospcio, a partir da reviso da literatura; (3) documentao textual, iconogrfica e oral e (4)

    topogrfico cadastral com a locao das sondagens e evidncias identificadas. O mapeamento

    topogrfico foi realizado com escner a laser, equipamento que permite a projeo de imagem

    3D a partir de pontos topogrficos registrados. Tambm se fez anlises preliminares de

    laboratrio dos materiais coletados. As fontes documentais (textuais e orais) foram pesquisadas

    nos acervos do Arquivo Histrico de Joinville, do Museu Histrico de So Francisco do Sul, e

    do Museu Nacional do Mar (So Francisco do Sul), da Universidade da Regio de Joinville, e

    ainda atravs de entrevistas com moradores da cidade.

    O projeto de prospeco foi realizado pela Univille a partir de contrato de prestao de

    servio firmado com a Prefeitura Municipal de So Francisco do Sul que prev ainda a

    escavao arqueolgica do stio a realizar-se to logo o Iphan emita parecer sobre o relatrio

    da prospeco. Para alm do interesse na caracterizao do stio tendo em vista o

    empreendimento, o projeto teve como objetivo responder as seguintes questes: quais os tipos

    de ocupaes se sucederam no Morro do Hospcio: hospedaria, igreja e cemitrio? Como as

    mudanas ocorreram ao longo do tempo e de que modo o espao e suas diferentes funes

    integrou o territrio e a paisagem da Vila e depois cidade de So Francisco do Sul?

    A partir do projeto urbanstico concebido e executado pela Prefeitura Municipal de So

    Francisco do Sul e Programa Monumenta, do Iphan, foram implantados passeios, espaos

    arborizados e vegetao paisagstica, decks de contemplao, ilhas de descanso alm de um

    edifcio sede de apoio ao receptivo e administrativo do parque (Memorial Descritivo 3

    Cadernos de Encargos Parque Ecolgico Municipal - 2012, p. 2). Alm das estruturas citadas,

    o projeto tambm contemplou obras de drenagem da elevao e iluminao.

    So Francisco do Sul a cidade mais antiga de Santa Catarina, reconhecida como Vila

    de Nossa Senhora da Graa de So Francisco em 1660 (PEREIRA, 1984: 43). A despeito de

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    relatos sobre o povoamento da baa da Babitonga ainda no sculo XIV, o mais provvel que

    as primeiras famlias, lideradas por Manoel Loureno de Andrade, tenham aqui se estabelecido

    por volta de 1658. De acordo com Cabral, So Francisco foi a primeira fundao estvel criada

    na costa catarinense, limitada ao norte com o Trmo da Vila de Paranagu, pela parte austral

    da baa de Guaratuba; e, ao sul, com o Trmo da Vila de Laguna, pela parte norte da enseada

    das Garoupas (CABRAL, 1968).

    Para assegurar a posse da regio, foram concedidas sesmarias na ilha de So Francisco

    e continente, cabendo a Manoel Loureno de Andrade a rea da vila at as Laranjeiras,

    ficando-lhes ao lado as de Luis Rodrigues Cavalinho [seu genro], que se

    alongavam, como aquelas, at o mar grosso, compreendendo a lagoa Acara. Neste perodo, tambm foram cedidas sesmarias em Iperoba, Pennsula do Sa

    [para Antnio Francisco Francisques], Rio Parati [para Francisco Alves

    Marinho], Ilha do Mel [para Vicente Arriolos], Rio Pinheiros - alm de outros mais, pelas vizinhanas (CABRAL, 1968, p. 35).

    Morro do Hospcio: a Capela So Jos, o Hospcio e o Cemitrio

    Distante da Igreja Matriz 50 braas cerca de 110 metros , a histria do Morro do

    Hospcio teve incio em 1681 com a edificao de uma capela sob a invocao de So Jos a

    partir da iniciativa de Isabel da Cunha que, segundo Pereira (2004), era viva de Sebastio

    Alves Marinho, um dos povoadores da ento Vila de So Francisco. Posteriormente, com a

    fundao da Ordem Terceira da Penitncia do Padre So Francisco, a capela foi requerida,

    segundo uma certido de:

    10 de setembro de 1751, pelo vigrio Joo Batista de Azevedo, de acordo com

    o livro de Tombo da matriz e o requerimento da mesma Ordem, que essa capela no tinha patrimnio e fora feita pela fundadora, custa de sua fazenda,

    sem licena do Ordinrio; era de pedra e cal, e ento s possua um ornamento

    usado, sendo os demais roubados pelos piratas [...] (PEREIRA, 2004, p. 131).

    A Ordem Terceira da Penitncia teria sido fundada em 1221 por So Francisco de Assis,

    sendo responsabilidade do Papa Leo XIII em codificar seus princpios e regras

    (ALEXANDRE, 1972). De acordo com o Frei Baslio Rower, a instituio teria chegado no

    Brasil por volta de 1700 e, em So Francisco do Sul, entre 1733 e 1751, perodo da concesso

    do Morro do Hospcio (ALEXANDRE, 1972, p. 46). Com a permisso do Ouvidor Geral Porto

    Carreiro, em 1752, a capela foi incorporada ao patrimnio da Ordem que, dois anos depois, foi

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    nomeada e instituda sua administradora perptua. Nesse mesmo ano a Cmara havia concedido

    o Morro do Hospcio, passando Ordem a carta de data de 1752. Ali propunha-se reparar e

    conservar e [...] fazer seus exerccios espirituais e sua festa anual para bem e salvao das

    almas (PEREIRA, 2004, p. 131). Trs anos depois, em 1755, D. Frei Antnio do Desterro,

    ento Bispo do Rio de Janeiro e membro do Conselho de S. M. Fidelssima, fazia graa e

    doao para sempre de tal capela de S. Jos (ALEXANDRE, 1972, p. 46 e PEREIRA, 2004,

    p. 131) aos religiosos.

    Com o tempo, a capela foi destruda para dar lugar construo de um templo maior,

    levantando-se apenas as paredes laterais, o arco cruzeiro e a parede do fundo (COELHO, 1877

    apud PEREIRA, 2004, p. 131). Alm da ampliao da igrejinha, mandada edificar por Isabel

    da Cunha, a Ordem tambm teria construdo uma residncia em local no especificado para

    os religiosos considerando que o Governo da Metrpole no permitia no perodo a construo

    de conventos (ALEXANDRE, 1972, p. 46). De acordo com o pesquisador Ozrio, em 1783, a

    Capela ameaou ruir, fazendo com que os frades mudassem de local: diz-se que tal mudana

    [sendo os frades retirados entre 1796 e 1797] gerou certa decadncia na instituio em nossa

    cidade, situao que estendeu-se [sic] at o final do sculo 18, quando houve uma

    desestruturao em geral da ordem no sul do pas (OZRIO, 2011, p. 18).

    Registros sobre o Morro do Hospcio no incio do sculo seguinte foram feitos pelo

    viajante francs Saint-Hilaire, quando visita a regio em 1820, discorrendo sobre a vila e

    mencionando a rea:

    A vila de S. Francisco tem, mais ou menos, a forma de um quadriltero, mais

    largo nas margens do canal que nos outros lados. Ela se acha comprimida entre

    dois morros de altura desigual: o mais elevado, situado leste, denomina-se

    Morro da Vila, e coberto de mata virgem, e o outro, chamado Morro do Hospcio, ao norte da enseada, revestido de relva e espinheiros, terminando

    num terrapleno onde existem as rumas de uma igreja e algumas paineiras,

    cujas folhagens, sacudidas pela mais leve aragem, contrastam com a immobilidade das florestas circunjacentes (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 84).

    Anos depois, segundo Alexandre (1972) e Pereira (2004), o Coronel Francisco de

    Oliveira Camacho, no momento em que era deputado da Assembleia Legislativa Provincial,

    obteve em 23 de abril de 1839, uma resoluo que concedia licena para os devotos do Hospcio

    reedificarem a igreja e reorganizarem a Ordem Terceira com a obrigao de lhe anexar um

    hospital. Assim

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    [...] ficariam pertencendo os legados pios no cumpridos, deixados por

    pessoas do municpio, e o produto da taxa sobre a matrcula dos marinheiros das embarcaes despachadas na mesma cidade (So Francisco do Sul). Mas

    o prestimoso cidado parece ter se achado s ou encontrou obstculos

    insuperveis para levar a efeito a execuo da Resoluo, por cuja promulgao se empenhara (PEREIRA, 2004, p. 132).

    A Assembleia Legislativa mandou ento recolher em benefcio do Imperial Hospital da

    Capital da Provncia, uma importncia j em depsito da arrecadao da taxa dos marinheiros

    citados e que, pelo documento, se destinava manuteno do hospital que se fundaria na vila

    de So Francisco do Sul.

    Nesse perodo, mais precisamente em 1846, possvel visualizar a representao do

    Morro do Hospcio, com indicao das construes na poca na planta topogrfica de mesma

    data (Figura 2). De acordo com Pauli (2010), o centro da cidade foi

    implantado sobre pequena elevao [apresentando], portanto, uma malha

    reticulada relativamente regular, mas no de modo ortogonal, em xadrez,

    caracterstica que se seguiu nas reas de ocupao mais recentes. A conformao entre morros e o mar deu ao stio [o Centro Histrico] ambincia

    excepcional e forte centralidade quanto ao ncleo urbano, que atualmente

    ainda se faz presente. Essa especificidade reforada pela existncia do porto,

    hoje a principal atividade econmica de So Francisco do Sul, ligando todo o desenho da cidade a sua orla martima (PAULI, 2010, p. 45).

    Segundo esta autora, o Morro do Hospcio, assim como os demais e o mar, permitiu que

    essa regio fosse resguardada, sendo estes tambm apontados como elementos importantes no

    momento do tombamento do Centro Histrico, discutido mais a frente.

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    Figura 2 Planta Topogrfica da Vila de So Francisco, em destaque o Morro do Hospcio.

    Fonte: Museu Histrico de So Francisco do Sul (1846).

    A Ordem, responsvel nesse momento pelo Morro do Hospcio, foi, porm,

    reorganizada somente em 1859 e quatro anos depois (1863) esta voltou a se interessar pela

    concluso da obra. De acordo com Pereira (1984), os estatutos da Ordem foram aprovados em

    2 de outubro de 1859, segundo o registro da placa mandada colocar na entrada do novo edifcio

    do Hospital, sendo essa data considerada a da fundao da aludida casa de caridade (PEREIRA,

    2004, p. 133).

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    A respeito da capela, ainda nesse perodo, tem-se o olhar do imigrante prussiano

    Theodor Rodowicz-Oswiecimsky que escreveu a obra A Colnia Dona Francisca no Sul no

    Brasil, relatando suas experincias como imigrante da antiga colnia (atual Joinville), local

    onde aportou em 1851. No relato desse estrangeiro, encontram-se informaes e gravuras da

    Colnia, mas tambm da Vila de So Francisco, destacando-se na obra a mais antiga paisagem

    desenhada da cidade, registrada em papel (Figura 3).

    Figura 3 Cidade de So Francisco do Sul e Capela de So Jos (detalhe) em 1852.

    Fonte: Rodowicz (1852).

    Na imagem possvel visualizar a pequena capela de So Jos, com uma torre central e

    sua abertura principal voltada para oeste, com uma tipologia construtiva bem diversa daquela

    apresentada em fotografias posteriores. A cidade, de acordo com a gravura de Rodowicz,

    apresenta igualmente inmeros prdios, mostrando que naquele momento j passava por um

    perodo importante de desenvolvimento.

    A Ordem, nesse momento organizada, voltou, em 1963, a se interessar pela continuidade

    da construo da igreja, porm dada a impossibilidade de tal ao a partir somente de doaes,

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    tomou um emprstimo, deliberado em Assembleia Geral, em juros, ao cofre de Nossa Senhora

    da Graa, uma quantia de 1: 100$000 (conto de ris), solicitando ao Dr. Corregedor da Comarca

    a autorizao necessria, justificando:

    Que estava a Ordem construindo no Morro do Hospcio a sua capela, a qual j

    se achava em estado de cobrir-se; acontecia, porm, no poder faz-lo por falta

    de meios pecunirios; e, como essa demora da cobertura podia trazer graves prejuzos obra j feita, resolvia, por semelhante motivo, em sesso magna,

    tomar por emprstimo a importncia cima, ficando a Ordem obrigada por seus

    havidos e por haver (Livro de Atas do Hospital apud PEREIRA, 2004, p. 132).

    No ano seguinte, quando a parede frontal estava quase pronta, sucede a mesma partir-

    se, bem como a do lado do norte, tendo os pedreiros declarado que era necessrio demolir tudo

    quanto se achava partido, isto , a frente e uma parte do lado, para ser edificado de novo,

    engrossando-se a parede da frente mais do que a que existia (PEREIRA, 2004, p. 132). As

    obras foram sustadas at ulterior deliberao da Mesa Administrativa tendo esta, em sesso em

    29 do ms de fevereiro, concordado com o parecer dos trabalhadores. Porm, devido a

    problemas financeiros e com a prpria estrutura j feita (que sofreu vrias rachaduras), a

    construo no pde ser concluda, ficando as paredes preservadas at a dcada de 1920.

    O nome Morro do Hospcio, segundo os levantamentos de Alexandre (1972) e Silveira

    (s.d.), foi adotado em funo de que no passado, o termo hospcio tambm era utilizado para

    denominar locais onde se tratavam doentes e necessitados, bem como residncias eclesisticas

    (que prestavam aes de caridade).

    OS ENTERRAMENTOS

    Outro ponto a ser mencionado a respeito do local so os enterramentos de escravos e

    homens livres feitos na capela entre 1783 e 1825, registrados nos livros de bitos da freguesia

    (JOINVILLE, 1783-1825), que totalizam 65 pessoas 24 cativos e 41 livres.

    A prtica do enterramento de fieis no interior das igrejas iniciou, na Europa, no sculo

    VIII, perdurando at ao sculo XIX (CARVALHO, 2003 apud ALVES, 2013), sendo a religio

    catlica a instituio de regulamentao da vida das sociedades pretritas. O fiel era a todo

    tempo lembrado da sua caracterstica finita do ser e do temor do inferno e, segundo Galvo

    (1995 apud MACEDO, 2011, p. 38), com base neste temor, a Igreja determinou o

    comportamento e a prtica cotidiana a ser seguida pelos seguidores. O sepultamento em local

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    sagrado era considerado condio fundamental para a salvao da alma do indivduo. Os

    sepultamentos ad sanctos (no interior da edificao, em locais prximos de santos e suas

    relquias, altar dos sacramentos, sob as pedras da nave ou do claustro), permitiam que o morto

    fosse lembrado constantemente em sua comunidade. Porm, a partir da transformao de novas

    polticas sanitrias e hbitos de higiene, pblica e privada, este tipo de prtica passou a ser

    combatida por considerarem os cadveres como perigosos transmissores de doenas (LIMA,

    1994, p. 89).

    A respeito dos nomes levantados e das informaes associadas, pode-se apontar que, a

    princpio, no havia uma distino tnica ou social no enterramento no cemitrio da Capela So

    Jos, considerando que ali foram alocados escravos e suas parentelas bem como indivduos de

    famlias importantes como os Gomes de Oliveira, Oliveira Camacho e Miranda Coutinho. Por

    outro lado, no se sabe a localizao dos sepultamentos desses indivduos um dado importante

    para a tessitura de comentrios sobre distino e status social. Os registros apontam que, entre

    1804 e 1806, no houve enterramentos de indivduos livres, somente de cativos. A nica

    informao recuperada nos registros eclesisticos a meno de dois escravos no adro da

    capela.

    OS OUTROS USOS E A DESTRUIO

    Segundo os levantamentos de Teixeira e Lima (2003), muitas geraes, na sua infncia,

    brincaram junto s runas ora desaparecidas, da Igreja de So Jos. E com o decorrer do tempo,

    essas runas foram se envolvendo em lendas, nas quais figuravam aparies de frades, tesouros

    enterrados e subterrneos misteriosos (TEIXEIRA; LIMA, 2003, p. 6). De acordo com Ozrio

    (2011, p. 18), histrias descrevem um longo tnel que ligaria a Igreja Matriz ao local da antiga

    capela e tesouros enterrados. Existe uma outra que conta sobre um homem negro, chamado

    Thiago, que juntamente com sua grande famlia, residia no morro, suscitando dvidas e temores

    nas pessoas. Esse,

    apesar de ser conhecido como um sujeito de bom corao, Thiago era muito

    esquisito, a respeito do qual muito se falava, inclusive que o negro velho tinha

    ligao com os seres das trevas, outros afirmavam que s sextas-feiras, em

    noites de Lua Nova, Thiago ficava invisvel, em frente sua velha cabana o enxergando-se apenas a brasa de seu cachimbo de barro (fato compreensvel

    numa noite escura...). Outros acreditavam que o prprio Thiago que derrubava

    os arcos, outros achavam que estes acontecimentos eram obras de fantasmas (OZRIO, 2011, p. 18).

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    Em janeiro de 1913, a propriedade passou a pertencer ao Doutor Abdon Batista,

    comerciante, e sua mulher Augusta de Oliveira Batista, moradores de Joinville pelo valor de 80

    contos de ris (Alexandre, 1972, p. 46) (Livro 3-B de Transcrio dos Imveis). Em maro do

    mesmo ano, o local foi vendido para a Companhia Brazil Railway pelo valor de 80:000$000

    (conto de ris) (Livro n. 3-E de Transcrio de Imveis) que, naquela poca, se referia a um

    terreno com 42.000 metros quadrados, denominado Morro do Hospcio, e suas respectivas

    faldas e bases.

    Naquele perodo, segundo Silveira (s.d.), era ainda possvel visualizar os antigos

    caminhos do Morro do Hospcios e

    Alcanar as largas e vetustas paredes de pedra, sem reboco, entre cujas fendas,

    grossas razes de figueiras e aroeira firmavam ramos virentes, em constante

    fardalhar passagem da virao. Na encosta do morro se notam ainda

    vestgios da sinuosa estrada que pela parte sul, conduzia branca e modesta

    capelinha. Outra levava em sentido oposto, fonte, antigamente conhecida

    por Fonte dos Frades, localizada a margem da hoje rua Quintino Bocaiuva, no

    lugar onde hoje esto os armazns da firma Hoepcke (SILVEIRA, s.d.).

    Segundo os estudos do Iphan (1986), a estrada de ferro So Paulo-Rio Grande, com

    ramal So Francisco do Sul-Porto Unio, foi iniciada em 1905, fazendo parte do processo de

    integrao das regies do norte do Estado. Com isso

    a vida econmica do municpio desloca-se definitivamente para a Baa

    Babitonga, o porto de So Francisco torna-se o entreposto do hinterland norte catarinense e, os remanescentes da agricultura passam a trabalhar na

    estiva (BRASIL, 1986, p. 10)

    A Companhia Estrada de Ferro So Paulo Rio-Grande vendeu o imvel por meio de

    compra e venda feita para a Superintendncia da Empresas Incorporadas ao Patrimnio da

    Unio, com sede na Capital Federal, em setembro de 1913 (Livro 3-B de Transcrio de

    Imveis). A partir de 1917, a Companhia Brazil Railway e suas subsidirias entram em regime

    de concordata, suas atividades so encampadas e passam ao controle da Unio exceto a

    Southern Brazil Lumber e Colonization Company, que sobrevive at 1938, quando finalmente

    estatizada no governo Getlio Vargas.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/1938http://pt.wikipedia.org/wiki/Get%C3%BAlio_Vargas

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    De acordo com Pereira (2004), o arrasamento das velhas paredes da igreja de So Jos

    se deu com o pretexto que as runas davam cidade uma impresso de decadncia. Foi durante

    a gesto da Administrao Municipal do Superintendente Municipal Dr. Eugnio Muller que,

    em 1921, foram demolidos os lendrios paredes. Nas palavras de Silveira, com a destruio,

    privou-se lamentavelmente, s geraes porvindouras, admirar aquele marco, para ns

    verdadeira relquia, que bem sintetizava [sic] o trabalho, a tenacidade e principalmente, a f dos

    nossos avoengos (SILVEIRA, s.d.) (Figura 4).

    Figura 4 Runas da Capela de So Jos.

    Fonte: Acervo do Museu Histrico de So Francisco do Sul (s.d.).

    A Superintendncia das Empresas Incorporadas ao Patrimnio da Unio, no momento

    representada por seu superintendente, Doutor Mario Pires, mdico brasileiro que residia na

    capital, vendeu a rea para Roberto Armando Hartmann Robaina, comerciante, e sua esposa

    Edna Ramos Robaina, do lar, em dezembro de 1957 (Livro 3-I de Transcries das

    Transmisses). O local, por sua vez, foi vendido por Roberto Armando Hartmann Robaina, e

    sua esposa, em outubro de 1966 para Celso Amorim Salazar Pessoa, comerciante brasileiro da

    cidade (Livro 3-M de Transcries das Transmisses).

    A transformao de rea privada para pblica iniciou em 2010, quando a Prefeitura

    Municipal de So Francisco do Sul comprou o terreno do Morro do Hospcio da famlia de

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    Celso Amorim Salazar Pessoa, a partir de seu esplio. De acordo com o processo, a rea se

    referia, naquele momento a:

    uma Gleba de Terras, denominada lote n. 15 (quinze), situada no centro e zona urbana dessa cidade, abrangendo o Morro do Hospcio, contendo dita gleba a

    rea total de dezenove mil, oitenta e seis metros e noventa e oito (19.086, 98

    m2) centmetros quadrados, de forma irregular, e limita-se pelas divisas dos fundos dos prdios situados nas ruas Babitonga, Joinville, Armada, Rafael

    Pardinho, Fernandes Dias e Vigrio Benjamin Carvalho, tendo acesso por

    quatro estradas, indicadas em plantas, conforme se verifica na planta na escala

    1:500, que fica fazendo parte integrante desta escritura, a linha poligonal desmembrada de uma rea primitiva de (42.000 m2), corre praticamente na

    cota positiva de (10,00 m) metros (SO FRANCISCO DO SUL, 2010).

    A ao de desapropriao da rea movida pela Municipalidade foi feita em maro de

    2010, sendo o local declarado como utilidade pblica para fins de desapropriao j em

    novembro de 2005, conforme Decreto Municipal n. 367/2005, para a implantao de um Parque

    Municipal Ecolgico.

    Posteriormente s diversas alteraes feitas no Morro do Hospcio, a vegetao do local

    foi restabelecida, no sendo mais possvel visualizar nas fotografias areas ou ainda feitas a

    partir da baa as runas das antigas construes ali implantadas.

    Resultados preliminares a partir da anlise arqueolgica dos vestgios materiais

    O Levantamento Topogrfico Planialtimtrico Cadastral demonstrou que h uma

    concentrao de restos de alvenaria na parte mais elevada da rea. Constituda

    predominantemente de pedras, argamassa, reboco e tijolos possvel, em pelo menos dois

    pontos, identificar, entre os escombros, alinhamento que pode ser parte do baldrame da antiga

    construo sugerindo que a sua frente estaria voltada para oeste, em direo Baa. Planta de

    1846 e anlise de fotografias acessadas remetem a uma construo retangular, com maior

    dimenso no sentido oeste-leste. Tambm a pintura de Rodowicz (apresentada acima) retrata a

    frente de uma igreja voltada para oeste, embora em sua representao da estrutura aparea

    apenas uma torre central, divergindo de imagens posteriores.

    O levantamento tambm permitiu observar na poro leste da parte mais elevada a

    ausncia destas estruturas e uma rea plana que pode ser o resultado de relocamento de

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    materiais, possivelmente com maquinrios, como preparao da rea para outra ocupao ou

    construo conforme foi levantando em entrevista (MUSSE, 2013).

    As prospeces apontaram alguns pontos com concentraes maiores de materiais que

    podem ser entendidos, num primeiro momento, como locais de descarte (lixeira) ou que

    sofreram menos intervenes ao longo dos anos. A maioria est para o mesmo lado da rea -

    leste e sudeste. H um ponto de sondagem, que um dos que apresentaram mais materiais, que

    se situa do outro lado da ruina, a noroeste. Esta pode indicar um local de descarte de uma das

    antigas ocupaes da rea j que est distante da parte que parece ter sofrido maior interveno

    e aos fundos da antiga Igreja.

    O material mais abundante nas coletas foi o construtivo, perfaz 81% do total. Isto vai ao

    encontro dos dados histricos que informam as diferentes construes e reconstrues da

    capela. Alm da funo religiosa, as informaes remetem residncia de religiosos e

    hospedaria no local, por um perodo estimado de 45 anos (entre 1752-1797), o que aponta

    possibilidade de se localizar vestgios desta edificao bem como materiais associados ao

    cotidiano domstico. Os materiais em geral associados a este contexto so loua de barro, loua

    branca ou industrial (porcelana), vidro, metal, carvo e ossos de animais.

    Os fragmentos de loua de barro foram identificados em maior quantidade a sudeste/leste

    da rea, local que acreditamos ser os fundos da runa. Tambm ocorrem na poro

    sudoeste/oeste. A loua branca ou industrial ocorreu em menor quantidade tambm na parte

    sudeste/leste da rea. Os remanescentes de recipientes de vidro tambm foram coletados nas

    duas reas com maior concentrao de vestgios artefatuais.

    Os ossos de animais so na grande maioria de peixes e foram identificados em maior

    quantidade prximo s sondagens em que ocorreram mais vestgios, a leste\sudeste da rea.

    Algumas peas podem ser fragmentos de ossos humanos, anlise mais acurada na prxima etapa

    do projeto dever esclarecer esta questo. No entanto, dos locais onde estes ossos ocorreram

    apenas uma sondagem estaria em local plano, propcio para enterramentos. Salienta-se,

    entretanto, que se trata de fragmentos soltos e que no foi identificada nenhuma estrutura

    funerria/de sepultamento.

    Em relao ao carvo, aparece espalhado por toda a rea indicando eventos que podem

    ser relacionados tanto ao prepraro de alimento quanto a queima de vegetao do local. As

    conchas que ocorrem prximas runa podem ser de material construtivo, argamassa ou piso,

    que desagregou, j que era comum seu uso na elaborao destes materiais, ou resto de

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    alimentao, indicando local de refugo.

    Em suma, com base na disperso de artefatos, ecofatos e estrutura arquitetnica, alm das

    informaes documentais, iconogrficas e orais, considera-se que a ltima estrutura com funo

    religiosa teria um formato retangular, com a frente voltada para oeste. Vestgios materiais foram

    coletados majoritariamente a leste e sudeste da estrutura, tratando-se, provavelmente, de local

    onde teria existido outra construo e tambm, local de refugo secundrio.

    Todos estes dados caracterizam o stio arqueolgico histrico Morro do Hospcio. A

    cultura material aqui apresentada a partir dos dados obtidos durante os trabalhos de

    Arqueologia, apontam para a intensa relao entre os indivduos e o espao ao longo do tempo,

    especialmente por meio das relaes socioculturais que abrangem o cotidiano daqueles que

    pensaram e organizaram aquele lugar, considerando a cultura material como produto, mas

    tambm como vetor das relaes sociais (MENESES, 1983).

    Nesse sentido, a cultura material deve ser pensada como parte do universo fsico,

    apropriado pelos indivduos no mago das relaes sociais. Para Meneses (1983, p. 112), a

    cultura material pode ser entendida como:

    aquele segmento do meio fsico que socialmente apropriado pelo homem. Por apropriao social convm pressupor que o homem intervm, modela, d

    forma a elementos do meio fsico, segundo propsitos e normas culturais. Essa

    ao, portanto, no aleatria, casual, individual, mas se alinha conforme

    padres, entre os quais se incluem os objetivos e projetos. Assim, o conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificaes da paisagem, como

    coisas animadas (uma sebe, um animal domstico), e, tambm, o prprio

    corpo, na medida em que ele passvel desse tipo de manipulao (deformaes, mutilaes, sinalaes) ou, ainda, os seus arranjos espaciais

    (um desfile militar, uma cerimnia litrgica).

    Ao pensarmos a cultura material do stio arqueolgico histrico Morro do Hospcio com

    destaque para os fragmentos de material construtivo (81% das coletas) e dos outros materiais

    (loua de barro, loua branca, vidro, metal, carvo e os ossos de animais), e tambm a estrutura

    resultante das vrias reformas que se deram naquele espao, estes suscitam algumas indagaes,

    relacionado principalmente, a prpria construo da capela, fruto da iniciativa de Isabel Cunha

    em 1681.

    Segundo Pereira (2004) a Igreja Matriz estava localizada a 50 braas, ou seja, 110

    metros de distncia do stio. Considerando essa distncia como relativamente pequena, nos

    perguntamos qual a inteno em construir uma capela no alto de um morro, estando prxima a

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    outra? Uma suposta explicao seria a identidade religiosa do francisquense desde o incio da

    ocupao, de acordo com Pereira (2004, p. 113) era preocupao mxima dos fundadores de

    vilas construir primeiramente a igreja, que atestaria os seus sentimentos religiosos e a sua f

    ilimitada na Providncia Divina, sob cuja proteo esperavam realizar o seu intento.

    Atualmente, segundo dados do IBGE (2010), mais de 60% da populao se autodenomina

    participante da f Catlica em So Francisco do Sul.

    Alm da religiosidade, a ocupao ou utilizao de um espao em detrimento a outro,

    tambm poderia indicar questes relacionadas a um possvel conflito social ou mesmo ao

    campo de interesses desfrutado pelos grupos sociais.

    Outra hiptese, estaria relacionada com a ocupao de um ponto estratgico na

    paisagem. So Francisco do Sul tem como referencial na paisagem a ntima relao com mar,

    suas ruas e casas foram construdas nessa perspectiva. O Morro do Hospcio, faz parte de um

    conjunto de trs elevaes (alm dele o Morro da Caixa D'gua e o Morro do Rdio) que

    circundam o ncleo inicial de ocupao, podendo ser considerado um ponto estratgico, a partir

    do momento em que dele podemos avistar o centro urbano, a rea porturia e a baa.

    O estudo da cultura material e as hipteses levantadas para desnudar os usos e

    significados atribudos ao stio arqueolgico histrico Morro do Hospcio, possibilitam a

    compreenso quanto as ocupaes daquele local, que certamente, exerceu forte influncia na

    vida dos francisquenses como marco construtivo para a cidade e tambm interagindo no

    imaginrio da populao local. Acreditamos que o espao ora habitado e transformado nos

    fornece o aporte para a reflexo quanto as relaes socioculturais, ultrapassando o meio fsico

    e revestindo-se como um lugar simblico.

    Segunda Lima (2011, p. 21)

    a cultura material produzida para desempenhar um papel ativo, usada tanto para afirmar identidades quanto para dissimul-las, para promover mudana

    social, marcar diferenas sociais, reforar a dominao e reafirmar

    resistncias, negociar posies, demarcar fronteiras sociais e assim por diante.

    Consideramos essencial o aprofundamento na anlise da cultura material, no intuito de

    desvelar as camadas de interesses que delineiam o relevo daquele espao. Para tanto, a cultura

    material revela-se como vetor ativo dessa possibilidade, pois estabelece para alm do objeto

    material as nuances no bojo das relaes sociais e identitrias, seus significados atribudos no

    tempo e no espao pelos indivduos, a partir de intenes construdas cotidianamente.

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    Desta forma, ao investigar o espao social, palco das atividades humanas e onde

    encontramos a marca indelvel da histria cristalizada na espacialidade e na materialidade,

    teremos acesso ao espao humanizado e as formas utilizadas para a transformao da natureza

    pelos indivduos, revelando sistemas cognitivos e culturais, cdigos, cheiros, representaes,

    sabores e saberes, que constituem a nossa existncia no tempo, nos espaos e lugares.

    REFERNCIAS

    ALEXANDRE, A. So Francisco do Sul: Ex-ilha. Terra de sonhos e tradio. So Francisco

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